1Uma etnografia em movimento. Esse parece ser o grande desafio que a pesquisa de Karina Biondi busca enfrentar ao seguir as dinâmicas, ou melhor, os ritmos, pelos quais os enunciados do Primeiro Comando da Capital se espraiam por diferentes quebradas e unidades prisionais.
2O caminho adotado pela autora para enfrentar o desafio de etnografar um “objeto incorpóreo” foi adotar o movimento como método que conduz a pesquisa. Mais do que uma opção, colocar-se “em movimento no movimento” se apresentou como uma necessidade diante das dificuldades existentes tanto em acessar interlocutores que vivem em torno de atividades consideradas ilegais (a qualquer momento eles podem sair do ar), como pela ausência de uma totalidade coerente ou uma territorialidade fixa que delimitasse os contornos do trabalho de campo, assim como pela própria dinâmica de funcionamento do PCC.
3Certa vez, François Laplantine (2004) escreveu que a descrição etnográfica não fixa a visão em um saber, mas introduz uma preocupação naquilo que é visto. Este parece ser um importante princípio da pesquisa. Karina Biondi se propôs a descrever como seus interlocutores constroem modos singulares de conhecimento no intuito de elaborar uma ciência social do observado. Para isso, passou a explorar as incompletudes e brechas que, a princípio, impediam a construção de um saber voltado a estabelecer conceitualmente totalidades orgânicas coerentes, que, de certo modo, se alinham à perspectiva midiática e policial já existente sobre o PCC. Ou seja, dialogando com Deleuze e Guattari (importantes referências teóricas na pesquisa), a autora se negou a construir conceitualmente um “Corpo com Órgãos” para o PCC, em que as diferenças e contradições encontradas tendem a ser descartadas na construção de uma visão coesa e orgânica do movimento. Ao invés disso, a pesquisa explora sua dimensão incorpórea que se efetua no movimento como um “Corpo sem Órgãos”. Mais importante do que mapear sua extensão territorial é realizar uma etnografia em que as intensidades sejam descritas por meio dos diferentes ritmos de como as ideias circulam e repercutem pelas quebradas.
4Para atingir esse objetivo, a autora realiza um movimento de diálogo com os diferentes sentidos atribuídos às brechas, lacunas e incompletudes encontradas em campo. Se a princípio os pesquisadores tendem a descartá-las, Biondi segue o caminho oposto. Enxerga nas brechas a possibilidade tanto de “não trair o campo”, como encara as aporias encontradas como espaço privilegiado para se colocar em sintonia com os fluxos e conexões produzidas pelo “movimento PCC” em diferentes territorialidades pelas quais circulam seus enunciados. E, mais do que isso, ao encontrar as brechas a pesquisa explora o caráter criativo que envolve a descrição etnográfica quando é realizada a partir dos modos de conhecimento não do observador, mas do observado.
5Trata-se de descrever como a “ideia PCC” repercute por diferentes territorialidades e evidencia modos distintos de se “fazer PCC”. Movimento este que, como mostrado em pesquisa anterior (Biondi, 2010), se efetua por meio de uma dinâmica ao mesmo tempo transcendente, imanente e desindividualizada. Se em sua pesquisa de mestrado a autora explora como a transcendência é construída a partir das práticas cotidianas nas prisões e aponta para consolidação de uma entidade coletiva PCC, na pesquisa de doutorado, por sua vez, o objetivo se desloca para como a “ideia PCC” se espraia com ritmos diferenciados de acordo com o território estudado.
- 1 Para uma discussão mais detida das dinâmicas integrativas e conflituosas das relações do professor (...)
6Feita as considerações gerais que apontam para a originalidade e a qualidade da pesquisa, proponho agora realizar um movimento de explorar as brechas e produzir novas sintonias de modo que o movimento não se encerre ao final da leitura do livro. Ou seja, buscarei agora explorar algumas possíveis repercussões de como o movimento proposto pela autora possa ser levado adiante a partir de outras conexões para além das vivenciadas pela pesquisadora. Saliento apenas que as brechas encontradas não são fruto de avaliações morais da obra, mas da produção de uma espécie de desassossego intelectual que desenterraram em mim certas ideias e as colocaram em movimento. Aqui cabe chamar a atenção para a posição por mim ocupada que difere da autora. Enquanto sua pesquisa é resultado de uma perspectiva (experiência) de dentro que, contudo, não busca colocar-se como sendo o “ponto de vista do nativo”, a posição por mim ocupada não é propriamente de um pesquisador, mas de professor que atua na Fundação CASA1 e em escolas públicas nos últimos quinze anos. Essas experiências profissionais me permitem vivenciar uma pluralidade de situações e atores que torna possível estabelecer outras conexões de como o movimento se territorializa através de ritmos diferenciados, seja na Fundação, seja nas quebradas. Seguindo a tese da autora, mais do que pensar estes espaços pela ideia de controle (ou não) do crime, trata-se de encará-los como vasos comunicantes que apontam para outras experiências de como a “ideia PCC” potencialmente se apresenta.
7Um primeiro aspecto no qual a leitura do livro me afetou diz respeito à importância de se atentar aos diferentes ritmos como estratégia para não estriar o movimento. Digo isso, pois durante os anos que leciono na Fundação CASA pude perceber diferentes formas pelos quais os jovens almejam “fazer o PCC” que, inclusive, em alguns momentos não estavam em sintonia com os resultados de pesquisas etnográficas realizadas em torno dos agenciamentos prisionais, e para além deles, tal como nos estudos de Biondi (2010), Feltran (2018), Marques (2014) e Mallart (2014). O modo como a “ideia PCC” se territorializou em unidades da então FEBEM apresentou-se para mim como uma força sem dúvida transcendente; entretanto, em sua imanência, pude observar ritmos que apontavam para centralização em torno da individualização de condutas daqueles que ocupavam posições de agenciamento político nas unidades. Ou seja, em muitas situações os jovens que exerciam posições de agenciamento político encaravam suas posições como sinais de status, prestígio e privilégio, ferindo assim a ética em torno do princípio da igualdade enquanto eixo da reciprocidade entre ladrões. Em muitos casos, inclusive, as ideias eram preteridas por práticas abusivas da violência como formas de controle dos conflitos. Não é por acaso que muitos adolescentes com o qual convivi na Fundação se posicionam de forma cética diante do princípio da igualdade que norteia a “reciprocidade entre ladrões”, já que se trata de um ideal de difícil concretização nas práticas cotidianas.
8Acredito que essas possíveis variações do “fazer PCC” na instituição decorram basicamente de dois fatores. Em primeiro lugar, embora possa existir um número considerável de adolescentes dispostos a baterem de frente com o sistema, isto é, de enfrentarem a organização institucional que permeia a medida socioeducativa com o objetivo de desestruturar seus procedimentos, em muitos casos, não há ladrões de visão que assumam posições de agenciamento e mediação de conflitos nas relações entre os adolescentes e deles com os profissionais que atuam na instituição. Isto porque, uma coisa é conhecer o proceder que se refere à “ideia PCC”, outra coisa é conseguir fazer dela o eixo que coordena as relações cotidianas entre os diferentes atores da instituição. Já o segundo motivo diz respeito à maior dificuldade em ter acesso a aparelhos celulares no interior da instituição, dificultando assim a comunicação com as prisões que se apresentam como “pontos irradiadores da visão”. Além dos saberes sobre como tocar a cadeia, o contato direto com a prisão garante também uma maior legitimidade dos jovens que assumem posições de liderança diante do restante da população, na medida em que as orientações passadas para a população de internos não partem destes jovens. Ou seja, eles se colocam como intermediários que transmitem a visão do certo, reafirmando assim o caráter incorpóreo do movimento PCC, tanto na sua dimensão transcendente como em seus agenciamentos imanentes.
9Essas situações vivenciadas no “fazer PCC” na antiga FEBEM eram contraditórias diante da “ideia PCC” apresentadas em pesquisas sobre o tema. O presente livro de Biondi, portanto, ajuda não a desfazer a contradição, mas a entendê-la como parte do movimento em que ritmos, sintonias e repercussões acontecem de modo diferenciado. Ou seja, a territorialização da “ideia PCC” não acontece por meio de um padrão pré-estabelecido, mas como um movimento singular de sintonia e repercussão que pode levar a ritmos diferenciados e até deturpados de sua ideia original.
10Daí a importância da comunicação e dos aparelhos celulares, sobretudo em espaços de privação de liberdade, como dispositivos que potencialmente eliminam os ruídos no movimento de capilarização da “ideia PCC”, assim como a presença de ladrões de visão, pois cabe a eles a responsabilidade de fazer repercutir o certo. Aqui vale ressaltar os predicados desses malandros, especialmente em sua capacidade de desenvolver o autocontrole. É por meio dele que, por um lado, evita-se tomar atitudes isoladas e na emoção (ação que denota falta de visão e práticas injustas de malandrão) e, por outro lado, reforça a característica de um ladrão que age na razão (“analisa os dois lados da moeda”), que sabe usar com parcimônia as palavras (“a língua é o chicote do corpo”) e que encontra um equilíbrio entre a humildade e a cabulosidade. Atributos esses que estão em sintonia com a disciplina do comando.
- 2 Essa expressão pode ser usada também com relação a “não humanos”, como programas televisivos ou det (...)
11Outra situação que gostaria de destacar para pensar como a “ideia PCC” se espraia entre os segmentos populacionais das quebradas refere-se a uma figura que não aparece na pesquisa, mas que parece muito presente como uma “categoria acusatória” nesses territórios: o Zé povinho. Trata-se de um adjetivo pejorativo e genérico que abarca um universo heterogêneo de pessoas, sobretudo aquelas que possuem o costume de “tomar conta da vida dos outros”. Em alguns casos pessoas podem ser rotuladas genericamente de Zé povinho, como pude perceber muitas vezes quando adolescentes se referiam pejorativamente a segmentos populacionais não relacionados diretamente com o crime (moradores, trabalhadores). Em outras situações esse estigma não se refere tanto ao sujeito em si, mas sim a sua prática. Ou seja, uma fala ou atitude de um ladrão, por exemplo, pode ser considerada como uma prática de Zé povinho, no entanto, sem necessariamente implicar em ser rotulado como tal 2, como acontece, por exemplo, na Fundação quando um jovem resolve observar e comentar negativamente sobre a vestimenta de um educador que leciona na instituição. Neste momento ele pode ser acusado pelos demais internos de realizar práticas de Zé Povinho. Muitas vezes, tanto dentro como fora da Fundação, escutei a expressão: “Zé povinho é mato”. Afirmação que interpreto de dois modos: são pessoas tanto que “não valem nada” (não agregam e só querem ver a derrota e as iniquidades do outro), assim como “crescem” em todo lugar (sua presença é numerosa). Sendo assim, sua presença não deve ser negligenciada nas quebradas.
12A partir destas considerações é possível identificar com clareza como se deu a inserção de Karina Biondi no campo com o objetivo de construir uma descrição de dentro do movimento, já que seus interlocutores eram ladrões ou eram pessoas que estavam de algum modo em sintonia com o crime. Mesmo suas incursões pela quebrada se mostram fortemente influenciadas pelos ladrões. Isso fica evidente quando a autora relata sua incursão pela Favela Cadência com o ladrão Lúcio (2018: 331-334), em que o diálogo com uma moradora (Dona Nívea que relata os benefícios trazidos pelo movimento) é introduzido, acompanhado e mediado por Lúcio. Como resultado, a pesquisa tende a seguir caminhos por onde as ideias repercutem e são abraçadas.
13Potencialmente, a visão daqueles considerados Zé povinho representa seu oposto e relativiza até que ponto os moradores sem relação com o corre tem o poder para realizar a chamada revolta dos humildes (enfrentar o ladrão que representa o crime na quebrada) caso se sinta oprimida pelos ladrões. Será que ele aceita ser pontuado por “este tipo de gente” estigmatizada por uma categoria acusatória pejorativa? Será que é plausível e crível que pessoas não envolvidas com o crime decidam entrar em conflito com ladrões? Pois, como mostra a autora, mesmo para os ladrões que possuem uma maior familiaridade com esse universo, ir para um debate envolve muitos riscos e os resultados são inesperados.
14Por fim, um último aspecto que gostaria de chamar a atenção diz respeito ao cuidado em manter a polícia afastada da quebrada. Aqui os irmãos e responsas aparecem como mediadores de conflitos e demarcadores de território, pois determinam onde os ladrões podem ou não roubar, já que, como afirma o título do livro, é “proibido roubar na quebrada”. No entanto, existe o risco de ladrões (no sentido estrito daqueles que subtraem bens de outrem) trazerem a polícia para dentro da quebrada na fuga após a realização do corre. Com a presença da polícia, a quebrada fica moiada prejudicando o funcionamento do comércio de venda de drogas e expondo outros ladrões que possivelmente estejam pedidos pela justiça. Dessa situação decorrem possíveis tensionamentos, sobretudo, entre ladrões e traficantes. Como me confidenciou certa vez um aluno da Fundação que cometia roubos e entrou em atrito como os irmãos de sua quebrada: “a quebrada é meu refúgio, é onde estou protegido após fazer meu corre. Se eu não puder ir para lá, para onde eu vou?”. Este tipo de cobrança remete, como destacou Biondi na pesquisa, a um maior protagonismo do tráfico no crime e nas próprias quebradas, já que as biqueiras representam pontos de emanação a “ideia PCC”, seja para aqueles que estão envolvidos diretamente - varejistas e usuários -, seja para os moradores que enxergam neste local um meio de levar suas demandas para os ladrões com o objetivo que eles arbitrem um conflito.
15Mais do que possíveis imperfeições ou defeitos da pesquisa, os aspectos levantados no decorrer desse texto são fruto das reverberações provocadas pela leitura do livro e como sua narrativa colocaram as minhas ideias em movimento. A resenha, portanto, buscou ao mesmo tempo reafirmar a incompletude como uma premissa importante não apenas da pesquisa de Biondi, mas do próprio exercício do fazer etnográfico, e, ao mesmo tempo, oferecer novas conexões e caminhos a serem explorados por aqueles que se debruçam em pesquisar novos modos de agenciamento nas cidades brasileiras.