Eu sou a filha da Chiquita Bacana
Nunca entro em cana
Porque sou família demais
Puxei à mamãe
Não caio em armadilha
E distribuo banana com os animais
Na minha ilha
Yeh yeh yeh
Que maravilha
Yeh yeh yeh
Eu transo todas
Sem perder o tom
E a quadrilha toda grita
Yeh yeh yeh
Viva a filha da Chiquita
Yeh yeh yeh
Entrei para "Women's Liberation Front"
- 1 Música-tema da Festa da Chiquita. Esta é cantada na abertura da “temporada de caça”, que é a forma (...)
A filha da Chiquita Bacana1
Caetano Veloso
- 2 Uma versão anterior deste texto foi apresentada no 36º Encontro Anual da ANPOCS, em 2012. Agradeço (...)
- 3 Ao longo do texto utilizo indiscriminadamente os termos Festa da Chiquita, Festa, Chiquita e FC pa (...)
- 4 Este artigo é fruto de três movimentos de pesquisa distintos, porém não divergentes. O primeiro di (...)
1O objetivo deste artigo2 é apresentar a Festa da Chiquita3 como manifestação cultural e política originalmente criada, elaborada e direcionada ao público LGBT paraense. As transformações ocorridas ao longo do tempo terão pouco destaque por falta de mais dados e fontes, porém algumas (dis)tensões entre a Festa e o Estado, a Festa e o movimento LGBT, a Festa e a Igreja serão aqui problematizadas4.
2A partir da década de 1990, a Chiquita passa para as mãos do atual coordenador, Elói Iglesias, que lhe propõe uma outra dinâmica. Esta nova configuração encontra-se pautada, por vezes, dentro do estabelecimento de alianças com vários setores e instituições da cidade, nos moldes do pensado pela antropóloga Regina Facchini (2003 e 2005) – e apontado posteriormente em Simões & Facchini (2009) –, quando reflete sobre os tipos de estratégias adotadas pela terceira onda do "movimento homossexual brasileiro".
- 5 Para fins de marcação temporal e metodológica, utilizarei apenas material de campo dos anos de 201 (...)
3Essas alianças, tecidas através da entrega de prêmios, por exemplo, possibilitam a continuidade da Festa, assim como sua visibilidade na esfera pública e política, como as várias matérias veiculadas no decorrer da semana que antecede a FC, e o Círio, logicamente. Portanto, esta pesquisa insere-se nos debates sobre gênero e sexualidade, a partir de uma festa que começou como uma expressão de indivíduos que constroem identidades sociossexuais dissidentes, a saber: lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, dentre outros. E parte do referencial exposto aqui tem como objetivo ilustrar as discussões que serão desenvolvidas em diálogo com a pesquisa empírica, desenvolvida na Festa da Chiquita entre os anos de 2012 e 2014, e a com base na análise dos materiais documentais e das entrevistas5.
4A etnografia aparece neste texto como
[...] uma forma especial de operar em que o pesquisador entra em contato com o universo dos pesquisados e compartilha seu horizonte não para permanecer lá ou mesmo para explicar ou interpretar a lógica de sua visão de mundo, mas para, numa verdadeira relação de debate e troca, contrastar suas próprias teorias com as deles e assim tentar sair com um modelo novo de entendimento, ou, ao menos, com uma pista nova, não prevista anteriormente (Magnani 2012:264)
5Em vista disso, nesta seção proponho uma breve reflexão dos caminhos que me levaram a uma etnografia da Festa da Chiquita, como ponto de convergência de práticas culturais no espaço urbano, com base na observação participante. E como investigador das representações sociais, não poderia me furtar das dimensões que a etnografia permite que eu alcance. Isto é, uma profunda reflexão não só sobre as/os minhas/meus interlocutoras/es, o campo da pesquisa, o espaço e dinâmica da cidade, a sociabilidade de pessoas LGBT, mas porque também esta forma de escrita do social faz-me refletir sobre os caminhos escolhidos e as novas pistas alcançadas ao longo do tempo.
6Portanto, imergir num campo como este, no qual aspectos identitários, políticos e de produção de subjetividades estão sempre presentes, permite uma reflexão sobre como sou visto em campo e usado como instrumento político na relação de poder constituída entre a organização da Chiquita e a comissão do Círio de Nazaré. Ou seja, neste campo, estou em contato com diversas alteridades em busca de legitimidades antagônicas: em torno da continuação da “festa profana” e da sua permanência no centro da “festa sagrada”; ou, em torno da “pureza” da festa religiosa profanada pela presença dissidente.
7Essa relação entre o sagrado e profano, ou pureza e perigo, faz com que eu pense não só “neles”, mas em “mim” também, uma vez que durante a Quadra Nazarena, os quarenta dias de festividade católica no mês de outubro, o sentimento de cristandade tome a todos na cidade; economia, mídia, política e demais áreas da vida social são tomadas pelo fato social total que é o Círio (Mauss 2003). Esta dialogia permite-me criar uma empatia com o campo e interlocutoras/es, uma vez que sou um homem gay, que transita pela militância acadêmica, que faz pesquisa numa festa com teor altamente contestatório (político, religioso, ativista). Uma reflexividade que só a etnografia permite, uma vez que o olhar tem que ser aguçado, confrontado e intensificado. Por isso que não conseguimos fazer uma etnografia com apenas um olhar, ou esqueceremos o que significam as muitas piscadelas, e a diversidade de significados, suas expressões (Geertz 2008).
8Portanto, a retomada de alguns aspectos presentes em trabalhos anteriormente desenvolvidos permite-me recontar os vários olhares por mim lançados sobre este campo de estudos, principalmente os trabalhos voltados às homossexualidades: um campo de estudos em franco crescimento na Amazônia, com um desenvolvimento tímido, ainda, mas que tem alçado voos interessantes (Ribeiro 2010; 2012a).
9Este artigo, e esta seção em especial, aponta para a construção do objeto em Antropologia, mas, e talvez principalmente, do texto etnográfico. Ou “como refletir o que se passou lá (out there; no campo), para o que se diz aqui (back here; na academia) que, mais que psicológico, é um problema literário (Peirano 1992:7; grifos da autora). Da forma como construímos as nossas representações sobre as práticas e manifestações culturais de nossos sujeitos interlocutores, neste caso em particular, no espaço urbano, onde a complexidade das relações sociais se faz evidente.
10Observando de que maneira trilhei este caminho e como fui construindo o processo da produção textual desta etnografia, aponto para o que Vagner Silva (2006:118) considera:
- 6 Eunice Durham (2004:21) entende que: “A análise antropológica consiste em construir sistemas a par (...)
[...] O texto etnográfico em geral é uma redução brutal das inúmeras possibilidades de interpretação da experiência de campo e do difícil exercício de alteridade realizado entre o antropólogo e seus interlocutores. Primeiro, porque o texto etnográfico, como qualquer forma escrita de representação, já é em si mesmo uma adequação ou transformação da realidade que pretende inscrever, descrever, interpretar, compreender, explicar etc. Segundo, porque, devido à própria natureza multifacetada e dinâmica da realidade social, não é possível conceber uma representação etnográfica que a reproduza integralmente, ainda que julguemos poder abordá-la em termos de instituições ou fatos totalizantes6, tal como prescrevia Marcel Mauss (1974).
11Visto que as etnografias produzidas atualmente tendem a refletir sobre a condição do pesquisador em campo, a maneira como os dados são coletados e a forma como esses dados são reconstruídos no texto antropológico são estes também motivos de apreensão. Da mesma forma como a minha inserção em campo e a aceitação pela comunidade precisavam ser negociadas. É preciso refletir sobre a “relação entre a realidade apresentada e as próprias condições de produção das representações e sua natureza” (Silva 2006:119), uma vez que
[...] No caso do texto etnográfico, essa crítica torna-se central, pois, sendo a escrita uma aquisição cultural, a etnografia, como um projeto de produção de conhecimentos sobre grupos sociais e suas culturas, possui também sua própria forma de conhecer. Ou seja, especular sobre os conhecimentos de qualquer comunidade, sem questionar o próprio modo como se apreende esse conhecimento, é realizar apenas uma parte dos objetivos da etnografia. A frequente eliminação, no texto etnográfico, dos ‘andaimes’ que permitem a sua construção, anula também as possibilidades de se olhar através da organização da narrativa as múltiplas veredas que lhe dão origem (idem).
12Observando os questionamentos e as imbricações da relação entre eu/pesquisador e o outro/pesquisado apontados acima, desenvolvi as entrevistas, a partir da disponibilidade de cada um e da minha própria, sem nenhum tipo de constrangimento que impossibilitasse a continuação das mesmas. Isto é: “Nesse jogo de representações, presente no diálogo etnográfico, as perguntas e respostas sempre podem ser refeitas quando os participantes vão colocando novas ‘cartas’ na mesa e desenhando novos rumos e estratégias para a conversação” (Silva 2006:51-52).
13Anteriormente, na pesquisa de campo realizada para o mestrado, mapeei o circuito GLS e algumas formas de sociabilidade que indivíduos LGBT mantinham na cidade de Belém, PA. Para isso, vali-me de duas perspectivas teóricas que a princípio pareciam dissonantes, mas que me ajudaram a compreender as escolhas e as formas de interação de minhas/meus interlocutoras/es: as noções de mancha e circuito e as noções de projeto, trajetória e campo de possibilidades (Ribeiro 2012). Elas ainda mostram-se válidas para eu pensar o texto da tese, uma vez que permitem apontar para as mudanças e permanências desse circuito, assim como a trajetória da própria Festa em sua articulação com diversos campos (político, religioso, ativista).
14No primeiro par de categorias, elaboradas pelo antropólogo José Guilherme Magnani (1998 e 2002), este diz que a mancha é
[…] sempre aglutinada em torno de um ou mais estabelecimentos, apresenta uma implantação mais estável tanto na paisagem como no imaginário. As atividades que oferece e as práticas que propicia são o resultado de uma multiplicidade de relações entre equipamentos, edificações e vias de acesso, o que garante uma maior continuidade, transformando-a, assim, em ponto de referência físico, visível e público para um número mais amplo de usuários (:23).
15Enquanto que o circuito apresenta-se como parte desta mancha, ou seja, além da parte material, engloba a espacialidade, a oferta de determinados serviços, “códigos, encontros e comunicação” (Costa 2009:18), sendo assim,
[...] uma prática ou a oferta de determinado serviço por meio de estabelecimentos, equipamentos, e espaços que não mantêm entre si uma relação de contiguidade espacial, sendo reconhecido em seu conjunto pelos usuários habituais (Magnani 2002:23).
16Ou seja, o circuito, que é também determinado por questões subjetivas, pode ser realizado de diferentes maneiras, mas dentro do que enquadrei como circuito GLS estão basicamente os equipamentos direcionados ao público LGBT da capital paraense. Isto é, todos os locais de sociabilidade mediados pelo mercado fazem parte deste arranjo metodológico, a saber: os bares, as boates, os cinemas, as saunas. Porém, deixei de fora os lugares que não se encontram direcionados a um público consumidor, mas que são consumidos pelos sujeitos sem, no entanto, desenvolverem relações comerciais, como as praças, os banheiros públicos, as ruas escuras, os banheiros de lojas e shopping centers.
17Na segunda tríade de categorias, elaboradas pelo antropólogo Gilberto Velho (1995, 2003 e 2008), pude considerar aspectos mais subjetivos, principalmente das histórias de vida das/dos interlocutoras/es da pesquisa. Assim, a noção de trajetória permitiu que eu evidenciasse seus processos de subjetivação, suas perspectivas identitárias e suas escolhas performáticas, a partir de um projeto de vida. E este projeto ligado ao campo de possibilidades que se apresentaram ao longo de suas histórias, ou seja, quais as possíveis escolhas a serem feitas quando cruzadas com eixos de diferenciação social como gênero, raça, classe e orientação sexual, por exemplo.
18Assim,
[...] a noção de projeto procura é dar conta da margem relativa de escolha que indivíduos e grupos têm em determinado momento histórico de uma sociedade. Por outro lado, procurava ver a escolha individual não mais apenas como uma categoria residual da explicação sociológica mas sim como elemento decisivo para a compreensão de processos globais de transformação da sociedade. Visa também focalizar os aspectos dinâmicos da cultura, preocupando-se com produção cultural enquanto expressão de atualização de códigos em permanente mudança. Ou seja, os símbolos e os códigos não são apenas usados: são também transformados e reinventados, com novas combinações e significados (Velho 2008:110; grifos do autor).
19Algumas características são próprias da noção de projeto, como “algo que pode ser comunicado”, que “para existir precisa expressar-se através de uma linguagem que visa o outro, é potencialmente público”. E “outra idéia importante é a de que os projetos mudam, um pode ser substituído por outro, podem-se transformar”. Portanto, como analisa o autor, “o ‘mundo’ dos projetos é essencialmente dinâmico, na medida em que os atores têm uma biografia, isto é, vivem no tempo e na sociedade, ou seja, sujeitos à ação de outros atores e às mudanças sócio-históricas” (Velho 2008:29). E, ainda, “a noção de projeto (...) enfatiza a margem de manobra existente na sociedade para opções e alternativas. De alguma forma, um sujeito decide e escolhe um caminho específico” (:44).
20Sobre a noção de campo de possibilidades, assim define Velho: “(...) trata do que é dado com as alternativas construídas do processo sócio-histórico e com o potencial interpretativo do mundo simbólico e da cultura” (2003:28). E “(...) a noção de campo de possibilidades como dimensão sociocultural, espaço para formulação e implementação de projetos” (:40). E considera também que enxerga na
[...] noção de campo de possibilidades, a existência de alternativas e de margem de escolha e manobra, em termos de maior peso ou impulso não só em uma das duas direções mas também a viabilidade de encontrar caminhos e soluções que não possam ser encaixados em um dos pólos mencionados (Velho 2008:79).
- 7 No caso da escola paulista, a cidade, e a perspectiva da Escola de Chicago, tendo Robert Park como (...)
21Com isso, pude então compreender como sujeitos se lançam no “universo gay”, num mundo que ajudará a construir sua identidade de grupo, que ajudará a criar novas possibilidades, que ajudará a construir novos projetos de vida ligados a esta nova condição social: de uma vivência plena e satisfatória com sua sexualidade desviante7.
22Então, a sociabilidade entre pessoas LGBT, em Belém, se desenvolve mediada pelo mercado e atualmente vive uma efervescência de lugares, sendo criados e reformulados de tempos em tempos, com algumas poucas permanências, como o Bar da Ângela (ou Refúgio dos Anjos) que existe há 18 anos. Estes foram os meus lugares de observação, durante o mestrado, enfatizando os bares e boates.
23Assim, pude compreender quais as motivações e redes acionadas para adentrar neste “universo”, ou no “meio”, como as/os interlocutoras/es se referiam; este útimo termo aparece para definir espaços (físicos e simbólicos), lugares (virtuais ou materiais) e territórios que permitam encontro e interação, e formas de sociação (Simmel 2006). Com relação às motivações, percebi que uma das principais referências diz respeito às questões que envolvem processos identitários, ou como chama atenção Michael Pollak (1986) para o “fazer-se gay”, isto é, aos arranjos na/da identidade ou de apêndices identitários que incorporam e que os tornam parecidos ou permitem com que façam parte do grupo ao qual se quer inserção. No que diz respeito às redes, estas estão geralmente ligadas por laços de amizade ou companheirismo, ou seja, amigos, em geral, são acionados para fazerem parte desta nova experiência, a de frequentar bares e boates GLS; o caso da Chiquita não foge à regra.
- 8 Frase dita por Elói Iglesias em sua primeira fala na 33ª edição da Chiquita, em 2011.
24Em vista do exposto até aqui e tendo como referência uma fala muito difundida entre as/os participantes da Festa da Chiquita, de que esta seria “a primeira parada gay do mundo8”, proponho também que se pense na Chiquita a partir das interlocuções que se faz com o Movimento LGBT do Estado do Pará, visto que nos últimos anos este ajuda na organização da Festa e na obtenção de recursos para sua realização; assim como no diálogo que mantém com os órgãos de segurança pública, devido a organização da Parada do Orgulho LGBT da capital paraense pelo Movimento.
- 9 Cf. Cavalcante, 2005.
- 10 De autoria do pesquisador José Luiz de Moraes Franco, da UFPA.
25E, visto que ainda não se produziu material sobre a construção do Movimento LGBT em Belém, exceto por um trabalho de conclusão de curso9 e uma tese em andamento10, creio que seja pertinente, uma vez que a Festa da Chiquita é anterior ao movimento organizado, num futuro próximo, fazer uma comparação do processo organizacional, do momento festivo e da sociabilidade presentes nos dois momentos; além de aproveitar para ampliar a pesquisa desenvolvida no mestrado e verificar se existe no restante do Brasil algum evento parecido com o evento aqui escrutinado, “de perto e de dentro”.
26A Festa da Chiquita, ou “Festa da Maria Chiquita”, como era conhecida na década de 1970, é um evento festivo organizado e direcionado à comunidade LGBT que acontece há mais de 35 anos no centro da capital paraense, mais precisamente na Praça da República, após a Trasladação, no sábado que antecede a romaria principal do Círio em homenagem à Virgem de Nazaré, padroeira do Pará e dos paraenses. Nesta praça está localizado o maior símbolo da Belle Époque paraense e que é produto da exuberância dos tempos gomíferos na Amazônia: o Theatro da Paz.
- 11 Na análise que faz de um bairro de Belém, o Jurunas, Carmem Rodrigues (2008b:273) entende que a pa (...)
27O Círio de N. S. de Nazaré é uma das maiores festas religiosas do país, agrupando na peregrinação principal quase dois milhões de pessoas. Seu mito de origem está ligado diretamente ao caboclo Plácido, que encontrou uma imagem da santa à beira de um igarapé, mas ao levá-la para casa e tentar mantê-la por lá, esta sempre retornava para onde fora achada. Neste lugar fora construída a atual Basílica de Nazaré. Esta história é recontada de várias maneiras, ora dando ênfase ao fato da santa mudar de lugar, o que explicaria as peregrinações da imagem pelos bairros, nas chamadas novenas; ora dando ênfase ao personagem que a encontrou, o caboclo Plácido, que a faria amada por todas as camadas da sociedade, sendo elevada a padroeira dos paraenses, numa elaborada imbricação entre as identidades ribeirinha, cabocla e paraense11.
28Além da procissão principal, durante o mês de outubro, e já no final de setembro, a cidade passa a contar com várias procissões e festejos periféricos ao evento principal – que é a ida da berlinda que leva a imagem da Virgem de Nazaré, da Catedral Metropolitana de Belém (a Igreja da Sé) à Basílica de Nazaré – como nos mostra o antropólogo e historiador Antônio Maurício Costa (2009):
- 12 Esta citação faz parte de uma pesquisa sobre o circuito bregueiro na cidade de Belém, realizada po (...)
[…] O “Círio”, festividade religiosa surgida em Belém no ano de 1793, na verdade corresponde somente às procissões mais importantes que inauguram a Festa de Nazaré, na véspera e durante o segundo domingo de outubro. A Festa de Nazaré compreende vários eventos religiosos, tais como: translado da imagem em carro aberto para Ananindeua (Município da Região Metropolitana) dois dias antes da procissão principal; “Romaria Rodoviária” para o porto de Icoaracy, distrito de Belém; “Romaria Fluvial” saída de Icoaracy em direção ao porto de Belém; “Romaria dos Motoqueiros” [ou Moto-Romaria, como é chamada atualmente] saída do porto de Belém em direção ao Colégio Gentil Bittencourt; “Descida da Imagem” [do Glória], cerimônia na Basílica de Nazaré após a Romaria dos Motoqueiros; “Trasladação”, segunda procissão mais importante do Círio, quando no fim da tarde do sábado é conduzida a imagem da santa do Colégio Gentil à Catedral da Sé, no bairro da Cidade Velha; “Procissão matinal do Círio de Nazaré” no segundo domingo de outubro, saída da Catedral da Sé, em direção à Basílica de Nazaré, no bairro de Nazaré; “Círio das Crianças”, realizado no primeiro domingo após o Círio principal; “Procissão da Festa”, ocorrida no segundo domingo após o Círio principal; “Missa de Encerramento”, no segundo domingo; “Fogos de Encerramento”, após a missa final; “Subida da imagem” (ao Glória, localizado no altar principal da Basílica de Nazaré, na segunda-feira seguinte à missa de encerramento); “Missa de Despedida”, ocorrida após a subida da imagem; “Recírio”, procissão final em que a imagem [peregrina] retorna ao Colégio Gentil, ocorrida após a Missa de Despedida; “Incineração das Súplicas”, em que os pedidos dos devotos depositados durante a festividade junto ao nicho da santa na praça santuário em frente à Basílica de Nazaré são queimados pelos diretores da festa de Nazaré. Ao lado destes eventos se destaca a presença do arraial, que constitui um parque de diversões montado ao lado da Basílica de Nazaré e que funciona durante os quinze dias de festividade e é gerido pela Diretoria da Festa de Nazaré. Outros eventos importantes ocorrem na cidade neste período condicionados à presença do Círio, mas que não possuem ligação direta com a organização deste evento, dentre eles os mais importantes: “Auto do Círio”, espetáculo teatral encenado em movimento nas ruas do bairro da Cidade Velha, dois dias antes da procissão principal e que faz uma paródia carnavalizada do Círio; e a “Festa da Chiquita”, ocorrida na véspera da procissão principal e num trecho do seu percurso (Rua da Paz, em frente ao Teatro da Paz, à margem da Avenida Presidente Vargas), na noite de sábado para domingo, é um evento voltado principalmente ao público homossexual, em que ocorrem apresentações de cantores regionais, de grupos folclóricos, shows de travestis, entrega de prêmios artísticos, dentre outros (Costa 2009:180, nota de rodapé 124; grifos meus)12.
29A partir desta citação, podemos visualizar a miríade de acontecimentos durante a Quadra Nazarena. Várias categorias profissionais, instituições, distritos municipais realizam eventos em adoração à Virgem. Ao longo dos últimos anos, surgiram manifestações que envolvem, por exemplo, categorias profissionais ligadas ao transporte, como a Romaria Fluvial e a Moto-Romaria, descritas acima.
- 13 Até o momento além dos trabalhos sobre o Círio, encontrei apenas dois TCCs sobre o Auto do Círio, (...)
30Alguns autores (Alves 1980; Amaral 1998; Costa et al, s/d; Lima 2005; Maués 2000; Pantoja 2006) debruçaram-se sobre a procissão principal, o Círio de Nazaré, do ponto de vista histórico; no entanto, nenhum trabalho histórico, e muito menos etnográfico, ocupou-se das demais festividades descritas na citação13, como a Festa da Chiquita por exemplo, que proponho como tema neste projeto.
- 14 Embora Antônio Maurício da Costa (2009:183) tenha afirmado que surgiu das mãos do romancista Dalcí (...)
31Diante do exposto acima menciono que Isidoro Alves (1980) foi o responsável por difundir o termo pelo qual o Círio ficou conhecido, “Carnaval Devoto14; Rita Amaral (1998:14) afirma que o período do Círio age a partir de “mediações simbólicas entre o sagrado e profano” e que revela o “poderoso caráter lúdico da parte profana da festa para a Virgem” (:15); Francisco Costa e outros (s/d) analisam o período da quadra nazarena a partir da movimentação econômica atrelada à fé; Heraldo Maués (2000) a partir de uma perspectiva que olha a festividade como reminiscência das que eram feitas em Portugal desde o século XVII; e Vanda Pantoja (2006:41), a partir de uma etnografia junto à Diretoria da Festa de Nazaré, chega a definir a relação desta com a Festa da Chiquita como conflituosa, por ser um evento organizado por “homossexuais e simpatizantes” que estaria em desacordo sobre o tipo de homenagem que se pretende prestar à Santa; esta última autora e Francisco Costa e outros são umas/uns das/dos poucas/os que olham para a Festa da Chiquita, mesmo que de forma incipiente.
32No entanto, somente duas são consideradas de caráter estético-político, a Festa da Chiquita e o Auto do Círio. Este último, realizado por pessoas ligadas às artes cênicas e teatrais transformam as ruas do bairro da Cidade Velha em palco para apresentações que brincam com as referências míticas do Círio, unindo num mesmo cortejo deuses e demônios, fadas e elfos, bruxas e magos, realidade e fantasia, mito e místico.
33Assim, o evento principal acaba gerando grande visibilidade, tanto acadêmica quando midiática (e comercial), tendo sido objeto de pesquisas nas áreas das ciências humanas e sociais, turismo, serviço social, economia, podendo ser considerado mesmo como um "fato social total", nos modos maussianos; por isso, tanto interesse na festa, que modifica a economia, o comércio, o deslocamento, o turismo e a mídia na capital paraense.
34Como uma das grandes referências para pensar a identidade paraense, o Círio, e as comidas típicas da época, como a maniçoba e o pato no tucupi, esta acaba por evidenciar o poder e o raio de influência da Igreja Católica na cidade e nas pessoas; vide os conflitos desta com o Auto do Círio e a Festa da Chiquita.
35Este fato é corroborado quando assistimos o documentário “As filhas da Chiquita” (2006), dirigido por Priscilla Brasil, no qual são retratadas as tensões entre as pessoas envolvidas direta e indiretamente com a Festa. Às ligadas diretamente, têm em Elói Iglesias a figura representativa, sendo a fala deste sempre marcada pela conciliação entre os discursos pela manutenção da Chiquita e a recusa da Igreja em englobá-la como parte do Círio; algumas pessoas ligadas à origem da FC, antes um bloco no estilo carnavalesco, também têm espaço para manifestar-se, contando as origens e acontecimentos que deram forma ao evento. Às ligadas indiretamente, são representadas por um padre e por uma aparentemente simpática senhora, moradora das imediações da Praça da República, onde se monta o palco da Festa.
36As falas do padre e da senhora representam tipos de pensamento que enquadram a Chiquita num lugar de abjeção, de pecado, de perigo - e quase crime. A ideia de que a FC desrespeita o Círio, de que é uma "pouca vergonha", de que só tem gente de segunda categoria, encontra-se em oposição ao Círio como lugar de beleza, de pureza, de limpeza.
37As representações tanto do Auto do Círio quanto da Festa da Chiquita resvalam na categorização de suas estéticas, que brincam com o grotesto, com o deboche, como sendo absurdas para o contexto e os eventos encapsulados nas festividades nazarenas. Para isso ser resolvido é preciso, então, descartá-las, eliminá-las, excluí-las do calendário oficial, da rua, da praça e da cidade.
38Por vezes, os símbolos sagrados para os cristãos viram alvo de deboche e escárnio dos partícipes das duas manifestações. Também não é incomum vermos figuras demoníacas, representações do "mal", através de outros seres, ou representações que disputam a hegemonia do cristianismo, como o candomblé, a umbanda, a mina serem encenadas pelas ruas, durante o Auto do Círio, ou no palco da Chiquita.
39Os figurinos do Elói Iglesias, figura central da FC, por vezes aproveitam-se da "estética do mal" para serem fabricados e representados e que, posteriormente, ajudam na encenação de quem os vestem. Um exemplo disso é que, em anos anteriores, o apresentador da FC apareceu com longos chifres, numa acepção clara à figura demoníaca, amenizada pelas cores claras; numa clara alusão à dualidade que envolve a manifestação principal, o Círio, e a Chiquita com noções como: claro e escuro, bem e mal, deus e diabo, puro e impuro, sacro e profano.
40A Festa da Chiquita nasce como um cortejo que agrupava a “comunidade marginal” da época, vide a classe artística – músicos, compositores, atores, artistas plásticos, fotógrafos, jornalistas –, a classe acadêmica – estudantes e professores universitários – e os “desviados” (gays, lésbicas e travestis), tinha como intenção principal reverenciar a “imagem-peregrina” de Nossa Senhora de Nazaré durante os eventos do Círio, que prestam homenagens à santa. Porém, não estava a ele atrelada, a não ser simbolicamente, pois de acordo com o mito de origem da Festa os acompanhantes do cortejo puseram-se atrás de uma berlinda, similar a que carrega a imagem de N. Sra. de Nazaré, numa clara alusão ao maior evento religioso do Norte do país.
41Este mito serve para pensar a dinâmica da própria cidade, que sofreu os impactos da economia da borracha, tornando-se um centro dinâmico e ativo na economia da região, de onde derivam grande parte das construções arquitetônicas do centro antigo da cidade, como os palacetes, casarões, sobrados, mercados e o próprio theatro; no próprio investimento urbanístico tentando imitar as capitais europeias, como Paris, e não obstante a criação de seu próprio boulevard – o Boulevard Castilho França, no centro da cidade – articulando a sanitarização e higienização à ideia de urbanização. E que depois sofreu o impacto violento do final do período dourado, que teve seu apogeu entre os anos de 1890 e 1911, com o deslocamento do centro gomífero para outra região do planeta.
42A economia das duas maiores cidades da região, Belém e Manaus, nunca foi recuperada – como certa exceção de Manaus que acabou acolhendo a Zona Franca; o que acabou por dinamizar sua economia – e os prédios e as construções arquitetônicas deste momento acabaram sem aproveitamento nos períodos posteriores. Hoje, há uma intensa revitalização cultural nestes locais como, por exemplo, o uso do espaço e a circulação de pessoas trazidas pelo Círio e pela Chiquita nas proximidades do Theatro da Paz durante os festejos do Círio; a apropriação da Praça da República – e do famoso Bar do Parque – pelos eventos culturais apresentados ao ar livre; o Mercado de São Brás sendo revisitado pelos ensaios das quadrilhas juninas entre os meses de fevereiro e maio, e recentemente pelas rodas de carimbo, samba e chorinho realizadas por “coletivos de agitação cultural”, como o Bloco da Canalha; e os palácios e palacetes que se tornaram sedes das instituições municipais e estaduais, como: a Prefeitura de Belém que funciona no Palácio Antônio Lemos e o Museu Histórico do Estado do Pará, localizado na antiga residência dos governadores e capitães-generais, no Palácio Lauro Sodré.
43A Festa da Chiquita, nascida nos idos de 1978, nos faz pensar na dinâmica da própria cidade e os abalos que sofreu desde o término do período de grande desenvolvimento econômico, pois até a década de 1970, e com a entrada novamente da região na economia nacional, a partir dos grandes projetos de desenvolvimento da Amazônia, não se sentia o impacto das mudanças culturais e sociais na cidade, na sua arquitetura e dinâmica, por exemplo, pois a vida política foi marcada pela presença de interventores administrando o Estado.
44Nascida, também, no período da ditadura militar brasileira, durante o governo Geisel, à beira da transição rumo à democracia, um ano antes do estabelecimento do pluripartidarismo no país, talvez seja por isso que as “sexualidades dissidentes” tenham podido sobreviver sem o peso da censura, embora a grande maioria dos partícipes da Festa tenha sofrido com os duros anos de chumbo. Esta manifestação nasce com uma proposta de reinventar o lúdico, reinventar a sexualidade, reinventar a si mesmos e explorar o lado profano do mundo. Ou explorar o lado profano do próprio Círio, evento ao qual foi e se mantém atrelado simbolicamente.
- 15 No bajubá significa “festa”, “festejo”, “furdunço” geralmente no sentido pejorativo.
45O lado profano do Círio de Nazaré é sempre exortado quando se fala da Festa da Chiquita, encontrando-se aí sua antinomia, seu paradoxo. No entanto, creio que o profano não encontra uma tipificação na Chiquita, sendo também ela uma exposição do símbolo do sagrado durante a Trasladação ou durante os festejos. Pois, como sempre ocorre, é necessário deixar a Santa passar para poder começar a “bagaça15”. Ou quando os presentes no palco, especialmente o organizador principal, o cantor Elói Iglesias, estendem as mãos em reverência à “imagem-peregrina” durante a passagem da procissão em frente ao palco na Presidente Vargas.
46Portanto, comportar um evento de caráter profano ampliado ainda mais por se tratar de um evento LGBT, anterior até às Paradas do Orgulho, como não se cansa de dizer o atual idealizador da festa, faz com que eu pense na própria narrativa sobre a cidade e suas dinâmicas (sociais, culturais, políticas e institucionais), e mais especificamente sobre os “desvios” (como eram vistas as performances erótico-sexuais e afetivas que rompiam com as normas heterossexuais e de gênero), as homossexualidades, as dissidências no interior da própria cidade, pois não eram apenas os LGBT alvo do escárnio e do escrutínio público, mas todo e qualquer indivíduo fora do padrão, ou “perigoso” ao regime e ordem social.
47Nesta seção pretendo iniciar a discussão sobre o objeto da pesquisa de doutorado e como a noção de campo, elaborada por Pierre Bourdieu (1989, 1990, 2004 e 2009), irá ajudar na compreensão deste. Isto é, a noção sociológica de campo proporciona um arranjo metodológico capaz de elucidar algumas questões relacionadas à Festa. A começar, por sua delimitação estrita do objeto, com um recorte onde posso analisá-la como campo isolado, mas que ao mesmo tempo mantém diálogo com outros campos. É o que pretendo fazer ao fim da tese, porém este será o momento de iniciar algumas aproximações.
48Assim, Bourdieu (1990:119-120) define a noção de campo (religioso)
um espaço – o que eu chamaria de campo - no interior do qual há uma luta pela imposição da definição do jogo e dos trunfos necessários para dominar nesse jogo (...)é o lugar de uma luta pela definição, isto é, a delimitação das competências, competência no sentido jurídico do termo, vale dizer, como delimitação de uma alçada
49Visto desta forma, o campo que é a Festa da Chiquita pode ser considerado como autônomo, independente de estruturas e instituições; porém se olharmos a relação de simbiose que mantém com: o mercado, por exemplo, na contratação de DJs residentes das boates, gogo boys, gogo girls e drag queens que fazem shows nas casas noturnas GLS de Belém; o Estado, na concessão do espaço, neste caso, da Praça da República, ou nas licenças concedidas para a realização da Festa, como as advindas do Departamento de Polícia Administrativa (DPA), da Secretaria Municipal de Urbanismo (SEURB), da autorização do Corpo de Bombeiros Militar (CBM) para montagem do palco, da Polícia Militar (PM) para proteção e policiamento da Festa e da Companhia de Transportes de Belém (CTBEL), que libera a Presidente Vargas e ruas adjacentes, com o fechamento do trânsito, para a festa acontecer; a Igreja, visto que a Festa está diretamente relacionada ao Círio, embora não seja por ele encapsulada, pelo menos oficialmente (vide site da Festa de Nazaré); e o movimento LGBT paraense, que atualmente ajuda na organização, tendo vários de seus membros envolvidos na busca por recursos e outras atividades que permitam a continuidade da FC.
- 16 Numa perspectiva antropológica clássica, à la Mauss (2003).
- 17 Que tangencia a proposta durkheimiana quando pensa a interdependência presente na solidariedade or (...)
50A noção de campo, portanto, ajuda a pensar as tensões que envolvem o processo de construção da Festa, de organização e sua realização. É possível considerá-lo para que se possa organizar esquemas de articulação de redes de contato e de amizades formados no Estado, no mercado, no movimento LGBT, e, em menor dimensão, na Igreja. É possível enxergar como esta administra, através da reciprocidade16, ou da solidariedade17, os seus prêmios, numa relação constante e contrastante entre a tríade dar/receber/retribuir.
51Os prêmios, neste caso, servem para manter as redes ativas. Além do mais, servem para demonstrar e publicizar a relação mantida entre a Chiquita e as várias instituições, sejam elas públicas ou privadas, do Estado ou do mercado; assim como, sua relação com várias pessoas de influência na cidade, como jornalistas, políticos, empresários, intelectuais, músicos e acadêmicos.
52Como pôde ser visto nos anos de 2010 e 2011 – anos de aproximação maior com a Festa, tendo por objetivo a escrita do projeto de tese – onde os prêmios se dividiram entre personalidades artísticas e políticas, representantes de organizações militares e de instituições e dos movimentos sociais.
QUADRO DE REMIADOS DE 2010
32ª edição
“Divas”
QUADRO DE PREMIADOS DE 2011
33ª edição
53Estes quadros demonstram a variedade de personagens agraciados com a premiação. E mostra como a Festa pensa esta, fazendo uma divisão quase que milimétrica dos premiados com tal distinção. Não deixa claro o processo de disputa que envolve, nos bastidores, a luta por prestígio da comunidade LGBT.
54Com estas primeiras inflexões, percebe-se o intenso campo de disputa que é a Festa da Chiquita, com suas alianças refletidas nas escolhas dos agraciados na premiação, mas, sobretudo, no papel carismático que envolve a figura do cantor Elói Iglesias, que consegue aglutinar durante este momento de “festa dentro da festa” atores sociais tão díspares (Costa 2006). No entanto, há que se refletir sobre as tensões que permeiam estas relações de reciprocidade.
55Nos momentos de premiação que ocorreram em 2011 foram agraciados com dois dos prêmios máximos, dois políticos do PSOL: a senadora, à época, Marinor Brito, e o deputado federal, Jean Wyllys. E não por acaso quem entregou os prêmios foi a presidente do Grupo de Mulheres Prostitutas do Estado do Pará (GEMPAC), Lourdes Barreto; confirmando assim uma proposta de estabeler pactos e alianças com personagens importantes da cena social, política, militante e acadêmica em nível regional e nacional.
56Atualmente, a Festa continua sendo um centro de convergência de sujeitos dissidentes na cidade de Belém, embora o perfil de participantes tenha mudado, como já ouvi diversas vezes. Alguns, principalmente os que apreciaram os primeiros momentos ou a conheceram nos finais dos anos 1980 ou início de 1990, dizem que não estão mais na Festa porque o público mudou. Então, antes o que era lugar de encontro e sociabilidade LGBT acabou se tornando um espaço de convergência de vários sujeitos da cidade, nem sempre interessados nas agendas políticas da militância LGBT, que se mantém ativa na organização da Chiquita. Isto é, o que antes era um espaço de segurança agora é um espaço de violência – mas porque não também um espaço de visibilidade tanto para os LGBT quanto para os ditos “agentes da violência”, muitas vezes meninos negros, pobres e de periferia; há que se problematizar essa pertença e a exclusividade da Festa.
57As performances são o grande atrativo da Festa da Chiquita. Não só as realizadas pelas drag-queens, mas pelo público que, embalado ao som das “músicas de boate”, se queda em jogos performáticos rivalizando com as prerrogativas heteronormativas. Não que a Festa não seja um lugar de conformação, mas posso pensar que a partir das fissuras e das brechas há um poder nestas performances, um poder derivado da própria agência dos sujeitos.
58Além disso, há espaços para jogos políticos, negociações e contingências que permitem a ampliação dos campos e das redes. A manutenção dos laços políticos com o ativismo político, por exemplo, é sempre considerado, seja esse ativismo o LGBT ou não. No ano de 2013, o estreitamento de laços com o coletivo “Casa Fora do Eixo” foi perceptível, pois eles criaram a identidade visual que marcava os 35 anos da Chiquita. Isso, considerando a aproximação com ONG de ativismo em HIV/AIDS e ONG e grupos LGBT, sejam da capital ou interior do Estado. Há também espaços para estreitamento de relações com outros movimentos sociais, como o Movimento Negro, de Mulheres, Feminista, as associações afro-religiosas e demais entidades da área dos direitos humanos. Estado e Igreja sempre são considerados nestas relações, pois não é incomum um prefeito, vereador, deputado, senador, secretário, comandante ou quaisquer instituições política ou de segurança levar para casa um dos prêmios dados aos “Amigos da Chiquita”, ou seja, não necessariamente aquele que milita ou é ativista do movimento, mas que tem ações direcionadas ao segmento, como a garantia do policiamento durante a Festa, por exemplo.
59Uma gama de premiações ajuda a fortalecer e estender os campos e as redes tecidas pela Festa da Chiquita. O supracitado “Amigos da Chiquita” é direcionado àquela instituição ou representante desta que dá apoio ou algum suporte para que a Festa ocorra, como o prêmio conferido ao comandante dos Bombeiros do Pará no ano de 2010. O prêmio “Rainha do Círio” é concedido a uma artista ou celebridade que tenha se pronunciado publicamente a favor dos direitos ainda não assegurados dos LGBT ou que tenha se manifestado a favor da continuação da Festa. A premiação “Botina de Ouro” é direcionada às lésbicas que prestaram serviços à comunidade LGBT, ou que seja ativista, ou personalidade no mundo LGBT. O maior prêmio, o primeiro criado e de maior destaque é o “Veado de Ouro”, que nasce junto com a Festa e que marca simbolicamente o fim da Chiquita e o começo da organização da mesma para o próximo ano. Ele é dado à “bicha” em destaque na sociedade belemense ou brasileira, tendo agraciado figuras importantes no cenário nacional, em torno dos direitos LGBT, como o deputado federal Jean Wyllys; assim como, o antigo prefeito de Belém e atual deputado federal Edmilson Rodrigues.