1Ao desenvolver a pesquisa científica, questões de natureza política e epistemológica surgem sobre seu papel e sua inserção na produção de saberes e nos jogos de poder a que se vinculam. O papel da universidade, dos pesquisadores(as) e das instituições que os acompanham nas disputas que se formam no cotidiano das cidades atravessam a pesquisa. Os sujeitos submetidos à precariedade, informalidade e mobilidade constante no espaço urbano questionam e cobram o(a) pesquisador(a) para que se implique no campo de pesquisa, que renuncie a interesses apenas individuais e se engaje politicamente com seu objeto de estudo (Santos, 2020). É comum acompanharmos, no desenvolvimento de nosso campo de pesquisa, pesquisadores(as) participarem de assembleias, reuniões, eventos, manifestações e, após coletarem as informações de seu interesse ou finalizarem suas pesquisas, desaparecerem.
2No entanto, a pesquisa científica pode e deve contribuir para o desenvolvimento social. A pergunta que surge, a partir desta inquietação, é: devemos, enquanto pesquisadores(as), ter a preocupação com os interesses, indivíduos e coletivos que estão envolvidos e implicados nas nossas pesquisas? Este questionamento, acerca do papel da pesquisa no contexto de conflito em que está vinculada, ou sobre como o desenvolvimento da pesquisa ajudará a solucionar problemas concretos e cotidianos, vincula-se a questões éticas, políticas e epistemológicas que deveriam ser tratadas por todo o campo científico. Como afirma Santos (2020), essas questões “dizem respeito não só ao papel da universidade e do/a pesquisador/a (e da pesquisa), mas da própria produção do conhecimento em um mundo social diverso, complexo e desigual” (Santos, 2020, p. 47).
3Os conflitos que emergem a partir dos questionamentos impostos aos pesquisadores(as) e universidades não são novos. São reivindicações históricas de pensadores(as), movimentos sociais, sujeitos que reivindicam pensar e contar a própria história. Movimentos e atores sociais permitem-nos conhecer a sua história, os processos nos quais estão envolvidos, a produção de políticas públicas das quais são parte. Assim, pesquisadores(as) devem dar retorno às comunidades e aos sujeitos que a compõe, o que motiva e instiga reflexões coletivas, envolvendo saberes e conhecimentos dos sujeitos enredados na pesquisa, seu papel e sua implicação no conflito que se desenvolve.
4Ao mesmo tempo, a universidade pública, no Brasil, passou por grandes transformações a partir das ações afirmativas, as quais trouxeram para a academia novas perspectivas, epistemologias, conhecimentos e saberes que questionam e complementam as bases da universidade e a produção do conhecimento científico, trazendo “novos dilemas nos modos de fazer pesquisa e de produzir conhecimento – fora a produção do conhecimento que não passa e não se dá na e pela universidade, o que traz também outras e novas implicações, efeitos e dilemas” (Santos, 2020, p. 47).
5Junto com todas essas transformações e saberes coletivos que se inserem na universidade, propostas e alternativas metodológicas para acolher essas pesquisas surgem e se fazem inevitáveis. É nesse contexto e a partir dessa aposta política que a pesquisa-ação é adotada como alternativa metodológica para inúmeras pesquisas realizadas no campo do planejamento urbano e territorial no Brasil. Utilizar a pesquisa-ação como alternativa para se pensar o planejamento do território possibilita ao pesquisador trazer à tona experiências coletivas constituídas no cotidiano dos territórios, possibilitando aos membros de movimentos sociais e às pessoas com suas trajetórias marcadas na luta política de elaborarem pesquisas em certa medida coletivas, colocando como central para o desenvolvimento da pesquisa a ação prática e a experiência que sua militância ou movimento carrega.
6Todavia, da mesma forma que a democratização do acesso às universidades e inserção de novos grupos sociais geraram desconforto no interior e fora do universo acadêmico, também a adoção da pesquisa-ação enquanto metodologia gera desconforto e desqualificação neste universo.
7Não é incomum acompanhar o incômodo de pesquisadores(as) e professores(as) ao se referir à pesquisa-ação. As estratégias para desqualificá-la envolvem, com frequência, colocá-la fora dos parâmetros de objetividade científica, afirmar que não passa de ativismo e que não segue as regras da pesquisa científica. Além disso, afirma-se que a pesquisa-ação não permite o distanciamento necessário e rigor metodológico para atingir o status de pesquisa científica.
8As respostas comumente utilizadas para qualificar a pesquisa-ação enquanto metodologia aceitável envolvem a apresentação de diferentes parâmetros e métodos aceitos pela academia para demonstrar a objetividade e cientificidade da pesquisa. Respostas e elaborações fundamentais para trazer parâmetros mínimos para o desenvolvimento da metodologia e para qualificar a pesquisa enquanto científica, porém, são por vezes insuficientes para afastar as críticas em sua totalidade, pois o desconforto com esta estratégia metodológica se constrói, também, a partir dos questionamentos e do conhecimento que se produzem por meio da pesquisa-ação.
9Nesse cenário, é preciso qualificar a pesquisa-ação e delimitar seus parâmetros para atingir o rigor metodológico necessário, disseminando-a como estratégia relevante e necessária para responder algumas perguntas de pesquisa colocadas aos pesquisadores de ciências humanas, sociais e sociais aplicadas.
- 1 As reflexões do artigo partem do desenvolvido da pesquisa de mestrado pelo primeiro autor deste art (...)
10Portanto, o objetivo central da discussão aqui proposta é ampliar o conhecimento sobre e contribuir para a disseminação da pesquisa-ação como estratégia metodológica no campo do planejamento urbano, visando difundir um processo de produção conjunta de conhecimento no qual não apenas o pesquisador e o meio científico ganham, mas também os atores sociais envolvidos no processo de pesquisa. Nosso objetivo específico é apresentar a pesquisa-ação em detalhes e algumas das discussões que envolvem esta metodologia1.
11Para isso, o artigo está dividido em quatro partes. Na primeira seção, apresentamos o que é a pesquisa-ação e buscamos circunscrever seu campo epistêmico. Na segunda, discutimos as características e tipos de pesquisa-ação, apresentando as possibilidades de utilização do método. Em seguida, na terceira seção, apresentamos a pesquisa-ação a partir do caso concreto desenvolvido na pesquisa indicada, buscando dar corpo ao debate metodológico apresentado nas seções anteriores. Concluímos com algumas considerações finais sobre a contribuição e adequação do método para a compreensão de algumas políticas, dinâmicas e/ou processos sociais que acontecem nos territórios.
12Com as políticas afirmativas, a formação de pessoas engajadas nas mais diferentes lutas políticas e a inserção de pessoas com as vidas marcadas pelas mais diversas formas de violência nas universidades, acolhendo, assim, membros de movimentos sociais, militantes e ativistas faz com que se repensem as bases da universidade e questionamentos quanto aos saberes e metodologias para a produção de conhecimento que se inserem no interior da academia. Neste contexto, a pesquisa-ação se torna uma alternativa metodológica para o(a) estudante desenvolver a pesquisa - de certa forma - coletivamente e ter como perspectiva a ação prática que sua experiência, seu movimento (ou aquele por ele estudado) e sua militância carrega, viabilizando o estudo da relação e implicação entre experiências e saberes práticos e a pesquisa científica. Assim, os pesquisadores além de “carregar consigo” seus pares quando entram na universidade, ao utilizar a pesquisa-ação como estratégia metodológica possibilita que a pesquisa seja desenvolvida junto com eles (Santos, 2022).
13A pesquisa que mobiliza esta estratégia metodológica encontra-se entre a ação no campo prático e a investigação ao seu respeito, buscando qualificar, compreender, investigar e/ou transformar a própria ação (Tripp, 2005). Portanto, para seu desenvolvimento é preciso delimitar um objetivo de pesquisa (conhecimento) e um objetivo de ação e a forma pela qual se relacionam. Thiollent (1986) afirma que para além da definição dos dois objetivos elencados é preciso para sua elucidação uma outra condição, a relação existente entre os objetivos; assim, “uma das especificidades da pesquisa-ação consiste no relacionamento desses dois tipos de objetivos” (Thiollent, p. 17-18, 1986).
14Esta caraterística é uma marca da estratégia metodológica, pois a pesquisa-ação carrega a participação como modo inerente de se fazer pesquisa, e seu horizonte é uma ação técnica ou coletiva planejada no meio social (Thiollent, 1986, Santos, 2022).
15Para o desenvolvimento da pesquisa-ação é preciso uma “ação não trivial”, e para que esta seja merecedora de investigação a ser conduzida, esta ação não trivial deve-se vincular com ações coletivas que possibilitam a compreensão de dinâmicas sociais, organização do coletivo e experiências populares. Assim, a pesquisa-ação é definida por Thiollent (1986) como uma:
[...] pesquisa social com base empírica que é concebida e realizada em estreita associação com uma ação ou com a resolução de um problema coletivo e no qual os pesquisadores e os participantes representativos da situação ou do problema estão envolvidos de modo cooperativo ou participativo (Thiollent, 1986, p. 14).
16Definições contemporâneas se vinculam com a definição anterior, colocando esta estratégia como uma ação que democratiza a própria pesquisa, possuindo uma orientação democrática e participativa para a criação de conhecimento (Bradbury, 2015; Santos, 2022). Assim, para o desenvolvimento da proposta:
[...] é necessário delimitar um objetivo prático (de ação), equacionar um problema determinado, transformar e/ou qualificar a ação de um coletivo, e delimitar um objetivo de conhecimento (pesquisa), obter informações que não são possíveis por outros meios, compreensão de dinâmicas sociais e/ou formas de organização, sendo que as teorias e a revisão bibliográfica orientam essa prática ou ajudam a compreendê-la (Santos, 2022, p. 33).
17O conhecimento produzido permite que a ação seja melhor conduzida ou, ao menos, compreendida, constituindo uma tensão entre ação e pesquisa ao transformar a prática em um problema em si (Thiollent, 1986; Tripp, 2005; Santos, 2022).
18Assim, a pesquisa-ação elabora pesquisas em certo ponto coletivas, pois ela se torna participativa na medida que inclui os envolvidos e é colaborativa em seu modo de trabalhar (Tripp, 2005), nos termos apresentados por Coleman:
O compromisso com o trabalho colaborativo e o direito das pessoas de se envolverem na compreensão de suas próprias experiências e na determinação de seu próprio futuro é fundamental para nossa prática - conduzimos pesquisas com, não sobre as pessoas (Coleman, 2015, p. 394, tradução livre).
19A metodologia não é pautada unicamente pela pesquisa e o projeto de pesquisa, busca-se construir uma ação prática de forma coletiva. Dessa forma, o reconhecimento do rigor metodológico e científico na produção do conhecimento se constitui, em parte, pela academia e, em parte, pelos sujeitos com quem se estuda, devendo a pesquisa ser validada com o coletivo que fez parte da pesquisa (Santos, 2022).
20A validação da pesquisa com seus participantes deve ser realizada ao longo de seu desenvolvimento, legitimando e (re)orientando constantemente o estudo, pois os pesquisadores(as) são chamados “a se envolver com”, em vez de apenas compreender os desafios colocados ao seu redor (Bradbury, 2015; Santos, 2022).
21O objetivo de ação e o processo de investigação é constantemente examinado, discutido e reorientado a partir do que Thiollent (1986) chama de seminário, em suas palavras:
O papel do seminário consiste em examinar, discutir e tomar decisões acerca do processo de investigação. [...] Os grupos de observação podem recorrer a diversas técnicas de pesquisa individual ou coletiva. O seminário centraliza todas as informações coletadas e discute as interpretações. Suas reuniões dão lugar a "atas". Com as informações reunidas, e dentro da perspectiva teórica adotada, o seminário elabora diretrizes de pesquisa (hipóteses) e diretrizes de ação submetidas à aprovação dos interessados, que serão testadas na prática dos atores considerados (Thiollent, 1986, p. 58).
22Para o autor, o seminário deve ser metodicamente organizado. Ele pode ser realizado por meio de assembleias, reuniões ou outras formas de organização do coletivo em que se discutem as formas de organização e as ações a serem tomadas, coletando, a partir desses encontros, dados de pesquisa, seja pela análise de atas desses encontros ou pela elaboração de diário de campo.
23Portanto, o seminário não precisa ser rigorosamente ou metodicamente organizado; as formas de organização, encontro, deliberação tradicionalmente utilizados pelo coletivo são suficientes para configurarem os seminários para reorientar e ajustar a pesquisa que está sendo desenvolvida. Sua relevância e seu objetivo é estar validando constantemente a pesquisa com os sujeitos com quem se pesquisa e reorientando o objetivo de ação para tornar a pesquisa de certa forma coletiva.
24Não há uma receita rígida a ser seguida para elaboração de uma pesquisa-ação, mas sim princípios com métodos flexíveis exigidos pelo objetivo de pesquisa (Bradbury, 2015), tendo como horizonte uma ação no meio social. Dessa forma, garante-se a participação coletiva na pesquisa e levanta-se hipóteses ou diretrizes de pesquisa, auxiliando na compreensão da dinâmica elencada como objetivo de conhecimento (pesquisa).
25A participação e a ação delimitada como objetivo alteram constantemente o que está sendo pesquisado, e este contexto molda a pesquisa, inserindo o estudo na tensão permanente entre ação e pesquisa, que constitui e atravessa todo o trabalho. Esta é a característica mais relevante desta metodologia: é o desenvolvimento do estudo na tensão entre ação e pesquisa que faz com que a pesquisa-ação se diferencie das outras estratégias metodológicas.
26Ter como característica inerente a participação e delimitar uma ação no meio social faz emergir no desenvolvimento do estudo que adota a pesquisa-ação, não apenas questões éticas da pesquisa, mas questões éticas da própria ação e os tensionamentos políticos que afloram a partir da prática, convivência e organização coletiva (Tripp, 2005; Santos, 2022).
27O desenvolvimento da pesquisa-ação faz com que o(a) pesquisador(a) assuma, com seu envolvimento e engajamento cada vez maior no campo de pesquisa diversos personagens, sendo o papel de pesquisador apenas um deles, impossibilitando o distanciamento do objeto de pesquisa e alterando, a partir da prática, constantemente o que está sendo pesquisado. Portanto, o papel do pesquisador nunca é neutro no campo de pesquisa para quem adota esta metodologia. Assim, a forma de inserção no campo, o lugar e a clareza na posição que se ocupa são fundamentais para o desenvolvimento da pesquisa.
28Além das técnicas e instrumentos de pesquisa utilizados e a validação da pesquisa com os sujeitos com quem estuda, o rigor científico e metodológico passa pela qualificação do posto de observação, pois existem distintos pontos de observação e deve-se reconhecer a perspectiva parcial que cada posto adquire inserido nos jogos de poder nos quais o campo de pesquisa está imerso (Santos, 2020; Santos, 2022).
29As características que diferenciam a pesquisa-ação de outras metodologias são sua perspectiva prática, a constante validação dos seus objetivos e resultados, com os sujeitos com quem se pesquisa e a tensão e oscilação que se constituem entre ação e pesquisa. Porém, esta metodologia possui semelhanças e convergências, por exemplo, com a pesquisa participante e a etnografia, pois a participação faz parte do modo de se fazer pesquisa nessas estratégias metodológicas e os instrumentos para trazer rigor para pesquisa-ação se aproximam e coincidem com o de outras metodologias (entrevistas, aplicação de questionários, entre outros), mobilizando, se necessário, outras metodologias para complementar a pesquisa-ação e atingir o objetivo de produção do conhecimento.
30A implicação política é inevitável na pesquisa-ação, porém, não é característica inerente a esta metodologia. Cada vez mais o(a) pesquisador(a) é instado a se envolver e se implicar no campo de pesquisa, e já é tido como um dado que o distanciamento do seu objeto de pesquisa não traz rigor científico ou maior cientificidade à pesquisa. Ao contrário, o distanciamento e a imparcialidade no desenvolvimento de uma pesquisa podem vir a ser uma falsa questão e um impedimento para a entrada na pesquisa de campo.
31Para além da cobrança dos sujeitos com quem pesquisa, o próprio campo atrai e insere o pesquisador nos conflitos e circuitos que envolvem o campo de pesquisa. A produção de conhecimento, as universidades e os pesquisadores estão imersos nesses jogos de poder. Ao tratar sobre a etnografia, Santos afirma que:
Os pesquisadores se vêm então obrigados a lidar com duas obrigações éticas e políticas: prestar contas e assumir responsabilidade em relação àquilo que escrevem e produzem (Albert., 2014, p. 132). Afinal, existem também por parte dos sujeitos pesquisados demandas e expectativas a ser alcançadas com as pesquisas e estudos produzidos em um contexto maior de disputas (discursivas, simbólicas, mas também muito concretas, de vida e morte, em muitos casos) no qual esse material pode servir como instrumento.
[...]
O engajamento social do/a pesquisador/a, nesse contexto, não se desvincula mais do projeto científico, deixando de ser uma escolha pessoal ou uma opção fazendo com que “a combinação entre pesquisa etnográfica e ativismo” se torne “a situação básica de trabalho de campo em muitos lugares” (ibid., 2014, p.133). (Santos, 2020, p. 45).
32Sob essa perspectiva, realizar a pesquisa, não apenas etnográfica, significa atuar em um campo político em que a pesquisa e a intervenção do pesquisador se tornam ferramentas coletivas nas disputas que se formam no cotidiano das cidades (Santos, 2020). Apesar do engajamento e a implicação do pesquisador no campo não ser característica específica da pesquisa-ação, as outras metodologias não possuem como perspectiva e horizonte a ação concreta, que pauta a pesquisa a partir da tensão entre ação e pesquisa, transformando a ação em um problema em si, por mais que as pesquisas baseadas em outras metodologias possam se tornar instrumentos de uma ação coletiva.
33Apontar que se implicar no campo de pesquisa e atuar em um campo político não é característica exclusiva da pesquisa-ação ganha relevância, pois é comum observar pesquisadores(as) que reivindicam esta estratégia de pesquisa ao confundir metodologia com a postura adotada pelo pesquisador(a) em campo. O fato de o pesquisador se engajar socialmente no decorrer da pesquisa, atuar em um campo político ou implicar-se em seu campo de pesquisa não faz com que a metodologia adotada seja a pesquisa-ação. Sob essa perspectiva, algumas críticas elaboradas contra estudos que adotam pesquisa-ação ganham relevância, não por desqualificar este método, mas por indicar confusões e falta de rigor metodológico em algumas pesquisas que apontam a pesquisa-ação como metodologia e acabam por confundir ativismo e militância com metodologia de pesquisa, alerta destacado por Thiollent já na década de 1980.
34Por mais que a ação prática tenha grande relevância para a pesquisa-ação, apenas delimitar um objetivo prático e atuar concretamente em busca desse objetivo não faz com que a metodologia adotada seja a pesquisa-ação. O simples ativismo e a adoção de uma determinada postura em seu campo de pesquisa não se confundem com a metodologia, motivo pelo qual se faz importante qualificar a metodologia adotada, o posto ocupado no campo de pesquisa e, caso se adote a pesquisa-ação, é preciso qualificar esta metodologia para garantir o rigor científico necessário para o desenvolvimento da pesquisa, utilizando instrumentos de pesquisa que o objetivo de conhecimento demanda, delimitando, para além do objetivo prático, o objetivo de conhecimento e a forma pela qual se relacionam.
35Assim, o rigor científico e a caracterização da metodologia enquanto pesquisa-ação podem ser delimitados de forma resumida pela perspectiva prática e a delimitação de uma ação (ou resolução de um problema) no meio social; adoção de um objetivo prático e um objetivo de conhecimento, delimitando a forma pela qual se relacionam; desenvolvimento de certa forma coletivo da pesquisa, validando seu desenvolvimento com os sujeitos com quem estuda e (re)orientando os objetivos elencados; qualificação do posto de observação e; utilização de métodos e instrumentos de pesquisa reconhecidos pela academia e que o objetivo de conhecimento demanda. Dessa forma, o rigor científico é delimitado conjuntamente, pela academia e pela coletividade com quem estuda. Portanto, é fundamental distinguir a postura adotada no campo de pesquisa e a metodologia utilizada, garantidora do rigor científico necessário para pesquisa.
36Ao delimitar o que é a pesquisa-ação, outro questionamento emerge de sua reflexão: Qual o tipo de conhecimento que se produz com esta metodologia?
37Cada instante, cada conflito que surge no percurso da pesquisa e a cada novo ator que se insere no campo carrega consigo saberes e técnicas que influenciam nas dinâmicas que se desenvolvem no campo de pesquisa, abrindo consigo um novo percurso de pesquisa possível, apresentando a relevância da definição do objetivo de conhecimento para orientar a pesquisa ao longo de seu desenvolvimento, funcionando como “bússola” nos desdobramentos imprevisíveis e nos inúmeros caminhos possíveis para o percurso da pesquisa.
38O pesquisador que adota a pesquisa-ação como estratégia metodológica, ao se inserir no campo de pesquisa a partir de sua posição, não está unicamente elaborando sua pesquisa de um determinado posto de observação, mas mobiliza, também, junto a sua inserção no campo saberes, técnicas e redes que vão compor o campo de disputas em que o local está imerso para auxiliar no objetivo de ação elencado. Essa posição e a forma de inserção no campo afetam a análise e possibilitam a apreensão do objeto de pesquisa sob uma determinada perspectiva, que apenas esta estratégia metodológica permite.
39Cada ator, incluindo os(as) parceiros(as) de pesquisa e o pesquisador, possui suas conexões, saberes e redes que são mobilizados constantemente para atingir o objetivo de ação, sendo que a pesquisa-ação possibilita o mapeamento das conexões que se formam a partir dos atores que passam pelo campo de pesquisa, atores que buscam atingir o objetivo de ação ou não. No entanto, é preciso reconhecer que nem todos os atores que passam pelo campo de pesquisa estão necessariamente alinhados com o objetivo de ação delimitado. Um exemplo deixa essa questão mais clara ao leitor: se delimitarmos em uma ocupação ameaçada de remoção como objetivo a suspensão desta ameaça, os atores que promovem a remoção também mobilizam suas redes e técnicas e compõem o campo de pesquisa, mas não atuam alinhados com os objetivos do pesquisador e de seus interlocutores diretos.
40Portanto, o mapeamento e rastreamento desses atores e conexões não é simples, pois são mediadores em movimento que passam a todo instante pelos territórios analisados deixando suas marcas, mesmo que momentâneas. Caracterizando-se como uma investigação exaustiva das redes e estratégias que compõem o conflito, são atores em movimento que passam momentaneamente no quadro do conflito e deixam um rastro para investigação que só são rastreáveis nos desdobramentos de novos atores em movimento. Assim, a pesquisa-ação é uma forma de investigar essas conexões e esses percursos a partir de seu objeto de estudo (Santos, 2022; Latour, 2012).
41Este mapeamento não é um fim em si mesmo e não constitui um quadro estático dos agentes e instituições que orbitam o espaço analisado; são agentes que passam nos territórios, auxiliando ou não os sujeitos com quem se estuda, e muitas vezes não retornam. Portanto, tal descrição não possui como finalidade apontar quem passa pelo conflito, mas busca auxiliar na descrição, compreensão e análise do próprio conflito, ajudando a compreender as dinâmicas dos territórios estudados (Santos, 2022).
42Ao buscar uma ação no meio social por meio da pesquisa-ação, o primeiro ator a ser analisado é o próprio pesquisador. Sendo a implicação e envolvimento no campo de pesquisa inevitáveis, é preciso ter clareza sobre o posto de observação e a forma de inserção no campo de pesquisa, pois com o seu desenvolvimento, a pesquisa é afetada e reorientada a todo instante.
43Porém, o reconhecimento da parcialidade, do envolvimento e engajamento não é suficiente, como mencionado, nem para delimitação da metodologia, nem para o desenvolvimento da pesquisa. É preciso “buscar a perspectiva daqueles pontos de vista, que nunca podem ser reconhecidos de antemão” (Haraway, 2009, p. 24). Busca-se colocar em evidência as experiências dos sujeitos com quem estuda a partir de seu envolvimento e engajamento, assumindo diversos papéis no campo de pesquisa e diversas linhas da rede a partir dos posicionamentos assumidos, constituindo uma conexão parcial com quem se estuda, posição de objetividade para desenvolvimento da pesquisa, um posicionamento e envolvimento que são assumidos e críticos (Haraway, 2009; Santos, 2022).
44No campo do planejamento urbano, pode-se dizer que a pesquisa-ação e sua construção coletiva permitem aos pesquisadores e à academia colocar em relevo saberes subalternizados e experiências populares de organização e sobrevivência no cotidiano da cidade, evidenciar experiências localizadas de organização e produção dos territórios, que se constituem na indeterminação e no limiar entre a lei e sua aplicação, locais considerados, normalmente, como precários, informais, irregulares e ilegais. Assim, aponta para uma forma outra de se pensar o planejamento urbano, colocando em evidência o não planejado, o que foge da ordem formal de urbanização e coloca em evidência experiências invisibilizadas pela academia e pelo Estado (Roy, 2005).
45Autores que estudam a pesquisa-ação delimitam diversos tipos de pesquisa-ação (Thiollent, 1986; Bradbury, 2015). Pesquisas mais contemporâneas sobre esta estratégia de pesquisa ampliam seu escopo transcendendo seu caráter de metodologia, caracterizando a pesquisa-ação como um movimento, nas palavras de Bradbury:
Vamos pensar nos pesquisadores da pesquisa-ação como constituindo um movimento que está comprometido com modelos alternativos para a criação de conhecimento transformador (Bradbury, 2015, p. 59, tradução livre)
46A compreensão da pesquisa-ação enquanto movimento amplia sua delimitação enquanto apenas uma metodologia. Os pesquisadores contemporâneos, que adotam essa perspectiva, colocam a pesquisa-ação como sendo emancipatória (Bradbury, 2015), distinguindo-se, por exemplo, da compreensão de Thiollent (1986), que coloca a pesquisa-ação emancipatória como um dos tipos de pesquisa-ação. Segundo Bradbury (2015), a pesquisa-ação sem a preocupação emancipatória é desvitalizada e se restringe a um conjunto de técnicas acríticas. Já para Thiollent:
Muitos partidários restringem a concepção e o uso da pesquisa-ação a uma orientação de ação emancipatória e a grupos sociais que pertencem às classes populares ou dominadas. Nesse caso, a pesquisa-ação é vista como forma de engajamento sócio-político a serviço da causa das classes populares. Esse engajamento é constitutivo de uma boa parte das propostas de pesquisa-ação e pesquisa participante, tais como são conhecidas na América Latina e em outros países do Terceiro Mundo.
No entanto, a metodologia da pesquisa-ação é igualmente discutida em áreas de atuação técnico-organizativa com outros tipos de compromissos sociais e ideológicos [...] (Thiollent, 1986, p. 14).
47Para a perspectiva contemporânea, que delimita esta estratégia de pesquisa como um movimento, a pesquisa-ação parte de três princípios que regem sua prática, delimitando que o ser é relacional, que o sistema da pesquisa-ação busca uma totalidade ao longo do tempo, indo para além de uma fragmentação obsoleta da compreensão de determinados fenômenos, e que sua primazia é uma contribuição prática. Assim, a pesquisa-ação e as discussões que orbitam essa estratégia transcendem a preocupação apenas com o rigor científico ou sua aceitação pela academia, a qualidade da pesquisa-ação, que não se confunde com os princípios que orientam a pesquisa-ação e requerem, segundo Bradbury (2015, p. 8, tradução livre):
48Articulação de objetivos, em que medida a pesquisa-ação aborda explicitamente seus objetivos;
49Parceria e participação, em que medida a pesquisa-ação reflete valores participativos e valoriza seu componente relacional;
50Contribuição para a teoria e prática da pesquisa-ação;
51Métodos e processos adequados, a pesquisa deve mostrar e não apenas contar sobre os processos vivenciados e os resultados do estudo, incluindo as vozes dos participantes na pesquisa;
52Capacidade de ação, promovendo novas ideias para ação;
53Reflexão, os pesquisadores(as) devem assumir uma postura pessoal, envolvida e autocrítica, refletindo com clareza sobre seu papel no processo de pesquisa, clareza sobre o contexto em que a pesquisa se desenvolve e clareza sobre o que levou ao seu envolvimento na pesquisa; e
54Significação, relevância para além de seu contexto imediato, buscando uma certa totalidade e florescimento das pessoas e comunidades.
55A adoção de uma metodologia ou sua inserção em um movimento ou estratégia de pesquisa, que tenha a perspectiva de estudar com sujeitos que vivem, performam, elaboram e enfrentam questões de classe, gênero, raça, lutas políticas ou outras questões tidas como progressistas, não faz o estudo em si ser emancipador ou coloca o estudo alinhado com o florescimento de comunidades e novas perspectivas.
56Da mesma forma que uma ação coletiva não é em si emancipadora, enquadrar essa estratégia de pesquisa como emancipadora por si não corresponde com a reflexão necessária para se garantir e enquadrar a pesquisa-ação como de qualidade. A organização coletiva é carregada de contradições e conflitos.
57A pesquisa e o pesquisador(a) não se descolam dos jogos de poder que envolvem o estudo e dos tensionamentos políticos e cotidianos que surgem no campo de pesquisa. Ter como perspectiva a adoção da pesquisa-ação para estudar ocupações de moradia na cidade de São Paulo, por exemplo, não faz com que a pesquisa seja emancipatória – é preciso refletir sobre o papel da pesquisa nos jogos de poder que envolvem as ocupações. Ao delimitar como objetivo de ação claro e urgente, por exemplo, a suspensão de uma remoção, mesmo que seja uma suspensão temporária, não faz da pesquisa uma ação emancipadora.
58Da mesma maneira, pode-se refletir até que ponto a pesquisa ou uma ação jurídica que suspenda um processo judicial que tem por objetivo a remoção de diversas famílias em meio a pandemia de Covid-19, por exemplo, são emancipatórias ou reforçam e legitimam o processo de remoção posteriormente. Não significa que as pesquisas e as diversas ações que suspendam uma reintegração de posse não sejam de extrema importância ou de uma relevância ímpar, ainda mais se levado em conta o contexto imposto pela crise sanitária, econômica e social que o Brasil atravessa. A suspensão de remoções corresponde a salvar vidas em um contexto de necessário isolamento social para combate à pandemia, mas até que ponto dar visibilidade às violências de Estado, garantir a defesa plena das famílias em um processo judicial e suspender a remoção neste contexto não legitimam as estruturas que promovem a remoção posterior dessas famílias? Até que ponto essas ações podem ser caracterizadas como emancipatórias?
59Ao mesmo tempo que confundir a postura no campo de pesquisa com a metodologia é um problema, romantizar a pesquisa-ação também se torna um problema, pois não é o único caminho de pesquisa que envolve a participação ou que coloca em evidência experiências populares, sendo apenas um dos caminhos possíveis. A associação dessas duas problemáticas ganha relevância, pois parte do mesmo problema: confundir militância/ativismo com metodologia, tornando a pesquisa-ação como única metodologia no planejamento urbano capaz de elaborar propostas coletivas e, supostamente, emancipatórias.
60Nessa perspectiva, enquadrar a pesquisa-ação enquanto movimento – e movimento necessariamente emancipatório – potencializa determinadas inconsistências e justifica determinadas críticas à metodologia. Parece adequado delimitar a pesquisa-ação apenas como metodologia, sendo, nos termos de Thiollent (1986), a “pesquisa-ação de ação emancipatória” apenas um tipo de pesquisa possível a partir desta estratégia metodológica.
61Porém, tal enquadramento não afasta a necessidade de delimitar uma ação não trivial no meio social para seu desenvolvimento ou que esta metodologia se constitui como uma alternativa às mudanças nas bases das universidades a partir da política de ações afirmativas, sendo um dos caminhos para os questionamentos epistemológicos e metodológicos que se apresentam.
62A pesquisa-ação no planejamento urbano e territorial permite a elaboração de pesquisas que colocam em evidência saberes localizados e experiências populares, e essa produção de conhecimento situado não corresponde a uma fragmentação obsoleta, mas também não corresponde, necessariamente, a uma totalidade ou a busca de uma ontologia do conhecimento.
63As abordagens indicadas se complementam e se reforçam, pois para uma elaboração de uma pesquisa-ação de qualidade é preciso articular os objetivos e determinar a forma que se relacionam. É preciso a participação, envolvimento e parceria para o desenvolvimento da pesquisa; é preciso contribuir para a teoria da pesquisa-ação e para delimitar o rigor metodológico, rigor construído coletivamente com os sujeitos com quem estuda, mas também com as diversas pesquisas que mobilizam esta estratégia metodológica; é preciso delimitar métodos adequados, pois além do objetivo de ação, delimita-se um objetivo de conhecimento; é necessária a capacidade de ação, pois a ação se transforma em um problema em si, sendo o estudo desenvolvido constantemente na tensão entre ação e pesquisa; a reflexão é indispensável, elaborando o posto de observação e a forma de inserção no campo; e a significação, também, é fundamental, não para construção de uma suposta ação emancipatória ou o florescimento da comunidade com quem trabalha, mas para o desenvolvimento de uma pesquisa-ação de qualidade, por meio da elaboração de uma ação não trivial e a construção de uma conexão parcial com quem se estuda, trazendo objetividade para desenvolvimento da pesquisa.
64Portanto, a pesquisa-ação é uma das metodologias capazes de trazer diferentes perspectivas para o campo do planejamento urbano e territorial, se contrapondo assim ao planejamento estatal entendido como formal.
- 2 As ocupações acompanhadas estão localizadas na Vila Andrade, zona sul de São Paulo, organizadas por (...)
65As reflexões, os dilemas e os questionamentos elaborados partem de pesquisa de mestrado desenvolvida na pós-graduação de Planejamento e Gestão do Território da Universidade Federal do ABC, Ocupações sob ameaças: Práticas e instituições judiciais na (in)definição do (in)formal na moradia migrante. A pesquisa buscou analisar a forma que o direito e ações judiciais de remoção operam socialmente em duas ocupações organizadas por migrantes e brasileiros na cidade de São Paulo2, de que forma as ações judiciais afetam as dinâmicas das ocupações, os circuitos da moradia migrante e de que maneira a organização e resistência dos moradores afetam os desdobramentos do processo.
66A metodologia inicialmente proposta no projeto de pesquisa era a etnografia. A partir da inserção no campo de pesquisa, reflexões e dilemas quanto a metodologia escolhida surgiram, pois a forma de inserção no campo, o envolvimento do pesquisador e o objetivo de pesquisa mostraram, rapidamente, que era preciso repensar a metodologia para o desenvolvimento da pesquisa. As ocupações acompanhadas estavam na iminência de serem removidas, os moradores estavam tomados e mobilizados em torno da ameaça e a inserção no campo pelo pesquisador ocorreu, inicialmente, como advogado popular. Portanto, desde o início da pesquisa, um objetivo de ação se impôs, atravessou e condicionou a pesquisa: a suspensão da ameaça de remoção.
67A suspensão da remoção, além de se constituir como um objetivo prático imediato, tornou-se a condição para a própria pesquisa, e seu desenvolvimento só era possível se as ocupações continuassem a existir, delimitando um objetivo prático que atravessou o estudo, uma vez que a suspensão ocorrida ao longo da pesquisa foi momentânea e com prazo indeterminado, por causa da pandemia de Covid-19, constituindo uma preocupação permanente para os moradores que tinham que consolidar sua ocupação com a perspectiva constante da remoção (Santos, 2022).
68Ao mesmo tempo, o pesquisador estava implicado no seu objeto de pesquisa, auxiliando na organização dos moradores, nas estratégias de defesa judicial, estava em contato e fazia parte das redes de apoio, assumindo diversos personagens ao longo da pesquisa – era parceiro, assistente social, advogado, pesquisador, mediador de conflitos, entre inúmeros outros papeis. Imediatamente à inserção no campo de pesquisa, o estudo passou a se confundir com atuação prática.
69A pesquisa foi desenvolvida com a perspectiva prática que a ameaça de remoção demandava e foi elaborada de forma participativa de acordo com as demandas urgentes que a ameaça de remoção impunha a partir das assembleias organizadas pelos moradores, vinculando a pesquisa às disputas e dinâmicas que se estabeleceram nas ocupações:
Figura - assembleia ocupação localizada na Vila Andrade
Fonte: imagem do autor, em 2023
70A metodologia proposta não parecia se enquadrar no que vinha sendo desenvolvido. Assim, a pesquisa-ação se apresentou como alternativa a partir da experiência vivenciada no campo e tornou-se a metodologia adequada para o desenvolvimento da pesquisa. A ação prática pautou a pesquisa e fez com que se desenvolvesse com os moradores a busca de concretizar um objetivo, afastar a ameaça iminente de remoção, tornando a pesquisa indissociável da ação prática que vinha sendo desenvolvida.
71Com o engajamento, envolvimento e inserção no campo de pesquisa a partir de um determinado posto de observação, a pesquisa-ação se apresentou como metodologia adequada para desenvolver a pesquisa. Em muitos momentos a perspectiva prática e sua urgência se sobrepunham ao objetivo de conhecimento, delimitado desde o início da pesquisa, condicionando e limitando o desenvolvimento do estudo pelas ações necessárias para suspender as remoções e consolidando, ao mesmo tempo, uma perspectiva adequada e privilegiada para observar a forma que as ações judiciais operam socialmente e a forma que são afetadas pelas dinâmicas e organização das ocupações.
72Assim, a pesquisa foi posicionada na tensão permanente entre ação e pesquisa. Diversas ações foram delimitadas para suspender a remoção, articulação das ocupações com movimentos sociais, organização de assembleias periódicas, estratégias para estabelecer ligação regular de energia e água e a cada encontro e assembleia definiam-se novas estratégias práticas que orbitavam o objetivo de ação principal:
Figura - Moradores da ocupação localizada no Brás se reúnem em frente ao prédio durante tentativa de remoção.
Fonte: imagem do autor, em 2021
73Nesses encontros os objetivos, ações, estratégias e o desenvolvimento da pesquisa eram avaliados, limitados, reorientados e pautados pelas novas decisões, necessidades que surgem e empecilhos da própria organização coletiva e suas contradições, pois nesses espaços conflitos, tensões, brigas e desconfianças afloravam, e em alguns momentos os objetivos desenvolviam-se com muitas dificuldades. A pesquisa foi atravessada, limitada, reorientada constantemente pelos conflitos que surgiam, e seus objetivos constantemente reavaliados.
74Conforme explicitado anteriormente, o desenvolvimento de uma pesquisa com a proposta de intervenções práticas e sob uma ameaça iminente e urgente é afetado constantemente pelas tensões políticas e/ou cotidianas que surgem a todo instante. Assim, a ação prática, ao mesmo tempo que se tornou condição da pesquisa, alterava e limitava o que se pretendia analisar, porém, constituiu-se como posicionamento privilegiado para elaboração do objetivo de conhecimento.
75A análise sobre a forma que o conflito fundiário e as ocupações se desenvolveram só foi possível a partir da pesquisa-ação. Os espaços urbanos estudados se organizaram e se desenvolveram em um espaço de indefinição, no limiar entre a permanência e a extinção, característica que indica a forma pela qual o objetivo de ação implica-se com o objetivo de conhecimento (Telles, 2010; Yiftachel, 2009; Santos, 2022).
76As ações tomadas em conjunto pelos moradores e o pesquisador deram os caminhos para desenvolvimento da pesquisa, deixando indícios para analisar o objetivo de conhecimento, ao buscar a compreensão de como a ameaça de remoção afeta os circuitos e dinâmicas dessas ocupações e, ainda, se o processo judicial é afetado por elas. As ações práticas elencadas apresentaram os caminhos para elaboração do objetivo de conhecimento, apresentando a partir da delimitação dos objetivos (conhecimento e ação) a forma que se relacionam. Dessa forma, delimitou-se o objetivo de ação, o objetivo de conhecimento e a forma pela qual se relacionam, posicionando a pesquisa na tensão permanente entre ação e pesquisa.
77Os seminários e o desenvolvimento coletivo da pesquisa eram organizados a partir da forma de organização que os próprios moradores constituíram: as assembleias. Os caminhos a seguir e as parcerias a se constituir eram validadas e propostas pelos moradores, sendo as ações tomadas pelo pesquisador apresentadas, elaboradas, validadas e reorientadas nesses espaços. Assim, para o desenvolvimento da pesquisa-ação, os seminários corresponderam às assembleias e reuniões entre os moradores. Registraram-se as visitas e reuniões por meio de caderno de campo, sendo realizada, ainda, entrevistas semiestruturadas com atores chaves, identificados pelos moradores como lideranças. A necessidade de implicação e participação faz com que os dados, pessoas, documentos, informações sejam disponibilizados conforme a implicação no campo e o desenvolvimento da pesquisa.
78As ocupações selecionadas não se caracterizaram como casos-modelo para analisar a moradia migrante e a forma que o Poder Judiciário trata tais ocupações. Porém, esses espaços e a forma de condução da pesquisa foram reveladores das implicações concretas da ameaça de remoção, das redes de apoio aos migrantes ameaçados de remoção e a forma que a organização afetou e suspendeu o processo judicial. O engajamento, a implicação e a ação no meio social fizeram emergir percursos significativos nos circuitos da moradia migrante e a forma que as ações judiciais operam socialmente a partir da ameaça de remoção, que não são facilmente acessados por outras estratégias metodológicas (Santos, 2022).
79A pesquisa-ação permitiu que não se analisasse apenas a narrativa do sistema de justiça em torno de casos específicos a partir dos documentos disponíveis e dos autos do processo para seu estudo, ou a forma que os moradores se organizaram para suspender a remoção. Esta estratégia metodológica permitiu analisar “[...] a aplicação da lei e sua fronteira como um campo de disputa em que diversas narrativas e tensionamentos se formam a partir da perspectiva da remoção, transbordando a análise apenas do processo judicial e seus efeitos nas ocupações” (Santos, 2022, p. 39-40).
80Portanto, a metodologia adotada foi capaz de trazer à tona os percursos e tensionamentos que se formam nas ocupações para afetar, transformar e alterar o processo judicial, permitindo, também, analisar com clareza a forma que as dinâmicas daquele espaço urbano eram afetadas pela ação judicial. A cada ação tomada as dinâmicas e o processo judicial eram afetados. A metodologia permitiu evidenciar as idas e vindas do conflito e as estratégias populares mobilizadas a partir da formação de uma rede de apoio para evitar a remoção em meio à pandemia de Covid-19.
81Os percurso e dilemas impostos à pesquisa durante a pandemia de Covid-19 e a inserção no campo de pesquisa a partir da urgência que se apresentava fizeram com que se optasse pela reorientação metodológica da pesquisa. Tal como proposto pelo método, a perspectiva prática atravessou a pesquisa e se tornou condição para seu desenvolvimento, enquadrando a pesquisa na tensão permanente entre ação e pesquisa, sendo a pesquisa alterada constantemente pelas ações tomadas coletivamente entre o pesquisador e os moradores da ocupação. Diante das reflexões apresentadas, dos percursos tomados na pesquisa de campo e da condição para entrada no campo de pesquisa, a pesquisa-ação apresentou-se como metodologia adequada para o desenvolvimento da pesquisa.
82As reflexões acerca da metodologia de pesquisa conhecida como pesquisa-ação buscam contribuir para aplicação do método na área do Planejamento Urbano e Territorial. São reflexões que surgiram a partir de pesquisa desenvolvida em que esta estratégia metodológica se apresentou como adequada, possibilitando a apreensão do tema sob uma perspectiva singular.
83Como afirmado, não existe uma receita fixa para aplicação do método, mas sim princípios e orientações flexíveis para sua aplicação, que não se confundem com uma certa postura no campo de pesquisa. O rigor é necessário para seu desenvolvimento, porém, é constituído em conjunto com os sujeitos com quem estuda e a academia.
84A utilização deste método na área de Planejamento Urbano e Territorial possibilita colocar em evidência experiências de fazer cidade que são elaboradas cotidianamente nos espaços urbanos e que são invisibilizados pelo Estado e pela academia, possibilitando a apreensão e elaborações diversas e novas perspectivas sobre o planejamento. A pesquisa-ação, além de permitir a produção deste conhecimento localizado, permite a elaboração conjunta de estratégias para resolução e constituição de alternativas para problemas e/ou questões práticas que estão colocadas nas cidades, inserindo a pesquisa na tensão entre ação e pesquisa, local este privilegiado para a elaboração de pesquisas científicas.
85Além disso, este método possibilita a construção de uma comunicação entre pesquisador(a) e os sujeitos que compõem a pesquisa, colocando em evidência saberes subalternizados, estratégias de sobrevivência, experiências populares, alternativas de cidade, formas outras de pensar o planejamento urbano que há muito tempo podem estar estabelecidos na cidade, mas que são apagados pelo “planejamento formal” estipulado por normas e regras formais, institucionalizadas. A pesquisa-ação permite compreender políticas, dinâmicas e/ou processos sociais que acontecem no território, pois traz a experiência das pessoas que lidam com as consequências de determinada política ou decisão, evidenciando dinâmicas e processos sociais que são vividos pelos parceiros(as) de pesquisa nesses territórios.
86A busca por uma ação prática, o desenvolvimento de um objetivo de pesquisa e a forma de aplicação do método, como demonstrado, insere a pesquisa no lugar privilegiado da oscilação entre ação e pesquisa. Este lócus traz questões éticas não apenas da pesquisa, mas também da própria ação e os inúmeros tensionamentos no cotidiano e que partem da organização coletiva. Muitas vezes determinada ação elencada pelo coletivo não é atingida por brigas, tensões e conflitos inescapáveis, principalmente tendo em vista a urgência e emergência da situação, uma ameaça constante de remoção. Assim, a pesquisa é constantemente reorientada, seguindo outros caminhos para seu desenvolvimento, outras ações e sempre apresentando perspectivas que apenas são apreendidas a partir dos caminhos, muitas vezes tortuosos, da pesquisa-ação.
87 Assim, a aplicação da pesquisa-ação no campo do Planejamento Urbano e Territorial é alternativa metodológica que apresenta caminhos inusitados e pouco explorados das formas de fazer cidade e que, muitas vezes, não coincidem com as formas hegemônicas daquilo que se entende como planejamento, cidade e soluções para determinados problemas dos espaços urbanos. É estratégia capaz de apreender o não planejado, o que foge da ordem formal de urbanização e, assim, apresenta alternativas para se pensar o planejamento urbano (Roy, 2005).
88Este método possibilita uma resposta às transformações que passam as universidades brasileiras, permitindo um caminho para pesquisas de certa forma coletiva e que colocam a própria experiência ou do coletivo com quem se estuda em primeiro plano. Apresenta formas de vida que se constituem nos territórios, estratégias de sobrevivência e caminhos para solucionar problemas que estão colocados no contexto urbano e que as experiências populares são capazes de resolver – quando já não o fizeram. São sujeitos que burlam e jogam com as fronteiras incertas do planejado e não planejado, legal e ilegal, formal e informal, e que constituem suas vidas nessas idas e vindas, apresentando a forma que o planejamento urbano repercute nos territórios, possibilitando, muitas vezes, indicar seus limites (Telles, 2010). Portanto, a pesquisa-ação permite a elaboração de pesquisas neste campo a partir do posicionamento que coloca o próprio estudo e sua forma de desenvolvimento em questão, trazendo novas e outras formas de se pensar o Planejamento Urbano e Territorial.