1 Desde a Revolução Industrial nos séculos XVIII e XIX e a consequente formação de aglomerações urbanas, passou-se a demandar dos antropólogos culturais (ou sociais) uma nova atenção. A premissa elementar era de que novos modos de vida foram criados com o advento urbano-industrial, cabendo aos antropólogos descrevê-los, aponta Hutzler (1976, p. 163) ao afirmar que a urbanização é um fenômeno mundial e que “uma ciência que pretende ser o estudo global do homem e de suas obras não pode desprezar a análise das cidades”.
2 O espaço urbano consolidou-se como um rico objeto de estudo para os pesquisadores culturais, moldando uma nova área de estudos, de rápida expansão ao longo do século XX, compreendida como Antropologia Urbana. Esta sub-área da Antropologia e da Sociologia possui intensa aproximação com fatores espaciais desde os seus precursores, a exemplo do alemão George Simmel, o qual conforme Frúgoli Jr. (2007, p.17) possibilitou “uma nova geografia social e cultural dos lugares ao abordar temas ali implícitos, como a construção de fronteiras e as relações entre grupos de distintas origens étnicas, ou entre fixação e movimento espacial". Posteriormente, as noções de sociabilidade de Simmel seriam testadas empiricamente nas grandes cidades, a partir da conhecida Escola de Chicago, que comumente associava características morais de agrupamentos ou seus indivíduos com o seu espaço vivido.
Um de seus principais fundadores, Robert Park (1864-1944), que passou um período como aluno de Simmel na Alemanha, propunha uma reflexão sobre a cidade a partir de duas dimensões constitutivas: uma organização física e uma ordem moral, com a nítida preocupação, portanto, de circunscrever espacialidades ou territorialidades específicas onde tais relações teriam lugar. (FRÚGOLI JR., 2007, p.17-18)
3 Segundo Coulon (1995), o empirismo da Sociologia e da Antropologia de Chicago era próximo de um jornalismo investigativo. Dentre os objetos de análise mais comuns para seus pesquisadores, o referido autor lembra da migração maciça que Chicago experimentava à época, contrapondo relações étnicas, a condição de vida operária dos trabalhadores das fábricas e, principalmente, a criminalidade que envolvia a formação de gangues, a delinquência juvenil e o crime organizado. Metodologicamente, a pesquisa qualitativa se fazia presente com fontes documentais e trabalhos de campo - a etnografia, opondo-se ao positivismo observado na Antropologia Quantitativa do período das Guerras Mundiais.
4 Sequencialmente, pesquisadores com heranças da Escola de Chicago continuaram a externalizar questões sobre o comportamento humano e o espaço. Ressalta-se o nome de Erving Goffman, o “sociólogo do espaço”, assim definido por Frehse (2008). A obra goffmaniana, subsidiada pela tradição etnográfica e ecológica de Chicago, apresenta seis dimensões sincrônicas do espaço físico, aponta Frehse (2008, p.162), compreendidas como espaços interacionais e sociais.
(...) a própria visão que o estudioso apresenta sobre as interações sociais tem forte aporte espacial. Mesmo a mais singela “apresentação do self na vida cotidiana” acarreta necessariamente, no espaço-tempo restrito das situações, que os indivíduos se localizem e localizem interacional e socialmente aqueles que com eles interagem. Interagir é invariavelmente colocar lugares sociais em xeque: os lugares ocupados na interação e na estrutura social (...). (FREHSE, 2008, p.162)
5 Assim, a preocupação inerente ao espaço desde as origens conceituais da Antropologia Urbana aproxima-se em algum grau da Geografia Humana (onde encontram-se, dentre outras vertentes, a Geografia Urbana e a Geografia Cultural). Reside neste escopo teórico uma das aproximações mais evidentes entre essas duas áreas do conhecimento, tendo em vista que o cômpito dos saberes antropológicos e geográficos contribuiu com grande parte do entendimento que se tem do espaço urbano, seja do processo de urbanização, da dicotomia urbano-rural ou das expressões físicas e sociais - a própria edificação das cidades e a circulação/interação entre os sujeitos citadinos.
6 A interface entre a Antropologia e a Geografia pode ser vista também em duas frentes principais, ambas fruto do holismo, menciona Hoefle (2007). Na contemporaneidade, um dos debates de maior atração entre estas duas áreas está na Ecologia Política, onde cultura e ambiente são os termos centrais. Nesta perspectiva, são articuladas questões ambientalistas (da degradação do ambiente e dos recursos naturais), neomarxistas (do capitalismo global como atenuante das desigualdades sociais) e pós-modernistas (da marginalização política e cultural de grupos específicos). Esta junção, apresenta Hoefle (2007, p. 23), compreende problemas de degradação ambiental e de desigualdade social no mesmo campo teórico, fruto da disputa por controle de recursos.
7 O outro laço comunicativo entre a Antropologia e a Geografia pode ser visto na fundamentação epistemológica de trabalhos que evocam o conceito de cultura, por vezes abordada valendo-se de segmentos filosóficos tais quais o existencialismo e a fenomenologia, alternativas ao determinismo e ao racionalismo observado durante o século XX. Desta forma, afirma Hoefle (2007, p. 21), a cultura é um conceito base com “um sentido cognitivo, de visão do mundo”. Este entendimento foi compartilhado por antropólogos e geógrafos, de maneira que houve uma retroalimentação entre as áreas. Se por um lado a Geografia se aproximou de perspectivas até então antropológicas, como o espaço sagrado/profano, o espaço da corporalidade e do sexo, o espaço doméstico e as dimensões do lar, a Antropologia logrou se preocupar também com processos macro e microespaciais, elaborando até mesmo categorias de análise de cunho espacial.
- 1 Headbanger é a forma mais usual de referir-se ao adepto do gênero musical Heavy Metal, seja músico, (...)
- 2 Rappers são aqueles que fazem Rap (poesia e rima) na cultura Hip-Hop. No universo Hip-Hop, o Rap fo (...)
8 Dentre os frutos dos desdobramentos da rica complementaridade entre essas duas ciências, têm-se as tipologias espaciais propostas pelo antropólogo Magnani, chamadas pedaço, mancha, trajeto, pórtico e circuito. O presente artigo objetiva apresentar como essas categorias podem ser empregadas cartograficamente em estudos sobre a configuração geográfica-espacial de grupos urbanos. Para tal, foram selecionadas duas dissertações de Geografia Cultural que manusearam os conceitos metodologicamente em vistas de mapear os territórios de duas cenas musicais expressas na cidade de Belo Horizonte. Trata-se do trabalho de Calaça (2021) sobre a cena headbanger1- aqui com ênfase na década de 1990 - e a pesquisa de Silva (2021) sobre os rappers2 da cena Hip-Hop belo-horizontina entre os anos de 2010 e 2019. Para o entendimento do conceito geográfico de território assumiu-se as acepções de Souza (1995) e Haesbaert (2007).
9 Estima-se que realizando uma abordagem comparativa dos estudos acima, à luz das categorias de Magnani, seja possível contribuir com um escopo teórico-metodológico da Antropologia Urbana intercalada com a Geografia, tendo como fio condutor a cartografia do underground. Entende-se por underground as manifestações culturais que fogem às normatizações impostas pelo capital, possuindo pouca ou nenhuma aceitabilidade da mídia de massa, operando, assim, no “subterrâneo” citadino (CALAÇA, 2023, p. 24). O texto estrutura-se em: apresentação das tipologias socioespaciais propostas por Magnani; sínteses das pesquisas e proposta de um quadro metodológico para emprego cartográfico das tipologias; considerações finais e referências.
10 Ao pensarmos nos espaços de confraternização de grupos culturais urbanos é necessário que seja considerada a vivência de seus constituintes sobreposta à estrutura física da cidade, muitas vezes corroborando dialeticamente com a produção do espaço. Tal perspectiva ancora-se na necessidade de interpretar a cidade para além dos “resultados de forças econômicas transnacionais, das elites locais, de lobbies políticos, variáveis demográficas, interesse imobiliário e outros fatores de ordem macro”, assumindo-a como espaço de “ações, atividades, pontos de encontro, redes de sociabilidade” (MAGNANI, 2002, p.14). Do mesmo modo, o caminho para o estudo dos habitantes da urbe não residiria na perspectiva particularista, baseada nas escolhas individuais, mas em planos intermediários que permitem a identificação de padrões (MAGNANI, 2002, p.20).
- 3 José Guilherme Cantor Magnani possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Par (...)
11 Assumindo a premissa acima, entende-se que cada local escolhido, apropriado e territorializado por grupos urbanos cumpre funções específicas em uma complexa rede de relações, passíveis de serem identificadas. Um avanço teórico significativo na categorização e funcionalidade destes locais foi apresentado por Magnani3 (1998; 1999; 2002; 2008) na formulação das tipologias de pedaço, mancha, trajeto, pórtico e circuito, as quais ele denomina como “família terminológica” (MAGNANI, 2002, p.20).
12 A principal área de atuação do referido professor e pesquisador foi construída sobre a sociabilidade e as práticas culturais no contexto do espaço urbano, aplicadas a diversas “tribus urbanas”. A grande originalidade dos ensaios do referido professor e pesquisador para a presente pesquisa está na possibilidade de empregar suas terminologias no mapeamento de grupos culturais expressos nas cidades, mesmo que isso escape ao seu preâmbulo, pois “constituem uma espécie de modelo, capaz de ser aplicado a contextos distintos daquele em que foram inicialmente identificados” (MAGNANI, 2002, p.20).
13 A primeira categoria apresentada denomina-se pedaço. Guardadas as dimensões escalares, o pedaço assemelha-se com a afetividade enraizada na noção de lugar geográfico, assegurando um forte laço comunicativo entre as disciplinas.
O termo na realidade designa aquele espaço intermediário entre o privado (a casa) e o público, onde se desenvolve uma sociabilidade básica, mais ampla que a fundada nos laços familiares, porém mais densa, significativa e estável que as relações formais e individualizadas impostas pela sociedade. (MAGNANI, 1998, p.116)
14 Este pedaço constitui-se, conforme o autor, de dois elementos básicos: o componente de ordem espacial e o que corresponde a uma determinada rede de relações sociais. A característica espacial refere-se à delimitação de uma área onde prevalece uma identidade em comum dos sujeitos ali envolvidos. Por conseguinte, fazer parte de uma rede significa cumprir com deveres básicos e normas de convívio, elementos-chave da territorialidade de um grupo. Quando o sujeito é leal a uma rede ela também o protege de outros pedaços, pois o contato com o “estranho” ou o “de fora do pedaço” pode acirrar relações, causando conflitos. Quando o indivíduo está entre iguais, em espaços devidamente demarcados e designados para distinguir determinado grupo, temos o pedaço próximo de um contexto territorial. A opção por ir a um local desses não acontece apenas para usufruir de um equipamento, pois é notório o intento de encontrar-se com seu semelhante, exercitar-se no uso de códigos comuns e apreciar os símbolos escolhidos para marcar as diferenças (MAGNANI, 2008, p.40).
15 Contudo, a apropriação espacial que determinados grupos fazem de equipamentos e estruturas da cidade não se restringem ao próprio pedaço. Neste aspecto, são propostas novas categorias para identificar a congruência de diversos grupos para um mesmo local, assim como o fluxo proveniente dos deslocamentos de um ponto para o outro, como visto em Magnani (2008) ao descrever a mancha e o trajeto. A mancha diz respeito a
(...) Lugares que funcionam como ponto de referência para um número diversificado de frequentadores. Sua base física é mais ampla, permitindo a circulação de gente oriunda de várias procedências. São áreas contíguas do espaço urbano dotadas de equipamentos que marcam seus limites e viabilizam – cada qual com sua especificidade, competindo ou completando – uma atividade ou prática predominante. (MAGNANI, 2008, p.41)
16 Ao citar o exemplo de uma mancha do lazer podemos falar de equipamentos como bares, restaurantes, cinemas, dentre outros, que constituem pontos de referência para a realização de determinadas atividades de entretenimento. Estes equipamentos são de uso acessível a um amplo público oriundo de toda parte, garantindo uma relação menos intensa no imaginário de seus integrantes, marcados muitas vezes pelo anonimato, o que difere a mancha de pedaço.
17 Entretanto, a cidade não é formada por manchas e pedaços isolados e excludentes entre si, havendo uma comunicação entre estes espaços propiciada pela circulação dos seus agentes. Emerge então um novo conceito, o trajeto, que perpassa o pedaço e a mancha. Trata-se de uma terminologia que se difere das demais por não ter um ponto fixo no espaço, portanto, não remete a um processo territorializador, pois “aplica-se a fluxos no espaço mais abrangente da cidade” (MAGNANI, 2008, p. 43). O antropólogo propõe dois usos da categoria, seja “na paisagem mais ampla e diversificada da cidade” onde “trajetos ligam pontos, manchas, circuitos, complementares ou alternativos” ou “no interior das manchas, nelas, são de curta extensão, na escala do andar”.
18 No deslocamento entre espaços, o traçado do trajeto não é definido de maneira aleatória. Estima-se que seu agente escolha passar por determinado local em detrimento de outro de acordo com alguma lógica, como por exemplo evitar o encontro com grupos rivais. Pode assim remeter tanto a uma possibilidade de escolha dentro da malha urbana por alguma vantagem locacional, ou simplesmente como forma de conectar manchas e/ou pedaços entre si e com outros pontos do espaço urbano, submetidos a outras normas de convívio.
(...) A ideia de trajeto permite pensar tanto uma possibilidade de escolhas no interior das manchas como a abertura dessas manchas e pedaços em direção a outros pontos no espaço urbano e, por consequência, a outras lógicas. Sem essa abertura corre-se o risco de cair numa perspectiva reificadora (...). É a noção de trajeto que abre o pedaço para fora, para o âmbito do público. (MAGNANI, 2002, p. 23)
19 Há ainda os pórticos, locais de passagem que são neutros entre pedaços e manchas, marcos vazios na paisagem urbana que não “pertencem” a nenhum grupo.
Os trajetos levam de um ponto a outro por meio dos pórticos. (..) Lugares que já não pertencem à mancha de cá, mas ainda não se situam na de lá; escapam aos sistemas de classificação de uma e outra e, como tal, apresentam a “maldição dos vazios fronteiriços”. Terra de ninguém (...). (MAGNANI, 2002, p.23)
20 Até aqui foram descritas as partes, cabendo uma definição do que seria o todo, o conjunto destes territórios urbanos e suas conexões. Tem-se então o circuito, espécie de categoria matriz das demais propostas por Magnani, apta a “dar conta de um regime de trocas e encontros no contexto mais amplo e diversificado da cidade (e até para fora dela)”, e que “pode englobar pedaços e trajetos particularizados” (MAGNANI, 2002, p. 25). Destaca-se sua função:
(...) une estabelecimentos, espaços e equipamentos caracterizados pelo exercício de determinada prática ou oferta de determinado serviço, porém não são contíguos na paisagem urbana, sendo reconhecidos em sua totalidade apenas pelos usuários. (MAGNANI, 2008, p.45)
21Tem-se como exemplo de circuito o circuito LGBT+, o circuito dos cines de arte, o circuito de dança, dentre tantos outros. Sua identificação é atrelada à vivência dos seus agentes, que reconhecem a totalidade (ou maioria) destes locais independentes da sua institucionalização. Cabe frisar que “o circuito comporta vários níveis de abrangência e a delimitação de seu contorno depende das perguntas colocadas pelo pesquisador” (MAGNANI, 2002, p.24), ou seja, seu entendimento varia conforme a escala e o nível de detalhamento adotado na investigação.
22 Entende-se, após toda esta explanação teórica, que o circuito aplicado aos agrupamentos urbanos seja a materialização espacial dos seus locais de convívio, passíveis de serem identificados, delimitados e mapeados. Buscando fazer este exercício cartográfico são apresentados adiante dois mapeamentos de grupos musicais na cidade de Belo Horizonte, que valeram-se das terminologias aqui anunciadas.
23 Com a intenção de ilustrar a aplicabilidade da transmutação da família terminológica de Magnani para a cartografia de grupos urbanos postulam-se duas dissertações: Calaça (2021) e Silva (2021), ambas defendidas no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Geografia - Tratamento da Informação Espacial da PUC Minas, pertencentes à linha de pesquisa “Estudos Urbanos e Regionais” e integrantes do campo da Geografia Cultural, mais especificamente, da Geografia da Música. As duas pesquisas são alicerçadas pela fenomenologia e manuseiam o conceito de cena musical, definido sinteticamente por Straw (2006, p. 7) como “específicos espaços geográficos para a articulação de múltiplas práticas musicais”. Sobre a etimologia acadêmica do termo, cabe lembrar que provém de um momento de crítica aos estudos do CCCS (Centre for Contemporary Cultural Studies), sobretudo na oposição de antropólogos ao conceito essencialista de sub-cultura, até então entendida sob o determinismo da classe, gênero e raça. As cenas, por outro lado, seriam mais fluidas.
24 Pontua-se que os universos headbanger e rapper de Belo Horizonte já subsidiaram outras pesquisas, porém sem focalizar especificamente em um mapeamento de seus respectivos territórios. Citando somente alguns trabalhos, primeiramente do Metal, há pesquisas como Avelar (2004), Andrada (2013), Coelho (2014; 2020), Monteiro (2015), Rodrigues (2018), além do documentário “Ruído das Minas” (2009). No âmbito do Rap mencionam-se Dayrell (2001; 2005), Faria (2003), Andrade Jr. (2013), Marques (2013), Nardini (2018) e o documentário “O som que vem das ruas” (2020). Estas pesquisas apresentam uma ecleticidade de perspectivas para tratar aspectos das cenas musicais, sendo oriundas de diferentes vertentes das Ciências Humanas. Sobre culturas marginais em uma escala que supera Belo Horizonte, sugere-se o livro “Vozes à margem: periferias, estética e política” (BERTELLI; FELTRAN, 2017).
25 Metodologicamente, Calaça e Silva valeram-se de entrevistas semiestruturadas e de pesquisas documentais com membros do underground belo-horizontino, respectivamente, músicos da cena Heavy Metal e da cena rapper, para compreender formas e processos da territorialização destes dois grupos urbanos na capital mineira. Os resultados foram orientados por cartogramas que representam os espaços de congregação das cenas, seccionados conforme as terminologias de pedaço, mancha, trajeto, circuito e, por extensão, pórtico. Nas pesquisas o circuito é proposto como a totalidade das demais categorias, sendo uma síntese espacial das cenas.
26 As dissertações mencionadas lograram êxito ao fazerem um exercício escalar, evidenciando processos macro e micro socioespaciais. Macro tendo em vista a dispersão musical, já que tanto o Heavy Metal quanto o Rap são gêneros musicais provenientes da diáspora africana: o Heavy Metal deriva sonoramente do Blues Rock, posteriormente ressignificado pelos britânicos, enquanto o Rap surge em guetos estadunidenses, ambos chegando ao Brasil por intercâmbios culturais facilitados pela importação de discos e fitas. Além disso, há a comunicação dessas cenas com outras do mesmo segmento, operando para além da esfera local, a exemplo do que é observado na análise de Tironi (2010) ao falar de espaços “gelificáveis” da cena de música experimental de Santiago. No caráter micro socioespacial porque esses gêneros musicais são capazes de criar movimentos locais, aproximando pessoas de preferências sonoras correlatas e destacando formas e processos da própria produção do espaço urbano. Adiante, os mapas de circuito de cada trabalho.
27 Sobre o início das cenas analisadas, cabe frisar que o Heavy Metal belo-horizontino passa a existir em 1982, ano de fundação da primeira banda da cidade, o Sagrado Inferno (do bairro Sagrada Família), posteriormente acompanhada de várias outras bandas, algumas que obtiveram sucesso internacional, como o Sepultura (do Santa Tereza) e o Sarcófago (do Caiçara/Centro). Essas e as demais bandas, originadas sobretudo em bairros pericentrais, possuíam como principal marco espacial a loja Cogumelo, posteriormente elevada à condição de selo musical. Já o Rap local remonta a manifestações da cultura negra de Belo Horizonte do final dos anos 1990, como os bailes de Soul Music, tornando-se um movimento mais autônomo a partir dos anos 2000.
Mapa 1: Circuito das Bandas de Heavy Metal de Belo Horizonte dos anos 1990
Fonte: CALAÇA, 2021.
Mapa 2: Circuito da cena Hip-Hop Belo-Horizontina (2010-2019s)
Fonte: SILVA, 2021. Adaptado pelos autores, 2022.
28Nos pedaços do Heavy Metal dos anos 1990, de acordo com Calaça (2021), fazendo ainda um balanço da pesquisa de Calaça, Nascimento e Diniz (2018) sobre a mesma cena nos anos 1980, nota-se uma nova configuração espacial, com as bandas rompendo a disposição pericentral dos anos 1980, chegando a bairros mais distantes do perímetro central. Embora o Heavy Metal belo-horizontino não seja tão habitual nas periferias urbanas, os anos 1990 foram importantes para a dispersão citadina do gênero. O exemplo mais evidente deste movimento é a banda Pathologic Noise, oriunda do Vale do Jatobá - Barreiro. Outra marca importante dos pedaços do Heavy Metal neste período diz respeito à origem dos músicos: enquanto nos anos 1980 os headbangers eram de um mesmo contexto espacial, seja enquanto amigos de escola, chegados do bairro ou até da mesma família, nos anos 1990 surgem bandas com seus membros vindos de diferentes localidades, sendo o pedaço do grupo o respectivo local de seus ensaios, como era o caso das bandas Drowned (no Salgado Filho) e Eminence (no Coração Eucarístico). Ainda assim, havia bandas formadas a partir de uma mesma circulação dos seus membros, como o Eternal Fall (Bom Jesus/Santo André), e bandas marcadas por uma multiterritorialidade em sua gênese, como o Lustful. De modo geral, a maioria dos integrantes destas bandas foram iniciados na cena a partir de locais já consagrados em seu construto, como bares, lojas e casas de shows.
29 No caso do Rap nos anos 2010-19 nota-se um movimento inverso: enquanto as bandas de Metal surgiam no pericentro e se espraiaram para as periferias, os rappers são da periferia e congregam-se no pericentro e centro da cidade. Assim, tem-se os pedaços do Rap próximos da noção de quebrada, pois são os locais de iniciação musical de jovens pobres, o que muitas vezes funciona como alternativa ao crime, à violência e à falta de assistencialismo político. Assume-se a quebrada como conceito (MALVASI, 2012), designando a dimensão territorial, simbólica e existencial de jovens periféricos. Alguns exemplos de artistas dessas áreas são Neghaum (do Ribeiro de Abreu), Flávio Renegado (Alto Veras Cruz), Vinicin (Santana do Cafezal) e Colombiana MC (Cabana do Pai Tomás). Os primeiros encontros desses MC’s com o Rap aconteceram ora por intermédio de outros gêneros musicais de origem negra, como o pagode, samba, reggae e funk, ora por inserção na própria cultura Hip-Hop (grafite e break dance). Era comum que a iniciação acontecesse também na casa de amigos, por meio de rádios comunitárias ou piratas, e que os primeiros shows ou ensaios ocorressem no próprio bairro/comunidade. Silva (2021) adicionou também aos pedaços no seu mapeamento do Rap os locais das batalhas de rima, devido à prática de códigos em comum que se tem nelas (aprendizagem de signos, exercício de irmandade/camaradagem e pertencimento grupal). Tais batalhas, normalmente ocorridas nas periferias, são verdadeiros territórios fluidos, de ocupação periódica, marcadas pela prática do Rap de improviso, convertendo o palco em ringue, onde o combate traduz uma encenação de prováveis conflitos reais (TEPERMAN, 2011, p. 18).
30 Nas manchas, ambas as cenas apresentam o uso de diversos equipamentos, maciçamente no centro da cidade. Tratando do Metal, as manchas mais importantes são os locais de shows, lojas de discos/acessórios, bares e locais públicos. Os locais de shows são o contato mais direto entre os músicos e os seguidores da banda. Belo Horizonte tinha uma forte tradição de locais voltados para essa prática underground em 1990, assimilando shows de Metal em casas como o Butecário, Trash, Caverna (posteriormente Matriz Casa Cultural), Lapa Multishow, Hippodromo (posteriormente Music Hall), DCE da Universidade Católica, dentre outros. Uma prática importante na promoção desses eventos era a divulgação via cartazes, colados em postes e equipamentos com habitual circulação dos headbangers. Os bares com presença headbanger eram localizados principalmente no eixo centro-centro/sul, com destaque para a área boêmia da Savassi (Blue e Pop Pastel). Uma exceção importante era o Soft Pastel, localizado no Cidade Nova. Esses equipamentos recebiam um público diverso, rapidamente ocupados e territorializados pelos adeptos do Metal, por vezes a partir de conflitos com Punks e Playboys. Dentre as lojas, destacam-se as duas centralidades da cena: a Cogumelo, loja responsável por gravar as primeiras bandas da cidade, e a Galeria da Praça Sete, reduto de várias lojas de interesse para os headbangers. Esses dois locais exerciam uma importância medular na cena, pois a partir deles eram combinados encontros nos bares e idas aos shows. Dentre os locais públicos destacam-se a Praça Sete de Setembro devido à atratividade da Galeria, as Praças da Liberdade e da Savassi por causa do dinamismo propiciado pelos bares no eixo centro-centro/sul, além de dois cemitérios da cidade que auxiliam na identidade visual de algumas bandas.
31 Por sua vez, as manchas do Rap dividem-se especialmente em locais de shows, lojas, centros culturais e locais públicos. Os locais de shows remontam ao Centro da cidade, marcados por uma sazonalidade territorial, normalmente ocorridos em parques, praças, quadras e pistas de skate. Posteriormente, conforme os rappers recebem alguma notoriedade fonográfica, os shows migram para eventos fechados em casas como o Matriz, A Autêntica, Suricato, Growers e Mix House. Aproximadamente metade dos 31 locais de shows de Rap catalogados por Silva (2021) receberam, em algum momento, shows de Heavy Metal. Dentre os locais de shows em espaço público, menciona-se o território mais emblemático da cena rapper, o Viaduto Santa Tereza, local que abriga ainda o nacionalmente conhecido Duelo de MC’s. Dentre as lojas, há a congruência das cenas na Galeria da Praça Sete: enquanto headbangers preferem o segundo andar da Galeria, rappers e demais membros da streetwear encontram-se no primeiro pavimento. Outra similaridade é que a loja precursora do Rap em Belo Horizonte chamada Black & White, já extinta, também gravou artistas da cena local. Listam-se também lojas especializadas para a cultura Hip-Hop, como a Real Grapixo (grafite e pixação) e a For DJ (ofertando aparelhagem técnica para DJ’s e MC’s). Já os centros culturais são de espacialização dispersa na cidade, sendo que dos 17 existentes, dez foram mencionados nas entrevistas, com ênfase para o Centro Cultural do Padre Eustáquio. Em muitos casos localizam-se nas quebradas dos MC’s, servindo como palco das suas primeiras apresentações, dada em meio a uma posição geográfica descentralizada. Acrescentam-se ainda os espaços culturais de origem comunitária, criados por mobilizações sociais, comumente acolhendo eventos rappers. Outros espaços públicos relevantes para a cena são o Terminal JK e a Praça da Estação, extensões do Matriz e do Viaduto Santa Tereza.
32 Dentre as sobreposições territoriais das manchas do Heavy Metal com o Rap pode-se mencionar como exemplo os locais apontados na figura 1. Na parte superior há o Cemitério do Bonfim, lugar escolhido pela banda Sarcófago para ser a capa do renomado álbum I.N.R.I. (1987)4, posteriormente dando luz à releitura da arte pelo rapper Fabrício FBC em seu álbum S.C.A. (2018)5, adotando a mesma paisagem lúgubre na foto e a mesma fonte textual no título do CD. Na parte inferior está o Viaduto Santa Tereza, pilar de múltiplas batalhas de rima e shows de Rap e que por vezes abriga também apresentações de Heavy Metal. Tem-se, portanto, a comunicação das cenas, as quais muitas vezes valorizam e dotam de simbolismo os mesmos espaços do underground.
33 Fazendo a comunicação dos espaços supracitados há os trajetos. Na esfera headbanger, foram identificadas duas modalidades dessa categoria. A primeira opera conforme o modo mais habitual da interpretação do trajeto, fazendo o ligamento entre pedaços e manchas. O trajeto mais costumeiro nos anos 1990 dizia respeito ao percurso que envolvia a Galeria e a Cogumelo dirigindo-se aos bares da Savassi. Além disso, vias importantes da cidade firmaram-se como expoentes da propagação do Metal, formando pequenos núcleos ou microcenas em outras regiões da cidade, como a Av. Olinto Meireles no Barreiro e a Av. Amazonas, dirigindo-se para o município de Contagem. A segunda modalidade de trajeto são corredores de flyers/cartazes de shows, áreas contíguas com presença de artefatos colados por headbangers para divulgarem suas respectivas apresentações. Os locais de colagem eram escolhidos sistematicamente, dando preferência para as ruas com circulação maciça de fãs, dada a presença de lojas ou casas de shows.
34 Dentre os rappers, com a pendularidade da periferia dos pedaços para as manchas no Centro, não foram identificados trajetos em uma dimensão cartesiana que fossem comuns para os membros da cena, sendo usual somente a prática de seus adeptos se trombarem (encontrarem) em um ponto previamente combinado e irem juntos para os duelos do Hipercentro, principalmente no Viaduto Santa Tereza. Eram evitados caminhos com forte presença de policiamento e a adoção do transporte público era corriqueira, com a prática dos pulões. De modo geral, as duas cenas são repletas de pórticos nesses deslocamentos.
Figura 1: Aproximações territoriais entre as cenas Heavy Metal e Rap de Belo Horizonte
Fonte: GOOGLE EARTH, 2022. Elaboração: os autores, 2022.
35
36Servindo como uma síntese das demais categorias, o circuito pode ser tratado como a materialização espacial das cenas analisadas. Os mapas 01 e 02 traduzem os resultados encontrados nas duas pesquisas, fazendo um resumo dos territórios de cada gênero musical. Visualizar um mapa de circuito cultural possibilita uma noção do todo, permitindo identificar padrões espaciais. No Heavy Metal local, nota-se uma cena central e pericentral expandindo-se timidamente para a periferia, enquanto no Rap observa-se o caminho inverso, de origem nas periferias e implosão-explosão no centro. Portanto, gêneros musicais distintos podem, na mesma cidade, originar territórios igualmente distintos, embora em alguns casos ocorram sobreposições. Dentre as manchas vistas nos mapas de circuito e não analisadas separadamente nos parágrafos anteriores, há, no Metal, bairros de vivência (manchas que superam o logradouro de um equipamento), estúdios (poucos deles voltados exclusivamente para o Heavy Metal) e lojas de instrumentos (manchas que dizem respeito apenas aos músicos). No Rap, adicionam-se os itinerários de festas e eventos promovidos por diversas iniciativas, dentre elas coletivos, organizando apresentações tais quais a BHZ Periferia, Semana Hip-Hop, Palco Hip-Hop, Cidade Hip-Hop, dentre outras. Há também a identificação de escolas e igrejas que receberam os rappers em alguma festividade cultural, locais esses que marcam os primeiros passos na carreira musical de muitos artistas.
37 Embora a caracterização das cenas tenha se dado de maneira extremamente resumida, pois não envolve toda a complexidade e descrição densa das dissertações de Calaça (2021) e Silva (2021), esta explanação permitiu demonstrar o uso das categorias antropológicas e espaciais de Magnani em cartografias do underground. Estima-se que uma metodologia similar àquela empregada por Calaça (2021) e Silva (2021) possa ser reverberada no mapeamento de outros grupos culturais urbanos, inclusive para além das cenas musicais. O universo é amplo e ainda pouco cartografado por antropólogos e geógrafos em escala intraurbana: skatistas, vendedores ambulantes, flanelinhas, hippies, traficantes, garotas e garotos de programa, missionários, dentre outros.
38 Como um caminho cartográfico alternativo para as pesquisas do porvir, sugere-se o quadro abaixo, que intercala a família terminológica de Magnani com a experiência obtida da comparação das cenas discutidas acima. Nos modos de implantação pode-se usar diferentes variáveis visuais, mas sugere-se preferencialmente a mescla de formas e cores para o tratamento de informações associativas e seletivas.
Quadro 1: Proposta Metodológica para mapeamento de grupos culturais urbanos a partir das categorias espaciais de Magnani
Fonte: MAGNANI (1998; 1999; 2002; 2008). Elaboração: os autores, 2022.
Categorias
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Modos de Implantação cartográfica
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Características
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Pedaço
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Zonal
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Representa a área de maior afetividade do grupo analisado ou a área que marca a gênese da união do grupo. Nessa dimensão pode-se considerar um ou mais quarteirões ou um bairro/vila da cidade. Por extensão há a sua antítese, que pode representar áreas controladas por grupos rivais e/ou que emanam sentimentos topofóbicos - o antipedaço.
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Mancha
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Pontual e, às vezes, zonal
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Pode ser representada pontualmente no caso de equipamentos (logradouro) ou de forma zonal no caso de áreas de congruência de grupos de diferentes localidades (quarteirões ou bairros/vilas). O mesmo vale para locais evitados - a antimancha.
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Trajeto
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Linear
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São os caminhos intraurbanos realizados na condição de membro do grupo. Trajetos na escala do andar traduzem as vias percorridas (becos, ruas, avenidas...), assim como nos trajetos de longa distância, os quais podem ser representados ainda por itinerários do transporte público que propiciam a ligação de manchas e pedaços.
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Pórtico
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O “vazio” do mapa
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São os “vazios urbanos”, áreas da cidade que não emanam sentimentos topofílicos ou topofóbicos para o grupo cultural estudado, portanto, não carecem de mapeamento, pois são exatamente os espaços não assinalados no cartograma.
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Circuito
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Pontual, linear e zonal
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A junção das demais categorias, propiciando uma síntese dos espaços territorializados. Somente membros do grupo estudado são capazes de reconhecer a rede que une esses vários espaços em um circuito cultural. Pode ser representado por uma coleção de mapas.
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39 O presente artigo mostrou o emprego cartográfico da família terminológica de Magnani (1998; 1999; 2002; 2008) aplicada à configuração geográfica-espacial de grupos urbanos. O método empregado consistiu em uma análise comparativa de dois trabalhos sobre o underground belo-horizontino, evidenciando parte do mapeamento cultural das pesquisas de Calaça (2021) sobre a cena Heavy Metal e de Silva (2021) sobre a cena rapper, dando origem a um quadro metodológico para uma Antropologia Urbana Cartográfica. Na tradução das categorias para o plano cartesiano, propõe-se o uso do pedaço para inferir locais de gênese ou de maior afinidade grupal, a mancha para equipamentos que servem a um público de diferentes origens, o trajeto como percurso que liga pedaços e manchas, o pórtico como os vazios urbanos na ótica do grupo estudado e o circuito como a representação do todo, este último passível de ser apresentado por uma coleção de mapas.
40 Viu-se que há uma tradição epistemológica na Antropologia Urbana de se considerar o espaço em suas análises, manipulado conforme uma série de pressupostos, aproximando-se, às vezes, do que se entende na Geografia por “espaço geográfico”. Assim, constatou-se uma interseção teórica entre estudos antropológicos e geográficos culturalistas, o que culminou, dentre outros desdobramentos, na proposição de categorias antropológicas espaciais, a exemplo do que revela Magnani. Assim, o manuseio cartográfico de tais categorias pode ser considerado uma forma de (re)aproximar os saberes da Antropologia Urbana com a Geografia Humana. Além das noções de pedaço, mancha, trajeto, pórtico e circuito aplicarem-se aos estudos de caso elencados, vislumbra-se o uso da família terminológica em outras cenas musicais ou de outros agrupamentos urbanos, inclusive propiciando a construção de mapas, a exemplo de Medeiros e Nogueira (2014) analisando a cena rock de Pelotas - RS. Ressalta-se que as categorias já foram adotadas também em outros contextos, como nos dossiês da Prefeitura de Belo Horizonte visando o tombamento de bens arquitetônicos da cidade (SOUZA; CAJAZEIRO, 2009).
41 Por fim, pontua-se que a adoção de mapas de territórios e lugares tem muito o que contribuir em debates antropológicos na ótica urbana, enquanto a Geografia pode valer-se mais de métodos como a etnografia no entendimento destes espaços dotados de múltiplos signos, além de considerar categorias espaciais provenientes da Antropologia. Se há ao menos uma contribuição profícua do presente trabalho, ela reside no fortalecimento dessas práticas multis, trans e interdisciplinares.