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Contaminação clubber: corpo e performance na cena de São Paulo

Clubber contamination: body and performance in the scene of São Paulo
Morgan Franzoni Caetano

Resumos

O presente artigo busca investigar a relação entre corpo, cidade e performance na cena clubber de festas independentes de música eletrônica da cidade de São Paulo. Partindo de uma breve apresentação do campo, este trabalho desenvolve as noções de cena, contaminação e performance, entendendo o corpo como um aspecto central da cena clubber. A ideia de contaminação surge nesta pesquisa como uma perspectiva clubber que parte do próprio campo – no texto, é desenvolvida com base na teoria de Mary Douglas e na figura do monstro. A noção de performance é abordada em diferentes perspectivas: de modo a evidenciar uma arquitetura relacional própria da cena clubber. O texto é fruto da pesquisa de Iniciação Científica realizada entre 2019 e 2020, que foi atravessada pelo isolamento social da pandemia de Covid-19, e teve como principais interlocutories integrantes do coletivo artístico Metanoia.

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Notas da redacção

Versão original recebida em / Original version 29/03/2023

Aceito em / Accepted 15/12/2023

Texto integral

  • 1 O termo clubber é utilizado em campo para se referir aos frequentadores das festas de música eletrô (...)
  • 2 Sob orientação de Silvana de Souza Nascimento, realizei a pesquisa na condição de bolsista do progr (...)

1Na primeira vez que entrei em uma festa clubber1 me senti em casa. Era um espaço inundado por fumaças de diversos tipos de cigarro, com chão sujo de poeira e cinzas, música de batidas fortes que se emendavam uma na outra e pessoas dançando esquisito. Em um movimento considerado ainda hoje controverso em certas áreas da antropologia, entendi que era nesse ambiente que queria estudar: fazer antropologia nessa casa bagunçada e barulhenta que se apresentava para mim, me encantando com diversos estranhamentos. Este artigo é resultado da pesquisa de Iniciação Científica2 que desenvolvi entre novembro de 2019 e novembro de 2020. Durante esse período, atravessado pela pandemia do Covid-19, trabalhei a relação entre corpo, festa e cidade. Para isso, tive como base as performances que ocorrem em festas independentes de música eletrônica na cidade de São Paulo. O retrato do campo relatado nesse texto corresponde ao momento imediatamente antes do isolamento social iniciado em 2020; após esse momento muitas mudanças ocorreram na cena clubber paulistana, porém meus estudos não tiveram continuidade nesse campo.

  • 3 O termo performer se refere a artistas que, através da dança, realizam performances artísticas nas (...)

2O corpo clubber é o ponto de início desta pesquisa. O interesse por estudar performers se deu pelo reconhecimento de que essas pessoas, ao colocarem seus corpos em evidência, constroem nas performances narrativas e expressões que caracterizam as festas, a cidade e a realidade de cada artista. Dessa forma, entendo as performances como eventos que traduzem no corpo – e através dele – diferentes aspectos da cena clubber, constituindo um processo de contaminação entre corpo-performance-festa-cidade. O contato com as performers3 se deu a partir da minha presença nas festas, nas quais conheci e me aproximei de integrantes do coletivo artístico Metanoia. Como participante desses eventos, pude também observar performances do coletivo em diversas ocasiões.

3Durante 2020, com o impedimento da realização de aglomerações devido ao isolamento social decorrente da pandemia do Covid-19, optei por realizar entrevistas por meios virtuais, me apoiando também em minhas experiências anteriores nas festas. Considero importante evidenciar que, apesar da proibição desses eventos no início da pandemia de Covid-19, não houve consenso na cena clubber em relação a essa postura. Durante os momentos críticos do primeiro ano da pandemia, novas organizações de festas surgiram em um movimento clandestino que não seguia os protocolos de cuidados coletivos contra a disseminação do vírus. Por motivos metodológicos – mas especialmente por posição política – me mantive distante desses eventos, não os abordando na pesquisa.

4Minha aproximação com o campo se deu primeiro na condição de público das festas. Esses eventos me chamaram a atenção tanto por não ocorrerem em clubes de festas tradicionais, como também pela defesa de um ideal de liberdade de “poder ser quem se é”: pessoas de gênero-dissidentes; diversas formas de afeto e sexualidade; diferentes estéticas de roupas e maquiagens; aproximação entre organizadores, DJs, performers e público etc. Como uma pessoa pouco entusiasta de festas que ocorrem em clubes tradicionais, o encontro com esses espaços me gerou sentimentos de identificação e pertencimento, mobilizações que posteriormente, através das entrevistas realizadas, apareceram também no relato de muitas clubbers.

  • 4 Adoto o uso da linguagem de gênero neutro – conhecida também como linguagem não binária ou linguage (...)

5Em se tratando de uma etnografia que tem o corpo como centralidade, ressalto a percepção do meu próprio corpo, pesquisador e clubber, em relação com a cena estudada. Escrevo da perspectiva de uma pessoa branca, trans não-binária, pansexual e sem deficiências. Silvana Nascimento (2019) apresenta provocações sobre o reconhecimento do corpo des antropólogues4 em pesquisas de campo, pensando o efeito dessas experiências na escrita etnográfica. Para Nascimento, o corpo pesquisador torna-se visível e é questionado no processo de pesquisa, permitindo aproximações e distanciamentos com o campo em uma posição múltipla, encarnada e de fronteira. Para a autora, a presença material do corpo

que ocupa um determinado espaço, que se move de uma certa maneira, que possui uma certa linguagem, que expressa marcas de gênero, sexualidade, geração, raça/etnia, religião, nacionalidade, etc, provoca efeitos nos lugares e situações onde se realizam as interações entre as antropólogas e seus(uas) interlocutores(as) (NASCIMENTO, 2019, p. 460).

6A noção de corpo que adoto pressupõe que esse seja compreendido tanto como produto quanto como produtor de sentidos, de experiências e da própria subjetividade; desse modo não se trata de algo dado naturalmente, mas dotado de agência (MALUF, 2001). É com base nessa perspectiva que investigo o papel das performances na cena de festas independentes de música eletrônica em São Paulo: entendo essas performances como momentos de construção de narrativas por corpos não normativos, a partir de suas vivências, sendo contaminadas e contaminando tanto as festas como a cidade. Neste artigo, o entendimento de “performance” será abordado com base em diferentes perspectivas e definições, por vezes de forma propositalmente não explícitas: com isso, objetivo evidenciar as diferentes formas que a cena clubber contamina seu entorno, proponho que esses diferentes modos performáticos sejam aqui entendidos como a exposição de uma arquitetura relacional própria da cena clubber. Também a partir desse uso da performance, desenvolvo a noção de contaminação.

A cena clubber

  • 5 Os nomes das pessoas entrevistadas, citados nesse texto, foram escolhidos pelas próprias. As entrev (...)

Foi a primeira vez que eu realmente vi o que era o rolê assim. Além de ser na rua… era surreal. Eu lembro que eu fiquei em choque, falei ‘gente, que que é isso? O que tá tocando?’ [...] Eu lembro que fiquei hipnotizada (Ana Clara, 22 anos; clubber. 2020)5

  • 6 Para Braga, essa característica é a réplica de “um certo jargão LGBT que feminiza substantivos e ad (...)

7Com origem na expressão clubbing, o termo clubber surge na década de 1990, sendo referente às festas de disco music (e posteriormente house e techno music) dos clubes de Detroit e Chicago, nos Estados Unidos. O antropólogo Gibran Braga (2018) afirma que, no Brasil, o termo ganha força ainda nos anos 90 através da coluna Noite Ilustrada de Erika Palomino. Segundo Braga, o nome clubber cai em desuso nos anos 2000 na cena nacional, na mesma época em que as festas de música eletrônica passam a ser compostas majoritariamente por um público heterossexual elitizado. A partir de 2009, com o surgimento de festas promovidas por coletivos independentes, o termo volta a ser usado. No universo das festas de São Paulo, o termo clubber é frequentemente utilizado no feminino; desse modo, me junto a Braga no movimento de respeitar essa forma de tratamento no decorrer do texto6.

8Minha pesquisa se desenvolveu no contexto da nova cena clubber de São Paulo, que tem como marco inicial a criação do coletivo VoodooHop em 2009 (BRAGA, 2018; BRUGNARA, 2020). Tanto a pesquisa de Braga como o documentário O que é nosso: reclaiming the jungle, relatam que a VoodooHop teve início no Bar do Netão, na rua Augusta. Durante o período em que participei da cena, de 2017 até 2021, a principal festa desse coletivo ocorria durante três dias em uma cachoeira na cidade de Heliodora, Minas Gerais. É interessante notar que, apesar do termo clubber ter voltado nesse contexto, o que caracteriza essas festas é a procura por espaços fora de clubes – o que constitui seu caráter autônomo. A busca por espaços não tradicionais para a realização dos eventos corresponde a demandas específicas da cena: festas com mais de dez horas de duração; maior tolerância para consumo de substâncias psicoativas e práticas sexuais diversas; realização de eventos gratuitos ou de baixo custo; e a defesa de construir espaços plurais e acessíveis a diferentes tipos de corpos.

9Utilizo o conceito de cena para me referir ao universo dessas festas independentes tanto como categoria de análise, como categoria êmica presente no campo. Magnani (2005) e Facchini (2011) apresentam essa noção como alternativa que complexifica a ideia de “subcultura”. Magnani aproxima cena da categoria circuito – para o autor, ambos remetem a um recorte que não se restringe a um espaço facilmente localizável, a diferença sendo o caráter mais amplo da cena. Esta inclui o circuito – equipamento físico, espaços virtuais e eventos –, como também desenha estilos e comportamentos partilhados que se dão nos e pelos circuitos. Para Facchini (2011), a noção de cena estabelece um caráter elástico e invisível nas fronteiras de supostas “unidades culturais”, podendo variar entre cena regional, nacional ou internacional. Pensar de modo alternativo à ideia de “subcultura” propõe um sentido maior de dinamismo a esses universos sociais.

  • 7 Host/hostess é a pessoa que faz o papel de anfitriã de um evento. Esse trabalho muitas vezes envolv (...)

10Ao me referir à “nova cena clubber”, é preciso delimitar o que veio antes e o que a constitui como novidade. Marinês Calil (1994; 2000) e Erika Palomino (1999) descrevem o início das festas de disco, house e techno music em São Paulo, nos anos 1980 e 1990. Em suas obras, as autoras priorizam a produção de estilo em torno do universo dessas músicas eletrônicas, associando esse fenômeno aos “fashion clubs”: clubes de festas localizados no bairro Jardins – próximo à rua Augusta e à Avenida Paulista –, e no bairro Santa Cecília. As descrições feitas por Calil e Palomino incluem os convites impressos para a divulgação das festas; os bares e lojas próximos aos clubes; a presença de hosts/hostess7, Drag queens e DJs, assim como o tipo de música tocado. Elas descrevem a decoração dos clubes, o perfil – socioeconômico, mas também de estilo estético – das pessoas que frequentavam as festas (as clubbers), e as relações estabelecidas entre elas. Os relatos das autoras indicam que as festas na cidade de São Paulo se restringiam a estabelecimentos fechados, idealizados para festas. O público majoritário era de jovens universitáries e/ou atuantes da área das artes, audiovisual, moda e outros setores semelhantes. Também eram características dessa cena a busca por expressões de gênero consideradas andróginas e práticas sexuais e afetivas não heteronormativas.

  • 8 Lista trans é uma prática que permite a entrada gratuita e sem a necessidade de pegar fila para pes (...)

11Atualmente, além de ser priorizada a realização de eventos fora de clubes – festas de ruas, em estacionamentos, antigas estruturas de fábricas, ferro-velho etc. – o eixo das festas também se deslocou do bairro Jardins para o centro da cidade. Outra diferença é o comprometimento com um discurso e práticas de acessibilidade às festas: entradas gratuitas, festas gratuitas até certo horário e a prática da lista trans8. Os estilos musicais mais conhecidos atualmente na cena ainda são o house e o techno, sendo tocados também: downtempo, minimal, disco, dark disco e experimental (BRUGNARA, 2020). O perfil das pessoas que frequentam é majoritariamente jovem, universitário, LGBTQIAP+ e de classe média. A aproximação desse público clubber com as áreas de moda, arquitetura, artes e audiovisual ainda é recorrente.

12A cena clubber não se restringe à experiência das festas ou da música; ela é constituída por redes de afeto, princípios compartilhados, estilo e produção artística. Todos esses aspectos aparecem frequentemente nas falas das pessoas entrevistadas durante a pesquisa. Em conversas com interlocutories, o termo “família clubber” foi utilizado diversas vezes se referindo tanto a redes de afeto (relações afetivas que surgem das festas ou que nelas se encontram), quanto a uma rede econômica (local, cidade de São Paulo; nacional, envolvendo festas de outras cidades brasileiras; ou internacional, comumente sendo citado o intercâmbio Berlim-São Paulo). A fala da performer Podry exemplifica essas relações:

Eu acho que não é só você frequentar a festa. Eu vejo que tem muito a nossa família clubber, que é a galera que tá sempre lá, que a gente se apoia. […] Também não é só o look, mas o look faz parte, porque a maioria das clubbers gostam de uns lookinhos estranhos, a gente é as clubber coloridas. Mas acho que tem a ver com o lance da união e do respeito também. A gente se respeita muito nos rolês, rolê clubber de verdade.” (Podry, 20 anos; performer do Coletivo Metanoia. 2020)

  • 9 De acordo com Braga, o adjetivo underground significa, em tradução literal, “subterrâneo” e se opõe (...)

13Outra característica da atual cena clubber de São Paulo é a defesa em assumir um caráter underground9. Braga sugere que essa caracterização se dá através de uma “relação tensa entre fechamento e ampliação: parece ser condição fundamental para sua manutenção justamente o controle de suas dimensões para que o caráter underground, altamente valorizado, se sustente” (BRAGA, 2018, p. 28). O adjetivo é utilizado no meio clubber para se referir ao tipo de música tocado e demais características da cena: participantes, estilo, local dos eventos, relações estabelecidas e discursos. Para Braga, os critérios de definição entre o que é considerado underground ou mainstream não são fixos. Ana Carolina, que frequenta festas da cena desde 2015, relata sobre a relação de tensão entre características consideradas convencionais ou não na cena:

Depois que eu comecei a frequentar mais as festas, entender o que tava acontecendo, teve uma vez que eu fui pra D-edge e eu realmente entendi o que as pessoas falavam entre o “boy” e o “underground”. Só que agora a cena que era underground eu não vejo mais tanto como underground. Mas ela dá espaço pra outras coisas nascerem ali que de fato são underground. (Ana Carolina, 25 anos; clubber. 2020)

  • 10 Braga (2018) desenvolve de forma mais aprofundada essa relação entre o clube D-edge e a cena clubbe (...)

14Para Ana Carolina, apesar das festas da cena abrirem espaço para “nascerem coisas que de fato são underground”, elas também apresentam características consideradas mainstream. Em sua entrevista, a interlocutora indicou que, muitas vezes, o público das festas se restringe a jovens brancos de classe média. Para a clubber, o fato de muitas referências da cena serem importadas do norte global – em especial da Europa – reproduz certos padrões de dominância, característicos da norma colonial. Por outro lado, o trecho da entrevista reproduzida acima aponta também para aspectos underground da cena: o termo “boy” é utilizado como sinônimo de espaços cisheteronormativos, brancos e elitizados – referente à imagem do playboy. A D-edge, citada por Ana Carolina, é um clube de festas de músicas eletrônicas, localizado no bairro Barra Funda, que muitas vezes aparece em relação de rivalidade com a cena clubber10.

15As principais festas que compõem a cena clubber de São Paulo são conhecidas como “geração Voodoo”, muitas vezes sendo realizadas por pessoas próximas ou integrantes do coletivo VoodooHop. Os eventos são organizados por coletivos compostos de DJs, produtores, performers, equipe de som, entre outros. No discurso desses coletivos, são recorrentes as pautas sobre direito à cidade, ocupação urbana, diversidade sexual, racial e de gênero e defesa à cultura. Esses temas aparecem em nomes de festas, políticas específicas de eventos e textos compartilhados nas redes sociais dos coletivos – em especial no Instagram. Os nomes de festas/coletivos citados durante as entrevistas realizadas foram: Blum, Mamba Negra, Odd, CapsLock, Sangra Muta, Caldo, Voodoohop e Zaragata. Em seu trabalho de conclusão de curso em arquitetura, o clubber Gabriel Brugnara (2020) cita diversas outras festas que compõem a cena, como Metanol, Vampire Haus, Dando* e Silver/tape.

16As pautas que mobilizam os coletivos e as características das locações das festas, influenciam diretamente na experiência de sues frequentadories. O sentimento de liberdade que aparece na expressão “poder ser quem eu sou”, é recorrente na fala das clubbers – seja em referência ao jeito de se vestir, ao modo de dançar, ou à busca por se sustentar financeiramente realizando uma atividade que gosta. Os trechos de entrevistas a seguir demonstram isso:

Essa coisa de você poder vestir, de ser, de pensar, de trocar ideia com a galera […]. Quando eu ia em outros rolês que não eram de música eletrônica eu não sentia essa liberdade, esse envolvimento. É muito louco, quando colo no rolê assim eu me sinto tão à vontade: eu vou com um ou dois amigos meus e eu sinto que conheço todo mundo lá, às vezes nem conheço, mas é uma coisa de se sentir em casa. (Ana Clara, 22 anos; clubber. 2020)

Contaminação: uma perspectiva clubber

17A cena clubber de São Paulo apresenta uma estética própria tanto em termos visuais de estilo de roupas e acessórios, como em um modo próprio de comunicação e linguagens. Para Regina Facchini o estilo é entendido enquanto um marcador da diferença produzido através da cena, em que “os sujeitos são constituídos no processo de citar e deslocar normas sociais, e isso pode se dar no processo de composição ou de encenação de determinado(s) drama(s) por meio do estilo” (FACCHINI, 2011, p. 146). Muito da forma de se comunicar des integrantes da cena se aproxima tanto do Pajubá, como também do camp. Braga (2018) e Calil (1994) apontam para presença da forma de expressão camp na cena, um modo irônico e ácido de comunicação, presente muitas vezes em espaços LGBTQIAP+. O camp se expressa comumente a partir do humor, do jocoso; de forma semelhante, o Pajubá (ou Bajubá) é reconhecido enquanto uma linguagem que nasce entre travestis e que cada vez mais é associada ao meio LGBTQIAP+ (sendo sempre importante marcar suas raízes na história da resistência trans). Ambas as formas de expressão se utilizam do deboche, da reapropriação e do deslocamento de termos considerados abjetos. É seguindo tais tradições que desenvolvo a noção de contaminação enquanto uma perspectiva analítica clubber.

18Em entrevista, a performer Rato Distópico descreve a imagem do coletivo Metanoia como sendo algo que “foge dessa ilusão de que clubber só é rico: o real clubber que realmente pula catraca, não tem dinheiro pra nada, tá sempre contaminando a festa”. Dessa fala, proponho contaminação como categoria analítica para pensar a cena: que influencia e é influenciada pela cidade; que abre espaço para e é constituída pelas performances; que é formada por, para e pelos corpos; que constrói, assim como é construída por um estilo. Não é possível compreender as características das festas de forma isolada. As performances também operam pela contaminação: são o momento de criação pelo ato corporal, em que o corpo apresenta narrativas a partir de suas vivências no meio urbano – mas também o influencia com sua errância. O corpo das performers contamina as festas e a cidade. A contaminação é uma perspectiva clubber no sentido em que segue a prática da cena de marcar a fala com deboche e ironia, mas também de ressignificar noções tidas como pejorativas – da mesma forma que é feito com os espaços das festas. A cidade contamina o corpo através de objetos – utilizados nas montações – e das experiências que proporciona às clubbers no cotidiano. A contaminação acontece na produção das performances, nos temas das festas e na produção de estilo. O corpo é também veículo contaminador, a todo momento presente e carregando em si experiências da cena e de fora dela: seja de maneira estética no cotidiano ou nas práticas performáticas.

19O ato de contaminar evoca noções de pureza, sujeira e perigo – estas que não são estranhas à Antropologia. Tais categorias são entendidas aqui como elementos de uma mesma relação que expressa ritos de organizações sociais, ou seja, são expressões simbólicas das relações entre diferentes elementos da sociedade, organizados hierárquica ou simetricamente de forma válida para todo o sistema social (DOUGLAS, 1991). Ao partir das categorias de pureza e perigo, a antropóloga britânica Mary Douglas (1991) define a higiene como sendo um bom caminho a ser seguido, enquanto a impureza representa uma ofensa contra a ordem. Segundo a autora, a busca por se esquivar da impureza não pode ser justificada apenas pelas noções que temos de doenças: as tentativas de eliminação das impurezas são gestos positivos que buscam a ordem. Em sua obra, Douglas (1991) demonstra como os rituais de pureza e de impureza atribuem certa unidade à experiência, são atos essencialmente religiosos através dos quais as estruturas simbólicas são elaboradas e exibidas. Dessa forma, a contaminação representa o perigo da desordem, o risco às hierarquias estabelecidas.

  • 11 Durante minha pesquisa e o tempo em que frequentei a cena enquanto clubber existia a noção de que o (...)

20O que essa perspectiva sugere é que expressões de sujeira são evocadas como formas de perpetuação de estigmas em relação a códigos morais e estruturas sociais. Se pureza e sujeira são termos opostos de um campo hierárquico, considero então a contaminação como uma força capaz de atravessar e desestabilizar paradigmas estabelecidos. Na fala de Rato Distópico, o coletivo Metanoia – tanto em sua presença na festa, como em seu trabalho artístico – rompe com a ideia de que a cena clubber é um espaço elitizado para corpos brancos11. Ao contaminar as festas com seus diversos marcadores sociais – em especial os de raça e classe –, as performers do coletivo contribuem para a pluralização da cena. Tal contaminação não se dá apenas na estética corporal, mas também em técnicas do corpo (MAUSS, 2003), formas de se relacionar e em termos de acessibilidade das festas. Entretanto, a noção de contaminação que proponho não se resume ao que acontece no interior da cena, mas de como ela própria influencia seu entorno – assim como é influenciada por ele. De tal modo, a contaminação não opera de modo unilateral; pelo contrário, ela se faz sempre de forma relacional, no movimento em que a cena, as clubbers e as performances só contaminam seu entorno na medida em que são contaminadas por ele.

21Ainda, de forma a contribuir com a elaboração dessa perspectiva clubber, considero os apontamentos que Lino Arruda (2020) tece em sua tese de doutorado sobre a figura do monstro dialogam tanto com princípios da cena clubber, como também com o que busco aqui elaborar. Para Arruda, o medo da contaminação é uma das principais forças ocultas da monstruosidade; em um entendimento de monstro como sendo subjetivações que tanto partem como são impostas a corpos dissidentes. O monstro sobre o qual Arruda elabora são as figuras que, com a impossibilidade subjetiva destinada a corpos não normativos, encontram na própria monstruosidade – que pode também ser entendida como desumanização/animalização – a oportunidade de criar representações fronteiriças, que contem outras narrativas sobre corpos dissidentes. Tal potência imaginativa de outras formas de imaginar histórias sobre si é característica que marca muitas das performances presentes na cena clubber, em especial nas realizadas pelo coletivo Metanoia. Esse aspecto pode ser compreendido como a potência poética presente na performance Corpos negros brincando, que será abordada em outro momento deste artigo.

Performances

22Ao fazer uma revisão da literatura sobre performance na Antropologia, Rubens Silva (2005) enfatiza o diálogo que esse campo estabelece com o teatro. Em sua análise, Silva apresenta as formas como Richard Schechner elabora suas perspectivas sobre estudos de ritos, dramas sociais, teatro e performance. A perspectiva de Schechner se volta para os aspectos performáticos dos eventos, enfatizando a relação entre performer e audiência. Essa perspectiva propõe a existência de uma conexão entre as categorias de “rito” e “teatro”, ambas pertencendo à noção de performance. Silva afirma que Schechner não distingue eventos performáticos entre sagrados e profanos: "a noção de performance compreende um movimento continuum que vai do ‘rito’ ao ‘teatro’ e vice-versa” (SILVA, 2005, p. 49). Na teoria de Schechner, participar de uma performance implica em um deslocamento – físico ou simbólico – da performer para um mundo momentaneamente “recriado”. Nesse movimento, a performer torna-se outro sem deixar de ser a si mesma. Da mesma forma, a audiência também é transportada: os atores sociais assumem papéis diferentes daqueles que habitualmente desempenham em suas interações cotidianas. A noção de transportação, de acordo com Silva, remete à experiência de liminaridade – ou ambiguidade – dos papéis representados.

  • 12 Bentes define o processo de se montar (montação) como “processo ou método de alteração corporal, po (...)

23A noção de performance de Schechner se desenvolve como atividade cultural dinâmica, reelaborada e reproduzida criativamente ao longo do tempo; ela parte da centralidade de quem performa. Os momentos de treinos e ensaios da atuação cênica explicitam a relação entre rito e teatro que Schechner evidencia. É possível estabelecer paralelos dessa perspectiva com a obra de Marcel Mauss (2003) sobre técnicas corporais de forma a reconhecer a importância do corpo nesses processos. Com base na síntese proposta por Silva, a perspectiva que apresento sobre as performances clubbers se aproxima da perspectiva de Schechner. Contudo, vale lembrar que performer e performance são também categorias nativas da cena aqui descrita: em campo, essas noções se referem às apresentações de dança e encenação das músicas tocadas por DJs, através do corpo montado12, ou seja, da performer.

24A presença de performers em festa se torna algo cada vez mais comum na cena clubber de São Paulo. As performances costumam ocorrer próximas à mesa dês DJs, e são realizadas tanto individual como coletivamente. As performers dançam e desfilam nas festas: nuas ou seminuas; com roupas que alongam, exageram e reconstroem a silhueta do corpo; utilizando próteses de tecido, metal, papelão, plástico e demais materiais que dramatizam os movimentos; com muita tinta e maquiagem; com correntes, frutas, serra elétrica, dildos e máscaras. Os estilos de performances clubbers são variados, porém todas compartilham do corpo colocado em evidência, contaminando e sendo contaminado pela música e pelo espaço. Nesse sentido, as performances aparecem como elemento que compõe as festas, tão indispensável quanto a música e as instalações de luz:

Eu acho que a festa, pelo menos pra mim, é uma questão meio de atmosfera. A performance faz parte da atmosfera. Mas existem vários outros tipos de performances: a música é uma performance, a luz é uma performance; as pessoas que trabalham, as pessoas que estão na festa levando aquela energia; eu acho que é tudo uma composição. Eu acho que o performer vem nesse lugar de composição, mas é também a pessoa que carrega o discurso, carrega questões, carrega provocações pro público. (Quebrantxy, 24 anos; performer do Coletivo Metanoia. 2020)

25A noção de musicar (musicking), proposta por Cristopher Small (1999), é útil para pensar a festa enquanto uma composição de performances. Small entende o fazer musical como uma ação que não se limita à composição e performance da música. Para o autor, esse fazer é uma ação social que estabelece relações entre todas as pessoas que integram a experiência musical. A perspectiva de Small entende as relações que compõem o musicar – quem performa a música, público, equipe de som, equipe de segurança, pessoas que cobram o ingresso na porta, equipe de luz etc. – como uma única performance musical. Essa noção de performance difere da conotação que a palavra assume dentro da cena clubber: embora ambas estejam associadas ao drama teatral, as performances das festas se situam no âmbito das artes cênica e visual; enquanto as performances sugeridas por Small se inserem na teoria da ação social. A “atmosfera” que Quebrantxy se refere no trecho da entrevista reproduzida acima pode ser entendida como parte do musicar, tal qual propõe Small: ela representaria o envolvimento entre os corpos que compõem o evento, assim como o espaço em que ele acontece. Em entrevista, Ana Clara também falou sobre o tema:

Acho que não seria a mesma coisa ter só música ou ter só a performance, acho que é uma coisa essencial uma pra outra. Não essencial, porque às vezes rola de ter só a música e, acho que raramente ter só a performance. Mas é uma coisa muito massa que traz uma história pro público e transforma aquilo lá numa coisa muito artística, muito forte. Você vê que a galera fica hipnotizada com ambas as coisas e que, às vezes, a galera fica até mais à vontade com aquilo acontecendo pra performar o que ela quer naquela festa. E aí, no final, tudo acaba sendo uma grande performance coletiva. (Ana Clara, 22 anos; clubber. 2020)

26A fala de Ana Clara dialoga com a percepção de Quebrantxy sobre a atmosfera da festa, e aproxima as noções definidas por Small com as perspectivas da cena. A interlocutora também afirma que a totalidade da festa pode ser entendida como uma performance em si. Judith Butler (2019) apresenta uma percepção similar ao teorizar sobre corpos em união. Butler (2019) traça paralelos entre sua teoria da performatividade de gênero com a prática de assembleias – priorizando as que ocorrem em espaços públicos. Segundo Butler, “o que vemos quando os corpos se reúnem em assembleia nas ruas, praças ou em outros locais públicos é o exercício – que se pode chamar de performativo – do direito de aparecer, uma demanda corporal por um conjunto de vidas mais vivíveis” (BUTLER, 2019, p. 31). A performance nesse sentido é, para Butler, uma forma de agir a partir da precariedade e contra ela. De tal modo, as festas clubbers podem ser entendidas também como assembleias que reivindicam a ocupação dos espaços urbanos por corpos diversos, de diversas maneiras.

  • 13 Exemplo: festa GRÆVE GERAL, nome que brinca com as palavras “greve” e “rave” (termo referente a fes (...)
  • 14 Exemplo: também realizado pelo coletivo Mamba Negra, em 2017, o evento de comemoração de quatro ano (...)
  • 15 Lista, em ordem de apresentação, de DJs que tocam em uma festa.

27O caráter político na cena clubber se faz presente na divulgação das festas, em seus temas13, na forma que os eventos assumem14mas também na diversidade de corpos que ocupam os eventos. Apesar da aparente presença de um público predominantemente jovem de classe média intelectual branca, existe uma preocupação na cena em empregar corpos não brancos, femininos e não cisheteronormativos. Na cena, line-ups15 compostos apenas por homens cisgênero e pessoas brancas são mal vistos. Além dês DJs, muitas das performers são não brancas e/ou trans. Dessa forma as performances que ocorrem nas festas misturam dois sentidos da palavra: são trabalhos artísticos, mas também se fazem momentos de evidenciar e se opor à precariedade. Aponto ainda que, apesar do discurso na cena buscar garantir espaços nas festas para corpos negros e dissidentes de gênero, são sempre esses corpos que estão na posição de trabalho – servindo a classe média branca, enquanto ela desfruta da festa. A fala de Quebrantxy, performer negra não-binária integrante do coletivo Metanoia, indica essa realidade:

A cena techno é uma cena burguesa. Isso é foda. Ela tá nessa pico que tá agora, monstruoso, porque um monte de burguês gosta de chapar a cara de Keta. Porém a cena, acho que desde o começo, sempre foi esse lugar de empoderamento, de empoderar causas: desde a Mamba Negra que botava o Löic pra performar, a Valentina Luz, a Elviria… muito chique, as minas do vougue, as travestis. Apesar de ser uma coisa pra branco se sentir no underground. Teve uma Mamba Negra que eu fui à paisana: à paisana é não montada. E aí eu cheguei lá e fiz um jogo comigo mesma que era “procure o preto”. E não tinha. Eu achei uma pessoa preta no público muito tarde. Eu passei o rolê inteiro procurando. Tem umas festas que é muito de playboy safado. Eles vão lá pra me ver dançar e isso incomoda pra caralho. Mas eu tenho aquele espaço, eu uso aquele espaço pra jogar várias ideias, pra propor várias experiências. (Quebrantxy, 24 anos; performer do Coletivo Metanoia. 2020)

“O Metanoia é força-tarefa”

  • 16 Uma performer ou DJ residente de uma festa é alguém que tem seu nome e trabalho associados ao colet (...)

28O Coletivo Metanoia é apenas um entre muitos que compõem a cena clubber de São Paulo. Até 2020, o grupo era composto por sete performers na faixa dos 20 anos, que se apresentam sob os nomes: Quebrantxy, Rato Distópico, Milena Nonsense, Rehebe, Yasmini, Ketardade e Podry. Residentes16 da Blum, as performers do coletivo se apresentam tanto em conjunto quanto individualmente. O grupo segue o princípio de “faça você mesmo”, confeccionando figurinos e idealizando os conceitos das performances de forma independente. Essa autonomia de criação permite que as performers carreguem em seus trabalhos questões coletivas, assim como características e demandas de cada uma. O Coletivo Metanoia tem como referência para seus trabalhos suas experiências no cotidiano da cidade, seus princípios políticos e os estudos que desenvolvem para além da cena das festas. Suas performances constituem narrativas que se fundamentam na realidade do coletivo. Quebrantxy informa isso quando diz que:

Metanoia é um coletivo de performance, composto por artistas independentes, que pesquisa a liberdade das corpas em sua máxima potência. Cada um em suas questões individuais do que os atravessa, tendo o coletivo como plataforma de apoio para haver esses diálogos. E aí tem essa parte de liberdade das corpas. O que me atraiu no começo da cena techno foi essa questão de poder ser o que eu quisesse: eu queria ser uma monstra, eu queria ser um morcego, queria ser uma água viva. (Quebrantxy, 24 anos; performer do Coletivo Metanoia. 2020)

29O Coletivo Metanoia é formado por mulheres e nãobináries; corpos brancos, negros e amarelos; performers de diferentes sexualidades; diferentes graus de escolaridade (entre ensino médio e ensino superior incompleto); moradories de regiões distintas da cidade. As performers que compõem o coletivo possuem diferentes estilos e cada uma exerce nele funções diversas. São clubbers, corpos que se montam para sair no dia a dia e corpos que se montam apenas para as festas. A diversidade e parceria que constituem o grupo fazem com que todas as performances, inclusive as individuais, sejam construídas com base no apoio mútuo e em saberes compartilhados: referências, escrita, planejamento, maquiagem, costura, fotografia, entre outros. Nesse sentido, Podry afirma que o coletivo é um espaço de apoio para as performers, mas que não se fecha em si mesmo:

A gente fala que tem o Metanoia e tem o Metanoia e mais uns nóia, que são nossos amigos que a gente também quer levantar, quer que todo mundo seja foda: um bando de artista foda fazendo lorota por aí. (Podry, 20 anos; performer do Coletivo Metanoia. 2020)

30Ao serem questionadas sobre o processo de criação das performances, as performers entrevistadas afirmaram que as referências criativas são diferentes para cada uma. Podry me relatou sobre a performance que realizou em uma festa da Blum, na Fabriketa. Inspirade nos filmes de terror que estava assistindo na época, Podry encenou uma pessoa grávida que dava à luz um bebê alienígena (uma mistura de gelatina verde e glucose de milho – parcialmente derretida pelo calor da pele da performer, escorrendo pelo seu corpo) que era devorado pelo próprio corpo que o acabara de parir. Já para Quebrantxy e Rato Distópico, as inspirações partem mais do cotidiano de suas realidades: Quebrantxy se interessa por questões decoloniais e de criação de mitos; já Rato Distópico busca elaborar em suas performances questões de gênero (“e não gênero”), racialidade e sobre o meio urbano – que descreve como sendo “essa realidade distópica que vivemos” (Rato Distópico, 19 anos; performer do Coletivo Metanoia. 2020).

  • 17 Essa performance não ocorreu devido ao cancelamento da festa por conta da pandemia do Covid-19.

31Para o coletivo, o essencial na realização das performances é a presença de um corpo e de um espaço que permita movimento. Experimentação do corpo e de espaço são temas recorrentes na fala das performers. Exemplo disso é o planejamento de uma performance para a VoodooHop17, que me foi descrito em mais de uma entrevista: a criação de uma única roupa para as sete performers, que iria operar na lógica da brincadeira “O mestre mandou”. Nessa performance, Milena Nonsense dançaria na frente e as outras performers copiariam seus movimentos – simulando um único corpo. A experimentação corporal aparece também no discurso da cena sobre liberdade de expressão. Para as performers do Coletivo Metanoia, isso significa a liberdade de brincar e criar em conjunto com as demais pessoas da festa: poder se sujar, dançar, ficar sem roupa, usar substâncias que alteram os sentidos, experimentar a exaustão após horas de festa e se sentir em segurança durante esses processos. A festa é entendida como espaço de liberdade, mas é a performance que traduz no corpo a atmosfera criada no momento.

32Ao perguntar sobre performances memoráveis que ês interlocutories participaram ou assistiram, a maior parte das clubbers entrevistadas citou a Corpos Pretos Brincando, do próprio coletivo Metanoia. Essa apresentação ocorreu durante a festa de aniversário da Blum, em fevereiro de 2020. Quebrantxy – que participou da apresentação – e Ana Clara – que assistiu enquanto público – descrevem, a performance:

Corpos Pretos Brincando, eu e Milena: eu e a Milena temos um timing muito parecido, a gente sempre tá dançando, sempre gosta de estar no front, e um dia a gente se juntou pra fazer um lance junto. Começamos a elaborar e a gente tava a fim de falar de narrativas que não sejam sobre dor. Negritude muitas vezes acaba nesse lugar falando sobre dor, mas não é isso que a gente tá procurando aqui, a gente quer ser feliz! A gente quer uma nova história: cansei de sofrer, cansei de sentir dor. Foi mó da hora, a gente se encontrou e falou: a gente pelado e um monte de tinta colorida e a gente brincando. Vamos pensar a energia do Erê, essa imagem do Erê, do Candomblé; essa imagem da criança brincando, essa energia foda. [...] E foi muito da hora, não só porque a gente conseguiu fazer o bagulho, mas porque a gente conseguiu alcançar aquele estado. A gente era duas crianças brincando, brincando com tudo, cascando o bico. Uma hora a Milena veio me dar uma cabeçada, ficou o cabelo verde dela marcado no peito (Quebrantxy, 24 anos; performer do Coletivo Metanoia. 2020).

O público, as performers… tava todo mundo na mesma vibe. Todo mundo muito feliz de estar ali. E a galera só colocou um bolo gigante e começou uma guerra de bolo com tinta, com a galera pulando muito feliz e suja. A galera em êxtase total, não tinha uma pessoa que não tava em êxtase naquela festa, você via na cara da galera que tava todo mundo muito feliz de estar ali. Foi um momento incrível. (Ana Clara, 22 anos; clubber. 2020)

33A descrição de Quebrantxy evidencia o caráter narrativo da performance que se constrói a partir da realidade dos corpos que a realizam. Para autoras como Patrícia Hill Collins (2016) e Denise Ferreira da Silva (2014), perspectivas marcadas pelas experiências dos corpos negros – em especial das mulheres negras – são de extrema importância para a produção de conhecimento. Collins (2016) demonstra como as experiências de um corpo negro influenciam suas percepções sobre o mundo, tendo como referencial os lugares que este corpo ocupa. Silva (2014), partindo do mesmo entendimento, propõe uma Poética Feminista Negra: um modo de produzir e compartilhar conhecimento, que não tenha em sua base princípios de exclusão e hierarquia entre diferenças; uma nova forma possível de práticas de existência. Collins e Silva partem da percepção de que corpos subalternos vivenciam experiências que permitem a formação de perspectivas e discursos oriundos do local da diferença.

34Denise Ferreira da Silva se baseia na crítica feminista negra e na categoria de negritude para afirmar a importância de novas formas de produzir e compartilhar conhecimento. Para Silva, é necessário que essas novas formas não se fundamentem elas mesmas em princípios de exclusão e hierarquização da diferença. Para a autora, uma Poética Feminista Negra anuncia novas possibilidades de conhecimento, de práticas e de existência. Ela se contrapõe à normatividade da branquitude, na qual a categoria negro existe sempre remetendo ao Outro. A partir de uma Poética Feminista Negra, seria possível atacar o modo de representação e suas bases filosóficas, que sugerem o próprio significado de negritude. Dessa forma, as perspectivas de Collins e Silva, assim como a fala de Quebrantxy, possibilitaram entender a performance Corpos negros brincando como uma narrativa não hegemônica sobre a negritude, gerando uma outra perspectiva sobre essa categoria.

35Além das questões raciais e de gênero, algumas performances – assim como temas de festas – são marcadas pelo contexto político no qual ocorrem. Podry descreve uma performance, que realizou com Ketardade, em uma festa da Zaragata durante um período em que, segundo a performer, o então presidente Jair Bolsonaro estava “queimando a Amazônia, tacando fogo em tudo”:

A gente fez uma performance que Ketardade era um cara padrão: ele tava de terno e gravata. Ele até começou a se sentir mal, prendeu o cabelo, e ficou “eu não vou pro techno assim”, aí ele colocou uma lente amarela, colocou uma máscara na cara e a gente foi, mas ele tava em crise antes. E eu fiz uma roupa toda mãe natureza, mas ela só durou uma noite porque foi feita pra ser estragada: eram duas meias-calças transparentes que eu juntei na barriga e coloquei um monte de mato, folha falsa, fiz uma tiarona. Começou a performance: eu vivendo minha vida, bonita, fazendo várias coisas. Ele aparecia fazendo umas coisas de louco […]. Depois a gente saia no fight: a gente estendeu uma lona, porque usamos umas bexigas com tinta preta que ele tacava fogo na bexiga, ela estourava e caía em mim e me manchava toda de preto. Depois ele começava a me bater, arrancar meus matos e me zoar.” (Podry, 20 anos; performer do Coletivo Metanoia. 2020)

“Ser elemento da cidade”

  • 18 Ressalto, mais uma vez, que as performances aqui relatadas ocorreram durante o ano de 2019 e início (...)

36O espaço da cidade é também fonte de inspiração para as performances do Coletivo Metanoia. Em entrevista, Rato Distópico relatou que entende parte de sua produção como performer enquanto um “ser elemento da cidade, que sobrevive dessa cidade contaminando tudo”. A inspiração urbana se dá tanto pela estética da metrópole e as experiências vivenciadas nela, quanto pelos próprios materiais utilizados nos figurinos.: Rato Distópico costuma apresentar em suas montações materiais que remetem ao urbano, tais como correntes, fitas de demarcação, canos, telas e máscara de gás. O figurino remete à sua percepção distópica do urbano, evidenciada pelo uso da máscara18. Considerando os elementos utilizados na construção das performances, é possível traçar paralelos com a obra de Hélio Oiticica, abordada pela arquiteta Paola Jacques (2001). Para a autora, a obra Parangolé, de Oiticica, teve como base a experiência do artista no bairro da Mangueira, no Rio de Janeiro; a obra foi uma forma de traduzir para a roupa e a dança a estética da favela. Segundo Jacques o Parangolé – entendido como roupa, dança, processo, corpo e participação – parte da relação de Oiticica com o samba, de suas percepções sobre ritmo, temporalidade, criação pelo ato corporal, coletividade e arquitetura.

37A obra de Oiticica se aproxima das performances realizadas na cena clubber ao evidenciar aspectos urbanos através de performances corporais. Ainda, Jacques afirma que a repetição é um elemento importante da obra de Hélio Oiticica que se faz presente na fragmentação – essencial para compreender a relação do Parangolé com o aspecto temporal da arquitetura. Segundo a autora, a noção de “tempo real” pertence a um discurso contemporâneo em favor da velocidade e da aceleração, características da metrópole na era da simultaneidade. A repetição aparece enquanto modo de pensar o tempo de forma alternativa: partindo da temporalidade como intrínseca ao acontecimento. Braga (2018) também trabalha a ideia de repetição enquanto elemento de percepção temporal na cena clubber. Ao escrever sobre a estrutura das músicas nas festas, o autor indica as seguintes características: longa duração dos sets musicais; transições diretas entre as faixas (sem pausas), que permite que as pessoas “se percam” na música; e, em especial, o recurso musical do looping. De acordo com o antropólogo clubber:

a repetição cíclica e, por consequência, a audição repetida propicia a quem ouve ou dança que perceba separadamente as complexas camadas rítmicas. Garcia defende que a repetição e o looping são processos abertos e contínuos, e é a partir destes processos que a pessoa que ouve e dança a música eletrônica pode deslocar seu foco de atenção de uma camada para outra, prolongando assim o prazer. A ideia do looping como prolongação do prazer é o que fundamenta então o prazer-processo da fruição da música eletrônica (BRAGA, 2018, p. 265).

  • 19 O grupo que tem origem dentro do Laboratório de Antropologia Urbana (LabNAU) da Universidade de São (...)

38A noção de tempo na cena clubber me foi apresentada como a possibilidade de uma outra percepção de temporalidade, que difere do cotidiano urbano. Entretanto, ao discutir o trabalho que realizava entre colegas do grupo de pesquisa Cóccix – estudos (in)disciplinares do corpo e do território19, outre pesquisadorie e clubber – Yan Gomes dos Santos – apontou para as semelhanças entre a duração das festas e uma jornada de trabalho. A cena clubber é um fenômeno tipicamente urbano em que as festas têm duração média de oito a doze horas, além de ocorrerem em regiões comerciais (Centro) e industriais (Mooca e Brás) da cidade. Apesar disso, a temporalidade dos eventos é uma das características que faz o público da cena procurar as festas como espaço de lazer. Com horas ininterruptas de dança e o alto volume dos amplificadores, constrói-se um ambiente que permite a percepção e o aproveitamento do tempo através do corpo.

  • 20 Os afters são encontros que ocorrem após as festas, normalmente na casa de alguma clubber, em que s (...)

39As festas não são apreendidas apenas pelos sentidos da visão e da audição, mas também pelo cansaço, pelas vibrações do som – o som enquanto um elemento tridimensional – e pela simultaneidade dos estímulos sensoriais – fumaça, luzes, cheiro de cigarro, música, performances, instalações. Além do cigarro, o uso de substâncias psicoativas como mdma, ecstasy, LSD, ketamina, cocaína e GHB são comuns nesses eventos e funcionam como catalisadoras das sensações, além de permitirem emendar uma festa na outra: sair para festa sexta à noite; descansar sábado à tarde; sair para a festa de sábado à noite e emendar na festa ou no after20 de domingo à tarde. Ao contrário do que se pode esperar para um ambiente de festa, bebidas alcoólicas não são a substância mais atrativa nesses espaços: essas atuam de forma depressora no sistema nervoso, dificultando a longevidade na festa. Matheus descreve essa experiência temporal da festa:

É uma experiência de 8h que você tá vivendo aquelas 8h, todos os seus problemas, os seus anseios, aquelas missões são naquelas 8h e se resumem a tipo “to aqui tá ótimo, to dançando; nossa, to cansado vou procurar um lugar pra sentar; to com sede, quero beber água”, são coisas muito básicas, mas que é muito foda, é terapêutico quase (Matheus, 22 anos; DJ da cena, conhecido como Entropia. 2020).

40A cena como um espaço de liberdade que permite o sentir, em oposição ao entorpecimento do cotidiano urbano, também aparece nas pesquisas de Braga (2018) e Calil (1994; 2000). Para Quebrantxy, a cena clubber é uma “urgência de São Paulo”, em que esses eventos de fim de semana são entendidos como momentos de extravasar tudo o que é vivido no cotidiano fora da cena; é uma “necessidade de viver”. George Simmel (1903), leitura clássica para estudantes de Ciências Sociais, escreve sobre a prerrogativa anímica das relações nas grandes cidades: o “caráter blasé” como forma de proteção que desempenha o papel de distância e afastamento no cotidiano. As festas de música eletrônica seriam então fenômenos contrastantes à prerrogativa anímica – não opostas, mas sim em decorrência dela.

41As clubbers se relacionam com a cidade também nos seus percursos até as festas, e no que carregam da cena em seu cotidiano. David Le Breton (2012) indica que o corpo se faz invisível na vida cotidiana, sendo ritualmente apagado nas ações diárias. Corpos clubbers, em especial corpos de performers montadas, seguem caminho oposto a esse apagamento: estão constantemente em evidência – por suas cores, formas e práticas – causando estranhamento em meio ao dia a dia na metrópole. Imaginemos a cena: clubbers, com seus enormes sapatos de plataforma, terno e gravata com saia, perucas de plástico, lentes de contato coloridas, sutiã e cueca, maquiagem e frutas, brinquedos de criança e dildos… andando pelas ruas, se encontrando no metrô e no ônibus. Quebrantxy narra essa relação:

A gente tem uma brisa de que a nossa performance começa em casa. Pensa assim: eu me monto de monstra, e aí eu saio na favela do Heliópolis: ando até o metrô, vestida de monstra; encontro outras monstras… essa é a brisa. Na minha quebrada mesmo, eu virava não um tipo de atração, mas um questionamento; tinha gente que achava absurdo, tinha gente que gostava pra caramba, tinha gente que tirava uma onda. Tem uma menina, ela tem uns 9 anos, toda vez que eu passo ela fala “ai você tá mó bonita hoje”, teve um dia de manhã que ela chegou com os olhos pintados de vermelho e falou “eu fiz inspirado em você”, eu quase chorei. É uma coisa que movimenta o espaço desde que a gente sai de casa (Quebrantxy, 24 anos; performer do Coletivo Metanoia. 2020).

  • 21 Alguns eventos da cena abordam a ocupação dos espaços urbanos de forma explícita, como o festival r (...)

42Proponho pensar essa performance que “começa em casa” a partir do conceito de corpografia, de Paola Jacques e Fabiana Britto (2012). Para as autoras, a vida urbana está inscrita no corpo de quem a vivencia, de modo a revelar o projeto urbano hegemônico da metrópole. A inscrição da cartografia no corpo é a corpografia, que ocorre por meio de práticas cotidianas. Jacques (2006) apresenta também o conceito de errância, como uma forma corpográfica: a prática de experimentar a cidade, com foco nas ações e percursos, em vez de nos planos traçados pelo projeto urbanista. O que as autoras propõem são maneiras de ocupar a cidade, que partam da premissa de não vivenciá-la apenas como o projeto urbano prevê: entender as ruas não apenas como espaços de transição entre residência e trabalho, mas como locais passíveis de serem experimentados sensorialmente, de forma a construir um “urbanismo poético”. A experiência Metanoia na cidade, assim como as festas21, podem ser entendidas como corpográficas na medida em que levantam questionamentos sobre quais corpos ocupam cada espaço, de que modo e com que finalidade.

  • 22 Utilizo o termo “cracolândia” entre aspas seguindo as orientações da antropóloga Amanda Amparo (202 (...)

43Além da experiência narrada por Quebrantxy, as performers também relataram sobre uma noite em que atravessaram a “cracolândia”22 montadas, a caminho de uma festa da Zaragata. Para as clubbers que não vão de transporte particular às festas, os trajetos podem ser considerados perigosos, devido ao local e ao horário noturno. Dessa forma, é comum que se estabeleçam pontos de encontro (como a catraca do metrô), para o deslocamento em grupos de amigues até a entrada do evento. Na noite de uma Zaragata em que o coletivo Metanoia iria apresentar a performance Burlesco Tropical, as sete clubbers atravessaram a região conhecida como “cracolândia”, carregando malas e frutas para chegar até a festa. Podry comenta o evento:

Na "cracolândia" a gente ficou meio assim e foi até falar com uns polícia que sempre ficam lá. A gente tava cheio de mala, que só tinha fruta, mas podiam achar que tinha mais coisa. Mas o polícia falou “olha como vocês estão, eles não vão entender nada”. E foi isso que aconteceu, a gente só passou (Podry, 20 anos; performer do Coletivo Metanoia. 2020)

44A percepção de um estilo clubber transcende os ambientes das festas. Podry relata uma ocasião em que, enquanto comprava material para a faculdade na papelaria, foi questionada por estranhes sobre do que estava “fantasiada”. Rato Distópico entende que a forma que se veste faz com que as pessoas se sintam mais à vontade para interagir com elu, inclusive pedindo para tirar fotos; a performer comenta, porém, que nem todas as interações são positivas. Ana Clara e Matheus falam sobre como coisas que elus consideram “normais” muitas vezes são estranhas para pessoas de fora da cena – como o tamanho da armação dos óculos ou a escolha de roupa. Apesar de o estilo clubber cotidiano não ser equivalente à produção dedicada para as festas, é uma apresentação estética que carrega elementos da cena não considerados padrões: cabelos de cores vibrantes, roupas com cortes e materiais diferenciados, correntes, piercings, cortes de cabelo como mullet, cabeça raspada ou estilo moicano, entre outros. Interessa aqui retomar o entendimento de Facchini (2011) sobre cena e estilo: em que o estilo é tido como um marcador da diferença proveniente da cena – e desse modo, quando deslocado de seu contexto para momentos cotidianos além da cena, o estilo compõe mais uma das formas com que a cena clubber contamina a cidade e seus trajetos.

Considerações finais

  • 23 Exemplo disso são as reflexões que Marilyn Strathern (2014) tece sobre fazer antropologia “em casa” (...)

45Existem ainda dois fatores essenciais no desenrolar desta pesquisa que foram aqui pouco elaborados: o primeiro é o da relação de proximidade de pesquisadore clubber com o campo descrito; o segundo é o fazer pesquisa durante o primeiro ano da pandemia de Covid-19. Considero que são aspectos que se influenciam, uma vez que não seria possível compor descrições de campo e ter acesso a algumes interlocutores caso não tivesse um contato anterior e íntimo com a cena. Percebo assim mais uma possibilidade de pensar a contaminação: enquanto estudante entusiasmade de ciências sociais, ingressei na cena de festas independentes de música eletrônica em São Paulo me deparando com um estranhamento encantado com esse universo. Já ao realizar a pesquisa de Iniciação Científica, parti de um local de aproximação com a cena e seus integrantes. A escrita, tal qual as perspectivas que as constituem, jamais serão neutras ou imparciais. Assim, entendo que minha interpretação da cena clubber é contaminada por minhas experiências enquanto clubber; da mesma forma que, desde o momento que me aproximei da cena, minha postura estava contaminada pelo olhar antropológico que buscava desenvolver durante a graduação. Tal relação de proximidade entre pesquisadore e campo não é novidade na antropologia23, assim como não é um tema que gere consenso entre antropólogues.

  • 24 Essas foram performances gravadas e/ou transmitidas ao vivo, muitas vezes pelo próprio celular da p (...)

46Considero que a contaminação antropólogue x campo foi o que possibilitou descrições de performances, acesso a determinadas informações e maior facilidade de realizar entrevistas durante o período de isolamento social pelas condições sanitárias. Nesse contexto, é relevante considerar também o momento em que a noção de contaminação começou a ser desenvolvida – durante o primeiro ano da pandemia de Covid-19, momento em que as principais festas clubbers não ocorriam há mais de oito meses. Assim como demais movimentos culturais, a cena buscou formas de se manter ativa durante o período de impossibilidade de realização de eventos presenciais: através de festas virtuais; lives com pessoas relevantes da cena; e transmissão de performances e músicas. Apesar desses esforços, o engajamento com a cena foi consideravelmente menor nesse momento. Durante as entrevistas, todas as clubbers indicaram ter se afastado da cena, ao menos parcialmente. Entre as performers, algumas relatam terem se afastado temporariamente desse trabalho; outras continuam com performances online24, porém afirmaram sentir falta da relação presencial com o público e DJs.

47A relação das festas com o contexto pandêmico – ainda que não tenha se dado de forma homogênea dentro da cena – indica a centralidade dos corpos para a sociabilidade clubber. As tentativas de isolamento social e as formas relacionais desenvolvidas a partir disso abrem espaço para diversas questões sobre a forma como as pessoas interagem entre si; com os demais seres com quem convivem; com os espaços que frequentam; e como se portam em momentos de aglomerações. É possível que a própria iminência constante do coronavírus tenha alterado a noção de contaminação aqui proposta – que neste artigo se encontra em estágio inicial de elaboração. Adotando a perspectiva clubber, apresento contaminação como forma de explorar a relação entre corpo e subjetividade e os ambientes pelos quais transita. Ainda, a contaminação é uma maneira de percepção de corpos em rede que evidencia a relação entre humanos, não humanos e paisagens. É nessa perspectiva que compreendo o corpo performer como possibilidade de pensar corpos que habitam e transitam na cidade como forma de intervenção urbana.

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Notas

1 O termo clubber é utilizado em campo para se referir aos frequentadores das festas de música eletrônica que compartilham um estilo comum.

2 Sob orientação de Silvana de Souza Nascimento, realizei a pesquisa na condição de bolsista do programa de auxílio à Iniciação Científica (Bolsa FFLCH) administrado pela Comissão de Pesquisa da FFLCH/USP.

3 O termo performer se refere a artistas que, através da dança, realizam performances artísticas nas festas. Optei por utilizar o termo sempre no feminino como costuma ocorrer no campo, mesmo quando não se tratando de artistas que utilizam pronomes femininos – o mesmo ocorre com o termo clubber.

4 Adoto o uso da linguagem de gênero neutro – conhecida também como linguagem não binária ou linguagem neutra – ao me referir a grupos de pessoas plurais, a pessoas que optam pelo uso de pronomes neutros e ao me referir a mim mesme. Esta é uma posição política coerente com as perspectivas que guiam este texto e a própria cena clubber – sendo uma linguagem comumente adotada entre ês integrantes. Dessa forma, opto pelo guia construído por Ophelia Cassiano (2019), evitando o uso dos caracteres “X” e “@”.

5 Os nomes das pessoas entrevistadas, citados nesse texto, foram escolhidos pelas próprias. As entrevistas foram realizadas no ano de 2020 via plataformas virtuais, correspondendo todas elas à informação oral. Citações diretas às entrevistas aparecerão neste texto em itálico. As idades indicadas são referentes ao momento em que as entrevistas foram realizadas.

6 Para Braga, essa característica é a réplica de “um certo jargão LGBT que feminiza substantivos e adjetivos” (2018, p. 23). Essa aproximação da linguagem ao universo LGBTQIAP+ é evidenciada também com a utilização de termos próprios do Pajubá, como apontam Braga (2018) e Palomino (1999). Pude observar essas características tanto em minha participação ativa na cena, como durante as entrevistas realizadas para a pesquisa.

7 Host/hostess é a pessoa que faz o papel de anfitriã de um evento. Esse trabalho muitas vezes envolve organizar a fila de entrada, socializar com as clubbers recém chegadas e reconhecer frequentadories recorrentes.

8 Lista trans é uma prática que permite a entrada gratuita e sem a necessidade de pegar fila para pessoas que se autodeclaram transgêneras, transexuais e travestis. A inclusão do nome nessa lista costuma ocorrer nos dias anteriores à festa, por meios virtuais (e-mail, mensagem pelo Facebook ou Instagram) e a verificação dessa lista ocorre na porta da festa – comumente isso é realizado por uma pessoa trans da equipe organizadora. Existem festas também que garantem entrada livre (gratuita e sem fila) para as pessoas que forem vestidas conforme o tema da festa.

9 De acordo com Braga, o adjetivo underground significa, em tradução literal, “subterrâneo” e se opõe ao adjetivo mainstream, que se traduz comocorrente principal”. Essa relação de oposição é utilizada, respectivamente, como aquilo que é pouco conhecido pelo grande público versus aquilo que é convencional, dominante.

10 Braga (2018) desenvolve de forma mais aprofundada essa relação entre o clube D-edge e a cena clubber em sua tese.

11 Durante minha pesquisa e o tempo em que frequentei a cena enquanto clubber existia a noção de que o público das festas é, em sua maioria, branco, de classe média ou alta. Apesar da bibliografia sobre esse campo apontar para essa mesma percepção, não pude verificar tais dados. Até o momento, desconheço pesquisas sobre o tema que tracem o perfil socioeconômico das clubbers de São Paulo.

12 Bentes define o processo de se montar (montação) como “processo ou método de alteração corporal, podendo ter funções estéticas, mas, muito além disso, em busca de um novo estado e de uma nova intensidade de percepção (BENTES, 2020, p. 53).

13 Exemplo: festa GRÆVE GERAL, nome que brinca com as palavras “greve” e “rave” (termo referente a festas de música eletrônica). Esse evento ocorreu dia 30 de abril de 2017 e foi realizado pelo coletivo Mamba Negra em parceria com o Centros de Acolhida Prates – para pessoas em situação de rua e dependentes químicas – e a Casa Florescer – centro de acolhimento para mulheres trans e travestis. A festa foi na rua, próximo aos centros de acolhimento, com entrada gratuita, contando com arrecadação de roupa e comida. Dois dias após o evento ocorreu uma greve geral nacional, que protestava contra a reforma da previdência e demais reformas trabalhistas propostas pelo então presidente interino Michel Temer.

14 Exemplo: também realizado pelo coletivo Mamba Negra, em 2017, o evento de comemoração de quatro anos do grupo teve início em um clube de festa fechado na Barra Funda. No clube ocorreram as primeiras sete horas de festa, seguidas de uma “mani-festa-ação” – festa com caráter de manifestação, que se deslocou do clube até o Largo São Francisco, no centro da cidade. Após uma pausa de 7h, a segunda parte da festa durou mais oito. O ato ocorreu depois que diversos coletivos da cena encontrarem dificuldades para obter alvará da prefeitura para realização de eventos. Jargões como “GRÆVE GERAL”, “FÓRIA” (junção das palavras “fora” e “Dória”, então prefeito de São Paulo) e “Gasolina Neles” (nome de uma das músicas do grupo Teto Preto, pertencente ao coletivo Mamba Negra) foram entoados durante o percurso.

15 Lista, em ordem de apresentação, de DJs que tocam em uma festa.

16 Uma performer ou DJ residente de uma festa é alguém que tem seu nome e trabalho associados ao coletivo que promove o evento. Dentro da cena clubber isso não significa uma exclusividade com o coletivo, existindo um intercâmbio grande entre performers, DJs, artistas visuais e as próprias equipes organizadoras. Em contraposição, existem também os artistas independentes, que não têm seu nome associado a um coletivo de festa.

17 Essa performance não ocorreu devido ao cancelamento da festa por conta da pandemia do Covid-19.

18 Ressalto, mais uma vez, que as performances aqui relatadas ocorreram durante o ano de 2019 e início de 2020, antes da pandemia de Covid-19 e do uso de máscaras faciais se tornar algo cotidiano.

19 O grupo que tem origem dentro do Laboratório de Antropologia Urbana (LabNAU) da Universidade de São Paulo, se organiza de forma independente desde 2016, reunindo investigadories em diferentes etapas da formação acadêmica.

20 Os afters são encontros que ocorrem após as festas, normalmente na casa de alguma clubber, em que se pode descansar, conversar, continuar ouvindo música em um ambiente mais aconchegante que a festa.

21 Alguns eventos da cena abordam a ocupação dos espaços urbanos de forma explícita, como o festival ravetalização (jogo com as palavras rave e revitalização), realizado em 2014. O evento ocorreu em oposição às políticas higienistas de revitalização propostas pelo governo do Estado de São Paulo. A DJ Cashu fala sobre o movimento em entrevista disponível em: https://www.youtube.com/watch?v= aoqRqhGfaFc & feature=youtu.be. Acesso em: 10 de fevereiro de 2023.

22 Utilizo o termo “cracolândia” entre aspas seguindo as orientações da antropóloga Amanda Amparo (2020), de forma a reconhecer o caráter pejorativo do nome que identifica certas aglomerações de pessoas que habitam espaços do centro de São Paulo – na época em que as entrevistas foram realizadas, se localizavam no bairro Luz. Amparo, com base em Carl Hart, indica o potencial estigmatizante do nome, uma vez que as relações nesse espaço são múltiplas e não definidas pelo uso da substância crack.

23 Exemplo disso são as reflexões que Marilyn Strathern (2014) tece sobre fazer antropologia “em casa”, ao escrever sobre os limites da auto antropologia.

24 Essas foram performances gravadas e/ou transmitidas ao vivo, muitas vezes pelo próprio celular da performer, em plataformas como Instagram ou Facebook. A música era tanto reproduzida no próprio ambiente em que a performer estava, ou era um set também ao vivo de ume DJ que se encontrava em outro local, também transmitindo virtualmente seu trabalho.

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Morgan Franzoni Caetano, «Contaminação clubber: corpo e performance na cena de São Paulo»Ponto Urbe [Online], 31 | 2023, posto online no dia 10 dezembro 2023, consultado o 13 dezembro 2024. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/pontourbe/15918; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/pontourbe.15918

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Autor

Morgan Franzoni Caetano

Mestrande em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de São Paulo. São Paulo/SP/Brasil. Pessoa branca, sem deficiências e trans não-binária – utiliza pronome elu.

E-mail: morgancaetano@usp.br

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0259-9657

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