Fotografia feita em 2002, que mostra uma parte da sala de estar da casa de meus avós, parte de um dos braços de meu avô, eu, e a cachorra de estimação Luli.
Arquivo pessoal.
1Esta sou eu, com 1 ano e 7 meses de vida. Ao meu lado direito, está Luli, cachorra de estimação de minha mãe, Luciana, na época. Do meu lado esquerdo, figura que só deixa aparecer o braço e a manga da camisa, está meu avô, a postos para me segurar caso eu tente “aprontar”. O cenário dessa foto, como de todas as outras presentes neste artigo, é a sala da casa de meus avós, Maria e Cladi, que também foi minha durante toda minha vida. Mais precisamente, todas as fotos aqui utilizadas foram tiradas nesse mesmo sofá, sempre postado nesse exato lugar, em anos dispersos e distintos.
- 1 Com “temáticos” me refiro ao fato de que a maioria dos álbuns, cada um contendo aproximadamente 20 (...)
2A figura desse pequeno sofá de dois lugares - que também era ocupado na região de seus “braços” - surgiu para mim enquanto passava os olhos pelas fotografias acumuladas durante anos por minha família, encontradas em pequenos álbuns guardados em um guarda-roupa sem uso. De 150 imagens que percorri o olhar, divididas em pequenos álbuns quase que “temáticos”1, o sofá aparecia em 28. Sempre lá, às vezes acompanhado por mim, às vezes por minha mãe, por meus avós, ou por todos nós juntos. Que coisa curiosa esse mobiliário me despertou e ainda me desperta.
- 2 Segundo Barthes, “O punctum de uma foto é esse acaso que, nela, me punge (mas também me mortifica, (...)
3Inspirada por Roland Barthes em A Câmara Clara (2018), de repente, esse sofá se transformara, através das fotografias, quase em um punctum2, sem chegar a ser exatamente isso. De fato, não é também um studium, passando longe de representar apenas um “afeto médio” (Barthes, 2018) que em mim se desperta. O sofá me chama a atenção, mas não me fere, e certamente não é um detalhe na foto. Talvez o que me puxe para sua direção seja sua repetição, quando pensada entre o conjunto de fotos da minha família. Poderia o punctum aparecer diante da relação entre imagens? Se sim, esse é o caso desse sofá, que me fere, não em um sentido de “dor”, mas de curiosidade. Visualizo esse mobiliário - no conjunto das fotografias - como um detalhe que me puxa para si, se transforma no alvo primordial de meu interesse; é como um estalo que me provoca e me abala. Voltando toda minha atenção para o sofá nas fotografias de minha família, o transformo em meu referente fotográfico, meu isso-foi (Barthes, 2018). Sei, para além das imagens, que ele esteve lá. Convivi com ele por 20 anos. Não nego sua presença, mas procuro aprimorá-la, buscando desvendar a importância de meu referente no contexto dos álbuns de minha família.
4Pensando que sua presença me atinge na relação que as imagens estabelecem entre si, quando postas como um conjunto, acho importante refletir sobre a própria noção do que esse conjunto representa, enquanto registro familiar. Para Susan Sontag, na modernidade “as câmeras acompanham a vida da família” (2004, p.19), possibilitando a construção do que chama de “crônica visual”, que nada mais é do que um conjunto de imagens que atestam a coesão daquela família (ibidem). Para a autora, pouquíssimo importa o que é fotografado - se é um aniversário ou um momento aleatório na sala de estar -, pois o foco das imagens é justamente sua realização, o click, e a estima delas posteriormente. Isso pode se relacionar com a temporalidade que os álbuns de família exprimem, que, segundo Eugênio Bucci, é afetiva e não, linear (2008, p.75).
5Para Bucci, essa temporalidade afetiva se assemelha ao tempo de um sonho, o que quer dizer que os limites temporais são borrados, confusos, onde tudo o que vemos no álbum de família é simultâneo - passado, presente e futuro - pois se mostra sempre como novidade. Com isso, são múltiplos os caminhos para pensar nessa sobreposição de tempos distintos quando se olha para fotografias de família.
6Fabiana Bruno (2014) também dá exemplos acerca do tempo contido em fotografias quando discute fotobiografia e as possibilidades de montagem das imagens, explorando os caminhos da memória e como eles afetam o modo de criar as tais crônicas visuais. Nesse caminho, levanto um questionamento que a autora faz: “Como se narra/conta sobre uma vida, a partir da escolha e montagem de fotografias colecionadas ao longo de uma existência? o que se narra? [...]” (Bruno, 2019, p.202).
7Para refletir sobre isso, proponho primeiro que pensemos acerca das propriedades da fotografia e a capacidade que elas têm de nos dizer o que está contido nelas e além. Para tal, utilizo algumas das ideias propostas por Etienne Samain em As peles da fotografia: fenômeno, memória/arquivo, desejo (2012). Segundo Samain, a imagem é um fenômeno, dado que, para existir, precisou passar por um processo que combina diversos aportes (p.157) – como a junção da câmera fotográfica e a lente, do manuseio desses equipamentos por uma pessoa que sabe utilizá-los, com um olhar calculado para enquadrar tal paisagem e assim formar a imagem. A partir disso, ela se torna lugar de um processo vivo, que engendra o pensamento. Logo, ela mesma é pensante e, com isso, puxa para si uma infinidade de significados possíveis do que pode conter.
8Nessa gama de significações possíveis, o espectador tem papel essencial. As fotografias “precisam de nós para que sejam desdobrados seus segredos” (Samain, 2012, p.160). Assim, a própria imagem nos conta seus segredos e nos ajuda a pensá-la ao lado de outras.
9Por isso, me dedico também a pensar na seleção e montagem do acervo de minha família, pensando naquilo que me toca - a figura do sofá, e a partir disso, pensar em qual narrativa é contada com base nesse objeto.
10Das 28 fotografias em que ele aparece - pensando nos arquivos de imagens feitas em filme 35mm e reveladas na época em que foram feitas - escolhi trazer aqui apenas nove. O motivo é de ordem afetiva, ao mesmo tempo em que visa privilegiar a própria imagem do sofá e sua interação com minha família e o espaço da casa. Não possuo imagens de planos mais abertos, dado que a sala não é tão espaçosa. Portanto, a maioria das fotografias tem planos mais fechados, focalizando as pessoas que posam para ela.
11A sequência não segue uma ordem cronológica, mas é feita de acordo com qual personagem da minha família aparece nelas. Em algumas imagens, consigo indicar a data em que foram feitas, de acordo com o que estava anotado nos álbuns em que as encontrei. Porém, como nem todos os álbuns têm essas anotações, algumas poucas datas terão de ser aproximativas.
12Escolho também acrescentar legendas descritivas, atribuidas por mim, e outras subjetivas, atribuídas por minha mãe, Luciana. A maior parte das imagens dos álbuns de minha família foram feitas por ela e, das que não foram, sua presença é tida enquanto protagonista. Por isso, acredito que, ao se tornar espectadora de seus próprios registros e de alguns fragmentos de sua existência, minha mãe pôde trazer novas camadas de sentidos a essas imagens. Esse argumento surge a partir da proposição de Eugênio Bucci sobre a temporalidade afetiva, já citada anteriormente no artigo.
13Segundo Bucci:
“Com sua temporalidade que se aproxima da temporalidade dos sonhos, em que passado e presente se articulam sem seguir cronologia alguma, o álbum de família convida o seu público particularíssimo – formado por seus próprios personagens – a uma apropriação afetiva do tempo. As imagens ali expostas, abertas, admitem múltiplas sequências narrativas; os fatos passados se expandem e se ligam entre si movidos pela carga afetiva do olhar que costura as associações possíveis” (2008, p.78)
14Desse modo, algumas fotografias serão acompanhadas de legendas que Luciana formulou, a pedido meu, enquanto olhava as imagens. A ideia é justamente observar como o álbum a convida para contar sobre o que ali está posto, e quais narrativas, certamente carregadas de afeto, surgem disso.
15Com isso, apresento as imagens, começando minha sequência por Maria e Cladi, meus avós:
Essa fotografia se relaciona diretamente com a imagem que abre este artigo, pois foram feitas no mesmo dia e cenário. Diferente da outra, porém, ela mostra meu avô em destaque, me segurando em seu colo.
2002.
Arquivo pessoal.
Fotografia feita entre 2001 e 2003, que registra meus avós, Cladi e Maria, sentados no sofá, de mãos dadas. Nas palavras de Luciana, essa foto contém: “Muita felicidade [...]. Companheirismo dos dois”
Arquivo pessoal.
Fotografias feitas entre 2001 e 2002, que retratam eu e meus avós no sofá de dois lugares, em momentos descontraídos.
Nas palavras de minha mãe: “Você (eu) fazendo gracinha para tirar foto, gostava de fazer poses e dava risada”.
Arquivo pessoal.
16Sigo com Luciana, minha mãe:
Fotografia feita entre 2004 e 2005, onde posamos eu e minha mãe, sentadas no sofá.
Arquivo pessoal.
Essa fotografia foi feita entre 2004 e 2005 que, em consonância com a imagem anterior, também traz minha mãe e eu posando no sofá.
Para Luciana, essa imagem mostra: “Umas das fases mais lindas que eu vivi ao seu lado”
Arquivo pessoal.
Fotografia feita em 2001, que registra Luciana durante o período de minha gestação.
Arquivo pessoal.
17Termino comigo:
Fotografia feita entre 2001 e 2002. De todas as selecionadas para essa análise, é a única imagem que traz um ângulo diferente da sala de estar e, portanto, do sofá de dois lugares. Nela, é possível ver eu, Luli, e o outro sofá, que só se diferenciava deste por ter três lugares em vez de dois.
Para minha mãe, a imagem traz: “A [minha] fase mais arteira, andava para todos os lados, escorando no sofá”
Arquivo pessoal.
18Em praticamente todas as fotos minha presença é marcada - seja com minha imagem “real” ou dentro da barriga de minha mãe. Associo isso ao argumento de Sontag já comentado de que as câmeras acompanham as famílias. As fotos sob as quais me debrucei foram feitas entre 1990 e 2006, período de meu crescimento (nasci em 2001), onde pareço ser a protagonista de um álbum de uma família constituída por mãe e pai - meus avós -, uma filha - minha mãe - e uma filha da filha, a neta - eu. Esse é o núcleo que venho chamando de família até aqui, que habitava a casa onde vivia o sofá.
19Sendo revivido pelas imagens, interligado à minha família, me lembro dos detalhes desse sofá. Feito de um tecido que não sei nomear, era repleto de costuras que formavam um padrão de estampas coloridas. A aparência se repetia em um conjunto de almofadas que o acompanhava. Em suas laterais frontais havia pequenos relevos de madeira, sempre polidos em dias de faxina por minha mãe. A madeira acumulava pó e me lembro de me divertir “ajudando” a limpar. Passados alguns anos, entre 2010 e 2020, o sofá ficou cada vez mais desgastado pela presença de companhias felinas em casa. Sempre tivemos muitos cachorros, mas quando foi a vez dos gatos, o sofá virou um arranhador especial. De modo geral, para os animais que passaram por nossa família, esse sofazinho era alvo primário, onde eram jogados brinquedos que sumiam debaixo dele enquanto não o levantávamos para retirar o que por ali se escondia.
20Por seus anos de uso, ao sentar-se nele era possível ouvir o barulho de um leve rangido da estrutura de madeira, também possível de sentir fisicamente, já que o estofado se desgastou com o passar dos anos. Depois de um tempo, era comum ver sempre um edredom que o cobria, para deixá-lo mais macio e mais suportável de sentar por algum tempo maior. O edredom ajudava também a não sentir tanto sua textura um pouco áspera. Além disso, alguns buracos foram se formando e aumentando em suas superfícies. Seus cantos, entre a região de se sentar e seu braço, eram sempre esconderijos de pacotes de bolacha e salgadinhos que, quando amassados, cabiam ali e permaneciam no esquecimento.
21Essa é uma descrição do sofá que sobrepõe tempos distintos. É claro que no período das fotos aqui trazidas, embora já tendo alguns anos de uso, ele ainda não aparentava tantos sinais de velhice. Os furos, rasgos, a estrutura que rangia e todas essas marcas do tempo são mais recentes em minha memória e no discurso de meus familiares, provavelmente datados a partir de 2012. Agora, em 2023, não saberia dizer as condições dele, dado que não sei exatamente qual foi seu fim. Só me lembro de perceber movimentações durante algumas semanas sobre a partida dele em julho de 2021, e de um dia receber a seguinte foto de minha mãe, que era mais para mostrar Bidu, meu gato, do que o sofá propriamente:
Fotografia feita em 2021, com intuito de mostrar Bidu, o gato de estimação, deitado no que antes foi a dupla de sofás da sala de estar de minha família, agora tombados na garagem.
Arquivo pessoal.
22Aqui sua história de vida, dentro de minha família, se encerra, depois de 30 anos. Tombado na garagem, junto de seu par - sofá maior, de três lugares, que ficava em outro canto da sala -, ele sai de seu lugar convencional e se mortifica apenas nas fotografias da família Oliveira.
23Sua mortificação ou congelamento nos álbuns de minha família não se dá de qualquer jeito. Através das imagens nota-se que ele nunca aparece apenas como uma mobília, um objeto qualquer. É claro, não deixa de ser um sofá, mas é justamente nessa obviedade que jaz sua essência nessas imagens. Por que sempre o mesmo sofá? É isso o que me intriga, como já disse. Sempre ele, sempre ocupado, como um fundo de fotografias clássicas de família, onde os membros fazem suas poses para serem eternizados. Lugar especial, de reunião familiar, onde a vida se efetiva, tal como pensa Tim Ingold, em Trazendo as coisas de volta à vida: Emaranhados criativos num mundo de materiais (2012).
24Trazer as coisas de volta à vida; penso se o sofá já teve uma vida. Se sim ou não, sabemos ao certo que, com certeza, ele perpassou vidas, e protagonizou cenas delas. Se a fotografia é acontecimento e não objeto (Bruno, 2014), esse sofá também o foi. Ele é uma coisa, tal como pontua Ingold (2012), onde “vários aconteceres se entrelaçam”. Os aconteceres são justamente os gestos, cuidados, sorrisos, brincadeiras, olhares e poses que minha família realiza diante da objetiva. É vida que se vive a partir desse sofá.
25Trago isso pautada na fala mais marcante de minha mãe, acerca do sofá nas fotos. Segundo ela, ele aparece em tantas fotos pois “era o lugar da casa em que mais ficávamos". Só ficávamos aí”. A casa era habitada em sua maior expressão no sofá, basicamente. A partir das fotos, temos ele como centro das nossas interações, como um próprio agregado de fios vitais (Ingold, 2012), mais simbólicos e afetivos do que materiais propriamente.
26Mergulhando no mar que são as fotografias, e em especial nas de família - as de minha família - descobri um tesouro especial, tão simples e nada chamativo, mas que me cativou e me chamou, e me fez passear na existência de minha família a partir de uma coisa que esboça, através das fotografias, a vida de minha família. De forma mais clara, encontrei no sofá uma das inúmeras maneiras de contar a trajetória de minha família - ou, melhor, do álbum de fotos de minha família. Inspirada por Sylvia Caiuby Novaes, penso que essas fotografias de família, protagonizadas também pelo sofá, possibilitaram a criação de uma poética visual, “que traz em si mesma sua verdade” (2015, p.18), a partir da montagem das imagens aqui realizada. Essa poética visual, por sua vez, me permitiu pensar e descrever uma narrativa de minha família.
27Minha história não pode se dissociar de minha casa, de meus avós, de minha mãe, e do sofá de dois lugares. Assim como a história de nenhum dos meus familiares registrados nas imagens pode ser contada, nesse recorte temporal heterogêneo, sem esses mesmos elementos. A coesão de minha família é contada a partir do sofá, onde ficávamos o tempo todo, marcados pela nossa unidade afetiva. E essa coesão, por sua vez, é dada a partir de nosso álbum de família, formado por um emaranhado entre lembranças do passado, vivências do presente e imaginações do futuro.