A inspiração que vem da sala de aula
Texto integral
Entrevistada
1Soraya Fleischer - Atualmente, é professora no Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília. Atua na área da Antropologia da saúde, interessada em processos de adoecimento, cronicidade, deficiência, metodologia e ética em pesquisa. Integra a CASCA – Coletivo de Antropologia e Saúde Coletiva, um laboratório de pesquisa, extensão e docência na UnB. Desde 2016, tem coordenado e conduzido a pesquisa “Síndrome congênita do vírus Zika em Recife/PE: Uma antropologia dos ímpetos maternos, científicos e políticos”, realizando pesquisa de campo sempre acompanhada de estudantes em formação como pesquisadoras. Resultados recentes dessa pesquisa foram publicados nas revistas “Cadernos de Campo”, “Interface” e “Cadernos de Gênero e Diversidade” e textos de popularização científica podem ser encontrados no Blog da pesquisa: https://microhistorias.wixsite.com/microhistorias. Contato: fleischer.soraya@gmail.com
2Brasília, 5 de setembro de 2018
Introdução
3A primeira versão dessa entrevista foi realizada como requisito pedagógico da disciplina “Didática Fundamental”, oferecida pela Profa. Ireuda da Costa Mourão do Departamento de Métodos e Técnicas, na Faculdade de Educação, Universidade de Brasília. Embora, no semestre de sua realização, Nathália Barcelos Ubialli estivesse sendo estudante da Profa. Soraya Fleischer e lhe encontrasse no mínimo duas vezes por semana, a entrevista aconteceu por um recurso midiático dada a dificuldade de uma agenda mútua dentro do prazo necessário. A entrevistadora combinou de enviar as questões por escrito via o aplicativo de mensagens de celular WhatsApp e, no dia seguinte, em momentos mais livres, a entrevistada foi pouco a pouco respondendo cada questão com uma respectiva mensagem de áudio. Como mais comumente acontece em pesquisas qualitativas, a pesquisadora transcreveu posterior e literalmente o material bruto.
4Dada a relação antiga e afetuosa entre as duas partes e também ao tema da conversa, que é particularmente caro à entrevistada, a dupla decidiu editar o material para publicação. A ideia foi manter um tom geral da informalidade que é característica de uma entrevista, a partir de sua oralidade, espontaneidade de associação de ideias, bagagem que a dupla já tinham em comum, alegria característica de um encontro entre duas pessoas que se admiram e gostam mutuamente. Mas, nessa versão final da entrevista, foram suprimidas cacofonias, dificuldades de entendimento e menções que seriam muito internas a um público mais amplo. E, claro, alguma atualização foi realizada, já que é impossível reler ideias elaboradas em um momento e não querer suplementá-las com o que se aprendeu de lá para cá.
5Nathalia: Conte-me em que momento você está na sua carreira e em que área atua?
6Soraya: Meu primeiro e único vestibular foi para Artes Plásticas na Universidade de Brasília em 1992. Fiz metade do curso e depois pedi uma transferência para as Ciências Sociais. Em 1997, eu me formei como bacharel em Ciências Sociais, com habilitação em Antropologia. De 1998 a 2000, fiz o mestrado também na Antropologia, também na UnB. Depois, fui trabalhar em diferentes organizações não governamentais, como o Grupo de Apoio à Prevenção à Aids/DF (GAPA/DF), o Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), o Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), o Grupo Curumim de Gestação e Parto. Em 2003, fui fazer o doutorado em Antropologia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
7Em 2007, fiz concurso na minha alma mater, a UnB. Passei e, em agosto de 2018, completei uma década como professora da Universidade de Brasília. Passei o primeiro ano, 2008-2009, como professora na Faculdade de Ceilândia/UnB, onde ajudei a fundar o primeiro curso de graduação em Saúde Coletiva no país. Depois, fui para o Departamento de Antropologia, onde hoje sou professora associada e bolsista produtividade em pesquisa do CNPq. Atuo na área de Antropologia da saúde, mas também lido com teoria antropológica, metodologia e outros temas que eu tenho desenvolvido mais recentemente, como mercado de trabalho em Antropologia, literatura e Antropologia. Sou professora e orientadora nos três níveis, graduação, mestrado e doutorado. Atualmente, faço pesquisa sobre as consequências da epidemia do vírus Zika entre famílias de classe popular na grande região metropolitana do Recife/PE.
8Nathalia: Diante dos desafios enfrentadas por professoras na educação brasileira, gostaria de saber quais foram as razões que te motivaram a escolher a docência. Há alguma autora e/ou professora que te inspirou e/ou te inspira?
9Soraya: Eu sou de uma família de professores e professoras. Meus pais, meus avós, várias tias, tios, primas e primos foram professores. Eu tenho um irmão, David Ivan Fleischer, que é antropólogo e professor também, com quem eu brincava por horas e horas de escolinha quando éramos pequenos. Com uma prima, Taciana Rezende, na cidadela de Lagoa da Prata, no interior de Minas Gerais, passávamos a tardes chuvas das férias de verão, preparando aulas, atividades e provas para nossas bonecas. Livro, planos de aula, conversas sobre a universidade, sala de aula, os problemas do alunado foram assuntos dos almoços em família. A Universidade de Brasília sempre foi muito presente na minha casa, meus pais se referiam a esse mundo de uma forma muito positiva. Eu os via muito contentes, muito realizados como professores.
10Além disso, sim, felizmente, eu tive vários professores inspiradores na minha vida, eu tive duas professoras incríveis na minha primeira série (que hoje chamamos de primeiro ano). Eu tinha seis para sete anos e o afeto permeava a nossa relação. Elas se chamavam Mrs. Dunham e Mrs. Somerdin, isso foi no interior de Nova Iorque, para onde meus pais tinham ido se refugiar um pouco da ditadura que vivíamos no Brasil à época. Depois, as professoras que eu tive nos segundo, terceiro e quarto anos (eu com 8, 9 e 10 anos de idade, respectivamente), foram muito inspiradoras porque muito criativas, muito alegres e davam muito espaço pra podermos desenvolver a nossa identidade como indivíduos e como grupo. Foram as professoras Glaydes e Lia, na escola que à época se chamava Tia Bibia e hoje é o Instituto Natural de Desenvolvimento Infantil (INDI), no Lago Norte, um bairro de Brasília onde passei grande parte da minha infância. Depois eu tive professores super presentes e atenciosas, Suely e Francisca, de literatura e matemática no quinto e sexto anos na escola pública onde fui estudar, também no Lago Norte. No ensino médio, tudo era muito corrido, muito rápido. O vestibular passou a ser a única meta e não exatamente o ensino, a troca, o convívio. Lembro menos desses professores. Lembro de um professor de Português, Eli Magalhães, e um professor de Física, que era muito filosófico a seu modo, André Fratesi.
- 1 Reconhecendo a importância e centralidade desses/as mestres/as que foram tão inspiradores/as à Antr (...)
11E, já quando eu chego à Universidade de Brasília, o Prof. Martin Novion foi uma grande inspiração pra mim, ele era um cara de uma imaginação incrível e foi com ele que aprendi a ter curiosidade científica: essa vontade de saber, de conhecer, de fazer pesquisa, de entender os fenômenos mais estranhos e complexos à minha volta. Esse legado vem definitivamente do Martin. Ele me apresentou cenários e realidades absolutamente desconhecidos para mim. Ele trabalhava com o tema do corpo, do sofrimento, da morte. Foi Martin que me introduziu na antropologia da saúde, de onde eu nunca mais saí. A Profa. Mariza Peirano, já no meu curso de mestrado, foi um exemplo de seriedade com que levava o seu ofício, o compromisso que ela tinha com a gente, a retidão com que pensava os autores e autoras clássicos. Toda essa postura também me marcou muito. E o Prof. Gustavo Lins Ribeiro, que foi meu orientador no mestrado, me estimulou muitíssimo a ganhar mundo, ampliar horizontes, pensar o globo como possibilidade infinita para o olhar antropológico. Depois, a Profa. Claudia Fonseca, já no meu doutorado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, foi extremamente inspiradora pelo jeito com que ela pensava antropologia, com que ensinava dentro e fora de sala de aula, com que conduzia o trabalho coletivo dentro das pesquisas e dos encontros semanais no Núcleo de Antropologia e Cidadania (NACi). Ela era sempre muito inquieta e não aceitava de primeira as coisas que eram ditas por nós, pelas interlocutoras com quem convivíamos em campo, pelas autoras que líamos. Ela não aceitava naturalmente os dados que construíamos em nossos projetos. Ela sempre ia além, pensando ainda mais sobre eles. Ela nos incentivava muito a fazer pesquisa, a ir pro trabalho de campo, a vivenciar a relação com as pessoas, a escrever e escrever diários de campo. Tudo isso foi muito inspirador pra mim.1
12Também queria lembrar que eu não fiz o curso de licenciatura em Ciências Sociais. na minha época, essa era uma opção muito desvalorizada, não nos valeria muito no mercado de trabalho porque não havia Ciências Sociais no ensino médio, por exemplo. Mas também porque não víamos que a prática e a reflexão sobre o ensinar eram importantes. Esse é um ranço de uma formação voltada unicamente para a reprodução da universidade em termos da pesquisa. O que quero dizer é que, nas Ciências Sociais, não somos estimulados à docência e (quase) somente à pesquisa. Por exemplo, eu não conheço um/a colega, nessa década de UnB, que tenha requisitado uma licença-capacitação ou licença pós-doutoral para fazer um curso de didática ou aprimorar suas habilidades pedagógicas. Nunca vi nada parecido.
13Quando eu virei professora universitária, eu senti muito essa lacuna no meu currículo e eu fui correr atrás para compensar. O que eu sei sobre didática vem de meu autodidatismo, posso dizer. Eu fui ler sobre como dar aula, como ensinar antropologia. Eu fui conhecer manuais de Introdução à Antropologia (e nos EUA há muito mais materiais didáticos para a nossa área, como histórias em quadrinhos, audiovisuais, jogos etc.). Eu fui permitindo, aos poucos, que a minha sala de aula também se convertesse em um laboratório, onde posso experimentar atividades, exercícios, brincadeiras, por exemplo. Sempre deixo claro pra turma que estou tentando algo novo, que pode dar certo ou não e que a opinião deles, ao final, é fundamental para aprimorar minha prática. Olhar para a sala de aula dessa forma é estimulante, não nos deixa cair em monotonia ou repetição. E, mais do que isso, a sala de aula ser um laboratório didático quer dizer que também gera dados, passíveis de análise e publicação. Eis o pulo do gato! A docência também alimenta a pesquisa, também se torna um espaço legítimo para a reflexão e, para acalmar os ânimos mais produtivistas, também pode gerar ideias para artigos, capítulos e livros. Eu tenho investido nisso, na sistematização de minhas experiências pedagógicas na forma de artigos, também para irmos adensando um conjunto de textos que pensem o ensino da Antropologia – um tema que só recentemente tem ganhado espaço dentro da área e aparecido na forma de grupos de trabalhos em congressos e livros qualificados.
- 2 bell hooks. Teaching to transgress. Nova Iorque: Routledge, 1994.
14Nesse caminho é que tive a sorte de conhecer a bell hooks, uma maravilhosa professora estadunidense, negra e feminista, absolutamente inspiradora. Teaching to transgress2, me foi indicado pelo meu irmão antropólogo e professor. Ele já usava bastante para melhorar a sua prática docente e (agradeço-o sempre por essa dica!) eu me apaixonei por essa autora. Virou meu livro de cabeceira, que leio e releio sempre. Então, embora não tenha sido minha professora diretamente, ela permanece muitíssimo inspiradora para mim. E, como tenho descoberto mais recentemente, para tantas outras colegas. hooks nunca figurou em nenhum curso que eu fiz durante meus anos de formação, tampouco Paulo Freire, pasme!, que só me foi apresentado devidamente pelas linhas de hooks. Ela é uma grande discípula do mestre brasileiro, muito mais conhecido, lido e aproveitado no exterior do que aqui. Somente quando eu já atuava na Saúde Coletiva, vi vários colegas lerem e recomendarem a obra de Freire. Mas nunca na Antropologia!
15Como você pode ver, foi um conjunto de professores e professoras que passaram pela minha vida e foram deixando marcas, aqui e ali e com conteúdos específicos também. Cada um/a com uma contribuição. No entanto, mesmo brincando de escolinha e mesmo tendo tantos mestres na família, eu não pensava em ser professora “quando eu crescesse”. Quando criança, eu queria ter outra profissão, eu queria ser caminhoneira para poder trabalhar viajando. Mas, ao longo da minha formação, sobretudo nos anos de pós-graduação, a carreira docente foi ficando mais clara, foi se mostrando como um caminho real e possível. E eu fui me formando como professora dentro mesmo da carreira da Antropologia, eu fui me percebendo confortável no lugar da docência, encontrando o meu jeito de fazer, de dar aulas e conviver com as estudantes uma vez professora. Eu fui conhecendo e gostando mesmo do oficio já caminhando dentro dele. Então, eu diria que ser professora é um processo continuado que passa por se identificar com esse papel e também por (re)inventar um jeito de pôr esse papel em prática. Eu não decidi e depois virei professora; eu fui virando professora como uma escolha continuada. E, como professora, eu posso ter um pouco de caminhoneira também, viajando em sentido metafórico e concreto, em sala de aula, em situações de pesquisa, em congressos acadêmicos. Hoje, como professora e pesquisadora, eu viajo muito, muito. Viajo sozinha, mas também com minhas estudantes, meu irmão, minha filha, meus pais.
16Nathalia: Quais são os maiores desafios, limitações e alegrias na sua experiência com a docência? Durante esse processo, houve experiências que a fizeram repensar ou certificar-se de sua escolha?
17Soraya: A maior alegria como professora é ver a transformação das estudantes. Quer dizer, ter a chance, o privilégio, a sorte de ser convidada para testemunhar como, a cada ano que passa, elas adquirem conhecimento, inventam conhecimento, revisam o conhecimento. Elas recebem e deixam também sua marca em mim, na minha sala de aula, na minha forma de fazer pesquisa, escrever textos, ser uma acadêmica. Elas vão mudando como pessoas, mulheres, feministas. Isso, pra mim, é a maior alegria. É ver a superação, é ver a transformação e é ver o amor que elas vão desenvolvendo por si mesmas e pelas suas companheiras de jornada profissional. E vão se encontrando, encontrando um lugar mais feliz dentro do mundo como um todo e dentro também do mundo acadêmico.
18Um desafio grande para mim é conseguir me comunicar bem, com paciência e pedagogia, com afeto e respeito. E, além disso, é também conseguir fazer uma escuta qualificada para entender as questões que as estudantes trazem do ponto de vista teórico, mas também do ponto de vista metodológico, ético, existencial. Somos, em geral, somos de mundos diferentes, diferentes no sentido de geração, classe social, cor de pele, ritmo e relação com a universidade. São todas diferenças que exigem que eu me esforce pra entender o que está sendo dito e esperado por elas. É um esforço para entender onde o calo aperta para cada uma e para cada turma e poder oferecer uma antropologia adequada. Esse é um grande desafio.
19Mas há outros desafios também, mais estruturantes, que perpassam à docência. O clima do departamento, uma regra da universidade ou uma política governamental, como estamos vivendo nesse momento no país, dificultam a minha prática docente. E eu tento, de alguma forma, preservar a sala de aula como um lugar de curiosidade científica, de convivência amorosa. Mas nem sempre eu consigo, afinal, também sou perpassada por esses atropelos mais estruturantes. Noto que a identificação com a docência é realizada no dia a dia, semana a semana. Tem semana que eu estou mais afinada com esse trabalho e, em outras, eu estou mais interessada na pesquisa, ou em ficar quietinha no meu canto estudando. Há uma certa flutuação, assim, da minha certeza e da minha realização na docência.
20Nathalia: O que é ensinar e aprender? E o que deve ser considerado nesse processo?
21Soraya: Ensinar e aprender, acho que são dois verbos, duas ações, muito imbricadas. Eu tenho coisas a ensinar porque eu tenho uma bagagem, uma experiência acumulada, mas esse ensinar, ele é inevitável e felizmente perpassado pelo re-aprender. Então, por mais que eu coloque coisas na roda, elas são retrabalhadas pelas estudantes e, por elas, são devolvidas para mim na forma de novas perguntas, de insatisfações, de inquietações. E tudo isso me faz pensar em como eu estou ensinando e o que eu estou ensinando. Então, são dois verbos que atuam em diálogo pra mim, precisam estar, se possível, em uma relação simétrica. Quando o ensinar começa a ficar muito mais forte que o aprender, sinto que o resultado é um desequilíbrio. Quer dizer, minha voz e autoridade se sobressaem muito em sala de aula ou na convivência com as estudantes. Fica desigual e também desinteressante porque acaba caindo muito na educação bancária, do querido Paulo Freire, onde eu ensino, ensino, ensino e as estudantes só recebem, recebem, recebem, como se elas fossem receptáculos vazios. Aí fica desigual, e fica irreal e artificial porque todo mundo tem coisas pra colocar na roda, todo mundo pode ora ensinar e ora aprender – e esse é um pilar antropológico por excelência! Eu posso até ter algo a apresentar para a turma, mas são elas que trazem ingredientes inesperados e estranhos para mim, que atualizam, temperam, desestabilizam minhas certezas. É nesse vai e vem que eu entendo melhor a minha prática como professora e que eu aprendo mais Antropologia.
22Nathalia: O que você acredita ser necessário para ser considerado uma “boa professora”? O que uma professora precisa saber e conhecer?
23Soraya: Uma boa professora precisa conhecer bem a sua área de trabalho, no meu caso a Antropologia em geral e a Antropologia da saúde de uma forma mais específica. Mas isso não quer dizer que eu tenha que saber tudo, o tempo inteiro, sobre Antropologia. Eu tenho que me manter atualizada, saber o que está sendo publicado, as questões que estão mobilizando a minha comunidade científica no momento, mas eu também não posso sucumbir à pressão de conhecer tudo e saber tudo. Isso é uma ilusão. O aprendizado do conteúdo é constante e eu preciso também revisitar coisas que eu já li e agora leio com outros olhos, como uma antropóloga não mais de 20, mas de 40 anos. Eu estou o tempo inteiro em processo de aprendizado. A ideia de boa professora passa por ter essa humildade, por reconhecer que não se sabe tudo e, ao mesmo tempo, não me deixar sufocar pela pressão de ter que saber tudo.
24Para além do conteúdo, eu preciso entender a realidade social onde a minha docência acontece. Quer dizer, entender que contemporaneidade é essa que compartilhamos como discentes e docentes. Entender a realidade das minhas estudantes, o que elas estão vivendo, o que é difícil para elas, o que elas veem como bonito, o que elas esperam do passado-presente-futuro, como elas percebem o mundo à sua volta e o mundão maior. Então, acho que uma boa professora tem que ter essa sensibilidade, tem que saber além da teoria, mas também o contexto em que a antropologia é feita, o contexto do departamento, da universidade, das estudantes em suas famílias e bairros, da cidade, do país. Notar tudo isso forma uma professora com os pés no chão, com a sensibilidade desperta. Eu preciso saber das coisas que estão acontecendo tanto na Antropologia quanto entre as antropólogas.
25Nathalia: Você tem limitações na aplicação de seus métodos e preferências didáticas? Como você lida com isso?
26Soraya: Eu acho que sim, que há muitas limitações. Da forma como eu trabalho, que você já conhece bem, que tem uma marca muito coletiva, eu quero que nós convivamos, trabalhemos juntas, estejamos em roda. Então, tudo é muito coletivo, tudo muito junto e misturado. Isso não necessariamente é fácil de realizar. Primeiro, porque a universidade reforça uma marca mais individualista. As pessoas são estimuladas a sentar em carteiras individuais, as carteiras são dispostas em filas. As pessoas são estimuladas à competição, a desenvolver sua carreira própria. É tudo voltado à mônada individual e minha prática docente tenta rever isso, quebrar um pouco isso. Em vez de olhar somente para a nuca da colega à sua frente, sugiro que se olhe para o lado, pro olho uma da outra. Quer dizer, a gente se pensar como corpo, como grupo, como bando. Então, o desafio começa dentro de sala de aula, que é pequena, o mobiliário é unitário, dificulta que reorganizemos o espaço com outras disposições e isola as pessoas nos cantos. Mexer na posição dos móveis tira as pessoas de suas zonas confortáveis, incomoda as outras aulas quem vêm na sequência. A forma com que aprendemos a nos comportar em uma sala de aula, desde muito cedo, é apenas ouvir, fazer a atividade, ganhar a nota, voltar pra casa etc. A proposta que eu faço é a gente se ajudar, é a gente aprender uma com a outra, é ler o trabalho que a outra colega escreveu, é deixar outra pessoa ler o que você escreveu. Muita gente me conta que apenas as professoras e professores leem o que escrevem e devolvem vez por outra um comentário, uma correção. Em geral, só recebem a menção ao final do semestre. Ler antes de imprimir o próprio texto, ler depois de imprimir, fazer leituras cruzadas entre estudantes, escrever sobre o trabalho alheio são todas técnicas muito simples de estimular que conheçamos mais o que e como escrevemos e que sejamos interpeladas pelas outras colegas.
27Mas isso mexe muito com as estudantes, elas não estão acostumadas com isso. Então, falar, falar em um volume que seja audível, participar ativamente da aula, sustentar uma opinião são todas coisas que podem parecer muito óbvias para quem está há muito tempo na docência, mas que pode ser muito difícil para muita gente. A ideia geral é de que somente a professora é quem sabe, de que a sala de aula exige apenas uma postura passiva de recepção. As estudantes, sobretudo as meninas, não foram estimulada a isso. Os meninos, por sua vez, são muito mais estimulados a falar e defender suas ideias, mesmo que seja na base do grito, o que intimida as meninas, os tímidos, aqueles com opiniões divergentes, os alunos de classe popular ou estrangeiros. Abrir a boca pode ser mais difícil pra estudantes que de alguma forma destoam, pois, falar é chamar atenção para sua diferença, uma estudante mais velha que está fazendo um segundo curso superior, ou uma aluna com alguma deficiência. Quando começo a provocar tudo isso, com uma pedagogia mais freiriana e mais hooksiana, mexo muito com a cultura de sala de aula. A opinião das meninas foi historicamente invalidada, silenciada, desconsiderada e elas ficam com raiva de mim, por se sentirem expostas no início; ou reagem vibrantemente, ocupando para valer e quase exclusivamente essa fala pública. É preciso que, nesse espírito de aprendizado coletivo que eu estou sugerindo, que eu também tenha simpatia, empatia, paciência e sensibilidade pra acolher essas diferenças e muitas vezes os vários timings de fala e de contribuição. O meu papel é criar condições mais confortáveis pra elas poderem se enxergar no mundo e se colocarem de modo mais autêntico dentro desse mundo.
28O sistema de avaliação e a burocracia também são muito individualizantes. Eu gostaria que as monografias finais pudessem ser escritas a quatro mãos, por exemplo, duas alunas fazendo pesquisa no mesmo lugar, juntas, em colaboração mútua. Há pouco espaço, por exemplo, para as docentes conversarem sobre suas turmas, estudantes, aulas. O foco, geralmente, é na pesquisa e não tanto nas questões pedagógicas, as dificuldades que estou tendo com um conteúdo específico ou numa turma de certo semestre. Não há um formato que valorize e contabilize nossas horas de trabalho, por exemplo, se eu e outra colega quisermos dar aulas juntas. Isso é pouquíssimo estimulado, a contabilidade acadêmica não consegue abarcar esse tipo de cooperação. Eu prezo por uma educação mais coletiva em vários níveis, não só nas salas de aula.
29Nathalia: Como você se sente sendo escolhida como uma professora inspiradora? Quais conselhos você daria para uma futura professora?
30Soraya: Bom, sobre a inspiração, eu quero te dizer o seguinte: claro, fico extremamente feliz de ser identificada como uma “professora inspiradora”! Fico lisonjeada, fico muito agradecida, sobretudo porque as pesquisas mostram como a educação e a docência não vêm figurando no horizonte das estudantes como uma opção pra sua vida profissional. Então, é muito bom saber que inspiro alguém pelo fato de eu ser professora. Minha expectativa é de que esse encontro feliz entre uma professora que gosta de dar aulas e uma estudante que também aspira dar aulas possa ampliar horizontes de escolha e de estilo profissional.
31Mas eu não sei se fica muito claro pra mim ou para você o que e como eu inspiro. Claro, eu recebo feedbacks positivos e também negativos, mas são pontuais. E eu falo isso também como estudante que já foi inspirada: eu não consigo localizar exatamente como minhas professoras me marcaram. Talvez haja uma coisa maior, um conjunto de habilidades, de atributos, de características, de atividades que uma professora faz, um conjunto de aspectos que toca a gente. Só que esse não me parece um processo exatamente linear, acho que é um processo muito afetivo e que eventualmente passa pelo racional. Só posso desejar que as minhas atitudes com as estudantes, minhas escolhas de atividades e organização espacial da sala de aula, meus programas e ideias deixem uma marca positiva na memória e no coração de vocês.
32E, para terminar, sobre a segunda parte da sua pergunta. Na etapa profissional, a coisa mais importante para uma estudante é ter um amplo, diverso e criativo repertório. Quer dizer, muitas oportunidades, bons encontros, bons exemplos, boas lembranças de onde ela poderá lançar mão para seguir uma carreira ou fazer uma escolha profissional. A docência, claro, está dentro desse repertório e ela pode acontecer de muitas formas, no mundo universitário, no ensino médio, em espaços socioeducativos, na igreja, no bairro, no movimento social, no ensino técnico, na família, nos cursos técnicos. Tem tantas formas que o ensino e a docência podem aparecer na vida de uma estudante de Antropologia quando ela se profissionalizar. Eu só acho forte demais ficarmos perguntando às crianças o que desejam ser quando crescer ou já esperar de uma estudante de graduação que ela tenha clareza dos caminhos profissionais que terá uma vez formada. Há, claro, uma diferença de grau nesses dois exemplos, mas ainda assim, eu acho precipitado e também um pouco violento. Não se tem total controle sobre próprios passos. Oportunidades totalmente inesperadas surgem à nossa frente e mudam completamente o rumo da nossa vida profissional. Então, por mais que eu queira que várias de minhas estudantes se transformem em boas professoras, eu não posso sugerir que todo mundo siga esse caminho. O que eu posso, sim, é desejar que uma prática de diálogo, de escuta permeada de respeito mútuo, de curiosidade e amor pelo outro percorra a vida profissional das minhas estudantes, seguindo pela docência ou não.
33Àquelas que desejarem a educação e a docência, eu tenho que dizer o seguinte: é importante gostar de gente. Esse é um primeiro e mais importante ingrediente. Gostar de estar com gente, de conviver com as pessoas, de conversar, de escutar, de apreciar histórias, de ter uma atitude aberta pro que der e vier. O espaço da docência precisa ser extremamente flexível e criativo. É preciso ter uma natureza aberta, maleável pra mudar no meio do caminho, para incorporar o que aparecer inesperadamente no meio de uma aula. Não dá pra ter uma natureza muito rígida se você quer ser professora.
34É preciso também acreditar em duas coisas. Primeiro, acreditar na capacidade de superação. Isto é, de que as pessoas têm a capacidade de melhorar enquanto ser humano, de desejar mudança, de aprender outras formas de ser do jeito que elas acharem necessário e bonito e, veja bem!, não necessariamente melhorarem num sentido programado e esperado pela professora, pelo plano de aula, pela ementa da disciplina. E, segundo, ter consciência do tempo, passado, presente e futuro, no sentido de que a educação é uma atividade projetiva. Claro, ela também é retrospectiva no sentido de pensar de onde se veio, no que se transformou. Mas ela também é projetiva porque queremos chegar em outro lugar. A gente quer fazer diferente no futuro, que aprender mais, quer ser mais feliz. Então, na docência, tem que haver essa capacidade de sentir esperança, que é um sentimento direcionado para o futuro, uma capacidade de projetar junto com as pessoas esse futuro.
35Então, minha querida, essas são algumas coisas que eu consigo pensar como inspiração e sugestão pra futuras professoras. A antropologia, em especial, nos dá a possibilidade de trabalhar em ambientes pedagógicos muito diferentes, não apenas na universidade. A antropologia é uma área muito mais ampla e nos dá ferramentas e habilidades pra pensar a docência em vários espaços, pois ela é muito mais um olhar do que necessariamente um lugar. Espero que essa conversa tenha sido útil de alguma forma para você. Eu te agradeço muito pela oportunidade de dialogar, de ventilar as minhas ideias, de amadurecer mais um cadinho como eu percebo a minha atuação como professora de Antropologia numa universidade pública num Brasil do século XXI.
Notas
1 Reconhecendo a importância e centralidade desses/as mestres/as que foram tão inspiradores/as à Antropologia que produzo hoje em dia, dediquei-me a elaborar e/ou integrar diferentes homenagens destinadas a cada um/a deles/as: a) FLEISCHER, S.; SAUTCHUK, C. E. (Orgs.). Anatomias populares: A Antropologia Médica de Martín Alberto Ibánez-Novión. Brasília: EdUnB, 2012; b) BORGES, A.; FLEISCHER, S. “Apresentação do dossiê: A etnografia na trajetória de Mariza Peirano”. Anuário Antropológico, 41, 2016, pp. 231-235; c) FLEISCHER, S.; ALENCAR, P.; NAVA, E. (Orgs.). Pensando o capitalismo contemporâneo: Um Festschrift a Gustavo Lins Ribeiro. Brasília: Letras Livres, 2016; d) FLEISCHER, S. “Parteiras, parto domiciliar e reciprocidade numa pequena cidade amazônica”. In: BRITES, J. e MOTTA, F. M. (Orgs.). Etnografia, o espírito da antropologia : tecendo linhagens homenagem a Claudia Fonseca. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2017, pp. 272-311.
2 bell hooks. Teaching to transgress. Nova Iorque: Routledge, 1994.
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Para citar este artigo
Referência eletrónica
Nathália Barcelos Ubialli, «A inspiração que vem da sala de aula», Ponto Urbe [Online], 24 | 2019, posto online no dia 25 junho 2019, consultado o 07 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/pontourbe/6273; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/pontourbe.6273
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