- 1 A reflexão apresentada neste artigo desdobra e aprofunda parte da análise apresentada por Teodoro ( (...)
1Neste artigo iremos refletir sobre as possibilidades de percepção subjetiva da exclusão e da desigualdade em condições de subalternidade1. Particularmente, discutiremos como a desigualdade social é percebida por indivíduos que vivenciam cotidianamente processos de marginalização e exclusão. A ênfase na subjetividade tem um duplo objetivo. Por um lado, queremos reforçar a legitimidade das análises de vidas individuais ou histórias de vida como forma de evidenciar a irredutibilidade do sujeito ante os processos sociais mais abrangentes. Mas, ao mesmo tempo, ao focarmos a condição de marginalidade desses sujeitos, buscamos questionar em que medida a sociedade e o sistema de poder que lhe é inerente tolhem liberdades e cerceiam vidas, tornando desiguais as possibilidades de ação e de percepção do mundo e da própria experiência.
- 2 Os dados empíricos aqui apresentados foram colhidos em pesquisa de campo realizada por Débora Anton (...)
2Abordaremos essas questões a partir das histórias de vida de Margarida e Joana, sobre as quais lançaremos algumas possibilidades interpretativas. Duas mulheres anônimas, de vida simples, trabalhadoras de rua, catadoras de material reciclável, representativas de uma classe de milhões de pessoas historicamente marginalizadas e expropriadas das condições mínimas de trabalho2. Com isso, queremos indagar, ainda, sobre as implicações da dinâmica da sociedade moderna para a experiência individual e, em contrapartida, sobre como essa experiência permite perceber os mecanismos de exclusão e violência simbólica em sociedades marcadas por uma profunda desigualdade, como no Brasil.
3A análise aqui apresentada foi construída em um diálogo direto com trabalhos de Jessé Souza, particularmente aquele sobre a constituição da “ralé estrutural” (Souza 2009), uma classe de marginalizados produzida na periferia do sistema capitalista, abordada pelo autor a partir da dimensão simbólica da dominação do capitalismo, discutida na obra de Pierre Bourdieu, e da teoria do reconhecimento do filósofo Charles Taylor. Conforme as pequenas histórias de vida que sustentam o debate de Souza (2009), as mulheres cujas vidas serão textualizadas aqui são vítimas de um violento processo não só de marginalização econômica, mas, também, de exclusão que traz implicações para sua própria condição de cidadania, reconhecimento e dignidade, para usarmos termos de Taylor aos quais retornaremos.
- 3 Conforme as palavras exatas do autor: ““The life history, like the autobiography, presents the subj (...)
- 4 “The life-history is a product of its author desire froi recognition by this essentially complex Ot (...)
4Não obstante - como também tentaremos mostrar, na parte final - entendemos que, não importa a força dos condicionantes de uma sociedade cada vez mais ampla e globalizada, há sempre alguma margem para a subjetividade. Isso ficará mais claro à medida que as vozes subalternas das mulheres entrevistadas forem emergindo nos relatos de suas histórias de vida. Tal abordagem ampara-se em uma extensa literatura acerca da relação entre subjetividade e a escrita biográfica, que na antropologia foi explorada, entre outros, por Kofes (2001). Conforme salienta a autora, na trilha de Paul Ricouer, narrar uma vida significa ao mesmo tempo forjar uma identidade e construir um “si-mesmo”, processo no entanto que está condicionado pelo complexo jogo de memória e esquecimento constitutivo do próprio ato de narrar. Ao que poderíamos acrescentar, seguindo Crapanzano (1985), uma certa dimensão de alteridade, na medida em que é no contexto de uma relação que ganham sentido as histórias de vida. Conforme afirma o antropólogo em seu trabalho magistral acerca de Tuhami, diferente da autobiografia, as histórias de vida são uma resposta imediata à demanda de um outro.3 Mas não apenas, pois se encontram elas igualmente condicionadas pelo desejo de reconhecimento pelo outro4.
- 5 Conforme discutiremos adiante, a relação entre reflexividade e crítica foi abordada por Ortner (200 (...)
5Sendo assim, como esperamos demonstrar ao final deste texto, conquanto a situação de extrema vulnerabilidade das mulheres entrevistadas para esta pesquisa poderia levar a uma rejeição a priori de sua condição de sujeito, é das respectivas narrativas que emana algum grau de reflexividade imprescindível tanto à constituição da subjetividade quanto à crítica ao mundo no qual ambas estão inseridas. 5
6Este nos parece ser um ponto fundamental para questionar as condições de existência da “ralé”, parte significativa da população brasileira na qual podemos incluir as mulheres entrevistadas. Longe de um termo com conotação pejorativa, a existência da “ralé” é a expressão de uma desigualdade abissal não somente em termos econômicos, mas também no sentido da apropriação desigual do capital cultural, que relega uma massa de indivíduos às condições mais precárias de trabalho, tão comuns no Brasil. Na medida em que não possuem as categorias de percepção de mundo advindas da aquisição do capital cultural, o “conhecimento técnico e escolar” (Souza 2009:21), privilégio das classes médias e altas, essas pessoas tornam-se dominadas também no plano simbólico, conforme a clássica abordagem de Pierre Bourdieu que está na base da proposta de Souza.
7Logo, é a distribuição desigual do capital cultural, e não a mera desigualdade econômica, o fundamento da marginalização. Como aparece nas teses de Bourdieu, a inculcação de estruturas pré-valorativas, de caráter não reflexivo, é o mecanismo mais eficiente para a conformação de uma visão de mundo que muitas vezes tornam desiguais as possibilidades de adesão às regras de funcionamento da sociedade. A escala da desigualdade é, portanto, dependente do maior ou menor distanciamento das classes dominadas em relação ao universo simbólico das classes dominantes.
8Em países como o Brasil, a enorme parcela de uma população marginalizada aparece como o resultado mais imediato da má distribuição de bens simbólicos, que está na raiz da desigualdade. De acordo com Souza (2009), destituída de possibilidades de apropriar-se do universo simbólico do capital cultural, a “ralé” torna-se privada de condições mínimas para superar sua condição. Sem o conhecimento necessário, no sentido das categorias de percepção que engendram, por exemplo, formas de comportamento ou disposições para atividades mais qualificadas ou especializadas, não resta a essa grande parcela da população senão ocupar o lugar de “força muscular”.
- 6 Conferir particularmente a parte 3, sobre a “Construção Social da Subcidadania”. Nesse livro, o aut (...)
- 7 O que não significa negar a existência de formas de hierarquização, presentes em todas as sociedade (...)
9Todavia, este violento processo é complementado por aquilo que o autor já havia identificado, em trabalho anterior, como a impossibilidade de reconhecimento ou de classificação pela linha “dignidade”, termo tomado de empréstimo do filósofo Charles Taylor a partir do qual se torna mais evidente a especificidade das sociedades periféricas. Pois, para Souza (2003), a teoria do habitus está limitada pela impossibilidade de se pensar um consenso valorativo que transcenda a estrutura da classe e, com ele, uma concepção de cidadania plena que estaria mais presente nos países ditos avançados. A “dignidade”, um fator de coesão moral transcendente, organizador da vida cotidiana, atende a este fim, na medida em que ao assegurar o reconhecimento do outro, ainda que este outro esteja em condição de subalternidade, garante o pressuposto de igualdade nos planos prático e jurídico. E é a ausência deste elemento constitutivo das sociedades modernas que, no limite, permite às classes dominantes classificar negativamente as parcelas marginalizadas como “subgente” ou “subcidadão” (Souza 2003:163)6. Entendemos, com o autor, que aí está a origem de um “consenso” – ou, na medida exata, da falta dele – quanto ao lugar dessa parte da população, que caracteriza a sociedade brasileira e que revela a dimensão violenta e conflituosa do processo de modernização do Brasil7.
- 8 Conferir também a análise sobre a genealogia das “fontes morais” no ocidente, segundo Taylor, em So (...)
10As entrevistas realizadas com as trabalhadoras-coletoras durante a pesquisa tornaram explícita essa dinâmica de exclusão que, em contrapartida ao mesmo processo, leva a uma aceitação, tácita, da condição de subproletarização, atualizando assim os mecanismos da violência simbólica, sem a qual seria mais difícil a manutenção estrutural da desigualdade. Além disso, evidenciaram a precariedade das condições de trabalho e com ela os limites do reconhecimento do “trabalho útil” que, ainda segundo a leitura da obra de Taylor realizada por Souza, constitui a fonte de universalização da igualdade e da liberdade individual nas sociedades modernas (Souza 2009, 2015)8.
- 9 Souza, retomando a questão da “linha invisível da dignidade”, afirma “que essa ‘linha invisível’ po (...)
11Mas este quadro teórico leva o autor a uma posição pouco otimista em relação à legitimidade das narrativas e histórias de vida da “ralé” como caminho reflexivo e, no limite, quanto à possibilidade desta parcela vulnerável da situação refletir, como sujeitos, sobre sua própria existência. Isso fica particularmente claro quando considerada a frágil situação dos discursos dos marginalizados sobre si mesmos, para a qual o autor chama a atenção, referindo-se aos limites dos estudos “politicamente corretos” 9:
Os estudos “politicamente corretos” são especialmente insidiosos, posto que se pretendem “críticos” e de “esquerda” e consideram “progressista” a atitude ingênua de aceitar como verdade o discurso do oprimido sobre si mesmo. No entanto, a descrição do excluído abaixo da condição de “dignidade” sobre sua própria condição é necessariamente “reativa”, ou seja, tende a negar subjetivamente a condição sub-humana que vive em seu cotidiano. O distanciamento reflexivo da própria condição só é possível para quem tem a possibilidade de mudar a própria vida. Para quem não tem acesso a “outros possíveis”, resta fantasiar ou negar a própria realidade. No entanto, essa perspectiva é francamente dominante nos estudos sobre os excluídos tanto no Brasil quanto no mundo afora (Souza 2015:203).
12É nesta tênue linha demarcatória dos limites da subjetividade, à qual retornaremos, que pretendemos abordar as narrativas de Margarida e Joana. É certo, porém, como esperamos deixar claro, que rejeitar incondicionalmente todas as narrativas e visões de mundo daqueles que se encontram em condições vulneráveis – o que, é bom enfatizar, da forma como entendemos, não é o que sugere o autor – nos levaria a um tipo de determinismo que na prática não deixaria margem para mudança senão a partir de cima.
13Não resta dúvida de que as atividades de coleta de material reciclável de Margarida e Joana revelam de forma inequívoca a precariedade e a marginalidade intrínsecas que são, em si, marcas indeléveis da desigualdade social. Neste e em outros casos, em consonância com a condição de outros membros da “ralé”, o trabalho não especializado é uma das poucas, senão a única alternativa. Por não atender às expectativas do mercado em relação à produtividade, que pode ser ilustrada pelo homo economicus – disciplinado, plástico e autocontrolado – e desta forma integrarem a categoria de “produtor útil” (Souza 2009), esta categoria de cidadãos acaba absorvida de forma altamente precária na divisão do trabalho da modernidade.
14Não obstante, nos dois casos aqui relatados, as entrevistadas mostraram que a condição de vulnerabilidade não inviabilizou a percepção da exclusão e do estigma inerente à sua condição de trabalho, tanto quanto não fechou completamente todas as possibilidades de ação, ainda que as tenha reduzido drasticamente, como efeito da dinâmica de exclusão e subordinação. Mas, antes de desdobramos essas questões, devemos apreender alguns aspectos do universo das entrevistadas.
15O primeiro encontro com Margarida anunciou, de imediato, o confronto de duas realidades socialmente distintas. Em um ponto turístico conhecido como Mercado Velho, em Diamantina, seu local de trabalho, Margarida coletava latas de alumínio pelo chão e por cima das lixeiras, demonstrando o que a um primeiro olhar revelava uma postura de subserviência e recolhimento diante das pessoas que circulavam pelo local. Desenhava-se, assim, o primeiro (des)encontro sem palavras: de um lado, a pesquisadora, mulher, jovem, branca, em um sábado de lazer; de outro, o sujeito da pesquisa, mulher, idosa, negra, coletando latas de alumínio. Ambas unidas pelo sexo biológico, mas pertencentes a diferentes gerações, classes e categorias étnicas, separadas por tantas nuanças culturais e sociais, em uma cena capaz de ilustrar o que Kofes (2001:390) descreveu como “o jogo aguçado e constante da possível identidade combinada às diferenças e desigualdades, e a uma possível igualdade, [que] faz das falas, dos gestos, do espaço e da corporalidade uma constante expressão de ‘quem é quem’”.
16O fluxo de pessoas num espaço público urbano que permite o encontro da diversidade é, sem dúvida, revelador das diferenças que permeiam o cotidiano da cidade. Do ponto de vista socioantropológico, trata-se de um ambiente oportuno para identificar sujeitos cujas experiências e trajetórias são pertinentes à compreensão da dimensão simbólica da desigualdade.
17Neste cenário, a aproximação de Margarida não poderia ocorrer senão paulatinamente, naquele mesmo lugar, nos sábados subsequentes. Numa primeira oportunidade, seu nome foi revelado, apesar da distância social que se expressava por sua cabeça baixa e o olhar constantemente voltado para o chão. Aos poucos, construiu-se uma relação de confiança e trocas, que culminou no aceite à participação como sujeito de pesquisa. As entrevistas aconteceram na casa de Margarida: uma moradia simples, de piso vermelhão (uma espécie de cimento queimado), um jogo de sofá na sala, uma mesa e uma televisão pequena no canto, telhado de amianto e cortinas de tecido que faziam vezes de portas para dividir os cômodos. Tudo muito limpo e um cheiro de lenha queimando no fogão.
18Com voz suave, pausada e baixa, os relatos de Margarida foram contados, vale registrar, diante de seu esposo, sempre presente na sala durante desenrolar das conversas, algo que, no entanto, pareceu não interferir ou coibir as falas da mulher. Sobre a infância, Margarida relatou:
Tive infância não, minha filha! Minha infância foi serviço. Pois nós num veio da roça? [...] nós carregava madeira na cabeça [...] Nasci aqui mesmo, na cidade. Mas morei muito tempo pras roça, porque meu pai ia pra roça, levava nós. Num deixou nós estudar, era só serviço e mais nada [...] Nunca fui na escola. Era só serviço. Era serviço de roça, serviço de garimpo. [...] O meu pai era um carrasco. A gente não podia fazer coisa que ele batia na gente. Tinha dia que ele batia na gente à toa e mandava a gente pro chão. Um animal na frente e se a gente ficasse trançando, né? Até hoje eu tenho sinal de traulitada, cambitada que ele me deu [...] Cambito de apertar burro [...] É um pedaço de pau assim que apertava, apertava o burro pra poder a carga não cair. Ele me deu uma cambitada que até tem vez que dói, por volta de lua dói a cabeça. Não esqueço duma vez que nós foi garimpar, nós tava no garimpo, ele pôs eu: “cê olha essa água aqui. Se ela arrebentar, cê me chama.” E eu entreti brincando na água, arrebentou e alagou o buraco que ele tava. Ô diacho... eu ganhei uma surra e ainda além de apanhar ele inda me jogou lá dend’o rio (Trecho de entrevista com Margarida 2016).
19Na ocasião do rio, Margarida foi retirada da água pela mãe, que também a protegeu do pai, mas a esfera de ação limitada é revelada pelo fato dela não ter impedido a atitude do marido. O poder e o domínio da situação pertenciam a ele – o homem, o chefe da família. A rígida relação patriarcal familiar foi reforçada pelos relatos de Margarida sobre relações extraconjugais do pai, às quais ela atribui a morte da mãe, que num determinado momento não pôde mais tolerar a situação e ingeriu veneno: “Mas ela foi envenenada. Ela tomou veneno. [...] Tomou, por causa dele. [...] Deve ter ficado injuriada, né? Deve ter ficado injuriada com ele, porque era só... tudo dele era as muierada... [...] É... foi difícil...” (Trecho de entrevista com Margarida 2016).
20Apesar de acreditar que a morte da mãe tenha tido relação com as traições do pai, Margarida não guardou mágoas dele. Inclusive, cuidou dele em seus últimos dia de vida:
[...] Mágoa eu não fiquei não. Graças a Deus não tive mágoa dele. Nem dele, nem de minha mãe... é tanto que desses tempo todo que eu vivi, eu ainda cuidei dele, velhinho. Cuidei dele. Onde que ele morreu? Na minha casa! Morreu aqui em casa. Nessa casa aqui (Trecho de entrevista com Margarida 2016).
21Outra marca da desigualdade presente nos relatos de Margarida é a fome, na época em que já tinha filhos. De acordo com ela, o marido se distraía com o álcool e deixava faltar comida em casa. O garimpo artesanal, tradição em Diamantina desde sua fundação, foi um meio encontrado para minimizar o problema:
Eu já. Eu já passei fome. Então, quando meus meninos tavam pequeno, que esse aí [o marido] vivia só na bebida... ô, minha nossa senhora! Ô eu que garimpava pra comprar um punhado de fubá de tarde! Às vezes comprava um quilo de fubá, porque o dinheiro não dava pra comprar outra coisa... comprava o fubá, um tiquinho de gordura, fazia suado pra dar pros meninos comer pra mim poder ir pro córrego, pra tirar mais (Trecho de entrevista com Margarida 2016).
22Atualmente, Margarida está aposentada. Antes disso, ela e o marido contavam apenas com a aposentadoria dele e com a complementação da renda a partir da venda das latas de alumínio.
Era aposentadoria dele [do marido] e a ajuda das latinhas, que quando eu tava meio apertada, né, que a gente é pobre... e coisa... e se tava meio apertado eu vendia as latinhas pra ajudar dend’casa, pra ajudar, pra pagar um gás, né? Pra comprar um torresmo de carne. Que a gente já vai ficando velho e ficar sem um torresmo não dá não, né? Já comeu muito sem o torresmo, agora tem que ter um torresminho (Trecho de entrevista com Margarida 2016).
23Para além da questão dos recursos financeiros, referências à alimentação são muito presentes nas falas de Margarida. Para quem já passou fome, poder comer o “torresminho de carne” com frequência é um tipo de materialidade da superação da condição pretérita. Outrossim, ela se refere ao fato da vida hoje estar melhor que antes, a despeito de se ver impelida a coletar latinhas para complementar a renda familiar e de toda a dificuldade inerente à atividade: “Eu vou trazendo e juntando aí. Quando eu vendo dá assim uns duzentos, duzentos e cinquenta [...] Isso cê junta meses pra eu vender uma quantidade dessa. Já tem mais de seis meses que eu estou juntando elas aí” (Trecho de entrevista com Margarida 2016).
24E, sobre a rotina de coleta aos sábados, ela contou:
Uma hora eles [as pessoas que frequentam o Mercado Velho] me entregam, outra hora eu chego assim no coisa e apanho pro chão afora, assim que eu cato [...] Pego. Nas lixeiras. Quando tem nas lixeiras eu pego [...] Mas eu não reviro lixo não! Pra revirar assim eu não tenho coragem (Trecho de entrevista com Margarida 2016).
25Margarida esclareceu de modo firme que não revira o lixo. Impõe um limite à sua própria dignidade e ao risco de se cortar ou se contaminar com o que se esconde nas latas de lixo. Todavia, ela trouxe outros elementos que para ela importam em suas idas ao Mercado Velho. Ela revelou que se sente bem, se tranquiliza, se diverte, que gosta de ver as danças. Se sente bem tratada pelas pessoas e às vezes até ganha um caldo ou um pastel enquanto trabalha.
Tratam bem, de vez em quando eles me dão pastel, caldo, oh! Fico lá bem tranquila [...] Ah! Eu me sinto mais divertida que eu fico coisa, né? Fico olhando eles lá e vou catando minhas latinhas. Fico mais alegre. Porque ficar aqui, só aqui dend’casa não dá, né? Dend’casa uma hora cê tem uma amolação, né? A gente fica meio amolado. E lá é divertimento. Fico lá olhando aquele povo dançar. Eles dançam lá [...] Quando eu vou pro Mercado lá, aí eu fico mais tranquila. Fico mais solta lá. Porque eu fico lá divertindo com eles lá, né? É muito mais melhor de que ficar... eu fico aqui a semana inteirinha dend’casa (Trecho de entrevista com Margarida 2016).
26Importa retomar àquele primeiro momento de observação, em que se inferiu sobre uma postura subserviente de Margarida. Ela, porém, a respeito de ocasiões similares, afirmou se divertir no local em que foi observada. Ainda que algumas corporalidades sinalizem jogos sociais previsíveis, Margarida, que trabalha cabisbaixa, passa despercebida, se recolhe a um canto para que qualquer outro tenha passagem, argumenta que se sente bem neste espaço. O dilema aqui está em privilegiar a dimensão subjetiva na ação de simbolizar e dar sentido ao mundo e, ao mesmo tempo, compreender em que medida a violência simbólica se faz presente ao estabelecer fronteiras na estrutura social que não se convertem em objetos de fácil reflexão. Pois, conforme alerta Bourdieu, a dominação também se inscreve no corpo e se revela em sentimentos de vergonha, enrubescimento, embaraço que não são senão formas de submissão ao juízo dominante, mesmo a contragosto e ao custo de um pleno conflito interior vivenciado na forma da “fratura do eu” (Bourdieu, 2001:205-206). Mas, ao mesmo tempo, conforme discutiremos adiante, em algum nível, apesar do que se expressa a corporalidade, o agenciamento emerge, mesmo timidamente, sobretudo na forma com que as entrevistadas elaboram, subjetiva e reflexivamente – portanto individualmente – suas histórias de vida, demarcando com isso um lugar de sujeitos ativos frente à sujeição.
27Assim como Margarida, Joana, a outra entrevistada, revelou situações de exposição a situações de constrangimento. Porém, falou abertamente sobre sentimentos como vergonha e acanhamento em relação ao trabalho de coleta de material reciclável, o que demonstra modos distintos e individuais de lidar com realidades semelhantes.
28 Joana foi a primeira pessoa que decidiu coletar papelão pelas ruas do centro histórico de Diamantina, no início da década de 2000. Antes disso, junto a outros moradores da cidade, coletava material reciclável em um lixão onde atualmente se encontra o campus Juscelino Kubitscheck, da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri.
29 A aproximação com Joana se iniciou por abordagens cotidianas, como cumprimentos pelas ruas e conversas rápidas. Quando convidada a ser entrevistada, ela aceitou de prontidão e disse que tinha muita coisa para contar. As entrevistas aconteceram num pátio da prefeitura de Diamantina, no qual garis guardam seu material de trabalho. À época, Joana era autorizada a armazenar lá os seus fardos de papelão, até que conseguisse juntar uma boa quantidade para levar para o quintal de sua casa, onde fazia a reserva para poder vender.
30Joana relatou uma infância difícil. Atribuiu o sofrimento desta época, em certa medida, ao fato de ter perdido o pai ainda criança:
De meu pai eu tenho uma lembrança muito pouca, porque ele morreu muito novo e a gente ficou tudo pequeno. Mas alembro dele, alembro quando ele saía comigo, punha eu na garupa do cavalo, que levava a gente pros cantos, eu gostava muito de acompanhar ele, junto com ele. Mas ele morreu muito novo [...] infância foi assim uma infância muito sofrida [...] eu não tive assim aquela oportunidade, né, de brincar... eu nunca tive colegada, assim de juntar pra ter colegada, igual muitos tem... ter aquelas amiguinhas, né? Que toda menina gosta de ter... eu não tive isso. A minha infância foi muito sof... muito dolorosa. Foi muito sofrida (Trecho de entrevista com Joana 2016).
31Ainda jovem, Joana se casou. Mas se viu numa situação insustentável ao lado do companheiro. Foi privada de bens essenciais e vítima de violência física.
[...] meu marido era muito ruim, muito incrível. Aí eu passava muita fome com esses meninos, sabe. Sofria demais, eu não tinha roupa, não tinha comida, não tinha nada, e eu não tinha onde arrumar [...] Nós tivemos uma briga [...] E foi uma briga de pancadaria mesmo de nós dois. E era um lugar que não tinha ninguém pra entrar no meio não, que não tinha ninguém por perto, era deserto, era mato, era deserto mesmo onde eu tava [...] Não apanhei sozinha. Eu apanhei muito, mas apanhei à meia. Eu apanhei, mas bati [...] peguei carona e vim embora pra cá. Sem saber aonde eu ia entrar! Sem dinheiro, sem casa pra morar, sem nada. Como diz... o meu amparo era as nuvem... era... quer dizer, eu não tinha pra onde ir não, nada! Vim de carona, com as crianças pequenas, que eu falei que não ia largar com o pai deles... e sem saber... sem saber pra onde que eu tava indo, sabe... aquele trem que sai andando assim, sem destino. Todo mundo falou que na época eu tava era doida, eu tava era louca (Trecho de entrevista com Joana 2016).
32Apesar a coragem de sair de casa com os cinco filhos pequenos, a condição de sujeitada não foi superada com as decisões que Joana tomou, haja vista que os diversos tipos de subjugação e violência possíveis ao universo feminino não são exclusivos das relações conjugais. Não bastasse a violência direta, a violência de gênero no âmbito social também é parte da história de Joana. Ela foi classificada com adjetivos como louca e doida por ter saído de casa com os filhos. Mas Joana, pelo menos na esfera do discurso, mostrou que não se deixou intimidar: “[...] Então muita gente falou muito, de eu ter feito isso... inclusive, quem sabe da vida da gente é a gente, né? Eu é que sabia o quê que eu passava, né? Aí teve gente que falou demais, falou muito [...] é... que as vezes os homem apronta, apronta, apronta, mas geralmente o povo sai contra é as mulheres mesmo” (Trecho de entrevista com Joana 2016).
33Uma mulher com cinco filhos pequenos, diante do desafio de alimentá-los, vesti-los e abrigá-los, decidiu por deixá-los sozinhos em casa para sair à busca de sustento:
Então a minha vida, pra mim criar meus meninos, foi essa rotina mesmo. Porque eu tinha que trabalhar fora pra cuidar deles. Meus menino foi presidiário. De mim! [...] Porque eu prendia eles pra mim trabalhar. Porque na época não existia creche aqui em Diamantina, não tinha onde cê pôr os filhos, e eu não podia ficar em casa cuidando deles porque eu tinha que dar a eles comida [...] Eles foi presidiário por mim (Trecho de entrevista com Joana 2016).
34Cima e Vale (2016) concluíram que apenas na década de 1980 o serviço de creche foi oferecido de forma mais expansiva em Diamantina, o que corrobora o desamparo do poder público apontado por Joana no que tange ao suporte a mães que trabalhavam fora de casa. A condição vivida por Joana e pelos filhos colocou a família em situações extremas no que diz respeito aos mais diversos tipos de risco. E deixar cinco filhos pequenos trancados dentro de casa teve algumas consequências delicadas. O filho mais novo, quando ainda engatinhava, ingeriu algo desconhecido. Apenas dias depois de uma sequência de idas e vindas à casa de um médico da cidade, a mãe soube do que se tratava.
- 10 Descrito por Joana como um inseto com muitas patas, uma espécie de centopeia.
[...] Cheguei lá, cheguei cá, o menino tava com a boca desse tamanho, aquela inchação, com os beiço... inchou tanto que revirou um pra cima e outro pra baixo. E chorando sem parar e vermelhou parecendo que o sangue tava querendo minar, sabe? E os menino não contou o que é que era e nem eu sabia o que é que era. Saí doida com eles, não almocei nem nada, peguei esse menino, saí doida sem saber o que era [...] Passado muito tempo é que eles foram falar que era mil pé10 que ele pôs na boca (Trecho de entrevista com Joana 2016).
35Não obstante estarem à mercê de riscos relativos à segurança, saúde e bem-estar, os filhos de Joana, segundo ela conta, não tiveram acesso à educação formal: “[...] Mas o negócio é o seguinte, que cada um... ninguém assim, bem de vida. Mas todo mundo arruma pra comer, né? [...] Agora, tem um que tem uma profissão melhor. Que ele é pintor de... é lanterneiro! [...] É, mexe na oficina. Mexe com carro” (Trecho de entrevista com Joana 2016).
36Numa realidade como a brasileira, a qual segue a visão predominante no Ocidente de que todo trabalho é digno – até mesmo os trabalhos não especializados (Souza 2009) – ter um filho minimamente qualificado é motivo de orgulho. Joana não chegou a falar dos outros filhos, mas claramente, para ela, o filho lanterneiro se destaca dos demais.
37No que se refere à atividade de coleta de material reciclável, a precariedade e marginalidade intrínsecas já são, em si, objetos de discussão acerca da desigualdade social. No que diz respeito ao trabalho, Joana relatou algumas dificuldades vividas.
Quando eu comecei a coletar antigamente, a gente tirava o papelão é no lixão, onde é a faculdade hoje. Lá no alto. Aí eles mudaram o lixo de lugar, e não deixaram... passou cá pra gruta. Chegou cá na gruta e eles não deixaram a gente mexer mais. A gente tava trabalhando lá e foi tanta gente pra lá, pra nos levantar de lá, pra... como é que fala?... embargar. E trouxe nós aqui pra Diamantina, pra cidade aqui.[...] Foi tanto lugar que foi, e não deixou a gente mexer mais. E na época, eu fiquei muito desorientada porque eu não tinha ganho nenhum, não tinha como viver. Sabe? Então foi uma situação muito obrigatória pra mim. Porque eu não tinha ganho, não tinha nada, não tinha onde eu buscar nada (Trecho de entrevista com Joana 2016).
38Além de ter sido impedida de continuar uma atividade à qual estava habituada, Joana sentia vergonha da alternativa que encontrou para seguir trabalhando – coletar papelão pelas ruas do centro histórico de Diamantina: “Aí, eu muito acanhada, porque ninguém mexia com nada, aí passava, me olhava [...] tô querendo pegar, juntar esses papelão aqui [...] mas eu tô com medo do povo aqui do centro me xingar” (Trecho de entrevista com Joana 2016). E, somadas à vergonha, outras dificuldades foram enfrentadas, como as ordens de uma funcionária da prefeitura para que trabalhadores da coleta de lixo jogassem no caminhão os fardos de papelão que Joana deixava em um canto ou outro da cidade, para recolher ao final do dia.
39Não obstante o fato de vozes como a de Joana não serem amplamente ouvidas na esfera pública, bem como suas existências serem negligenciadas, constrangimentos pessoais também foram relatados por ela, quando questionada a respeito da percepção de si mesma em relação à sociedade e às pessoas que cruzavam o seu caminho diariamente.
Isso aí é um detalhe até difícil da gente dizer. Porque tem muitas pessoas que dá a gente valor, apoia a gente e acha que a gente tá fazendo uma boa coisa. Já, tem gente que até critica a gente, né? [...] porque tem gente que fala que a gente tá panhando lixo, que tá mexendo no lixo [...] Algumas pessoas elogiam, e às vezes tem muitas pessoas que até ajudam a gente, né? Já outras pessoas sente orgulhoso, né? Já critica a gente, já debocha da gente, que fala que a gente tá panhando lixo, né? [...] Ah! Tem gente que ri. Gente que caçoa, fala que a gente tá panhando lixo, né? (Trecho de entrevista com Joana 2016).
De acordo com Joana, para alguns ela é motivo de elogio, para outros, de chacota. No relato em que pessoas passam e riem dela, a humilhação extrapolou a dimensão da invisibilidade e tornou-se indignidade. A ação de caçoar foi dirigida a ela, com clareza e de forma motivada, revelando o tipo de responsabilização individual comumente dirigido àqueles considerados fracassados (Souza 2009).
Como sinalizado anteriormente, Joana e Margarida compartilham algumas coisas em comum, sobretudo no que tange ao trabalho de coleta de recicláveis. Mas, o que de fato as aproxima? O que as distingue? Será que possuem perspectivas de futuro? Mais que responder a estas perguntas importa refletir acerca de como a história de vida de cada uma delas resultou nos modos de lidar com suas respectivas realidades, como proposto a seguir.
- 11 Como prova de um padrão que revela a condição de marginalidade desses grupos de trabalhadores, resp (...)
- 12 A elaboração de projetos pessoais, de uma perspectiva antropológica, foi tematizada por Gilberto Ve (...)
40Para Acselrad (2013), a condição de vulnerabilidade é socialmente construída e definida a partir de um ponto de vista. Segundo o autor, “sabemos que os grupos sociais convivem com horizontes e expectativas de vida distintas: quanto mais estreito for o arco das expectativas, maior a propensão a aceitar condições, em outras circunstâncias, momentos e lugares, inaceitáveis” (Acselrad 2013:120). As narrativas de Margarida e Joana expressam bem essas consequências mais imediatas do trabalho precário, estigmatizado e marginal, cuja falta de apropriação do capital cultural, social e econômico impedem a ruptura da reprodução histórica da ralé (Souza 2009) e de agenciamentos futuros. Não foi por acaso que ambas mostraram-se descrentes em relação a sonhos11 e projetos futuros12.
Tenho sonho não... [...] O que eu não arrumei até agora, de agora pra frente não arruma é mais nada![...] Até hoje eu não acabei de arrumar minha casa, comecei a pôr as coisas ali e não acabei. Ah! Eu já não tô mexendo com mais nada não. Eu agora tô caçando jeito de descansar minha ideia [...] não tem sonho mais não. Meu sonho agora é comer e dormir. [risadas] (Trecho de entrevista com Margarida 2016).
Inclusive, eu não tenho projeto mais. Porque uma pessoa na minha idade ficar pensando em projeto é bobagem! Que o que eu tinha, o que eu pude conseguir até hoje, consegui foi criar meus filhos, arrumar um ranchinho pra mim morar, sabe? Que o rancho que eu moro nele não é coisa que... porque tem gente que vive de aluguel, né? Então, eu não penso em projeto nenhum mais não! (Trecho de entrevista com Joana 2016).
41Cientes da impossibilidade de reverter suas respectivas condições, é pelos filhos que ambas concebem alguma ampliação de possibilidades futuras, mesmo a partir de ideias distintas. Margarida, por exemplo, foi cerceada do direito de estudar, mas acredita que o estudo poderia dar aos filhos oportunidades diferentes das que ela teve ao longo da vida:
Um bocado estudou. Outros não. Foi só um que não estudou direito. [...] Ou porque não quis ou porque não tinha força de vontade, né? [...] Eu sempre falava pra eles: estudo vale tudo. Porque eu não sei nada não mas ao menos vocês pra saber escrever uma carta. Saber alguma coisa, né? Eles estudaram. Pouco, mas estudou. Sabem ao menos escrever o nome deles. Eu não sei é nada. (Trecho de entrevista com Margarida 2016).
42E quando questionada se acreditava que a vida poderia ter sido diferente, caso tivesse estudado, ela revelou o quanto não saber ler e escrever limita algumas de suas ações e práticas corriqueiras do dia a dia:
Podia. Podia ser diferente porque a gente podia escrever uma carta pra uma pessoa, saber ler. Podia ler qualquer uma escritazinha que chegasse. Agora, não sabe nada. Uma conta de luz que chega eu preciso ficar pedindo os outros pra olhar pra mim, né? Que eu não estudei (Trecho de entrevista com Margarida 2016).
43Os filhos de Joana, por sua vez, assim como ela, também não frequentaram escola. No entanto, em sua concepção, diferente de Margarida, a responsabilidade pelo futuro, a exemplo de sua própria história, cabe a cada um: “Os filhos, eles é que têm que cuidar deles, né? Eles já estão, eles já são todos de maior. Porque quando é de menor, a gente preocupa, né, com as coisas. Mas hoje já tá todo mundo de maior. Eles é que tem que pensar no futuro deles e dos filhos deles, né?” (Trecho de entrevista com Joana 2016).
44Em alguma medida, percebe-se, neste trecho, a reprodução de ideias liberais hegemônicas a respeito da responsabilização do indivíduo por seu destino. A mesma tônica também presente no discurso de Margarida.
Uai, sempre eu falo com eles [filhos]: olha, o futuro da vida! Vocês caça um serviço fichado, né? Pra trabalhar. Porque se adoecer, tem! Mas vai é do gosto deles, né? Porque eu não posso. Eles já tá tudo homem velho, eles lá que se vire. Eu agora vou pensar em mim e no meu véio aqui. Eles lá que se cuide. Que a gente dá conselho e não ouve, né? Agora é assim (Trecho de entrevista com Margarida 2016).
- 13 Por isso foram recorrentes os exemplos de “exortação” aos estudos por parte de mães entrevistadas, (...)
45De todo modo, se, por um lado a ausência de sonhos é uma alusão direta à falta de perspectivas e de esperança no futuro, por outro, ideias acerca da educação dos filhos como possibilidades de melhoria de vida seriam, na visão de Souza (2009) de nenhuma valia para a efetividade do desempenho escolar e, desta forma, inócuas para uma mudança efetiva das condições em que essas e outras famílias se encontram. Pois a eficácia do discurso a respeito da importância da educação é sempre limitada, quando este se torna parcialmente esvaziado de sentido devido à ausência de exemplos afetivos13. Quanto a isso, não há o que questionar. A questão, no entanto, parece residir em outro tipo de indagação: qual o limite da constrição a que estão sujeitadas as entrevistadas?
- 14 Sobre os limites e a potencialidades do habitus e outros conceitos e ideias de Bourdieu, ver, entre (...)
46Se assumirmos que o habitus não é determinístico14, não podemos negligenciar as escolhas de ambas para lidar com suas respectivas experiências, tal como narradas em suas histórias de vida. Margarida diz sentir-se feliz no Mercado, quando foge da amolação de dentro de casa. É um dos momentos em que ela pode partilhar de um ambiente diferente daquele sobre o qual pousa sua rotina de responsabilidade assumida sobre sua família. Por isso, se diverte, sente-se alegre e “mais solta”, observando, no entanto, de longe, a alegria de outrem. Não seria isso uma forma de consciência de sua condição? Algo que já prenuncia o tornar-se sujeito?
47Joana, por sua vez, em certa medida, questiona a ordem estrutural. Reflete a respeito das relações sociais presentes no seu dia a dia e sobre as relações de reciprocidade – gente que ajuda, gente que elogia, gente que caçoa. E, ao fazê-lo, mesmo sem textualizar diretamente, evoca o espaço de autonomia, ao dizer sentir-se realizada por ter criado seus filhos e arrumado seu ranchinho, enquanto há pessoas que vivem de aluguel. Da mesma forma, Margarida afirma que ajuda outras pessoas quando pode e se alegra por poder comer seu “torresminho de carne” todos os dias. Em suma, na realidade em que vivem, apesar de distintas, estas mulheres se percebem em melhor condição quando se comparam a outras pessoas.
48 Enfim, é neste sempre presente embate entre liberdade e determinismos sociais que devemos indagar: o que resta, afinal, do sujeito?
- 15 Para Souza (2015:204), “O distanciamento reflexivo da própria condição só é possível para quem tem (...)
49Mesmo cientes dos riscos de tomar o “discurso do oprimido sobre si mesmo” como algo dado e inquestionável, o que, segundo Jessé Souza, seria o erro dos já citados “estudos ‘politicamente corretos’”, não compartilhamos integralmente a ideia de que, dada sua posição aquém da linha de “dignidade”, esses indivíduos assumem, conforme citado no início deste texto, uma posição “reativa”, como forma de “negar subjetivamente a condição sub-humana que vive em seu cotidiano” (Souza 2015:203).15
- 16 A intersubjetividade em uma situação de pesquisa etnográfica é um tema recorrente na antropologia. (...)
50Ainda que isso seja visível quando analisamos a questão de uma perspectiva mais abrangente e generalizada, por exemplo a de classe, no plano individual, as falas analisadas sugerem que a condição de subalternidade não exclui certa percepção da realidade, particularmente como resultado da relação entre as entrevistadas e a entrevistadora16.
51Apesar de inequivocamente sujeitadas, no sentido da “ralé”, essas mulheres e suas narrativas, para além do “idílio construído pelos excluídos sobre a própria realidade” (Souza 2015:204), sugerem a potencialidade de discursos contra-hegemônicos, porquanto potencialmente questionadores. E, desta forma, revelam a possibilidade de constituição de uma subjetividade capaz de ilustrar a tensão entre o que o jogo social impõe aos sujeitos e a legitimidade, por exemplo, do que pensam a respeito de si mesmas, de suas ações e de suas precárias condições de vida e de trabalho.
52Em outras palavras, o que estamos propondo, nesta parte conclusiva, como complemento às ideias até aqui expostas acerca da violenta exclusão de grupos de trabalhadores precarizados – que, bem entendido, é preciso enfatizar –, é um questionamento acerca das possibilidades de agenciamento em condição de extrema vulnerabilidade. Questão que julgamos estar em consonância, conforme se verá a seguir, com a ideia proposta por Sherry Ortner acerca da subjetividade como “crítica cultural” (Ortner 2007).
53Em que medida, por exemplo, Margarida realmente está feliz quando relata a peculiaridade de seu trabalho e em que medida ela negocia subjetivamente sua condição social ao narrar sobre si mesma? Em que medida Joana é consciente de sua condição de exclusão e do estigma inerente à sua condição de trabalho, ao referir-se à “vergonha” com que executava seu trabalho de catadora e em que medida isso constitui uma denúncia, diante da entrevistadora, de sua condição e, portanto, em uma forma de agenciamento? Em que medida essas e outras questões foram elaboradas subjetivamente nas narrativas de suas respectivas histórias de vida? Em que medida, finalmente, compete ao pesquisador admitir a narrativa do entrevistado como verdade concebida e absoluta e em que medida é importante trazer todos os elementos que compõem o pano de fundo para a construção desta narrativa?
- 17 Gilberto Velho (1986) explorou de forma exemplar a ideia de que tanto o indivíduo como a subjetivid (...)
- 18 É o caso da meritocracia, que, para Souza (2015), seria apenas o viés ideológico desse mecanismo.
- 19 Diante do infindável debate sobre a subjetividade e o espaço para a reflexividade em Bourdieu, é pe (...)
54Talvez não existam respostas precisas, pois a questão não se reduz a categorias estanques. Por isso nossa ênfase é, antes, na possibilidade de pensar em distintos níveis de subjetividade ou, para tornar ainda mais claro, em experiências de maior ou menor autonomia e subjetivação17. A realidade das entrevistadas torna difícil pensar em termos de dicotômicos. A despeito da dinâmica de ocultação da dinâmica social que leva à naturalização da desigualdade e à sujeição, quando não, por outro lado, a um subjetivismo que a justifica a partir da referência ao indivíduo18, essas mulheres revelaram-se também como sujeitos, no sentido de agentes reflexivos, o que nos levou a pensar, ao menos no plano de suas respectivas narrativas, em uma tensão entre estruturas condicionantes e uma autonomia relativa. Os trechos de entrevistas aqui citados revelam alguns momentos, entre outros percebidos ao longo do contato com essas mulheres, em que se tornou evidente uma capacidade de olhar criticamente para a própria condição, ainda que esse olhar seja ele mesmo fortemente condicionado por sua posição na estrutura social19.
- 20 Ortner (2007) sublinha a importância de buscarmos uma perspectiva capaz de superar ao mesmo tempo o (...)
55Ortner (2007), em sua crítica às teorias clássicas que buscaram solucionar a difícil relação entre liberdade e determinismo, apontou ter sido notadamente a subjetividade, em sua dimensão mais profunda e complexa, o que parece ter escapado aos teóricos mais influentes20. Isto é, “a visão do sujeito como existencialmente complexo, um ser que sente e pensa e reflete, que faz e busca significado” (Ortner 2007:379). Deixou-se de lado, assim, um duplo aspecto da realidade que o conceito é capaz de alcançar: primeiro, a própria condição, complexa por natureza, da dimensão humana; segundo, a dimensão política, tão claramente expressa pela autora:
Em particular, eu vejo a subjetividade como a base do agency, uma parte necessária do entendimento de como as pessoas (tentam) agir no mundo mesmo se agem sobre elas. Agency não é uma vontade natural ou originária; ela é moldada enquanto desejos e intenções específicas dentro de uma matriz de subjetividade – de sentimentos, pensamentos e significados (culturalmente constituídos) (Ortner 2007:380).
- 21 É particularmente no trabalho de Giddens e Sewell Jr. que Ortner identifica a importância do agency(...)
56O que permite à autora propor com clareza a noção de subjetividade como “uma consciência cultural e historicamente específica” (Ortner 2007:380). A subjetividade é consciente não porque nega o inconsciente, mas sim porque o complementa e o ultrapassa, de um lado no sentido individual, como identificado pela autora no trabalho de Giddens, que a permite pensar, por suposição, “que os atores sempre são no mínimo parcialmente ‘sujeitos cognoscentes’, que eles possuem algum grau de reflexividade sobre eles mesmos e seus desejos, e que eles possuem alguma ‘penetração’ nos meios nos quais são formados por suas circunstâncias.” (Ortner 2007:380).21 Sem negar a teoria do habitus, antes a endossando, Ortner, ao chamar a atenção para esse “sentido psicológico convencional” da consciência, rejeita, porém, o seu potencial determinismo. Isto é, “a insistência de Bourdieu na inacessibilidade, para os atores, da lógica subjacente de suas práticas” (Ortner 2007:380).
57De outro lado, a subjetividade consciente é também uma forma coletiva, no sentido das teorias clássicas:
No nível coletivo, uso a palavra consciência tal como é usada tanto por Marx como por Durkheim: como a sensibilidade coletiva de um conjunto de atores socialmente inter-relacionados. Consciência é, nesse sentido, sempre ambiguamente parte das subjetividades pessoais das pessoas e parte da cultura pública [...] (Ortner 2007:380).
- 22 Conforme afirma a autora: “Começando pela doutrina protestante da predestinação e sua aceitação da (...)
58Mas é no trabalho de Clifford Geertz, sobretudo, que a autora identifica as bases para uma “antropologia da subjetividade”, da qual estamos nos apropriando aqui. Pois suas formulações em torno da cultura dão a exata dimensão das possibilidades de agenciamento e organização simbólica do mundo, retomadas posteriormente por autores tão importantes, como Raymond Williams, cujas análises desvendaram a lógica cultural e simbólica de grupos minoritários. Entre elas a ideia apresentada originalmente por Weber em sua análise do protestantismo22, de “estrutura de sentimentos” ou “sensibilidade”, que joga nova luz à formulação do conceito de subjetividade, na medida em que o submete ao universo da cultura. Pois a sensibilidade é o resultado da forma como sentimentos são moldados pela cultura.
59É assim que Ortner consegue identificar em autores como Richard Sennet e Frederic Jameson, dentro de uma lógica “pós-moderna”, as possibilidades de uma crítica cultural de tendências ou pensamentos hegemônicos, ainda que isso revele, sempre, no caso dos atingidos mais diretamente pela lógica econômica e culturalmente excludente, como as mulheres entrevistadas durante a pesquisa que vimos problematizando, uma forma de lidar – ou interagir – com as estruturas de poder. De todo modo – e por fim – isso expressa com clareza aquilo que a autora busca demonstrar e que se encontra na base de sua proposta de uma antropologia da subjetividade e da subjetividade como crítica cultural, isto é,
[...] as complexidades da consciência mesmo em face das formações culturais mais dominantes. Isso não é para dizer que os atores podem ficar "fora da cultura", porque, claro, eles não podem. Mas é para dizer que uma consciência cultural completa é ao mesmo tempo sempre multinivelada e reflexiva, e sua complexidade e reflexividade constituem as bases para questionar e criticar o mundo no qual nos encontramos (Ortner 2007:399).
60Não obstante as dificuldades inerentes a um debate já antigo – e ao que parece infindável – nas abordagens clássicas da teoria social, sobre a liberdade e determinação dos agentes, ouvir e registrar o que mulheres como Joana e Margarida têm a dizer sobre si mesmas significa, em certo sentido, romper com uma dimensão estritamente teórica. É, sobretudo, de um jeito ou de outro, tal como outros estudos que buscaram tornar visíveis os que “são invisíveis na sua dor e sofrimento” (Souza 2015:217), reiterar a importância de ouvir aqueles que, apesar de sujeitos ativos e participantes da sociedade, não costumam ter suas histórias documentadas. Acessar, ainda que de modo parcial e tímido, a subjetividade de cidadãs como Joana e Maria é uma oportunidade de confrontar a teoria com a vida prática dos sujeitos que tomamos por objetos de nossas pesquisas. É dotar de sentido o fazer das ciências humanas.
61 Destaque-se, entretanto, como esperamos ter deixado claro, que privilegiar a dimensão subjetiva não nos impede de imprimir um olhar crítico sobre aquilo que a constitui e limita. Ao contrário, histórias de vida como estas são importantes elementos para fomentar a compreensão do modo como as estruturas de poder impactam a apreensão de mundo de homens e mulheres com trajetórias marcadas pela desigualdade, pela exclusão e pelo esquecimento.