“Momento
Enquanto eu fiquei alegre,
permaneceram um bule azul com um descascado no bico,
uma garrafa de pimenta pelo meio,
um latido e um céu limpidíssimo
com recém-feitas estrelas.
Resistiram nos seus lugares, em seus ofícios,
constituindo o mundo pra mim, anteparo
para o que foi um acometimento:
súbito é bom ter um corpo pra rir
e sacudir a cabeça. A vida é mais tempo
alegre do que triste. Melhor é ser.
Adélia Prado”
1O que define a categoria de pessoa? Há na antropologia uma longa tradição sobre investigações da categoria de pessoa. Impossível não passarmos pelo clássico ensaio sobre a categoria de Eu e de pessoa em Mauss (2003a). Mas no contexto da modernidade distintos saberes buscaram delimitar isso que entendemos como pessoa. Noções como o sujeito psicanalítico ou o indivíduo da economia e das teorias do ‘rational choice’ também entram nesse debate e, no limite, podemos ver como estes discursos acabaram por vazar de suas áreas e influenciar como as pessoas se entendem e como é moldada a categoria (Rose, 2008). A teoria antropológica tem uma longa tradição reflexiva sobre as contingências culturais, epistemológicas e ontológicas que formam e informam como nós nos entendemos. Não obstante, o ethos da disciplina antropológica, especialmente após os anos 60 (Ortner, 2011), busca modos de interpelar categorias analíticas fundamentais do seu próprio pensamento. Trata-se de formas de desestabilizar categorias, prolongar os debates que as constituíram, mais do que se apropriar delas para construir verdades.
2Os distintos campos da antropologia foram bem-sucedidos em demonstrar como a noção moderna e ocidental de pessoa, arraigada na ideologia do individualismo (Dumont 1986), não é unívoca e muito menos é adequada, quando se trata de pensar alteridades radicais (Strathern, 1988; Rosaldo, 1984; Dumont, 1980). A ideia de que há uma verdade interior a cada sujeito, capaz de ser desvelada a partir do discurso de si, do autorrelato que leva à descoberta dos desejos, pode ser entendida como uma forma particular de entender a pessoa. É uma tradição do pensamento que possui genealogia, história e disputas. Trata-se de um feito, mais do que um fato.
3Contudo, o objetivo deste texto não é mera crítica da noção de pessoa como foi concebida ao longo da história moderna. O que gostaria de fazer aqui é tensionar esta concepção e indagar sobre suas fronteiras.
4Verdade, vontade e interioridade. Eis os três elementos fundamentais da categoria de pessoa moderna e que conjuntamente sustentam a imagem de uma identidade pessoal como ela tem sido entendida na modernidade. Mas o que acontece quando uma destas dimensões parece se romper? Como as duas outras se articulam? Qual a possibilidade de sustentação desta uma identidade diante deste processo de esfacelamento? Minha vontade de me aprofundar nestas questões se deu em grande medida por conta de dois eventos importantes que aconteceram na minha vida no momento da escrita deste texto. O primeiro, na esfera profissional, a partir de uma disciplina realizada no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ). O segundo emergiu na esfera pessoal e familiar, a partir do processo de doença de minha avó, diagnosticada com a Doença de Alzheimer (DA) há seis anos.
5Durante estes seis anos as memórias de Dona Cida progressivamente se perderam. Concomitante a essa perda houve alterações no seu comportamento e personalidade. Com isso, frequentemente emergem dúvidas sobre a essência e a verdade que habita aquele corpo. Será que Dona Cida perdeu quem era? Ou talvez o afrouxamento de suas memórias e normas sociais que foram calcadas em seu psiquismo durante toda sua vida agora possibilita a ela se mostrar como realmente é? Sua condição de pessoa com DA pode erguer sobre si uma nova verdade? Ou apenas destrói a verdade antiga?
6Espero me aprofundar nestas questões levantadas, sem muita pretensão de respondê-las, a partir de memórias da minha infância e adolescência que tenho com minha própria avó, entrevistas com duas de seus quatro filhos - minha mãe e minha madrinha - que são suas principais cuidadoras. Também tomei alguns eventos recentes de momentos que passei com ela nos quais fiz o esforço de produzir um olhar antropológico sobre nossos encontros.
7Não penso que se trata aqui de um trabalho auto etnográfico, visto que não falo a partir de minha própria experiência do mundo, não obstante, me parece inegável que escrevo a partir de certa afetividade e engajamento emocional que precedem uma relação estritamente etnográfica. Nesta sessão minha intenção é pensar as particularidades que emergiram durante as entrevistas e a escrita deste texto; as preocupações que me orientaram e as “vantagens e desvantagens” de ter realizado esta pesquisa com minha mãe e minha madrinha.
8A primeira e mais evidente delas era uma preocupação sobre a qualidade da conversa. Minha mãe conhece bem meu trabalho e possui certa familiaridade com meus interesses de pesquisa e minha prática profissional. Além disso, durante o processo de adoecimento de minha avó compartilhamos e fomos confidentes um do outro das dificuldades que este processo produziu em nossas vidas cotidianas. Já minha madrinha não possuía essa familiaridade. Quando indaguei sobre a possibilidade da entrevista ela prontamente se dispôs a conversar comigo, mas penso que o fez sob o pretexto de “ajudar seu sobrinho”, muito diferente das motivações que me levaram a convidá-la: compreender como era para ela este processo.
9O convite a falar de si é sempre complicado e penso que poderia gerar duas situações com implicações muito distintas, especialmente quando a conversa é gravada. Além disso, falar de si tornou-se algo muito significativo na tradição cristã e consequentemente ocidental de como as pessoas se entendem (Duarte e Giumbelli, 1995; Foucault 1981). A princípio a conversa poderia se direcionar para uma espécie de espaço seguro, de escuta e testemunho das dificuldades do cuidado de minha avó. Encarei esta primeira possibilidade como a melhor das hipóteses. Apesar disso, penso que a presença do gravador poderia gerar uma espécie de auto vigilância, de receio que o que foi dito ali “vaze” em fofocas familiares ou a partir da leitura deste próprio texto. Apesar da vigilância de si ser um dado antropológico interessante, ele pouco me ajuda a atingir os objetivos propostos por este trabalho.
10Outra dificuldade é a impossibilidade de promover a elas a anonimidade, comum nos trabalhos antropológicos. Minha proximidade íntima com elas impede que eu as trate como meras interlocutoras de pesquisa neste texto pois possui implicações drásticas para como a produção dos dados foi feita.
11Não obstante, a intimidade que compartilho com elas me possibilitou formular perguntas mais direcionadas e com maior sensibilidade. Saber com quem estamos falando é sempre fundamental no trabalho de entrevistas. Aposto também que a intimidade compartilhada entre mim e elas, que poderia limitar as informações, também poderia ser uma maneira de produzir um espaço de troca. Para além de meus interesses antropológicos eu possuía e possuo ainda um genuíno interesse pelas experiências delas e por como elas têm lidado com este processo que muitas vezes é extremamente árduo.
12Falar sobre sua mãe, para ambas, foi um processo também de olhar para si mesmas e produzir similaridades. Nem sempre a experiência que elas tiveram de serem filhas foi feliz. Reconhecer isto para seu filho/sobrinho foi doloroso em certos momentos, especialmente levando em consideração que, apesar da presença corpórea de minha avó neste mundo - corpo este com que elas convivem cotidianamente - a possibilidade de síntese de questões afetivas complexas junto da pessoa que as coproduziu não era mais uma possibilidade, pelo menos na esfera da linguagem.
13Outra consequência da utilização do que chamei de uma “etnografia afetiva e emocionalmente engajada” como prática para este artigo foi a dificuldade de produzir estabilizações descritivas. Diferentemente de outros adoecimentos comuns a velhice não se trata aqui de um “estado”, mas sim de um fluxo. A Doença de Alzheimer é progressiva e poucas vezes linear. Há dias bons e dias ruins. Dias de completa confusão e dias calmos - sendo o principal fator para estes dias de calma a capacidade de minha avó produzir inteligibilidade em suas falas e suas vontades. O fato de eu estar acompanhando este processo, mesmo que “de longe”, desde seu início fez com que diversas vezes minhas formulações me parecessem rasas, e os momentos de “eureca” em meu diário de campo não se sustentam por mais de uma semana, devido à volatilidade de estados de humor e de cognição que minha avó apresentava.
- 1 Categorias êmicas grifadas em itálico. Os termos menos confusa e mais confusa eram uma medida comum (...)
14Pensei em algum momento em realizar uma entrevista com minha própria avó, em um momento em que ela estivesse menos confusa1. Contudo, surgia também o receio de que algumas perguntas pudessem desencadear sentimentos de desconforto ou de constrangimento a se traduzir em maior carga de trabalho para minha mãe e minha tia. Estes possíveis constrangimentos, somados à dificuldade de minha avó de sustentar um diálogo contínuo somaram-se para a decisão de produzir este artigo sem um relato em primeira pessoa de minha avó.
- 2 Em uma versão inicial do texto a categoria de self substituia o termo "identidade pessoal". Self ap (...)
15Não obstante, penso que a utilização de uma metodologia antropológica que reconhece o papel central do outro e da outridade na constituição de uma identidade pessoal2 dá conta de produzir enquadramentos para essa interlocutora silenciosa - pelo menos neste texto. Podemos reconhecer uma importante corrente antropológica que enxerga a relação como fator fundamental para a definição de nossa interioridade. Somos produzidos na medida em que produzimos outros. Neste caso, penso ser possível desenhar não somente um enquadramento da “pessoa social”, mas também da “pessoa íntima” de minha avó através dos relatos de suas principais companhias, que também são suas cuidadoras.
16Uma conversa pautada na intimidade e familiaridade permitiu - e inclusive favoreceu - a possibilidade de um discurso orientado por cognições afetivas mais do que racionais. O enquadramento construído a partir do campo da Antropologia das Emoções, combinado da noção de uma identidade fragmentada/múltipla como apresentado na seção anterior, nos ajuda a compreender como as emoções emergentes na relação com Dona Cida podem ser entendidas como parte constituinte da “verdade” de quem ela é, especialmente quando seu espaço de interioridade, suas memórias, não se encontram mais disponíveis para ela.
17Rosaldo coloca sob os holofotes que o pensamento humano não existe fora das nossas vidas afetivas e que o contraste entre razão e emoção é produto cultural do que podemos denominar frouxamente como Ocidente. O que diferenciaria o pensamento do afeto para a autora, não seria um problema de natureza, mas sim do sujeito. É o engajamento/envolvimento da pessoa que diferencia estes dois tipos de operação.
18Trabalhadas as particularidades desta abordagem etnográfica afetivamente engajada, penso que se torna mais fácil marcar as contingências que guiaram a produção da objetividade sobre os dados produzidos nas entrevistas.
19 É incontornável trabalhar aqui o artigo de Marcel Mauss sobre a categoria de pessoa (2003a). O encadeamento produzido neste texto que traça uma continuidade entre as noções gregas de Eu até a pessoa como fato psicológico, acompanhando os desenvolvimentos modernos e capitalistas que enfatizam o indivíduo como valor moral, permanece um ponto de partida fundamental para a análise de como esta categoria se constitui, assim como seus efeitos concretos, na contemporaneidade. Mesmo suas sucintas análises sobre a pessoa no contexto indiano e chinês, que podem parecer fora de lugar em nossa tradição, acabaram por ressoar em textos fundamentais da disciplina antropológica, especialmente no caso dos estudos de Louis Dumont sobre hierarquia no contexto indiano clássico (Dumont, 1980; 1986). De toda forma, é em suas análises da pessoa jurídica, cristã e psicológica que podemos ver a centralidade que a categoria assume em nossos pressupostos epistemológicos, assim como observar uma continuidade sedimentar em como a categoria se desenvolveu no ocidente moderno. Parto destas três últimas como forma de guia para apresentar esta pequena genealogia do conceito de pessoa na disciplina antropológica. Espero ao longo deste desenvolvimento produzir tensionamentos com o foco do presente artigo, ou seja, a pessoa com Alzheimer.
20 A noção de pessoa jurídica tal qual apresentada por Mauss tem sua gênese dentro da tradição romana, mas adquire progressivamente um valor moral, “um sentido de ser consciente, independente, autônomo, livre, responsável. A consciência moral introduz a consciência na concepção jurídica do direito.” (Mauss, 2003a, p. 390-391). Assim, para além de um “fato fundamental do direito” (idem, p. 385) há algo que se produz neste contexto que funda uma ideia de “Eu”. A própria regulamentação sobre nomes que emerge no contexto romano, e que é muito bem apresentada por Mauss, exemplifica este processo.
- 3 De acordo com o artigo 1.767 do Código Civil Brasileiro, estão sujeitos a curatela:
21No caso que nos interessa podemos ver como, no processo de demência, progressivamente o doente passa a tornar-se “menos pessoa” na perspectiva jurídica e estatal. A perda das funções cognitivas do doente frequentemente gera problemas legais e jurídicos para os familiares. No Brasil a criação de jurisprudências para processos de interdição da pessoa com Alzheimer tem se apresentado como um problema recorrente, além de uma prática cada vez mais comum. Trata-se de um processo jurídico no qual a pessoa com DA é reconhecida como incapaz para gerenciar os atos de sua vida civil. Nestes casos, onde a interdição ocorre, é indicado um curador que assumirá a gestão dos interesses da pessoa com DA. A interdição não é um procedimento exclusivo para casos de pessoas com DA3, contudo marca a perda de certas aptidões legais que, fundamentais para a construção da dimensão jurídica da pessoa, comprometem a integridade epistemológica da pessoa com DA. Espero nas páginas seguintes me aprofundar sobre como uma mudança de nossos alicerces teóricos que sustentam a categoria de pessoa pode ajudar na contingência dessa perda de “pessoalidade” no que se refere a enquadramentos teórico-metodológicos.
22Volto aqui ao que penso ser o ponto mais crucial do texto de Mauss e que posteriormente foi retomado por outros autores que tratam da continuidade entre a noção da pessoa cristã com a de pessoa moderna tal qual sedimentada na tradição ocidental que me aproprio. Essa continuidade também foi trabalhada por Michel Foucault e Richard Sennet em seu texto sobre sexualidade e solitude (1981) e na bibliografia brasileira pelo artigo de Emerson Giumbelli e Luiz Fernando Dias Duarte, "As concepções cristã e moderna da Pessoa: paradoxos de uma continuidade", de 1995. O texto das Confissões de Santo Agostinho (1980 [400 D.C]), primeiro texto escrito em primeira pessoa na tradição ocidental e o qual faço alusão no título deste trabalho, continua em leitura a reverberar com valores fundamentais da noção de pessoa moderna. O cultivo da interioridade pessoal no texto de Santo Agostinho remete a uma marca fundamental da pessoa cristã. A busca de si, em si e para si que ressoa um existencialismo agostiniano - o que fazemos no mundo? - busca respostas não em um divino exterior, mas interior. Agostinho coloca ênfase no livre-arbítrio que articula certa tensão com o divino.
23Os trabalhos de Foucault e Sennet, posteriormente revisitados por Duarte e Giumbelli no Brasil, retomaram o trabalho de Agostinho e irão apontar o estatuto epistemológico central que a sexualidade produzirá no tensionamento das três dimensões da pessoa cristã que apontei inicialmente: verdade, vontade e interioridade. De acordo com a dupla brasileira, na Roma antiga o sexo (ato sexual) se coloca como essencialmente relacional, social. Não há um estatuto fenomenológico distinto entre uma relação sexual e outras socialidades. Outro ponto importante no contexto romano apontado por eles é que a humanidade não era universal. Ambos estes pontos sofrem mudanças abruptas no contexto cristão. A imagem do sacrifício de Cristo universaliza e amplia a todos esta ‘humanidade’ na medida em que arrebata os valores humanos de dentro do mundo para uma dimensão metafísica que sustentará a moralidade da pessoa cristã. “No cristianismo, a noção de uma alma individual e universal associada a um monoteísmo transcendente conduz a uma relativização inédita do mundo” (Duarte e Giumbelli, 1995).
- 4 A partir desta discussão filosófica promovida em Santo Agostinho, podemos traçar linhas que nos lev (...)
24Em Santo Agostinho o ato do pecado original que melhor exemplifica este processo é um rompimento com o mundo natural que produz a culpa que nos amarraria a Deus pela eternidade. A vontade, constantemente mediada pela culpa, coloca a relação homem/Deus em primeiro plano e joga para o papel coadjuvante a relação homem/mundo. O sexo e a sexualidade aparecem, portanto, não mais como mero fenômeno social, mas como fator primordial e motivador desta culpa pela vontade que media a relação da pessoa com sua verdade interior4. Enquanto na tradição romana a sexualidade é fisiológica-social, na tradição cristã ela passa a ser psicológica-individual. A busca por Deus - verdade -, passa progressivamente a ser vinculada a uma busca de si - vontade - dentro de si - interioridade. E como poderíamos conhecer-nos a nós mesmos? Através da confissão.
25Relatar a si mesmo é uma técnica da produção da pessoa que ganha novos contornos, apesar de manter sua centralidade, na modernidade. A emergência da psicanálise na virada do século XX vai consolidar uma interioridade laica que abre possibilidades para um novo projeto de verdade que complexifica o estatuto da vontade. Bebendo da tradição germânica romântica (Duarte, 2004) do Slebstbildung, a sexualidade passa a ser o critério da verdade íntima e individual e a interioridade passa a ser uma construção mais do que um dado. Também o processo civilizatório (Elias, 1990) e a ética protestante (Weber, 2013) irão produzir importantes dobras que trazem de volta a relação homem/mundo como relação fundamental da pessoa, ao mesmo tempo em que mantém a tríade cristã de configuração da pessoa. Trata-se do que Mauss chamou de A pessoa, ser psicológico.
26No que tange à Doença de Alzheimer encontramos aqui um novo entrave que poderia imbricar uma perda de seu estatuto de pessoa. Feriani (2020) vê essa perda do estatuto de pessoa no processo da Doença de Alzheimer especialmente quando confrontada com o saber biomédico e o que foi denominado como neuro-centralidade (Azize, 2008; Rose, 2001). Como ela bem aponta, "Ao dissolver ou transformar o centro, a doença de Alzheimer abala essa noção. Como a pessoa assume uma forma diferente da que estamos acostumados a ver, ela parece não existir” (Feriani, 2020, p. 21). Contudo sugiro aqui que esta perda pode também ser associada a este processo anterior, da perda da capacidade de narrar a si mesmo, pelo menos de forma coesa e inteligível.
27Apesar da perspectiva da pessoa como indivíduo, ou como sujeito - este também elaborado sob a ideologia do individualismo (Dumont, 1986) – reforçada na psicanálise há também uma importante dobra que pressupõe uma construção relacional de pessoa. A interioridade do indivíduo também perde sua característica monádica e é assumida por uma multiplicidade expressa na psicomaquia. A identidade pessoal passa a ser povoada por múltiplas tensões, por vezes contraditórias, que existem dentro da unidade do sujeito. Esse sujeito múltiplo - dotado de uma identidade relacional, uma interioridade, não completamente acessíveis (Salem, 1992) - acaba por perder sua característica monádica e abre portas para novas maneiras de entender a pessoa.
28Podemos observar um desenvolvimento de certa antropologia e psicologia ao longo do século XX que irá se sustentar nesta dimensão relacional da construção de pessoa. Discutindo estes desenvolvimentos saímos do território maussiano - pelo menos no que se refere ao texto aqui abordado - e adentramos os desenvolvimentos mais recentes sobre a categoria de pessoa. Traçar as múltiplas linhas que se desenvolveram a partir deste momento não é tarefa que cabe aqui, por ser demasiada extensa e múltipla. Contudo, dentro destes desenvolvimentos advindos de uma perspectiva relacional de constituição da pessoa, duas dimensões tornam-se particularmente importantes para os propósitos deste trabalho: o corpo e as emoções.
- 5 Termo utilizado pela autora.
29No referente ao corpo, Mauss (2003b) parece nos puxar de volta, contudo, é em outros trabalhos que podemos encontrar com maior peso o corpo como paradigma antropológico. O corpo constitui-se assim como campo privilegiado no qual as emoções se realizam (Rosaldo, 1984; Rezende e Coelho, 2010; Csordas, 2002; Hallowell, 1955). Rosaldo (1984) sugeriu em seu clássico texto sobre os Ilongot que as emoções devem ser também entendidas como cognições, um pensamento corporificado - poderíamos dizer embodied utilizando da linguagem de Thomas Csordas. Assim, para Rosaldo (1984), “self”5 e emoções seriam instâncias intimamente relacionadas - a ponto de serem tributárias uma da outra – e culturalmente constituídas.
30O campo de Rosaldo coloca sob os holofotes que o pensamento humano não existe fora das nossas vidas afetivas e que o contraste entre razão e emoção é produto cultural do que podemos denominar frouxamente como Ocidente. O que diferenciaria o pensamento do afeto para a autora, não seria um problema de natureza, mas sim do sujeito. É o engajamento/envolvimento do ator que diferenciaria estes dois tipos de operação.
31As proposições de Rosaldo marcam uma ruptura fundamental entre o paradigma apresentado até agora. A unidade do self, tão presente na tradição cristã e moderna desenvolvida anteriormente, torna-se instável. O self, pelo menos no caso dos Ilongot, é mutável e mais: o self subjetivo e interior tal qual entendido por nós trata-se mais de uma abstração teórica do que efetivamente uma expressão da natureza humana ou uma realidade social. A unidade da identidade pessoal, portanto, deve ser entendida como uma construção cultural.
32Desenvolvimentos mais recentes na antropologia contemporânea vêm pensando a identidade pessoal, o sujeito, o indivíduo cada vez mais como algo fragmentado. A ideia de IVO CANTOR MAGNANI2023-10-20T12:18:00ICdivíduo apresentada por Strathern (1988) é um bom exemplo disso. A percepção sociológica do sujeito na unidade e de uma identidade pessoal produzida individualmente, por mais que culturalmente atravessada, começa a ser questionada a partir de novos desenvolvimentos das ciências humanas. A noção de pessoa torna-se cada vez mais uma composição e cada vez menos uma unidade homogênea.
- 6 Mesmo no caso da matemática Iqwaye, tal qual descrita por Mimica (1988) na qual somente existiriam (...)
33Wagner (1991), desenvolvendo a partir das análises de Strathern não só no que tange à concepção de indivíduo ocidental, mas também na oposição trabalhada por ela entre indivíduo e sociedade (Strathern, 1996), propõe a noção de pessoa fractal. A proposta de Wagner radicaliza na medida em que, retomando a máxima apresentada por ele em A invenção da cultura, “a relação é mais real do que as coisas que ela relaciona” (2017, p. 28). A partir do seu estudo de caso melanésio ele rompe com a convencionalidade da imaginação ocidental pensando a partir dos sistemas matemáticos melanésios que podem funcionar não a partir das totalidades – a exemplo dos números inteiros – mas das frações6. O ponto fundamental dos dados etnográficos sistematizados por Wagner para os propósitos aqui delimitados é de que a pessoa fractal é ao mesmo tempo fracionada e total, dependendo fundamentalmente da relação em qual ela é pensada.
34Wagner toma como dada a superação do self como constructo social para pensar as funções e consequências desta na maneira como é construída ontologicamente a noção de pessoa. Na teoria social a noção de indivíduo é hegemonicamente entendida a partir de sua oposição com a sociedade. Isso porque a última seria emergente das relações sociais e, portanto, divergente destas. No caso melanésio a pessoa fractal não se encontra em oposição ao grupo na medida em que a forma social é imanente. A ontologia melanésia marca uma posição que “é pessoa e agregado [das relações sociais] ao mesmo tempo” (Wagner, 1991, p.14).
35Feito este desenvolvimento encaminho-me para a análise do material etnográfico. Para os propósitos propostos a ênfase nas dimensões relacionais, afetivas e corporais de construção da categoria de pessoa tornam-se particularmente importantes. Como demonstro a seguir, estas três dimensões colocam-se como potentes chaves analíticas para expandir os horizontes da categoria moderna de pessoa tal qual apresentada nesta sessão. Ademais, elas tornam-se particularmente centrais para enfatizar como, no processo de esquecimento decorrente da DA, podemos acompanhar as linhas de fugas delirantes para pensar novas fronteiras e possibilidades para a categoria de pessoa.
36Minha avó hoje possui 83 anos. É a terceira filha de nove irmãos, nascida na cidade de Franca, interior de São Paulo. Seu pai foi o primeiro dentista da cidade, o que lhe garantia um lugar de prestígio e consolidar a condição de pequena burguesia da família. Quando jovem foi para São Paulo, onde se formou em História pelo colégio Sedes Sapientiae, um colégio de freiras respeitado na capital. Casou-se aos 23 anos com meu avô e teve quatro filhos, três meninas e um menino. Durante sua vida adulta abriu um comércio de roupas femininas em Franca-SP. A loja foi um pequeno empreendimento bem-sucedido, fechando as portas após quase quarenta anos de atividade e com as contas no verde; “sobrou até um dinheirinho pra cada irmã” disse minha mãe referindo-se ao pequeno lucro produzido pela liquidação do estoque da loja.
37Ao longo de sua vida adulta, minha avó também atuou como pessoa filantropa na pequena cidade. Ajudou a construir uma creche para crianças em situação de vulnerabilidade - ou “carentes” como eram denominadas pela minha avó - na década de 1970. Teve oportunidade de viajar pela Europa durante as décadas de 1970 e 1990 e foi seu pequeno comércio de roupas femininas que manteve dinheiro no caixa da família, após meu avô deixar seu trabalho como engenheiro por conta de crises de pânico.
38Era uma pessoa com uma presença imponente nos espaços familiares, mas não só. Não me lembro de encontrá-la nenhuma vez sem estar maquiada e utilizando algumas poucas joias que sempre lhe adornavam. Muito rígida, Dona Cida não expressava carinho com facilidade, mas quando o fazia era com genuinidade e em momentos de celebração coletiva - aniversários, formaturas, batismos e crismas. Lembro-me de ao fazer alguma bobagem quando criança e me deparar com ela por perto cobrir as orelhas por medo dos puxões que ela nos aplicava.
39Tratava-se de uma mulher que valorizava profundamente certa independência emocional assim como um ethos ascético em relação ao trabalho, desprezando os “choramingos” e “gente mole”. Mesmo depois de se aposentar continuou a trabalhar bordando e costurando panos de prato, jogos de mesa e itens infantis como pequenos aventais e mochilas para ganhar algum dinheiro que pudesse chamar de seu.
40Progressivamente após seu diagnóstico minha avó perdeu funções cognitivas – primeiro as memórias de curto prazo, depois as de médio e atualmente ela encontra dificuldades em formular frases e apresenta uma grave afasia, que a impede de nomear objetos e pessoas. Hoje ela encontra dificuldade em realizar tarefas cotidianas como se vestir ou descascar uma mexerica. Essa deterioração progressiva condiz com o desenvolvimento da doença tal qual apresentado nos manuais diagnósticos DSM V (2014) e CID 11 (2018). Não obstante ela não apresentou quadros de irritabilidade e comportamento violento, ao menos por enquanto. Na entrevista com minha mãe, psicóloga de formação, ela indicou um quadro depressivo precedente à perda de memória, que condiz com o manual da associação americana de psiquiatria
No estágio leve do transtorno neurocognitivo, ou no nível mais leve de transtorno neurocognitivo maior, costuma ser encontrada depressão e/ou apatia. Com transtorno neurocognitivo maior moderadamente grave, características psicóticas, irritabilidade, agitação, agressividade e perambulação são comuns (p.612, DSM V)
41 O DSM V prevê dois tipos de cognição distintos no texto onde apresenta a Doença de Alzheimer. O primeiro seria uma cognição lógica - ligada à capacidade de reter memórias e de aprendizado -, contudo, também apresentam uma cognição social - capacidade de dançar e tocar instrumentos são os dois exemplos apresentados no livro. Nenhuma destas duas cognições permaneceram intocadas no caso de minha avó. Sua capacidade de aprendizado, assim como as habilidades manuais que exerceu durante toda sua vida - como a costura - não se mantiveram. Contudo, proponho aqui que ela manteve uma cognição afetivo/emocional que inclusive se desenvolveu durante a progressão da doença.
42 Minha avó foi descrita pelas minhas interlocutoras como uma pessoa “fria” ou desatenta durante sua vida pré-Alzheimer, demonstrando pouca afeição, especialmente no âmbito familiar. Relataram-me nas entrevistas, mas é tema recorrente em encontros familiares, sua postura dura e rígida, poucas demonstrações físicas de carinho como abraços ou beijos assim como uma vida social e matrimonial intensamente ativa que ocupava boa parte de sua vida e deixava pouco ou nenhum tempo para atuação como “mãe”. Apesar de muito alegre, era descrita como pouco carinhosa.
43Durante a progressão de sua doença, contudo, ela passou a apresentar comportamento mais afetivo. Dona Cida abraça, beija e diz que ama cada vez mais. Também passou a demonstrar medo e se mostrar mais vulnerável, o que tem sido visto como um processo de “libertação” pelas irmãs. Esse progressivo esquecimento de si produziu uma narrativa de diminuição de certa performance de “mulher forte” e a revelação de algo que ela possivelmente “sempre quis ser, mas não podia”. Paradoxalmente, neste processo de mudança as irmãs encontram alguma continuidade na pessoa que ela sempre foi, uma verdade interior que somente com o processo de esquecimento pode se manifestar.
- 7 Tradução própria, no original “discursive practices provide subject positions”. O termo “subject po (...)
44Como apresentado anteriormente, esse processo relacional entre mãe e filhas pode ser tomado como um processo psíquico fundamental na constituição da pessoa Dona Cida, paralelamente à importância que a relação entre cuidadores e pessoas com DA possuem. A produção dessa narrativa de emergência de uma verdade mais real no processo da DA do que em momentos anteriores à doença apresenta-se como central na medida em que, de acordo com uma perspectiva pós-estruturalista, “práticas discursivas estabelecem posicionalidades dos sujeitos”7 (Moore, 1994, p. 141). No caso da DA, em específico, julgo que a produção de narrativas de outros sobre a pessoa acometida pela doença tornam-se particularmente importantes, na medida em que as capacidades cognitivas-discursivas desta encontram-se severamente comprometidas.
45 Não somente as narrativas produzidas sobre ela, mas junto com ela tornam-se particularmente relevantes aqui. Durante as entrevistas ficou claro como estas duas dimensões discursivo-relacionais, ao mesmo tempo que co-constituem a pessoa que Dona Cida é - sua interioridade, vontade e desejo -, marcam duas dimensões distintas complementares de como ela é entendida como pessoa com DA; uma acionando a chave da continuidade (narrativas sobre) e outra, da ruptura (narrativas com).
46Ambos, Vianna (2013) e Feriani (2020), apontam para como os discursos produzidos com pessoas em processo demencial dependem de uma habilidade de delirar, fantasiar, juntos. Esse tipo de diálogo depende primordialmente de uma capacidade afetiva e de produção de alteridade e empatia. Apesar disso, ele marca fundamentalmente um processo contínuo de ruptura, de interrupção, na medida em que as interações não se sustentam por muito tempo. Pessoalmente, gosto destes encontros com minha avó. Nas últimas vezes que nos vimos acabei por inventar novas profissões para mim, tentando brincar com os limites do que para ela são possíveis: banqueiro, bombeiro ou lenhador foram mais bem aceitos do que astronauta, que produziu em seu rosto uma sobrancelha arqueada e um pescoço que se contraí, indicando surpresa e um pouco de descrédito. “Você tá tentando me enganar né?” perguntou ela, já começando a rir. Divirto-me com os diálogos que tentamos produzir juntos. Estas interações são muitas vezes pautadas como nos comunicamos corporal e afetivamente. Trata-se de um jogo de imitar um ao outro, responder a reações de carinho ou de nojo, por exemplo, com reciprocidade de sensação. Em uma das entrevistas que realizei essa capacidade de dar sequência para os desejos e vontades dela passa também por inventar o que ela poderia dizer, como forma de “dar uma saída” para ela quando as palavras lhe faltam:
Quando eu não descubro o que que é, não tá muito fácil, eu falo outra coisa. Ela fala assim “pega aquele negócio ali” eu sei que é o pijama. Agora se ela fala assim “então, o… o…” “Nossa mãe, o moço não veio de novo arrumar a geladeira”. Tendeu? “Não veio Sílvia”. Eu dou uma saída, sabe? Pra ela também. Porque me aflige muito ver ela aflita também. Ela fica chateada quando ela quer falar alguma coisa e não consegue. Aí eu vou pulando por cima porque eu não quero que ela fique triste. Eu invento o que ela tá falando e ela confirma tudo (risos) (Entrevista 1).
47Trata-se de um exercício no qual, conforme Vianna apontou, “O cuidador [...] delira e demência a si próprio na intenção de um diálogo simulado terapêutico com o doente. As empatias fluem por originalidade da rede costurada nesse diálogo e pela história diacrônica atual em comum entre cuidador e doente.” (Vianna, 2013, p. 21). Nestes encontros torna-se evidente que Dona Cida já não é a mesma mulher forte e durona de antes, são nestes discursos narrativos feitos a dois ou mais que exigem um esforço de “delirar a si próprio", que sinto que ela tem possibilidades de fuga do possível aprisionamento que a perda de sua memória e suas faculdades cognitivas poderiam provocar.
48Apesar desse discurso do delírio querer dar a sensação para nós da família de uma “nova” Dona Cida, confusa e dependente - o que produzia um imenso contraste com a figura independente e forte que ela apresentou durante boa parte de sua vida -, após o início da DA houve momentos onde uma continuidade de sua pessoa anterior e presente era destacada. Para as duas filhas, o marcador dessa continuidade era a alegria de viver dela. Apesar disso, essa alegria operava em esferas distintas da vida de minha avó. Enquanto em momentos anteriores essa alegria se realizava em sua vida social e profissional, agora ela emergia em sua vida doméstica. Ambas as filhas se referiram à mãe de sua infância como uma mulher pouco disponível emocionalmente, apesar de muito ativa e alegre. O que me pareceu interessante notar é que esta “continuidade” não é estática, mas trata-se de uma continuidade de crescimento, de aprendizado e de libertação para poder exprimir esta alegria em contextos onde antes ela se mostrava fria, distante ou durona. Foi a partir do esquecimento da pessoa que ela deveria performar socialmente que ela pôde desenvolver habilidades afetivo-emocionais de carinho e acolhimento para com suas filhas, marcando um aprendizado das cognições afetivas conforme apresentadas por Rosaldo (1984). Os trechos das entrevistas apresentados a seguir ilustram bem meu argumento.
Quem ela era pra você?
Eu tenho pouquíssimas memórias da minha infância. Eu não tenho muitas memórias eu com a mamãe. Sabe assim? Tudo que eu precisava resolver eu resolvia meio que sozinha assim. Sabe? Tinha a coisa do Ballet, hora que ela via eu já tava pronta arrumada. E ela também não tinha muito tempo. O vestido da minha formatura que precisava fazer a barra eu fiz em casa sozinha porque ela falou que não podia ir lá, me ajudar. Então assim, mas uma relação gostosa demais. Gostosa, mas .... como é que eu posso explicar? Eu não lembro muita coisa. Assim, eu tenho muita lembrança da gente rindo junto.
Se você fosse apresentar ela pra alguém que não conhece ela, como você a apresentaria?
Aí, um coração gigante. Sempre quis ajudar todo mundo. Fez a creche pra ajudar um monte de criança. Assim, como eu disse eu não lembro muito dela presente comigo, mas tenho certeza absoluta que tudo que eu precisei ela ajudou. Ela é uma pessoa de um coração enorme, muito feliz, muito alegre, muito determinada, é… ai, tudo de bom.
E a pessoa que ela é hoje, como você definiria?
Por incrível que pareça, gente, como Deus é bom pra gente, ela continua! Lelé da cuca, mas ela continua divertida, morre de rir, nossa! Fala umas coisas muito engraçadas. Aí, eu acho que ela no mundo dela ainda é ela. Eu acho que ainda é ela. É muito ela ainda. (entrevista 1)
Em cada momento da minha vida eu ia definir ela de uma forma. Hoje, essa entrevista é hoje, né? Eu definiria como uma pessoa… Que batalhou muito, que trabalhou muito, que se desdobrou pra ser a esposa que ela foi e a mãe que ela foi. Ela se sente muito cansada por conta disso hoje. Com o Alzheimer ela conseguiu tirar essas barreiras que ela tinha de poder ser ela mesmo, né? Então hoje ela é essa pessoa assim, cansada, mas muito alegre, muito carinhosa. Hoje ela é a mãe que eu sempre sonhei. Eu acho que ela tinha muitas, muitas armaduras, pra mostrar que ela era uma pessoa durona, que ela não tinha muito sentimento, que ela não era muito carinhosa, que ela não podia ficar cansada, que ela não podia ter dor, que ela não podia chorar.
Minha mãe foi muitas pessoas ao mesmo tempo. Agora eu acho que ela chegou finalmente no íntimo do ser dela. Ela sempre quis ser essa pessoa, mas ela nunca pôde. Essa pessoa doce, desarmada, carinhosa, chorona, que tem dor. Hoje ela fala “tô com dor”. Ainda com um pouco de dificuldade, né? Mas ela já consegue falar coisas, ela consegue chorar, ela consegue me abraçar, ela consegue me beijar. Eu acho que ela, hoje, é mais ela. Se durante a infância, o casamento, a vida adulta, ela pudesse se desnudar, de repente assim, ela ia aparecer essa mulher de hoje.
E o que que aconteceu pra gente poder falar de uma mulher de hoje e uma mudança do passado.
O Alzheimer, total o Alzheimer. Eu acho que o que mudou ela… a doença fez com que ela esquecesse. Eu acho que ela não se lembra mais como pessoa e agora ela é. Sabe? Ela não… Ela não lembra mais que ela tinha que ser dura, que ela tinha que ser dura, que ela tinha que aguentar as coisas. Na minha opinião, por mais duro que seja essa doença ela tá vivendo num momento de maior paz interior de toda a vida dela. Ela não está carregando o peso de ser uma pessoa sendo que ela é outra. Eu vejo muita paz, muito alívio na minha mãe. Ela agradece tudo, toda hora, o dia inteiro. Essa alegria, essa paz dela, acabam encobrindo todas as dificuldades que a gente tem com ela, de vesti-la, de dar banho, de sair com ela pra passear, de explicar pra ela que tem que por máscara. (entrevista 2)
49Novamente é através de seu corpo, como lócus primordial onde as emoções acontecem, que marca sua capacidade comunicativa, mas revela também que através destas cognições afetivas encontramos uma pessoa em desenvolvimento, que aprendeu novas habilidades afetivas a partir da perda de suas memórias. Conforme Feriani (2020), no contato com pessoas com DA podemos observar como, contrapondo o discurso biomédico que “valoriza as perdas e os declínios”, há uma dimensão possível de “ganhos e rearranjos que a doença também pode trazer” (Feriani, 2020, p. 21-22). Ainda citando a autora
Muitas pessoas em processo demencial afirmaram – seja em conversas comigo ou através de leituras de relatos autobiográficos – estar mais abertas emocionalmente e atentas a cenas que antes passavam despercebidas, como o vento soprando as folhas de uma árvore, as nuvens que mudam de formas, as crianças brincando na rua: outras temporalidade e percepção do mundo, até mesmo uma nova configuração neuronal – alguns notaram o cérebro mais imagético, ou seja, veem as palavras como imagens, numa espécie de “storyboard mental”, segundo a expressão de Kris. (Ibidem)
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52O caso apresentado aqui, apesar de localizado, me ajudou a imaginar outras configurações da noção de pessoa. Apesar de entender a trajetória de vida de minha avó como uma epistemologicamente localizada em uma tradição ocidental de pensamento, que valoriza a ideologia individualista, a narrativa de si e uma vida interna mnemônica o processo da DA com o qual ela convive nos convida a imaginar outros tensionamentos sobre a categoria de pessoa. Essas formas de “pessoa” dissidentes, por mais que emergentes em processos de normalização e padronização epistemológica, nos ajudam a redesenhar os limites e fronteiras do que é central na definição de uma pessoa.
53Imaginar uma continuidade fora da racionalidade e das memórias, mas vinculada aos afetos e emoções indicam novos caminhos a serem construídos no entendimento do que configura a verdade, a interioridade e a vontade que definiriam essa pessoa moderna com raízes cristãs. Andando de mãos dadas com essa problemática teórica, penso que emerge também a possibilidade de reconfiguração afetivo-política de como lidar com esses processos limites envolvendo corpos doentes e esquecimentos. Citando mais uma vez o trabalho de Feriani (2020, p. 26), essa disputa político epistemológica encontra-se muito bem expressa por ela quando aponta que
Ao sacudir uma noção de pessoa que se pauta pelo cérebro – e o cérebro como local do pensamento –, a doença de Alzheimer, em algumas de suas linhas de fuga, reivindica outras maneiras de expressão, como o corpo, a vontade, o desejo, a recusa – “sinto, logo existo” como contranarrativa ou contramáxima.
54No que se refere a sua identidade podemos reconhecer ainda algo de pessoal ou singular nela, mas que se constrói relacionalmente. Uma identidade pessoal/relacional que é feita e refeita lembrando, esquecendo e delirando com ela mais do que sobre ela. Se ela não tem mais acesso a suas memórias são as memórias que os outros têm - e que continuam a serem feitas - com ela que permitem uma continuidade da identidade alegre. Apesar disso, são os desenvolvimentos afetivos e emocionais que minha avó comunica com seu corpo que marcam a ruptura da identidade “durona” que a família conhecia tão bem. As questões mais interessantes que foram propostas ao longo deste artigo à categoria moderna e ocidental de pessoa foram formuladas justamente a partir dessa dinâmica existente entre a continuidade e a ruptura da identidade de minha avó.
- 8 Uma versão inicial deste texto foi discutida na 33a Reunião Brasileira de Antropologia (RBA) no Gru (...)
55Minha experiência com minha avó me fez perceber como os parâmetros e marcos epistemológicos que foram utilizados para construir a noção de pessoa - seja ela cristã, jurídica ou psicológica para nos utilizarmos do vocabulário maussiano - ocultam dimensões afetivas-corporais constitutivos de como o outro - seja ele qual for - é apreendido. É evidente que algumas das soluções para imaginarmos novos enquadramentos de pessoa encontram-se em levar a sério o outro, o que não significa estar sério o tempo todo e muito menos nos levarmos a sério demais. Delirar com ela fez possível produzir um olhar positivo sobre a pessoa que ela se tornou e evitar a produção de uma nostalgia trágica sobre a pessoa que ela deixou de ser. Pensar com ela possibilitou questionar o lugar marginal que corpo, emoções e afetos tiveram na construção conceitual de pessoa no campo antropológico.8