Ser morador de Jacarepaguá é uma beleza, a não ser que você tenha de ir para algum outro bairro. Longe de tudo, até da Barra!!! Por isso separei 18 coisas que apenas os moradores de Jacarepaguá vão entender: (1) Acordar 4 horas antes de chegar ao trabalho; (2) Ser o primeiro a chegar na festa ou o último a chegar; (3) Você passa mais tempo na Linha Amarela, Geremário Dantas ou na Serra do que em casa; (4) Já se acostumou com o amigo da Tijuca ou de Ipanema dizendo que Jacarepaguá é longe; (5) Para quem é fora do Rio sempre tem de explicar que é perto da Barra; (6) Não tem ideia de quantos bairros têm em Jacarepaguá; (7) Se a pessoa mora no Rio 2 e diz que mora na Barra você lembra que o Autódromo é de Jacarepaguá; (8) Provavelmente conhece melhor o Barra Shopping que o Center Shopping; (9) Já foi na Festa Junina do Retiro dos Artistas; (10) Estudou ou conhece alguém que estudou no Brigadeiro, Pentágono ou Padre Butinhá; (11) Pegar a Geremário Dantas na hora do rush é motivo de choro; (12) Sabe que a Taquara só demolindo tudo e construindo de novo; (13) Conhece alguém que rodou na Serra; (14) Para você a Igreja da Nossa Senhora da Penna é devia ser uma das Sete Maravilhas do Mundo; (15) O Motel Mirante é o último do chique; (16) Lembra da letra de que “Jacarepaguá é longe pra Caramba”; (17) Poucas coisas dão tão medo quanto o Caxias-Freguesia; (18) Mas não mudaria do Pântano de Jacarés de forma alguma!!! (BLOG DIÁRIO DO RIO, 2014).
- 1 Ver itens 1, 2, 3, 4 e 16.
- 2 Itens 1, 3,11, 13 e 17.
- 3 Itens 5 e7.
- 4 Itens 7 e 8.
- 5 Itens 5 e 8.
- 6 Item 7.
- 7 Itens 6, 12 e 18.
- 8 Itens 9,10,14,15 e18.
1A epígrafe acima provavelmente não diz nada a quem não conhece um pouco mais a fundo a região, mas faz todo sentido para os que cruzam ou vivem aqui. Ela evidencia com traços humorísticos algumas das representações acerca de Jacarepaguá: uma região “longe”1, onde o transporte urbano é sofrível2 e que tem a Barra da Tijuca como ponto de referência geográfico3 e também social4 – referência esta, da qual se aproxima5 e se afasta6 em busca da consolidação de uma identidade própria7, que por ora, parece ser marcada por elementos bairristas8.
2Durante os anos em que moro no bairro, venho sendo testemunha das mudanças em sua configuração. Não foram poucas as vezes que me atrasei para algum compromisso devido às obras da estação do BRT no Tanque, na Praça Seca ou na Barra da Tijuca. Também era comum ir até um supermercado próximo e voltar com quase uma dezena de panfletos anunciando unidades habitacionais nos prédios em construção na região. Portaria 24 horas, espaço gourmet, quadra de esportes, piscina e academia eram itens que quase sempre figuravam nesses panfletos, oferecendo a possibilidade de viver em espaços que prometiam lazer e segurança aos futuros compradores. Ao longo de poucos meses era possível ver casas cederem lugar a prédios residenciais e empreendimentos comerciais – os quais, somados ao comércio e às ruas repletas de carros, compunham um típico cenário urbano.
3Os bairros em Jacarepaguá pareciam se beneficiar das mudanças urbanísticas na Barra da Tijuca, impulsionadas nos últimos anos pelas obras que preparavam a região para a Olimpíada de 2016. Essa era a minha impressão: a de observar uma espécie de “bairro satélite”, que orbitava em torno do status da Barra da Tijuca e reproduzia no microcosmo de seus prédios residenciais para as camadas médias e médias-baixas esse mesmo ideário de lazer, segurança e distinção.
- 9 Jacarepaguá é uma Região Administrativa (RA) composta por dez bairros. Além do Pechincha, estão inc (...)
4No intuito de compreender o universo de significações atribuídas à vida local, foi empreendida uma pesquisa empírica que contou com observação participante e entrevistas individuais em profundidade. Foram entrevistados 28 moradores de um condomínio residencial no bairro Pechincha – um dos dez que compõem a região de Jacarepaguá9. O número de entrevistados não foi maior devido ao critério de saturação teórica, ou seja, quando “a interação entre campo de pesquisa e o investigador não mais fornece elementos para balizar ou aprofundar a teorização” (FONTANELLA, 2011, p. 388). Em outras palavras, as respostas já se repetiam com frequência.
- 10 Nove homens e 19 mulheres.
- 11 Duas pessoas eram viúvas e outras duas solteiras, Seis eram divorciados e 18 pessoas eram casadas.
- 12 Uma pessoa tem ensino fundamental incompleto, nove têm o ensino médio completo, 14 têm ensino super (...)
- 13 A renda familiar total dos informantes varia de R$ 1.300 até R$ 30.000. A média aritmética é de R$ (...)
- 14 Os informantes têm entre 27 e 74 anos. A maior parte deles (17 informantes) se concentravam na faix (...)
- 15 19 informantes são católicos, cinco evangélicos (Igreja Batista e Igreja Presbiteriana) e três se d (...)
5Os informantes formavam um grupo misto, no que tange aspectos como sexo10, estado civil11, escolaridade12, renda13, faixa etária14 e religião15. Curiosamente no que diz respeito às percepções acerca do bairro, as respostas não apresentaram correlação com nenhuma destas variáveis sociodemográficas. As entrevistas continham perguntas sobre os processos que trouxeram os informantes a viver no bairro, o que caracterizava a vida nele, quais os seus aspectos positivos e negativos entre outras questões que foram surgindo em cada caso e na medida em que as conversas iam se desenvolvendo.
6Uma importante contribuição aos estudos locais foi dada por Gilberto Velho. Em fins dos anos 1970, Velho publicou A utopia urbana, estudo de antropologia social que tinha por objetivo estabelecer relação entre estratificação social, residência e ideologia, tendo como objeto de análise os moradores de um edifício de apartamentos conjugados em Copacabana. O autor observou que as categorias zona sul, centro, zona norte, subúrbio, tinham um forte conteúdo ideológico e subjetivo, formando um mapa social onde as pessoas se definiam pelo lugar onde moravam. Uma das conclusões de Velho (1989) é de que o mapa social da cidade é uma representação ideológica da divisão de classes, ou seja, numa sociedade hierarquizada como a brasileira, onde o local de moradia ocupa o lugar das divisões de classe e grupos sociais.
7Outro interessante estudo foi empreendido por Antônio Firmino da Costa, que pesquisou por mais de duas décadas o bairro da Alfama, em Lisboa. O autor (COSTA, 2008, p. 484) usa a terminologia “sociedade de bairro” para designar um tipo específico de configuração social, onde a categoria bairro aparece não somente como unidade territorial urbana, mas também como quadro social denso e multifacetado e como categoria simbólica de referência social identitária. Costa (2008) ressalta a relevância persistente, ou mesmo renovada, das vizinhanças e das identidades locais nas sociedades contemporâneas, sobretudo em seus contextos urbanos. A pesquisa de campo empreendida pelo autor acerca da sociedade de bairro alfamista reafirma a importância dos contextos locais para a compreensão de aspectos sociais profundos das sociedades.
8Conceitos como o de “sociedade de bairro” (COSTA, 2008), “sociedade de esquina” (WHYTE, 2005) e “sociedade de corte” (ELIAS, 1987) buscaram dar conta de configurações sociais específicas e mecanismos particulares de estruturação cultural e identitária, além de analisar suas articulações com um quadro local específico, no qual se sobrepõem múltiplas dimensões do relacionamento humano e onde são gerados estilos de conduta característicos e formas simbólicas singulares – relações simultaneamente expressivas e constitutivas de uma identidade cultural atrelada à população de um bairro enquanto entidade coletiva e círculo de pertença pessoal e grupal (COSTA, 2008, p. 484).
9Para compreender as dinâmicas sociais e as representações dos moradores acerca do bairro Pechincha, é imprescindível discorrer sobre sua gênese.
10A origem da região de Jacarepaguá está associada ao período colonial e à administração eclesiástica, que é anterior à administração civil. A catequese foi uma das bases das colonizações portuguesas. Assim, as ocupações na cidade do Rio de Janeiro aconteciam por meio das paróquias, denominadas freguesias. A freguesia de Jacarepaguá data de 1661 e compunha a fronteira agrícola da cidade. O caminho dos jesuítas foi então utilizado pelos primeiros povoadores da região e, desta forma, Jacarepaguá foi se estruturando em pequenos centros ao longo das estradas. Na medida em que estes centros se desenvolviam, as propriedades iam se subdividindo e transformando em futuras áreas para especulação. O parcelamento do solo passou, ao longo dos séculos, das sesmarias aos antigos engenhos, depois aos sítios, chácaras, casas e, por fim, os condomínios que conhecemos hoje.
- 16 A primeira freguesia foi São Sebastião, em 1569; seguida por Candelária, em 1634; e Irajá, em 1644.
11O nome “Jacarepaguá” vem do Tupi YACARÉ-UPÁ-QUÁ, que significa algo como “baixa (ou vale) dos jacarés” ou “lagoa rasa dos jacarés”. Apesar da denominação indígena, parece não haver informações acerca das populações tradicionais da região. O que se tem registro é que em 1594, o então governador Salvador Correia Sá doou a região como sesmaria a seus dois filhos Martin Correia de Sá e Gonçalo Correia de Sá. Em 1661, foi criada a freguesia de Nossa Senhora do Loreto e Santo Antônio de Jacarepaguá, pelo governador João Correia de Sá, que seria a quarta freguesia do Rio de Janeiro16. A sede da freguesia era a Igreja Matriz de N. Sra. do Loreto, construída pelo padre Manoel de Araújo.
Igreja do Loreto
Fonte: Izabelle Vieira. Janeiro de 2017.
12Ao longo do século XVIII, Jacarepaguá era conhecida como “Planície dos Onze Engenhos”, devido à intensiva produção açucareira da região. Já no século XIX, a produção cafeeira avança no território, que vai se subdividindo e dando origem a novas fazendas, que se aproveitaram do solo fértil dos engenhos para o cultivo do café.
13No fim do século XIX começa um processo de aterramento de pântanos e re-divisão em chácaras, que ocorreu lentamente e se manteve até os anos 1860. No século XX, a baixada de Jacarepaguá continuava agrícola, mas o café perdia completamente o seu domínio e a atividade granjeira iniciava a sua presença. As chácaras se multiplicavam a cada ano para abastecer o mercado do centro e das outras partes próximas da cidade.
14Por ser uma área mais afastada do centro, a região contava com poucas opções de acesso e condução. Até o começo do século XX Jacarepaguá ainda se mantinha com baixas taxas de ocupação populacional e conservava características agrárias, como engenhos, chácaras, árvores centenárias e edificações do século XVII. Gradativamente, a região foi perdendo suas feições rurais e assumindo um status de periferia, apresentando-se como eixo de expansão metropolitana (SANTANA, 2012, p. 104-105).
15A gestão do prefeito Prado Junior (1926 a 1930) melhorou os acessos à região através da modernização das estradas de Jacarepaguá e do Itanhangá, que juntas interligariam Jacarepaguá com a Barra da Tijuca.
16Nos anos 1950 foi inaugurada a Autoestrada Grajaú-Jacarepaguá (atual Menezes Cortes), facilitando o acesso à Zona Norte e ao centro da cidade. Por fim, em 1997, a inauguração da Linha Amarela (av. Governador Carlos Lacerda) – via expressa que interliga a Barra da Tijuca e Jacarepaguá à Avenida Brasil – ampliou ainda mais o acesso à região (ARMAZÉM DE DADOS, INSTITUTO PEREIRA PASSOS, s.l. s.d. a).
17A localidade popularmente conhecida como “Pechincha” surgiu em fins do século XIX. Localizada no chamado Caminho da Freguesia (atualmente avenida Geremário Dantas), onde se encontravam as estradas do Tindiba e do Pau Ferro, o local era caracterizado por um mercado no qual eram vendidos os produtos dos sitiantes da região. Seu negociante, o “Pechincheiro”, concorria com o comércio da Freguesia e da Taquara por conta de seus baixos preços. O jornalista Waldemar da Costa (s.l; s.d.) escreveu sobre a origem de uma de suas principais vias: a Estrada do Pau Ferro – onde se localiza o condomínio onde foi realizada a pesquisa. Conforme o autor, essa estrada cortava a antiga fazenda do Engenho da Serra. No local, havia abundância de paus-ferros, árvore da família das leguminosas e, por isso, o logradouro recebeu esse nome.
18A denominação, delimitação e codificação do bairro Pechincha foi estabelecida pelo Decreto Nº 3158, de 23 de julho de 1981 com alterações do Decreto Nº 5280 de 23 de agosto de 1985 (ARMAZÉM DE DADOS, INSTITUTO PEREIRA PASSOS, s.l; s.d. b). O bairro é predominantemente residencial e seu comércio se concentra no Largo do Pechincha. É importante destacar ainda que o Pechincha possui expressiva área verde e muitas casas, as quais estão sendo acentuadamente substituídas por grandes conjuntos habitacionais.
19
20Tal discussão é acionada na tentativa de compreender o imaginário social presente hoje em torno de Jacarepaguá – e do Pechincha. Como pôde ser visto, a origem da região de Jacarepaguá está estritamente ligada ao modo de vida rural, o que inclui a presença de fauna e flora ricas, devidas principalmente à proximidade do Maciço da Pedra Branca e da Floresta da Tijuca (SANTANA, 2012, p. 112).
21Também a forte presença religiosa da Igreja Católica nos primórdios do povoamento e ao longo da urbanização marca o imaginário sobre a região e circunscreve práticas de seus habitantes. A Igreja Nossa Senhora de Penna é um dos principais pontos de visitação e uma das igrejas mais requisitadas para a realização de casamentos e batizados. Nos meses de junho e julho as festas juninas tomam as igrejas e ruas ao seu redor, mobilizando a comunidade em torno das festividades. Outros eventos católicos também acontecem no bairro ao longo do ano, como a Festa de Corpus Christi, celebrada numa quinta-feira, 60 dias após a Páscoa, por meio de procissões nas vias públicas.
Igreja Nossa Senhora da Penna
Famílias começam a chegar para um batizado numa manhã de sábado.
Fonte: Izabelle Vieira, julho de 2018.
Vista da Igreja Nossa Senhora da Penna
Fonte: Izabelle Vieira, julho de 2018.
Procissão de Corpus Christi na rua Claudino de Oliveira
Fonte: Izabelle Vieira, 31 de maio de 2018.
Fiéis aguardam as bênçãos durante a procissão de Corpus Christi
Fonte: Izabelle Vieira, 31 de maio de 2018.
22A gênese rural da região de Jacarepaguá ainda povoa o imaginário de seus moradores. Dentre os entrevistados há uma percepção generalizada de que o bairro Pechincha guarda características de uma cidade interiorana, onde a rotina transcorre sem sobressaltos e as pessoas – quando não conhecem – minimamente se reconhecem nas ruas, o que revela uma espécie de bucolismo.
Eu gosto de roça e Jacarepaguá lembra muito isso! Eu que vim do interior, então aqui parece que você está no interior. [Ana, 37 anos, fisioterapeuta, ensino superior completo]
Um bairro mais simples, que traz um pouco a minha memória. Como eu venho do interior, essa memória de interior, de poder caminhar, de poder fazer as coisas, pegar a minha bolsinha e caminhar, fazer mercado, fazer feira, enfim... Eu acho que me remete muito a essa minha vida de infância de interior. Eu acho que Jacarepaguá ainda conserva um pouco disso, né?! Desse traço. [Carla, 38 anos, consultora administrativa e financeira, pós-graduada]
O pessoal é bem caseiro, sabe?! Tem as bagunças, mas elas não perduram a noite toda. [...] Parece o quintal de casa, você vai à esquina e todo mundo aqui se conhece! Parece aquela cidadezinha do interior, aquele pedacinho [risos]. [João, 64 anos, vendedor, ensino superior incompleto]
Eu estou ainda com esse ar de Jacarepaguá como era antes, eu não desfiz essa imagem da minha cabeça, então tem um pouco desse bucólico na minha cabeça, de andar por aqui despreocupado. [Caio, 46 anos, militar da aeronáutica, ensino superior completo]
23Embora os entrevistados apreciem a tranquilidade e familiaridade do bairro, é comum dentre aqueles que moraram em regiões periféricas o estabelecimento de uma comparação negativa entre os vínculos sociais estabelecidos no bairro anterior e no atual. A imagem mental acerca dos bairros periféricos é de que há mais solidariedade, os bens são compartilhados quando necessário e os vizinhos constituem redes mútuas de colaboração.
No subúrbio acontece muito essa questão do acolhimento. Então eu tive oportunidade de morar em Realengo então eu vi essa questão assim, do acolhimento, tipo... ‘Ah! Faltou açúcar!’ As vezes não tem o dinheiro, vai ali no vizinho. Aqui você tem um ou outro que você pode contar, mas assim... tem essa característica. [Ana, 37 anos, fisioterapeuta, ensino superior completo]
Não tenho o que falar, porque aqui cada um vive na sua, aqui quase ninguém se fala. [...] [na Pavuna era diferente] lá era casa né?! Eu conhecia todo mundo. Pode ser até também outro tipo de bairro, porque sei lá... outras pessoas. Poder aquisitivo mais baixo, deve ser... as pessoas são mais dadas umas com as outras. Aqui não, o pessoal já mais... um pouquinho nariz em pé, é eu acho! [Maria, 55 anos, secretária aposentada, ensino médio completo]
24Na obra “A metrópole e a vida mental”, Simmel (1979) se ocupa em investigar como a personalidade se acomoda às forças externas. Por meio da intensificação dos estímulos nervosos, a metrópole extrai dos indivíduos uma quantidade de consciência diferente da vida rural (ou em pequenas localidades), na qual o conjunto sensorial de imagens mentais flui de forma mais lenta e uniforme.
25Círculos pequenos de relações são estritamente fechados a estranhos ou antagonismos, de forma que seus membros individuais possuem um campo estreito para o desenvolvimento de grandes liberdades individuais. Em grupos maiores, a unidade interna se afrouxa e o indivíduo ganha maiores possibilidades de movimentos livres. Este processo de individualização cobra o preço da indiferença e da solidão ante a multidão metropolitana (SIMMEL, 1979).
26Enquanto nas pequenas localidades os habitantes costumam se conhecer mutuamente e ter relações mais emocionais, nas metrópoles há uma espécie de autopreservação dos indivíduos por meio de uma atitude mental de reserva para com o outro. Tal reserva ou distância mental faz os habitantes das metrópoles parecerem frios e desalmados: “como resultado dessa reserva, frequentemente nem sequer conhecemos de vista aqueles que foram nossos vizinhos durante anos” (SIMMEL, 1979, p. 17).
27O aspecto interior desta reserva é não somente a diferença, como também uma estranheza, uma leve aversão mútua, que pode se transformar em ódio e luta quando ocorre um contato mais próximo. A aversão está ancorada numa hierarquia complexa de simpatias e antipatias. A antipatia protege os indivíduos da indiferença e os prepara para o antagonismo prático que consuma as distâncias mentais e sociais – sem as quais o modo de vida na metrópole não seria possível. É essa reserva, que no fundo serve como disfarce a uma aversão oculta, que confere ao indivíduo uma liberdade pessoal muito maior do que nas cidades pequenas (SIMMEL, 1979).
28Poder-se-ia, a partir desta observação, inferir que o modo de vida em bairros periféricos mais se assemelha à vida em cidades pequenas, embora o Pechincha, embora ainda guarde elementos interioranos.
29Quando perguntados sobre como é viver no bairro e o que ele tem de melhor, os informantes comumente dizem gostar principalmente do comércio e dos serviços locais, além de apreciar os demais moradores, ou seja, a boa vizinhança comercial e residencial.
Eu gosto de viver aqui, porque eu acho que aqui é bem localizado, é próximo de tudo, pra ir pra cidade a serra [Grajaú-Jacarepaguá], Linha Amarela. Tem a Barra aqui pra ir pra praia, muito próximo. E aqui tem tudo aqui, todos os bancos, tem mercado... Acho bem localizado, próximo de tudo. [A vizinhança] é boa, conheço muita gente dentro e fora do condomínio. É próximo de tudo, né cara, tem tudo aqui! [Miguel, 60 anos, microempreendedor individual, ensino superior incompleto]
Eu acho tudo ótimo. Acho meus vizinhos maravilhosos. Eu moro num lugar onde tem banco, tem supermercados, tem farmácias... Eu gosto muito! A condução aqui também. Não é excelente, mas também está dentro de uma média que me dá um certo conforto. [...] Eu quase não saio de Jacarepaguá pra fazer nada, eu consigo resolver a minha vida aqui dentro de Jacarepaguá [...] especialmente agora que eu estou aposentada. [...] Jacarepaguá supre minhas necessidades mais urgentes. [Joana,70 anos, professora aposentada, ensino médio completo]
- 17 [Caio, 46 anos, militar da aeronáutica, ensino superior completo]
30A sensação de tranquilidade e segurança corrobora ainda mais para uma associação positiva entre o bairro e uma cidade interiorana, como afirma um de seus moradores: “Essa paz ainda que eu consigo enxergar aqui.. Aqui, pelo menos neste trechinho aqui, eu já me sinto bem [...] de andar por aqui despreocupado”17.
- 18 [Laura, 42 anos, podóloga, ensino superior completo].
- 19 [Beatriz, 43 anos, representante comercial, ensino superior completo]
- 20 [Gustavo, 71 anos, engenheiro, mestre]
- 21 [Julia, 37 anos, analista de comércio exterior, pós-graduada]
31Quando perguntados sobre o que não gostam no bairro, boa parte dos entrevistados menciona a mobilidade, quer seja pelos engarrafamentos, quer seja pela falta de transporte público ou ainda, pela distância do bairro em relação ao centro e à zona sul da cidade: “Longe de tudo!”18; “Poderia ter um metrô né?!”19; “o trânsito tende a piorar aqui”20; “Só o que estraga são os engarrafamentos”21.
- 22 [Miguel, 60 anos, microempreendedor individual, ensino superior incompleto]
- 23 [Sofia, 42 anos, securitária desempregada, pós-graduada]
- 24 [Mariana, 42 anos, química, ensino superior completo]
32Há diversas menções sobre a chegada da violência no bairro, personificada pelos assaltos e pelas favelas: “A violência é geral, mesmo tendo o batalhão [18º Batalhão de Polícia Militar]”22; “Esse negócio da Cidade de Deus piorou bastante a violência, que não tinha.”23; “a violência, que a gente está vendo que está chegando cada vez mais próximo”24 .
- 25 [Caio, 46 anos, militar da aeronáutica, ensino superior completo]
- 26 [Camila, 47 anos, securitária desempregada, ensino superior completo]
33A falta de espaços de lazer e cultura também foi apontada: “essa particularidade eu acho um pouco faltante aqui, essa parte de cultura”25; “eu vou dizer aí que [são deficitários] o transporte e opções de lazer, principalmente no Pechincha... falta de praças, né?!”26.
34Todos os entrevistados apontam mudanças no bairro. Tais mudanças dizem respeito ao adensamento populacional decorrente, sobretudo, da verticalização do bairro (e da região) e seus efeitos, tais como o aumento dos engarrafamentos, a modificação da população, a abertura de novos estabelecimentos comerciais e o aumento dos preços dos serviços na região.
Há mais de 20 anos não existia essa quantidade de prédios que tem hoje, [...] eram tudo casas. Aqui parecia assim, meio... uma cidadezinha mesmo [Pedro, 39 anos, policial militar, ensino superior completo]
Muita obra, muitos prédios. [...] Assim como eu te falei, alguns bares que não tinham por aqui começaram a vir pra cá, isso também melhorou, entendeu?! [...] Ficou diferente. As pessoas acham que Jacarepaguá é só a charrete e o cavalo na rua, aquela época que tinha muito aqui, né?! As pessoas mudaram. [Sofia, 42 anos, securitária desempregada, pós-graduada]
Está crescendo muito e sem controle. Você pega a [estrada] Pau Ferro todinha, você vê uns dez condomínio em construção. E eu acho que nosso bairro não está pronto pra isso, entendeu?! Eu acho que a infraestrutura do bairro não está segurando isso, entendeu?! Então o quê que acontece?! O trânsito está ficando caótico, você não consegue circular, você vai pros restaurantes sempre está tendo fila, o mercado sempre está cheio, o hortifrúti sempre cheio... Por que?! Porque o local é pequeno e está ficando muito aglomerado de gente. [...] O custo de vida está alto. [...] Então realmente... o custo de vida aqui em Jacarepaguá, eu acho alto. É, mas você paga por ter segurança, você paga por ter um pouquinho de acesso... [Julia, 37 anos, analista de comércio exterior, pós-graduada]
- 27 A primeira referência ao termo gentrification é atribuída à socióloga britânica Ruth Glass que, ao (...)
35Neil Smith (1979 apud BATALLER, 2012) inscreve-se numa teorização acerca do ciclo de vida dos bairros, segundo a qual os bairros experimentam fases de crescimento, declínio e revitalização. O ciclo de vida é algo inerente aos espaços e acontece em termos econômicos, por meio de uma espécie de concorrência entre grupos sociais, que conduz à diferenciação das comunidades e se manifesta materialmente pelo custo de vida distinto nos bairros, o que muitas vezes dá origem ao fenômeno de gentrificação27 (BATALLER, 2012, p.21).
36A gentrificação é um fenômeno fundamentalmente urbano que consiste em melhorias físicas e mudanças imateriais (econômicas, sociais e culturais) em regiões urbanas antigas que experimentam uma elevação de status, ficou conhecido como gentrificação – ou gentrification.
37Não é possível enquadrar o caso do Pechincha como um caso de gentrificação, posto que em seus primórdios o bairro já abrigava uma aristocracia rural e, posteriormente, estratos de uma pequena burguesia rural que residia em casas alocadas em grandes terrenos. Com o passar das décadas e, mais fortemente a partir dos anos 2000, a região teve um grande incremento populacional, por meio da subdivisão dos terrenos e construção de grandes conjuntos habitacionais. Se por um lado, tal mudança elevou o preço do solo e trouxe um incremento nos serviços (públicos e privados) disponíveis, por outro, não há dados disponíveis que possibilitem afirmar que a existência de processos de êxodo (e sim de adensamento populacional), e mais ainda, de emigração de populações de renda mais baixa em detrimento das de renda mais elevada – o que está no cerne do conceito de gentrificação.
38Se considerarmos, dentro de um espectro mais amplo, a gentrificação enquanto uma forma de especulação do solo que leva à transformação urbana, talvez fosse mais correto afirmar, utilizando os termos de Antônio Firmino da Costa (2008), que houve uma reabilitação urbana e uma recomposição social, ou seja, houve um ciclo de lançamento de projetos urbanísticos integrados nos espaços circunscritos ao Pechincha, assim como autor havia observado em bairros históricos e populares de Lisboa, que acabou por rearticular a identidade cultural e a ação coletiva de seus moradores.
39Nos processos de reabilitação urbana e recomposição social experimentados pelos moradores, a externalidade de populações é rejeitada, sobretudo quando se trata de segmentos de renda mais baixa.
Também cresceu tanto e quando cresce assim... não sei... vem tanta gente que a gente não está acostumado, que vem de outros bairros. [Mariana, 42 anos, química, ensino superior completo
Jacarepaguá não se preparou pra tanta gente vir morar aqui. Aí infelizmente começa o foco de pessoas de baixa renda. [...] Não que o lugar não seja bom pra você ir, mas passa a dar medo de pessoas que você não conhece. [João, 64 anos, vendedor, ensino superior incompleto]
As pessoas começaram a comprar muitos imóveis aqui. Então logicamente quando se aumenta o nível populacional, vai aumentar os carros, o trânsito de pessoas [...] [com esse] crescimento piorou! [...] comecei a ver mais essas coisas que eu não via anteriormente, esses barulhos, as... as... populações – vamos usar este termo – marginalizadas, vamos usar este termo assim, aumentaram também bastante, né?! [...] Não estou querendo colocar barreiras não mas infelizmente é um reflexo que nós vimos, é... são muito mais agressivas. [Caio, 46 anos, militar da aeronáutica, ensino superior completo]
40Ainda no caso do bairro, os mesmos entrevistados que apontam os efeitos de um tipo de processo de mudança do bairro são parte constitutiva do fenômeno, na medida em que sua vinda para o bairro está intimamente relacionada à sua ascensão social, haja vista que estes comumente se referem às regiões em que moravam anteriormente para evidenciar uma melhoria na qualidade de vida.
41A escolha do Pechincha como local de moradia se dá através do conhecimento prévio do bairro, por meio de vínculos parentais e/ou afetivos na região. Não obstante, a escolha considerou também a proximidade do bairro com locais de trabalho e/ou estudo e a possibilidade de ter mais mobilidade urbana – por conta da existência de linhas e pontos de ônibus nas redondezas e das duas vias de saída para outras áreas da cidade, que são a Linha Amarela e a autoestrada Grajaú-Jacarepaguá.
Meu marido já [morou em Jacarepaguá] e a gente tem parente aqui, na Freguesia, então a gente queria vir pra cá. [Rebeca, 56 anos, “do lar”, ensino médio completo]
Jacarepaguá porque eu gosto! Sempre fui daqui, então em Jacarepaguá conheço tudo aqui, em qualquer buraco eu tenho amigos aqui... [Vitória, 36 anos, técnica de laboratório desempregada, ensino superior incompleto]
Eu estava procurando algo pra comprar, mas não tinha um bairro específico, mas como minha tia mora aqui há mais de trinta anos [...] por ela morar aqui e têm outros dois primos meus que já moravam em Jacarepaguá [...] aí já forçou mais porque eu tinha família aqui. [...] Outra coisa também... é porque eu queria dar uma boa vida pro meu filho, dar uma qualidade de vida boa pra ele. Porque lá onde eu morava [na Pavuna] tudo era difícil. Pra você pegar uma condução, pro meu filho de repente estudar, fazer curso, tudo tem que pegar dois ônibus, tudo é longe! [...] [Maria, 55 anos, secretária aposentada, ensino médio completo]
42A aspiração de afastar-se de localidades mais populares, notadamente das favelas, foi o fator que motivou muitos dos entrevistados a virem para o bairro. Este é o caso de Laura, que conta: “Eu resolvi ir pra um lugar onde não tivesse favelas ao redor, porque o Rio de Janeiro começou a ficar violento”. A vinda de boa parte destas pessoas para o bairro é expressão de seu processo de ascensão social, o que fica evidente nas falas:
Eu gosto muito de Jacarepaguá. Se eu for comparar com São Gonçalo, é a água e o vinho, ou o proseco e água, de repente. É urbanizada, ruas calçadas, saneamento, tudo isso que a gente não vê em São Gonçalo. [Camila, 47 anos, securitária desempregada, ensino superior completo]
Melhorou muito! Onde eu morava [em Caxias] não tinha as coisas. A rua onde eu morava era rua de barro, não tinha telefone... Farmácia, não tinha farmácia [...]. [Mariana, 42 anos, química, ensino superior completo]
Quando eu vim pra cá [Jacarepaguá] eu vim pro céu! [risos] Grande diferença, né?! Não tem como! Tem suas diferenças entendeu?! [...] Lá [em Realengo] quantas vezes eu não fui buscar o [filho] a base de tiroteio?! [Ana, 37 anos, fisioterapeuta, ensino superior completo]
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44Conforme Abramo e Faria (1998), a maior parte dos movimentos migratórios é de curta distância, ao que supõem ser resultado de uma busca por usufruir das externalidades de vizinhança. Mesmo os movimentos mais longos, os autores acreditam estar ligados a uma reacomodação do mercado, ou seja, ricos/pobres saindo de áreas desvalorizadas/valorizadas, em direção a outras compatíveis com seu status socioeconômico. Daí a relevância da dinâmica imobiliária na estruturação dos espaços na cidade, promovendo deslocamentos de demandas e ratificando padrões de segregação existentes (ABRAMO e FARIA, 1998, 433).
45Ao estudar os fluxos e determinantes de mudanças residenciais, os autores (ABRAMO e FARIA, 1998, p.10) apontam certa regularidade nas decisões de deslocamento, por parte de diferentes segmentos sociais. Nos grupos de renda mais alta, as trocas de residência são impulsionadas por modificações no meio físico e social, que acabam por provocar mobilidade residencial em direção a áreas consideradas mais aprazíveis, menos densas e fora do núcleo urbano. A acessibilidade a outros locais da cidade (trabalho, comércio, escolas etc.) é menos valorizada, pois este grupo está ciente de que sua decisão atrai investimentos públicos e privados, estruturando o novo espaço. Nas classes mais baixas, a tendência de deslocamento obedece a duas lógicas: ou migram para o núcleo das cidades, onde pagam menores aluguéis por residências decadentes; ou vão para a periferia, que é caracterizada pela falta de infraestrutura e pela desvalorização que possibilita a construção em loteamentos irregulares.
- 28 Conway e Brown (1980 apud Abramo e Faria, 1998, p. 430) definem o conceito de acessibilidade como p (...)
46O grupo investigado não pode ser caracterizado nem como uma elite, nem como segmento de baixa renda. Trata-se de uma camada média e por isso, reúne algumas das motivações de ambos os segmentos sociais. Muitos deles emigraram de bairros populares, cada vez mais favelizados, e consideraram aspectos como a acessibilidade e amenidades sociais28 em sua decisão de vir para o Pechincha.
47Condomínios residenciais visivelmente têm se tornado o principal tipo de moradia no bairro Pechincha, sobretudo após os anos 2000. O condomínio onde moram os informantes da pesquisa foi inaugurado em 2005 e está localizado em uma das ruas mais valorizadas do bairro, a Estrada do Pau Ferro. A opção por esta forma de moradia traz importantes elementos para a compreensão da segregação socioespacial e do modo de vida de seus residentes.
48Em sua análise acerca da estruturação intraurbana na cidade do Rio de Janeiro, Abramo e Faria (1998) caracterizam a região de Jacarepaguá pela grande quantidade de terras vazias e pela proximidade com a Barra da Tijuca. Defendem ainda que a região despontou na década de 1980, “como área potencial da atividade imobiliária, atuando de forma a atrair população de renda intermediária, lançando condomínios similares aos da Barra da Tijuca em determinadas áreas, e em outras, reproduzindo o mesmo padrão que se consolidou na Zona Sul, prédios com varandas” (ABRAMO e FARIA, 1998, p.426). Conforme Raposo (2008, p. 110), os chamados condomínios fechados estão associados ao fenômeno da globalização, aos processos de reestruturação econômica, a uma nova estrutura social e a uma nova relação entre classes e grupos sociais. Eles refletem mudanças culturais e a emergência de novos estilos de vida e são signos do avanço da mercantilização e da racionalização da vida social, constituindo uma das múltiplas paisagens que compõem as, cada vez mais fragmentadas, metrópoles urbanas.
49As falas a respeito da ameaça da violência, da falta de espaços de lazer no bairro e da sensação de laços fracos de solidariedade, parecem estar intimamente ligadas à vida em condomínio. Viver num espaço desta natureza representa a possibilidade de sentir-se mais seguro, de distanciar-se de grupos sociais indesejados, sobretudo os de baixa renda e, ainda, de usufruir dos serviços de lazer que são escassos no bairro, como aponta Mariana:
Eu acho que é um lugar que não tem muito lazer. O lazer que eu tenho aqui no bairro é dentro do condomínio. Aqui é um bairro pra morar, dentro do dia a dia, mas se eu quiser um lazer eu tenho que procurar um lugar próximo, mas que não é aqui. [...] [Mariana, 42 anos, química, ensino superior completo]
50A vida em condomínios fechados incentiva a demarcação de distâncias espaciais, sociais e simbólicas, em relação aos que estão de fora, como forma de preservar uma ordem de alguma maneira ameaçada. Entretanto, tal ordem dos iguais não é necessariamente um universo coeso ou com forte presença de laços de sociabilidade. Viver em um condomínio também pode ser uma possibilidade de ter uma existência mais individualizada e com maior privacidade, mesmo perante os demais moradores do local (ANDRADE, 2002, p.6).
51Em relação à sua forma socioespacial, os condomínios fechados contemplam uma diversidade de soluções de habitação, tais como edifícios isolados e conjuntos de edifícios de apartamentos; conjuntos de moradias e; conjuntos mistos que incluem estes dois tipos citados. Como características, estes empreendimentos possuem simultaneamente: impermeabilidade do perímetro e controle de seu acesso; equipamentos privados de utilização coletiva (como ruas, piscinas, quadras de esportes, salões de festas, jardins etc.) e; usufruto coletivo privativo destes espaços exteriores que dão suporte físico à função residencial dos imóveis (RAPOSO, 2008, p. 112).
52Raposo (2008) defende que os condomínios fechados sejam interpretados simultaneamente como um produto imobiliário específico e como uma forma de segregação única – posto que é voluntária. Já Andrade (2002) substitui o conceito de “segregação” pelo conceito “distância social”, enquanto processo de separação e de classificação dos grupos na cidade. A autora destaca ainda que ambos os conceitos têm duas dimensões: a espacial e a social. Ainda de acordo com Andrade (2002), o conceito de distância social foi apontado primeiramente pelo sociólogo Georg Simmel. Conforme Andrade (2002, p.5), “o que é importante no pensamento de Simmel é que toda relação social comporta um determinado grau de distância e de proximidade que não guarda relação direta e necessária com as condições espaciais” – como no caso da metrópole, onde é possível estar próximo fisicamente do grupo, ainda que espiritualmente distante.
53A autossegregação em condomínios como fato produzido não somente pela vontade de seus atores, como também por forças que atuam na produção dos espaços, como mercado imobiliário e Estado, além de fatores como a difusão de certos valores sociais e modos de vida e o aumento da criminalidade, somado ao crescente sentimento de insegurança e medo (ANDRADE, 2002, p. 9-10).
54Toda essa análise sobre a vida no bairro deixa explícito um sentimento de saudade dos tempos idos. A memória de um período em que o medo da violência não acometia as pessoas, onde a vida econômica e social se desdobrava sem sobressaltos dentro dos limites da paisagem interiorana do bairro, é o elemento central quando os moradores falam sobre a região de Jacarepaguá e o bairro Pechincha. Mesmo quando seus moradores falam das recentes mudanças na região – onde casas são substituídas por grandes conjuntos habitacionais (ou condomínios fechados), gerando aumento no trânsito de carros e pessoas, maior oferta de comércio e serviços, encarecimento dos preços, entre outros – é possível perceber certo pesar, calcado na perda da familiaridade e da tranquilidade que caracterizam as raízes interioranas do bairro. Isto é revelador de um sentimento de profunda nostalgia.
55Conforme Oliveira (2017, p. 274), a noção de nostalgia é uma espécie de “anseio ou desejo pelo que está em falta em um presente transformado, inalcançável em função do caráter irreversível do tempo”. No caso do grupo pesquisado, há uma espécie de anseio por essencialismo, onde a imagem do bairro enquanto uma cidade do interior configura-se como a essência de uma identidade que está sendo perdida.
56As pessoas discorrem sobre o bairro acionando sua memória afetiva, mas ao falar da recente chegada de pessoas indesejáveis (notadamente grupos de baixa renda) como uma marca da mudança no bairro, elas também acionam uma estratégia de distinção social. Angé e Berliner (2014 apud Oliveira, 2017, p.279) chamam de “disposição nostálgica” aquela em que há o envolvimento de sentimentos e de “dispositivos nostálgicos” aqueles em que prefiguram estratégias com fins de maximizar benefícios. Neste sentido, a instrumentalização de experiências nostálgicas, juntamente com uma disposição afetiva voltada para o passado, revela um sentido moral em que se inscreve um passado onde a tranquilidade é idealizada e que se contrapõe a um presente no qual o bairro experimenta mudanças em sua composição urbanística e, sobretudo social.