Navegação – Mapa do site

InícioNúmeros31Artigos“Em terra de cego quem tem um olh...

Artigos

“Em terra de cego quem tem um olho é rei”: reflexões sobre capacitismo, deficiência e reconhecimento

“In the land of the blind, the one-eyed man is king”: reflections on ableism, disability and recognition
Ceres karam Brum

Resumos

Nesta autoetnografia desejo refletir sobre o processo de reconhecimento da visão monocular como deficiência visual no Brasil. Para tanto, abordo as disputas que antecederam a promulgação da Lei nº 14.126/março 2021 e do Decreto n°10.654/março 2021 e seus desdobramentos. Tal legislação passa a reconhecer pessoas com visão monocular como deficientes visuais, alargando sua expectativa de direitos e institui a perícia biopsicossocial. Tal modalidade de perícia criada pela Lei nº 13.146/julho 2015 é utilizada com finalidade de mensuração do grau de deficiência para contagem de tempo para concessão de aposentadoria especial. Argumento que no Brasil há a produção de um imaginário capacitista que liga deficiência a anormalidade. Ele vem sendo reificado nos discursos legais e em inúmeros procedimentos que se propõem a garantir direitos e a proteção da vulnerabilidade social em que se encontram os deficientes.

Topo da página

Notas da redacção

Versão original recebida em / Original version 23/03/2023 Aceitação / Accepted 19/07/2023

Texto integral

Considerações Iniciais

1Boaventura de Souza Santos (2020, p. 15) em A cruel pedagogia do vírus aponta o seu caráter discriminatório e a diversidade do seu impacto para diferentes grupos do planeta, destacando a particularidade da dominação vivida por pessoas com deficiência. Elas, para além do capitalismo, colonialismo e patriarcado, são também vítimas do capacitismo.

2O capacitismo se configura em uma forma perversa de dominação estrutural dirigida aos deficientes que se sobrepõe e dialoga com uma pluralidade de dominações no cenário neoliberal. Para Anahy Guedes de Mello (2019, p.139) o capacitismo se refere não apenas a capacidades laborais, mas a diversas formas de classificação do corpo deficiente, como fora da norma, e da produção de um imaginário sobre deficiência, como anormalidade.

3Utilizo o termo deficiência como uma categoria analítica que nos permite pensar a experiência corporal (Butler apud Lopes 2019, p.85), incorporando a crítica atinente a lesão/deficiência que aflora das discussões realizadas por Pedro Lopes (2019), ao problematizar as complexidades que perpassam o campo de estudos sobre deficiência em suas dimensões êmicas, políticas e epistêmicas, no cenário brasileiro e internacional. Para ele:

A sugestão, portanto, é por tomar deficiência como categoria analítica que pode nos ajudar a nomear a desigual variedade de formas, funcionalidades e experiências corporais que vivemos, ou, ainda, a desigual variedade das relações sociais que atribuímos a formas, funcionalidades e experiências corporais – sejam elas marcadas ou não pela categoria pessoa com deficiência. (LOPES: 2019, p.85).

4Assim, minha escolha pela utilização do termo deficiência como categoria analítica, na perspectiva do autor me remete à questão da classificação das deficiências visuais no Brasil que suscitou disputas políticas e institucionais, no que concerne à incorporação da visão monocular como deficiência legalmente reconhecida no Brasil.

5Ao dialogar com os trabalhos de Kafer (2013, p14) que se propõe a compreender a deficiência como uma categoria política e Gavério (2021, p7) que a ressalta como diferença, pretendo argumentar que, no Brasil, há a produção de um imaginário que liga deficiência a anormalidade. Este imaginário (embasado no capacitismo) tem sido reificado nos discursos legais e em inúmeros procedimentos que se propõem a garantir direitos e proteção da vulnerabilidade social em que se encontram os deficientes.

6Com um trabalho de campo realizado a partir do meu percurso como deficiente visual com nistagmo e visão monocular desejo dialogar com o impacto das transformações da legislação que passa a incluir e reconhecer pessoas com visão monocular no rol dos deficientes visuais. As disputas ensejadas por este processo de reconhecimento atingem diversos sujeitos, tais como: as Associações de Deficientes Visuais, Associação Brasileira de Antropologia, pessoas com visão monocular, poder legislativo e governo federal, (através de seus agentes administrativos), entre outros.

7Proponho refletir sobre estas disputas como processos que questionam os limites da definição de pertencimento e conduzem a uma discussão acerca do reconhecimento, na perspectiva de Paul Ricoeur (2006, p.175). Para o autor, as assimetrias originárias da relação eu/outro se constituem em categorias incomparáveis que suscitam um enigma, cuja ideia de reconhecimento, como percurso, nos permite melhor dialogar. Ao aceitar o desafio de entender o cenário da deficiência visual no Brasil através desta autoetnografia acredito, com Gavério (2015 e 2021), Kafer (2013) e Mello (2019), que pesquisadoras defiças tem um papel fundamental neste processo:

Outrossim, o fato de a deficiência trazer uma compreensão de mundo distinta de outras interpretações faz com que às vezes seja difícil de transmiti-la a pessoas não defiças. Não se trata das pessoas sem deficiência não entenderem as complexidades da experiência das pessoas com deficiência, mas sim de perceber que essa experiência é específica do indivíduo. Isso quer dizer que embora as pessoas com deficiência compreendam entre elas as semelhanças da experiência da deficiência, não podem analisá-la exceto no nível individual porque não há universais. Não há o “surdo universal”, o “cego universal”, o “cadeirante universal”, e assim por diante. (MELLO, 2019, p. 61).

8Ao longo deste texto pretendo apresentar e analisar três CENAS desveladas a partir de meu lugar de fala (Ribeiro, 2019) como deficiente visual. Este perspectivismo da minha percepção como deficiente e modo de estar no mundo (Brum, 2021) quer tensionar análises universalizantes com relação a deficiência, denunciando o cenário capacitista em que vivemos, propondo uma alternativa a este debate. O título “em terra de cego quem tem um olho é rei” é uma alusão a um conhecido provérbio que aqui tem a ambição de ilustrar e denunciar relações de poder e saber no campo da deficiência.

CENA 1. “Visão Monocular não é deficiência?”

9No final de junho de 2019 ao abrir minha caixa de mensagens me deparei com o informativo mensal da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Tratava-se de uma nota da Comissão de Acessibilidade da ABA repudiando o Projeto de Lei Amália Barros, que propunha reconhecer os portadores de visão monocular como deficientes visuais no Brasil. Visão monocular corresponde a visão igual ou inferior a 20% em um dos olhos. A Organização Mundial de Saúde (OMS) classifica a visão monocular como deficiência visual em razão da perda da visão binocular no processo de formação da visão. O PL 1615/2019, na esteira da OMS, propunha o reconhecimento da visão monocular como deficiência visual.

10A classificação das deficiências se constrói a partir da relação entre, pelo menos, dois princípios de classificação – o médico e o jurídico, embora o modelo social de reconhecimento da deficiência (como modo de vida) extrapole largamente estes dois universos, como ensina Diniz (2007, p.42).

11O projeto de Lei 1615/2019 conhecido como Lei Amália Barros gerou reações controversas por parte de associações de deficientes e foi publicamente criticado pela Associação Brasileira de Antropologia, através de nota pública expedida pela Comissão de Acessibilidade da ABA 2019/2020. O argumento que se colocava em contrariedade ao projeto de lei, naquela época em tramitação no Senado, era de que o fato de os monoculares passarem a ser considerados juridicamente como deficientes visuais prejudicaria outros deficientes “menos aptos do que os monoculares” no mercado de trabalho e, sobretudo, em concursos públicos.

12Na esteira de Kafer (2013, p10) entendi a referida nota em sua dimensão política. Ao contatar a ABA por e-mail, recebi uma negativa imediata da minha solicitação de direito de resposta a respeito do rechaço ao PL Amália Barros, acompanhado do convite da Comissão de Acessibilidade para discutirmos a respeito nos eventos da Associação Brasileira de Antropologia.

13Como diz o ditado popular: Em terra de cego quem tem um olho é rei! Percebi que aquela mesma antropologia que busquei aprender e praticar ao longo da minha vida, como uma porta aberta à reflexão sobre aceitação da diferença e alteridade, era altamente discriminatória e estigmatizadora. E que a praticava por um viés institucional. O posicionamento da ABA em sua intransigência não me atingiu apenas como portadora de uma deficiência visual invisibilizada pela associação que me representa (o que já seria suficiente como ato de discriminação ao receber a negativa do meu direito de resposta). Tal experiência me instigou a refletir sobre a invisibilização da visão monocular como deficiência visual.

14Para analisar esta polêmica, suscitada pelo reconhecimento jurídico da visão monocular como deficiência visual e o rechaço produzido por associações de deficientes assinado pela Associação Brasileira de Antropologia, é preciso analisar o entendimento do termo deficiência e o viés capacitista a partir do qual vem sendo entendida e operacionalizada esta categoria.

15A produção legislativa sobre deficiência no Brasil se insere, conforme Symone Maria Machado Bonfim (2009, p.144), em uma etapa imprescindível para o reconhecimento da diferença, na perspectiva das categorias de reconhecimento elencadas por Axel Honneth. Ao utilizar esta concepção de reconhecimento a autora mostra que o movimento social das pessoas com deficiência no Brasil corresponde à segunda ordem do reconhecimento. Atua, desta maneira, na busca pelo reconhecimento de direitos para garantir que a sociedade possa atender às expectativas de participação igualitária dos sujeitos, enquanto signatários de deveres e de direitos. Há um protagonismo dos movimentos na garantia do reconhecimento formal dos direitos cidadãos, mas cuja materialização depende da continuidade da mobilização e do ativismo. (Bonfim, 2009, p. 141).

16Ricoeur, em “O percurso do reconhecimento” (2006, p. 202), analisa as categorias propostas por Honneth à luz dos escritos de Hegel em Iena, do qual toma: “a ideia de encadeamento de três modelos de reconhecimento intersubjetivo, colocados sucessivamente sobre a égide do amor, do direito e da estima social”. A esta perspectiva Ricoeur, ao longo de sua obra, propõe o debate sobre a continuidade da luta pelo reconhecimento, através da ideia de percurso. Neste sentido, entendo que as disputas pelo reconhecimento mútuo apresentam dinâmicas e particularidades no campo jurídico no Brasil, no que concerne ao campo das deficiências.

17No rol do reconhecimento de direitos das pessoas com deficiência, no Brasil, a legislação tem avançado bastante, apesar das dificuldades e polêmicas suscitadas. Bonfim (2009, p.184) efetua uma análise neste sentido, destacando o embate e a desconformidade dos próprios deficientes com relação às normas promulgadas, apontando que a lei aprovada é fruto de negociações, apagamentos e obliterações. O conceito de deficiência é um bom exemplo disto. A Lei nº 13.146, de 2015 conhecida como Estatuto da Deficiência estabelece sua definição no artigo segundo:

Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

§ 1º A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará:

I - os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo;

II - os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais;

III - a limitação no desempenho de atividades; e IV - a restrição de participação.

§ 2º O Poder Executivo criará instrumentos para avaliação da deficiência.

18O critério para sua definição recai sobre uma certa perenidade do impedimento na realização de atividades na vida em sociedade, cuja avaliação é estabelecida através de uma diversidade de critérios que devem fomentar a inclusão social em respeito aos direitos humanos. Assim, é o capacitismo que é considerado como parâmetro para a definição e estabelecimento da deficiência. A autora defiça Andressa Marchezan, (2018), ao efetuar uma análise de discurso do estatuto da deficiência, cotejando as definições de deficiência dos textos legais com os sentidos atribuídos ao termo em alguns dicionários, nos mostra que a atribuição de normalidade tem um viés classificatório que invisibiliza o corpo deficiente, que aparece de forma sutil no Estatuto (Marchezan, 2018, p. 9).

19Entendo que tais critérios, de uma normalidade genérica e de uma anormalidade patológica do deficiente, empurram para o terreno das abstrações e produções de sentido interessados, da legislação, em produzir um entendimento do corpo e de suas deformações/deficiências, que nos afasta do real e da fenomenologia da existência do que é normal ou patológico para o deficiente, in concreto. A questão da aparência da deficiência (Marchezan, 2018, p. 12), é considerada como critério determinante nessas classificações. Argumento com o qual concordo e que me incita a propor algumas reflexões sobre a visibilidade/invisibilidade da deficiência e de seu reconhecimento e categorização.

20Gavério (2021, p5) no artigo Apontamentos sobre a possibilidade de uma sociologia da deficiência nos incita a refletir sobre as transformações ocorridas no entendimento do duo deficiência/incapacidade como advindas do embate político entre diversos campos:

Entretanto o que parece ter ocorrido, ao longo dos anos 1980 e 1990, foi uma cristalização sociológica da reconfiguração política em torno da deficiência, bem como dos elementos e indivíduos rotulados como “deficientes”. Essa reconfiguração basicamente se apoiou em uma forma da distinção entre o corpo (lesionado) daquelas e daqueles considerados deficientes – corpos esses entendidos como entidades orgânicas fixadas no discurso médico – e a experiência/ vivência social desses mesmos sujeitos como “falha/ incompleta”. O que se buscou intensamente foi exatamente mostrar que o corpo lesionado/doente/debilitado está inserido em contextos socioculturais que o revestem com naturalizações e nomenclaturas, como a ideia de deficiência, que almejam explicar suas desigualdades sociais com respostas biomédicas. (GAVÉRIO: 2021, P.6).

21É neste sentido que minha reflexão deseja recair justamente sobre as disputas políticas relativas à ampliação do leque de deficiências visuais no país, através da promulgação da legislação que reconhece a visão monocular como deficiência. As aparências e visibilidades desempenham papeis importantes, neste contexto, conforme expressa o Manifesto abaixo que objetiva defender os direitos das pessoas com deficiência:

MANIFESTO DO MOVIMENTO DE LUTA DAS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA CONTRA O PROJETO DE LEI 1615/2019, QUE PASSA A CONSIDERAR PESSOAS COM VISÃO MONOCULAR COMO PESSOAS COM DEFICIÊNCIA

Nós, entidades representativas da sociedade civil, atuantes na defesa dos direitos das pessoas com deficiência, manifestamos nosso profundo desacordo ao Projeto de Lei 1615/2019, que dispõe sobre a classificação da visão monocular como deficiência sensorial, do tipo visual, assegurando à pessoa com visão monocular os mesmos Direitos e benefícios determinados na legislação para pessoas com deficiência.

Segundo a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), pessoas com deficiência são aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdades de condições com as demais pessoas.

O Brasil migrou do modelo médico para o modelo social de deficiência. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), uma avaliação da deficiência deixa de seguir a Classificação Internacional de Doenças (CID) para adotar a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF). O Estado Brasileiro ratificou a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência de Nova York e o seu Protocolo Facultativo sob este novo paradigma e nos moldes do art. 5º, § 3º, da Constituição da República de 1988, o que lhes assegurou o valor de norma constitucional, comprometendo-se nacional e internacionalmente a avaliação de deficiência de acordo com uma interação entre os impedimentos de longo prazo e as barreiras ambientais aferindo a limitação funcional e não mais o critério exclusivamente médico.

Embasada pela Convenção, a Lei Brasileira de Inclusão (Lei Federal 13146/2015 - LBI), também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, é o resultado da ampla participação social proveniente de quinze anos de construção coletiva com todos os atores da sociedade comprometida. O art. 2º, §1º da LBI afirma que a avaliação da deficiência será biopsicossocial realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considera os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo, os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais, a limitação no desempenho de atividades e a limitação de participação.

A respeito dado, manifestamos nosso posicionamento deste institucional e democrático, no sentido da necessidade premente de imediato do aludido art. 2º, implantando o instrumento de avaliação da deficiência na perspectiva constitucional da funcionalidade, fato que deveria ter ocorrido desde janeiro de 2018. A necessária e fundamental deve garantir a participação das pessoas com deficiência, respeitando o que prevê a Convenção: NADA SOBRE NÓS SEM NÓS!

Pessoas com deficiência visual, cegas ou com Baixa Visão, adequados de recursos de acessibilidade como o sistema de escrita e leitura Braille, letras ampliadas e com alto contraste e / ou tecnologias assistivas como lupas eletrônicas e softwares leitores de tela / sintetizadores de voz. Para seu ir e vir faz-se necessário o uso de bengala ou cão-guia e presença de pisos podotáteis (direcionais e de alerta) nos mais variados espaços e dispositivos como sinais sonoros nas travessias de ruas e avenidas. Trata-se de um grupo de pessoas com limitações severas em sua capacidade funcional. Este também é o caso de pessoas com outros tipos de deficiência, como a física, auditiva, mental e intelectual, que, igualmente, essenciais de adaptações, acessibilidade e / ou recursos de tecnologias assistivas. Citamos como exemplos para pessoas com deficiência auditiva a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) e / ou legendas, aparelhos auditivos e implantes cocleares. Ao segmento de pessoas com deficiência física, citamos o uso de muletas, cadeiras de rodas, plataformas elevatórias, rampas, portas e espaços, conforme normas técnicas.

A visão monocular é definida como visão em apenas um olho. Pessoas com esta característica possuem capacidade visual unilateral com uma redução da visão de profundidade e tridimensionalidade. No entanto, verifica-se que esta redução não se dá em grau que ocasione perdas fáceis consideráveis. Isso significa que, diferentemente das pessoas com deficiência, uma pessoa com visão monocular tem sua funcionalidade integralmente preservada, podendo realizar as mais diversas atividades da vida diária e de trabalho com segurança e autonomia. Podemos citar como exemplo o fato de obterem a Carteira Nacional de Habilitação (CNH), além de dispensarem o uso de qualquer recurso de tecnologia assistiva.

O art. 34 da LBI garantia o direito ao trabalho das pessoas com deficiência em ambiente acessível e incluído, em igualdade de oportunidades. Conforme exposto, pessoas monoculares não correspondentes de nenhuma adaptação em ambiente de trabalho, configurando, claramente, concorrência desleal na disputa de vagas reservadas às pessoas com deficiência, já que estas passariam a concorrer com pessoas sem nenhum comprometimento funcional.

Além disso, a proposição legislativa, se aprovada, gerará um grande paradoxo, sendo uma única situação prevista em lei com dispensa de avaliação funcional, pois a suposta deficiência será, de acordo com o PL em questão, aferida por meio de laudo médico especializado em oftalmologia, contrariando a determinação da deficiência pelo critério da funcionalidade, conforme a Convenção Internacional e a Lei Brasileira de Inclusão.

Fica claro que o projeto de lei em questão fere o princípio mais fundamental de nossa luta, a saber, o da inclusão de pessoas com deficiência, anulando direitos fundamentais conquistados ao longo de décadas pelo segmento, ainda tão marginalizado.

Diante do exposto, confiamos na compreensão da sociedade sobre a gravidade do que está proposto, esperando que o avanço deste debate proporcione os devidos esclarecimentos ao Parlamento Brasileiro, possibilitando a rejeição de um projeto de lei equivocado e a continuidade das conquistas ainda em curso, na direção da visibilidade social de um segmento que ainda encontra entraves para sua plena participação social. 13 de junho de 2019. MANIFESTO CONTRA A LEI VISÃO MONOCULAR

https://www.facebook.com/​coletivofeministahelenkeller/​posts/​447338019376516

22O Manifesto foi publicado pelo FB do Coletivo Feminista Helen Keller e recebeu 334 comentários e 56 compartilhamentos. Transcrevo a seguir alguns com o intuito de visibilizar as críticas e argumentos suscitados:

NF: Absurdo esse texto uma total falta de respeito com nos monoculares, vcs q acham q não é deficiência façam o seguinte tira um olho ou fique um dia , um mês , um ano a vida sem um olho por conta de uma doença , faça mais 4 cirurgias com recuperação q fique 1 uma semana 1 mês com a posição da cabeça para baixo e depois a gente conversa se não é deficiente...Mas empatia , vergonha um coletivo que não defenda o bem de um todo , que exclua um grupo por puro "achismo"...

LM: Movimento de deficientes feministas contra deficientes visuais?? Foi isso o que eu li? Estão loucas? KkkkkAlém de deturparem completamente a essência do feminismo.

JP: Eu tenho visão monocular desde criança, mas nunca a trate como deficiência, sempre tive algumas dificuldades sim, mas por ter passado minha vida toda com esse tipo de visão eu me habituei bem até. Sempre me perguntei se isso podia ser uma deficiência quando precisava responder algum questionário que perguntava sobre, mas nunca questionei o fato, nunca me classifiquei como tal. Até o dia que fui passar pelo médico do Detran, no exame ele ficou pasmo q eu não enxergava nada de um olho, mas parecia normal, aí eu expliquei a minha situação, pois eu achei que uma cirurgia resolveria meu problema, mas não, meus olhos são perfeitos, o meu problema é na "transmissão" de um olho para o cérebro, não tem até o momento o que fazer. Então assim o médico me classifica como monocular e me diz que eu não posso exercer atividades remuneradas como motorista. Pensei, poxa, que bacana, se eu tiver na merda e tentar trabalhar de uber, eu já não posso. Aí me deparo com mais um monte de informações aqui que falam que não pode nem trabalhar em diversas profissões. Achei ó, muito legal isso, e não é pq eu sou monocular. Mas quando eu soube e vi que me proíbem de efetivar uma atividade por uma condição física minha, o que eu pensei? Eu sou deficiente pô! Aí agora fui ver, tem mais um monte de trabalho que vc não pode nem sonhar em trabalhar, isso é restringir a pessoa a direitos, isso é se tornar diferente dos demais. E cada monocular tem sua singularidade, pode ter uma perda completa de visão ou parcial, mas não muda o fato dele já não ser aceito e também não poder fazer certas atividades. Triste viu, ver gente tentando tirar o direito dos outros. E me admira muito uma página feminista vir com essa conversa.

CB: Lembro quando lançou o Avatar em 3D, fui com alguns amigos assistir, eles achando o máximo tudo aquilo, enquanto eu levantava e baixava o óculos para ver se notava alguma diferença, foi quando um dos meus amigos me disse que poderia ser defeito do óculos (eu ainda nao sabia que monocular não tinha esse tipo de visão) trocamos os óculos, e foi uma grande decepção, não consegui ficar na sala. Saímos no começo do filme. Essa foi só uma das inúmeras frustrações que já tive durante a vida, perdi a visão com 9 anos, há 25 anos tenho dificuldades por conta da "deficiência"

23Há várias questões no Manifesto que me parecem discutíveis e tendenciosas, apesar da importância institucional e política do coletivo ativista feminista Helen Keller e do seu protagonismo na defesa dos direitos das pessoas com deficiência. O Manifesto caracteriza as pessoas com visão monocular como uma elite em oposição aos demais deficientes visuais, demonstrando que há um entendimento do deficiente modelar: o surdo que se comunica em libras, o cego que usa bengala.

24As críticas são efetuadas majoritariamente por pessoas que possuem visão monocular e extrapolam o entendimento de uma disputa entre grupos de deficientes. É flagrante o desconhecimento a respeito das características da visão monocular, bem como o desejo de estabelecer uma definição do que seja um deficiente visual ideal. Parece-me evidente, que o rechaço à aceitação da visão monocular como deficiência se constitui em uma disputa por mercado de trabalho no campo das ações afirmativas e concursos. Um viés capacitista que está igualmente presente na legislação.

25Há um entendimento no Manifesto de que há deficientes mais aptos que não necessitam de inclusão e outros que necessitam. Igualmente, ressalto a produção de um modelo de deficiente visual que deve ser incluído, além da própria aparência e identificação dos deficientes e do rol dos recursos que dispõem e de que devem “obrigatoriamente” se servir para serem caracterizados como deficientes.

26Mas há um argumento que se sobressai: o da visibilidade de certas deficiências e das disputas que suscita. Por isto, no embate pela classificação do que significa ser reconhecido como deficiente visual no Brasil, considero que as associações de deficientes que subscrevem o Manifesto se baseiam em um critério capacitista. como os monoculares possuem visão parcial não precisam ser respaldados e protegidos como deficientes, já que de alguma maneira “enxergam”, lembrando o ditado popular: “em terra de cego quem tem um olho é rei”.

27Ressaltando a importância da atuação do Coletivo Feminista Hellen Keller no cenário político no campo da deficiência no Brasil, gostaria claramente de me opor ao conjunto de argumentos que o Manifesto encerra, retomando o diálogo entre Kafer e Gavério sobre lesão e deficiência, que o autor realiza na resenha do livro Feminist, queer, crip, de Alison Kafer:

Assim, a teoria sociopolítica deficiente esboçada em seu livro, segundo Kafer, “não depende de uma definição fixa de “deficiência” e “pessoa deficiente”, mas reconhece os parâmetros de ambos os termos, como sempre abertos ao debate” (op. cit: 10). Deficiência se torna um local de possível reinvenção (reimagining) coletiva ao “focarmos menos nas experiências individuais da deficiência e mais na experiência política da deficientização’ [disablement]” (op. cit: 8) [ênfase minha]. (GAVÉRIO: 2015, 169)

28Lembrando a experiência política de deficientização circunscrita aos argumentos expressos no Manifesto, em embate com os argumentos trazidos pelas pessoas com visão monocular, embasados nas experiências individuais dos monoculares, com a qual me identifico e engajo como pesquisadora defiça com visão monocular, afirmo que: de alguma forma por possuirmos visão monocular estamos sendo invisibilizados como deficientes visuais. Cabe, neste cenário de embate, reconhecer a legitimidade de ambos os argumentos cujos desdobramentos se deram através da legislação brasileira.

CENA 2. “Metamorfose: a visibilização legal dos monoculares como deficientes”

29É a partir desta percepção de invisibilidade e liminaridade dos monoculares que afirmo que o jogo entre visibilidade/invisibilidade da deficiência comunica a dimensão física do fenômeno com as suas dimensões sociais. Percebo a existência de uma vinculação entre cegueira e invisibilidade física como critério absoluto para a caracterização das deficiências visuais, sendo este utilizado como paradigma e gradiente para as demais deficiências. A invisibilidade social, da visão monocular, como decorrência, se calca na negação de que se constitua em deficiência, pois pelo viés capacitista ainda há visão, mesmo que parcialmente e em apenas um dos olhos. Para o entendimento deste jogo nos processos de interação social, os lugares ocupados pela legislação e as respectivas garantias de direitos que produz são importantes de serem percebidos, para além de sua abstração e generalização.

30As críticas ao Manifesto se inserem nesta perspectiva. Extrapolam a questão legal e demonstram como as pessoas que têm visão monocular se relacionam existencialmente com as suas respectivas deficiências e como as visibilizam. Os embates envolvidos e as expressões de violência e discriminação protagonizadas fazem parte de um feixe de situações de vida que interferem e direcionam percursos e possíveis opções. A polêmica sobre a legislação referente à visão monocular, visibiliza tais embates e a própria noção relacional de deficiência, ressaltada acima. Tal polêmica demonstra um fluxo dinâmico entre experiências individuais de deficientes com visão monocular e experiências políticas de deficientização, na esteira de Kafer e Gavério (2015).

31Para Ingold (2008) a invisibilidade corresponde ao estado do que é invisível, consistindo na característica de um objeto não ser visível. Nos casos humanos remete à inexistência ou ao fato da luz visível não ser absorvida nem refletida. O invisível é imperceptível. A invisibilidade para o autor decorre da inexistência de reciprocidade visual e não da ausência de luz. Neste sentido, ele equipara invisibilidade percebida à perda de consciência de si enquanto imagem/representação. Para ele o processo de invisibilização associa esvanecimento de memória da imagem individual à percepção do outro, já que a existência do eu é confirmada na visão dos outros: “Em circunstâncias normais, ver outra pessoa é saber que você pode ser visto por ela, ver um lugar é saber que você pode, em princípio, ser visto lá por alguém. Mas, quando a outra pessoa é cega, a reciprocidade da visão se rompe. ” (Ingold, 2008, p. 34).

32Os processos de invisibilidade física, visual e social são correlatos. A visão monocular tem sido uma deficiência invisibilizada. Entendo que a comunicação entre os discursos médicos, discursos legais, coletivos que representam deficientes visuais e as experiências de vida das pessoas que têm visão monocular extrapolam critérios técnicos quando classificam saúde e doença. Tal comunicação possui dimensões simbólicas, classificatórias e sobretudo fenomenológicas. Produz hierarquias e incita disputas, como as referentes ao reconhecimento da visão monocular como deficiência no Brasil. Importa aqui assinalar, na esteira do argumento de Merleau-Ponty em Le visible et l’invisible, a dinãmica da mutabilidade dos processos visuais e linguísticos.

33O autor, ao refletir sobre a reversibilidade dos processos da visão e da linguagem que dão origem à percepção (Merleau-Ponty, 1964, p. 199), me incita a pensar a respeito das classificações das deficiências e suas simbolizações. Esta é a percepção que tenho da metamorfose ocorrida com o projeto de lei Amália Barros sancionado como lei, reconhecendo a visão monocular como deficiência visual no Brasil. Apesar da polêmica, o PL Amália Barros foi aprovado e sancionado como lei (Lei 1426/2001), bem como o Decreto 10654/2011 que o regulamenta em termos da avaliação para o seu reconhecimento.

LEI 14.126, DE 22 DE MARÇO DE 2021

Classifica a visão monocular como deficiência sensorial, do tipo visual.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º Fica a visão monocular classificada como deficiência sensorial, do tipo visual, para todos os efeitos legais.

Parágrafo único. O previsto no § 2º do art. 2º da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 (Estatuto da Pessoa com Deficiência), aplica-se à visão monocular, conforme o disposto no caput deste artigo.

Art. 2º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 22 de março de 2021; 200o da Independência e 133o da República. JAIR MESSIAS BOLSONARO

DECRETO 10.654, DE 22 DE MARÇO DE 2021

Dispõe sobre a avaliação biopsicossocial da visão monocular para fins de reconhecimento da condição de pessoa com deficiência.

O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, caput, inciso IV, da Constituição, e tendo em vista o disposto na Lei nº 14.126, de 22 de março de 2021,

DECRETA:

Art. 1º Este Decreto dispõe sobre a avaliação biopsicossocial da visão monocular para fins de reconhecimento da condição de pessoa com deficiência.

Art. 2º A visão monocular, classificada como deficiência sensorial, do tipo visual, pelo art. 1º da Lei nº 14.126, de 22 de março de 2021, será avaliada na forma prevista nos § 1º e § do art. 2º da Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015, para fins de reconhecimento da condição de pessoa com deficiência.

Art. 3º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.

Brasília, 22 de março de 2021; 200º da Independência e 133º da República. JAIR MESSIAS BOLSONARO

34A legislação promulgada, apesar das polêmicas suscitadas, reconhece a visão monocular como deficiência visual no Brasil, contribuindo para a “reversão” de sua invisibilidade social como deficiência. O Decreto corrobora com a aplicabilidade da norma através da avaliação biopsicossocial, abrindo possibilidades e regulando este reconhecimento.

CENA 3: A avaliação biopsicossocial da deficiência para aposentadoria especial: no fio da navalha entre o capacitismo e a invalidez

  • 2 Com o Decreto 186/2008 o Brasil torna-se signatário da convenção internacional sobre deficiência. A (...)

35 A garantia jurídica do reconhecimento da visão monocular e sua classificação como uma das deficências visuais no Brasil se inscreve em um processo amplo que remete a uma série de normas e procedimentos relativos ao reconhecimento jurídico das deficências e rol de disputas.2

36O percurso para o reconhecimento legal da deficiência remete a uma série de procedimentos para sua efetivação. A previsão legal da deficiência está intrinsecamente relacionada com a sua “validação” que ocorre através da perícia como chancela deste reconhecimento. A perícia como procedimento administrativo tem sido alvo de tranformações e de polêmicas que afetam diretamente a vida de milhões de deficientes no Brasil. Diversos estudos dão conta das suas especificidades e limitações. Neste sentido, considero importante refletir sobre o significado dos laudos periciais e o poder que encerram. Diniz, Barbosa e Santos (2009) ao analisarem a relação entre deficiência e perícia médica para fins de concessão do Benefício de Prestação Continuada (BPC) no Brasil, entre 2003 e 2005, destacam as arbitrariedades e desigualdades geradas por sistemas classificatórios biomédicos:

A perícia médica é uma peça central à avaliação dos contornos dos corpos deficientes para a proteção social. No entanto, o conceito de deficiência não se resume a um catálogo de lesões, deficiências ou doenças para determinar qual corpo é incapaz para a vida independente e para o trabalho, duas variáveis que garantem a elegibilidade ao benefício. Há nuances, gravidades e sutilezas nas condições de saúde e doença, o que demonstra a insuficiência da narrativa biomédica para classificar os corpos. Deficiência não é apenas um conceito médico ou a corporificação de uma classificação de disfuncionalidade: é principalmente a expressão de uma relação complexa entre corpo e sociedade, em que estigmas, exclusão e opressão operam (DINIZ; BARBOSA; SANTOS, 2009, p. 21).

37A reflexão efetuada pelos autores demonstra o poder de classificação da perícia em choque com um modelo que entende a deficiência para além de sua concepção biomédica, mas como modo de vida. Meu argumento é de que a dimensão legal é uma parcela importante no processo do reconhecimento da diferença, não sua garantia, muito menos sua aceitação. É neste sentido que volto a argumentar a respeito do viés capacitista com que os deficientes no Brasil se deparam cotidianamente. Refiro-se à perversidade de uma legislação que gera expectativas de direito que a seguir são ceifados por procedimentos politicamente corretos, mas inadaptados.

38Liziane Matos, ao caracterizar da perícia médica, utiliza-se da noção de biolegitimidade, proposta por Fassin (2003) que remete ao corpo como recurso para reivindicação de direitos. Assim, para Matos: Na realização da perícia médica, a apresentação do corpo propriamente dito e a reunião de documentos considerados relevantes são recursos utilizados no encontro com agentes do Estado, e que garantiriam a legitimidade e a elegibilidade deste corpo para o recebimento de benefícios. (MATOS, 2016, p.81). Igualmente Pedrete (2022) ao analisar processos de judicialização alerta que: De fato, pesquisadores em deficiência têm chamado atenção para as fronteiras borradas entre impedimento (em sentido médico) e deficiência (em seu caráter social), de modo que combatem a negligência do impedimento como um aspecto importante para vida de muitas pessoas com deficiência (Shakespeare, 2013; Wendell, 2001). Pedrete (2022, p23).

39As reflexões de Matos (2016) e Pedrete (2022) têm aqui a ambição de demonstrar que a norma jurídica, por si só, não é garantia para a aquisição de direitos. Corroborando com seu argumento vale assinalar o entendimento da noção de pessoa em relação à norma jurídica e aos procedimentos que encerra para a aquisição e efetivação do direito. Meu argumento se conecta igualmente com a observação de Duarte (2002, p. 141) de que o direito ocidental nega a dimensão da relatividade cultural ao indivíduo. É do encontro entre a noção de pessoa na construção de si, em suas identidades coletivas e individuais, e a noção de indivíduo que se engendra o entendimento contemporâneo da noção de direitos individuais e seus desdobramentos (Duarte, 2002, p. 141-142).

40Apesar da clara oposição entre a pessoa como ente de relações e o indivíduo feixe de autonomia, o autor demonstra que o discurso jurídico ocidental moderno, por sua tradição romana universalisante, reforçada pela ideologia individualista, não contempla a relatividade cultural da noção de indivíduo. (Duarte, 2002, p. 141-142). Isto significa, no meu entendimento, que há lacunas nos processos de pessoalização/individuação, na aplicação das normas e seus procedimentos que impedem a concretização e garantia dos direitos humanos.

41O processo que levou a transformação da perícia biomédica em perícia biopsicossocial é elucidativo neste sentido. Tal modelo visto como uma conquista, por se relacionar ao entendimento social da deficiência, foi instituído pela Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015), criando um novo instrumento com o intuito de identificar as condições de saúde baseando-se no IFBR, o índice de funcionalidade, incapacidade e saúde.

42Barbosa e Pereira (2016) analisam as conquistas e avanços da Lei Complementar 142/2013 que estabelece a aposentadoria especial para trabalhadores deficientes, mencionando a passagem do modelo biomédico para o modelo biopsicossocial para classificação e mensuração da deficiência. O modelo biomédico baseia-se na classificação internacional da doença como critério preponderante (CID) e o biopsicossocial no CIF. Esta ferramenta denominda Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde foi criada em 2001 pela OMS e tem como instrumento o IFBR-A, (Barbosa et alli p.7), No entanto, para que o instrumento atinja seus objetivos protetivos para garantia de direitos é necessário que seja acompanhado de um entendimento da noção social de deficiência, para além da sua perspectiva capacitista, vista como anormalidade, que permeia a atuação de grande parte dos profissionais.

43 Em pesquisa realizada junto ao INSS em Brasília os autores registram a dificuldade enfrentada tanto pelos profissionais de saúde que avaliam os segurados quanto para os deficientes e a adequação efetuada para sua realização, explicando como o instrumento foi adaptado para ser utilizado no Brasil. O instrumento lista 41 atividades desenvolvidas entre sete domínios, sendo as mesmas avaliadas por pontuações que consideram a dependência dos sujeitos avaliados em relação a pessoas ou tecnologias etc:

As atividades são baseadas na Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), e a pontuação é uma adaptação da Medida de Independência Funcional (MIF), documentos reconhecidos internacionalmente para a discussão sobre deficiência e saúde coletiva. A avaliação de cada atividade é realizada por meio de quatro pontuações (100, 75, 50 e 25) em que 100 representa a completa independência funcional e 25 a não execução da atividade ou a completa dependência de terceiros. As pontuações intermediárias são 75, atribuída aos sujeitos que executam as atividades com o auxílio de tecnologias assistivas ou de forma diferente da considerada usual; e 50, conferida quando é necessário o auxílio, a supervisão ou a preparação de alguma etapa da atividade por terceiros. (BARBOSA e PEREIRA, 2016, p.3019).

44É nítida a intenção de melhoria nos critérios de avaliação da deficiência e a sincronicidade adotada entre os procedimentos internacionais e brasileiros. Os autores, a título de conclusão da pesquisa, revelam, no entanto, um conjunto de problemas e limitações da utilização deste instrumento para fins de aposentadoria especial. Seus argumentos passam pelo choque entre diferentes entendimentos de deficiência em termos de sua instrumentalização aos casos concretos, do contexto de aplicação do IFRBrA no INSS, em termos do conjunto de rotinas de trabalho dos profissionais de saúde, da insatisfação dos segurados que o interpretam a partir da diversidade de suas experiências e dos níveis de politização da deficiência que encarnam. (Barbosa e Pereira, 2016, P3024-5).

45É encarnando a postura de deficiente politizada, da experiência que protagonizei para reconhecimento e mensuração da deficiência que desejo denunciar o teor capacitista de tais procedimentos que, com a reforma da previdência do governo Bolsonaro, passam também a ser realizados no ãmbito do funcionalismo público. Para Sartori e Costa:

Com a superveniência da Reforma da Previdência em 2019 (Emenda Constitucional 103), o legislador manteve a aposentadoria da pessoa com deficiência em condições diferenciadas. Além disso, reforçou o que a jurisprudência vinha decidindo sobre o assunto, determinando a aplicação da Lei Complementar n. 142/2013 que disciplina a aposentadoria especial no âmbito do Regime Geral de Previdência até que sobrevenha nova lei complementar. O constituinte derivado agregou apenas dois novos requisitos (10 anos de serviço público e 5 anos no cargo) para preenchimento das condições em se tratando de um servidor público. (SARTORI e COSTA, 2021, p.6).

46Desejo me reportar a dois momentos que vivenciei para elucidar meu argumento, denunciando as dificuldades ensejadas tanto pela perícia médica como psicossocial. O primeiro ocorreu em abril de 2019 quando solicitei na universidade em que trabalho o reconhecimento da minha condição de deficiente visual. Fui submetida a uma perícia médica apresentando laudo e exames. A junta médica formada por três profissionais reconheceu que tenho visão monocular e baixa visão, baseando-se na documentação apresentada e na entrevista realizada com assistente social. Apesar da concessão de horário especial, minha situação de deficiente não foi registrada na ficha funcional exigindo um novo processo administrativo que perdurou até o final de 2019. Durante o ano de 2019 vivenciei o despreparo da Comissão de Acessibilidade da UFSM que jamais implementou as adaptações solicitadas no local em que trabalho. Enfrentei ainda um grave acidente de trabalho no campus, cuja reclamação à ouvidoria da UFSM recebi como resposta um: “Sentimos muito”. Tais situações me permitem afirmar mais uma vez que o cenário em que vivemos como deficientes no Brasil é amplamente capacitista. Gravita das normas, as mentalidades, as instituições, organizações e pessoas que as animam.

47A situação que relato a seguir ocorreu em plena pandemia, em dezembro de 2021. Estava ainda trabalhando em casa, em quarentena pelo quarto semestre consecutivo, mas já sendo chamada a retornar ao trabalho presencial porque a legislação trabalhista não contempla nenhuma das deficiências visuais como grupo de risco do COVID-19. A resposta que recebi da PROGEP (Pró-reitoria de Gestão de Pessoas), quando apresentei o laudo médico indicando minha vulnerabilidade foi de que se eu não estivesse satisfeita com as condições de trabalho que solicitasse aposentadoria por invalidez. Eu não estava em situação de invalidez, apenas desejava condições de trabalho que garantissem a segurança sanitária que necessitava para continuar a desenvolver minhas atividades.

48Na primeira semana de dezembro de 2021 eu havia apresentado minha tese para a progressão a professor titular. Uma pesquisa sobre percepção visual intitulada: “Com os meus olhos”: uma autoetnografia perspectivista da percepção visual com nistagmo e visão monocular” (Brum, 2021). Aos 53 anos estava fechando um ciclo de vida, refletindo justamente sobre como a deficência tem perpassado meu percurso na construção do conhecimento e na minha forma de estar no mundo. Assim, entendi que havia chegado o momento de efetuar a mensuração da deficiência para fins de aposentadoria especial, conforme o artigo 3º da LC 142/2013

Art. 3º É assegurada a concessão de aposentadoria pelo RGPS ao segurado com deficiência, observadas as seguintes condições:

I - aos 25 (vinte e cinco) anos de tempo de contribuição, se homem, e 20 (vinte) anos, se mulher, no caso de segurado com deficiência grave;

II - aos 29 (vinte e nove) anos de tempo de contribuição, se homem, e 24 (vinte e quatro) anos, se mulher, no caso de segurado com deficiência moderada;

III - aos 33 (trinta e três) anos de tempo de contribuição, se homem, e 28 (vinte e oito) anos, se mulher, no caso de segurado com deficiência leve; ou

IV - aos 60 (sessenta) anos de idade, se homem, e 55 (cinquenta e cinco) anos de idade, se mulher, independentemente do grau de deficiência, desde que cumprido tempo mínimo de contribuição de 15 (quinze) anos e comprovada a existência de deficiência durante igual período.

Parágrafo único. Regulamento do Poder Executivo definirá as deficiências grave, moderada e leve para os fins desta Lei Complementar.

49Há um consenso entre os autores em dizer que a aposentadoria especial não foi tocada pela reforma da previdência no governo Bolsonaro. Do ponto de vista da previsão legal não houve uma transformação aparente e tal fato é comemorado como uma preocupação do governo e um engajamento político na proteção dos deficientes no Brasil. Afirmo aqui, mais uma vez o teor perverso da legislação e da postura governamental travestida em politicamente correta.

50O que boa parte dos comentadores não registra é que os proventos da aposentadoria especial sofreram uma enorme transformação a partir de outubro de 2019, quando passam a ser calculados a partir da média de todas as contribuições dos segurados deficientes e não das 80% maiores contribuições como era anteriormente. Tal medida perversa se torna ainda mais abjeta quando como deficientes vivenciamos o procedimento da pericia biopsicossocial para classificação do grau de deficiência e contagem do tempo para aposentadoria, como apresento a seguir.

- Eu me sentia fortalecida, relativamente informada e suficentemente politizada para fazer frente a um momento que eu pressentia como doloroso, mas necessário para planejar a minha vida nos próximos anos. Recebi as profissionais para a realização da primeira parte da perícia na minha casa, uma vez que, por estar em trabalho remoto, não seria possível analisar minhas condições de trabalho na universidade. Segundo elas fui a primeira servidora da instituição a ser submetida ao novo procedimento para mensuração do grau de deficiência para fins de aposentadoria. Percebi que estavam extremamente desconfortáveis. Não aceitaram nem mesmo um copo d´água e demonstraram muita pressa em passar a um formulário que necessitavam preencher e que disseram ser longo. Da minha parte fiz questão de mostrar o ambiente em que vivia e os recursos que utilizava no meu cotidiano. Da infinidade de perguntas que respondi lembro especialmente da referente ao deslocamento. Deixei registrado que era usuária de transporte coletivo (em virtude das limitações visuais severas que sempre possuí) e que tinha dificuldade de enxergar os letreiros indicativos da direção do ônibus. Tentado minorar tal situação uma delas me perguntou e eu respondi:

- Tu pedes ajuda se alguém está na parada de ônibus?

- Não porque ao admitir que não estou vendo os letreiros reconheço minha condição de vulnerável e posso ser furtada, por exemplo. Não concordas comigo?

Um silêncio se instaurou e não sei qual foi a pontuação que atingi neste quesito de avaliação. Após 3 horas respondendo a questões, as assistentes sociais registraram que estava terminado e que eu seria chamada para a perícia médica em alguns dias. Na perícia médica respondi igualmente às mesmas perguntas e solicitei que fossem juntados aos autos alguns exames recentes e a minha tese para esclarecer a respeito do meu percurso de vida como deficiente. Não os encontrei digitalizados on-line ao consultar o referido processo posteriormente.

Algumas semanas depois fui verificar o andamento do referido processo de avaliação do grau de deficiência e me surpreendi com o resultado: Deficiência Leve, logo necessidade de 29 anos de trabalho para requerer a aposentadoria especial. Numa atitude nervosa comecei a rir sem conseguir me controlar. Uma piada porque esta avaliação me colocou em uma situação em que seria mais dificil, em termos de tempo de serviço, solicitar a aposentadoria especial do que a aposentadoria ordinária que exige 25 anos de contribuição e 62 anos de idade (conforme Lei 8112/1990, atualizada pela reforma previdenciária 2019). Passados dois dias, quando fui juntar o material para conversar com o advogado do sindicato para esclarecer como deveria proceder em face de tal disparate, verfiquei que o meu grau de deficiência tinha sido alterado para Moderada o que siginifica uma minoração de quatro anos de trabalho.(Diário de campo 3, p49-50).

51Autores como Barbosa e Pereira (2017); Izquierdo e Costa (2017); Diniz e Santos (2009) vêm assinalando os problemas gerados na mensuração da deficiência. Afirmo que a avaliação biopsicossoal está servindo como instrumento complicador, pois dificulta a aquisição da aposentadoria. Sartori e Costa (2021, p.8) apud Martinez diferenciam as modalidades de perícia e refletem sobre seus desdobramentos como instrumentos procedimentais definindo a perícia biomédica como aquela realizada por médico e que avalia a situação biológica (corpo físico e psíquico). A perícia social, realizada por assistente social, avalia os fatores sociais e ambientais nos quais o indivíduo está inserido e qual o nível de influência no seu estado de saúde emocional e físico. Por sua vez, a perícia biopsicossocial é a avaliação conjunta da perícia biomédica com a perícia social, realizada pelo médico perito, com a emissão de parecer técnico conclusivo da capacidade laboral.

52A avaliação da deficiência efetuada pela perícia biopsicossocial adotada pelo Ministério da Previdência Social do Brasil e igualmente para os servidores públicos abrange além do(s) perito(s) médico(s), os assistentes sociais para análise dos aspectos psicológicos, biológicos e sociais que influenciam o desenvolvimento, a capacidade laboral e o bem-estar de uma pessoa com deficiência. Tal avaliação pericial vem se configurando em desafio. Corroborando meu argumento, Sartori e Costa afirmam:

Primeiro, porque os órgãos e entidades a que estão vinculados os servidores públicos, muitas vezes, não dispõem de profissionais para realização da perícia ou estão pouco habituados, inviabilizando a concretização do direito. Segundo, porque a documentação médica no passado era escassa, ficando muitas vezes de posse dos hospitais que na época não possuíam arquivos organizados e informatizados. Agrega-se, ainda, o fato de que os segurados ou seus responsáveis sequer imaginariam que no futuro essa documentação seria essencial para concessão de um benefício previdenciário. (SARTORI e COSTA, 2021,p8).

53Ao que parece, do ponto de vista procedimental estamos muito distantes do belo argumento de Barbosa e Pereira apresentado abaixo, a respeito dos benefícios de uma perícia biopsicossoal como reconhecimento e alargamento da expectativa de direito de deficientes que não sofram restrição na participação do trabalho, mas em outros aspectos de seu cotidiano:

Assim, mesmo uma pessoa com deficiência que não sofra restrição de participação no trabalho, mas que sofra restrições em outras dimensões da vida, poderá ser considerada pessoa com deficiência e ser beneficiada pela LC 142. A identificação das pessoas com deficiência pelo IFBr-A deve observar, antes, o conceito de deficiência da Convenção, mesmo para direitos trabalhistas. Nesse sentido, o IFBr esforça-se de forma importante por considerar dimensões fundamentais da participação, contemplando os domínios Sensorial; Comunicação; Mobilidade; Cuidados Pessoais; Vida Doméstica; Educação, Trabalho e Vida Econômica; Socialização e Vida Comunitária. Tais domínios não emergem como um esforço isolado do grupo que criou o instrumento, mas considera instrumentos internacionais reconhecidos na sua identificação. Os sete domínios abarcados pelo instrumento são, assim, integralmente retirados da Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF). (BARBOSA et alli p4).

54O que tenho vivenciado como deficiente e que tem sido sustentado pelos autores já citados é provavelmente uma deturpação do procedimento da perícia biopsicossial que passa a servir aos fins manipulatórios do estado-nação neoliberal. É através do refinamento de um instrumento reconhecido internacionalmente que temos sido vítimas de mais uma forma de opressão capacitista e demagógica no Brasil.

55Capacitista porque empurra a avaliação da deficiência para um terreno pantanoso com uma retórica elaborada por sete domínios, permitindo uma discricionariedade abusiva dos peritos, traduzida em pontuação. Mas desta vez o capacitismo é invertido (mas nunca a nosso favor) para nos fazer crer e convencer que somos mais aptos e capazes do que imaginamos e por isto poderemos trabalhar mais tempo...até que a lei nos contemple. Demagógica porque cria uma linguagem baseada em oposições simplórias e piedosas de defesa dos deficientes e sua manipulação. Tais medidas legais e administrativas corroboram para a exclusão, através de mecanismos pouco aparentes, mas que ferem fundo a quem os experencia.

Palavras finais: reconhecimento, solidariedade e visibilidade

56Ao longo deste trabalho tentei demonstrar que o campo político da deficência no Brasil tem se caracterizado por um cenário capacitista que gravita das disputas pelo alargamanto da definição das deficiências reconhecidas no Brasil, como no caso apresentado a respeito da visão monocular, seu reconhecimento jurídico e desdobramentos, bem como na efetivação do reconhecimento e mensuraçação da deficência, para fins de aposentadoria especial. Percebo também uma mentalidade capacitista que perpassa diversas instâncias da sociadade civil e vem travestida de um discurso piedoso com relação ao tratamento dispensado aos deficientes no Brasil. Tentei demonstrar que este discurso ultrapassa as esferas legais e administrativas, metamorfoseando expectativa de direitos em impedimentos. Gostaria de concluir registrando que as percpeções apresentadas ao longo deste texto foram possíveis porque vivi nos últimos dois anos da minha vida um processo de aceitação e politização da deficiência.

57Ricoeur, ao estudar o percurso do reconhecimento, assinala que a esfera jurídica do reconhecimento da diferença é um caminho obrigatório e imprescindível. Entendo que deve ser acompanhada do reconhecimento de si – para além do pertencimento. Acredito que é da aceitação da diferença que brota a confiança na possibilidade de transformação do cenário mencionado. Ricoeur (2006, p. 211) ao analisar o reconhecimento jurídico assinala sua “superioridade” com relação à esfera do amor, onde o respeito assume o lugar da confiança, sendo marcado por uma pretensão ao universal para além da proximidade dos laços afetivos. Para o autor:

Neste sentido, o objetivo do reconhecimento é duplo: outrem e a norma; no que diz respeito à norma, o reconhecimento significa, no sentido lexical da palavra, considerar válido, admitir a validade; no que diz respeito à pessoa, reconhecer é identificar cada pessoa enquanto livre e igual a toda outra pessoa; o reconhecimento no sentido jurídico acrescenta assim ao reconhecimento de si, em termos das capacidades [...], as novas capacidades provenientes da conjunção entre a validade universal da norma e a singularidade das pessoas. Esta estrutura dual do reconhecimento jurídico consiste, assim, na conexão entre a ampliação da esfera dos direitos reconhecidos às pessoas e o enriquecimento das capacidades que estes sujeitos reconhecem em si mesmos. Essa ampliação e este reconhecimento são o produto de lutas que pontuam a inscrição, na história, desses dois processos solidários (RICOEUR, 2006, p. 211-212).

58Ele menciona a solidariedade entre a norma e a esfera individual ao longo da história. Questiono a complementariedade destes processos que não me parecem solidários, mas solitários. E julgo necessário retomar a ideia de percurso para avançar. O que desejo pontuar é que a noção de deficiência como modo de vida proposta por Diniz (2007) é fenomenológica e se relaciona a uma produção de conhecimento calcada na convicção do reconhecimento político da diferença, necessária à igualdade de direitos. As transformações nos estudos sobre deficiência no Brasil, com as quais dialoguei ao longo deste artigo demonstram cada vez mais a complexidade deste campo de estudo, apontando para a validade da utilização do termo deficiência, em conformidade com Gavério (2015 e 2021) e Lopes (2019). Igualmente tais estudos, ao dialogarem com Kafer ( 2013), demonstram seu caráter dinâmico, político e relacional, colocando em diálogo experiências políticas de deficientização e experiências individuais de deficientes.

59Tais concepções nos fazem avançar na busca por uma legislação que garanta o reconhecimento da diferença dos cidadãos, em uma sociedade democrática. Esta perspectiva, igualmente, potencializa a transformação de mentalidades a respeito das deficiências e suas classificações. No entanto, as normas como estão postas, os procedimentos administrativos como são implementados, as instituições como se organizam são atravessadas por uma mentalidade capacitista opressora.

60Da minha parte há um desejo de esperança para o encerramento das três cenas aqui apresentadas. Porém, como propor a resolução de assimetrias de tal ordem quando o reconhecimento jurídico começa a dar sinais de falência em uma sociedade “democrática” na proteção e garantia de direitos humanos?

61José Saramago (2020) na apresentação do Ensaio sobre a Cegueira, citando o Livro dos Conselhos, nos ensina que: “se podes olhar vê. Se podes ver repara.” O faço do ponto de vista da fenomenologia e do perspectivismo da percepção produzida a partir da experiência vivida como deficiente visual com nistagmo e visão monocular e do seu entendimento como um modo de vida e como alteridade. O que reparo é a solidão dos processos vividos pelos mais de 17 milhões de deficientes no Brasil. O que proponho (Brum, 2021, p.160) é um investimento pessoal e coletivo no processo de politização para a retirada das pessoas com deficiência de lugares invisíveis. Barbosa e Pereira (2016, p.7) assinalam que para politizar o discurso sobre a deficiência é necessário que o sujeito leia o mundo sob uma ótica específica, que demonstre que as restrições causadas pela deficiência tiveram impacto significativo em sua rotina de vida e em sua história.

62O processo de politização, no meu entendimento, para se tornar potente tem de ser acompanhado de uma ampla transformação perceptiva a respeito das deficiências, um perspectivismo (Brum: 2021, p.160). Trata-se de perceber a diferença como princípio de relacionalidade para corrigir a noção corponormatividade. Uma pedagogia existencial com o sujeito deficiente na sua forma de existir no mundo. É do nosso lugar de fala perspectivado que devemos denunciar as dominações impostas pelo estado neoliberal. É do nosso poder de inventar e propor alternativas que pode brotar esta metamorfose da solidão para a solidariedade e atingir a reversibilidade dos processos de invisibilização da deficiência.

Topo da página

Bibliografia

BARBOSA, L., Pereira, Éverton L., & Rodrigues, D. da S. (2017). LC 142: desafios da avaliação da deficiência em um marco de justiça. In Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional25(4), 909–915. https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4322/2526-8910.ctoARF0963

BARBOSA, L. PEREIRA, É. Índice de Funcionalidade Brasileiro: percepções de profissionais e pessoas com deficiência no contexto da LC 142/2013 in Ciênc. saúde colet. 21 (10). Out 2016. p.3017-3026. DOI: 10.1590/1413-812320152110.18352016

BONFIM, S. M. M. A luta por reconhecimento das pessoas com deficiência: aspectos teóricos, históricos e legislativos. 213 p. 2009. Dissertação de (Mestrado em Ciência Política) –Universidade Federal do Rio Janeiro, RJ, 2009.

BRASIL. Lei Nº 14.126, de 22 de março de 2021. Classifica a visão monocular como deficiência sensorial do tipo visual. Disponível em: https://www.in.gov.br/ en/web/dou/-/lei-n-14.126-de-22-de-marco-de-2021- 309942029. Acesso em: 19 de maio 2021.

________Decreto Nº 10.654, de 22 de março de 2021. Dispõe sobre a avaliação biopsicossocial da visão monocular para fins de reconhecimento da condição de pessoa com deficiência. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato 2019-2022/2021/decreto/D10654.htm. Acesso em: 19 de maio 2021.

BRUM. Ceres Karam. “Com os meus olhos”: uma autoetnografia perspectivista da percepção visual com nistagmo e visão monocular. Tese de livre docente. UFSM, 2021. 171ps http://repositorio.ufsm.br/handle/1/23981

COSTA, J.C.C. e IZQUIERDO, Ana Maria. O procedimento biopsicossocial: da perícia à habilitação/reabilitação profissional. Revista de Direitos Sociais, Seguridade e Previdência Social Brasília | v. 3 | n. 1 | p. 1 – 22 | Jan/Jun. 2017.

DINIZ, D: O que é deficiência. São Paulo: Brasiliense, 2007.

DINIZ, D.; SANTOS, W. R. Deficiência e perícia médica: os contornos do corpo. RECIIS – R. Eletr. de Com. Inf. Inov. Saúde, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p. 16-23, jun. 2009. https://www.reciis.icict.fiocruz.br/index.php/reciis/article/view/801 Acesso em: 10 de março de 2021.

DUARTE, L. F. D. Pessoa e indivíduo. Temas antropológicos para estudos jurídicos. Coordenação Antonio Carlos de Souza Lima. Rio de Janeiro: ABA/LACED/Contracapa, p. 141-145, 2002.

GAVÉRIO, Marco Antônio Resenha de: kafer, alison. Feminist, queer, crip.

Bloomington: indiana university press, 2013. (edição kindle) in Revista Florestan Fernandes - Ano 3 - N. 1 2015- Pag. 165-173 consulta em 12 de julho de 2023 file:///C:/Users/ceres/Downloads/admflorestan,+Gerente+da+revista,+03-01+(1).pdf

___. Apontamentos sobre as possibilidades de uma Sociologia da Deficiência in Contemporânea v. 11, n. 2 p. 579-587 Maio–Ago. 2021 file:///C:/Users/ceres/Downloads/admrcds,+5+-+Apontamentos+sobre+as+possibilidades+de+uma+Sociologia+da+Defici%C3%AAncia.pdf consulta em 10 de julho de 2023

INGOLD, T. Pare, Olhe, Escute! Visão, Audição e Movimento Humano. Ponto urbe,

v. 3, p. 1 -53, 2008. Disponível em: file:///D:/_Usu%C3%A1rio/Downloads/pontourbe- 1925.pdf. Acesso em: 10 de setembro de 2019.

Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015 “Estatuto da Deficiência” http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm acesso em 02 de julho de 2022.

Lei 8112/1990 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8112cons.htm acesso em 02 de julho de 2022.

Lei Complementar 142/2013 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp142.htm acesso em 04 de julho de 2022.

LOPES, Pedro. Deficiência como categoria analítica: Trânsitos entre ser, estar e se tornar in Anuário Antropológico volume 44, n.1, 2019, 67-91 https://periodicos.unb.br/index.php/anuarioantropologico/article/view/22948/22398 consulta em 09 de julho de 2023.

MANIFESTO CONTRA A LEI VISÃO MONOCULAR http://www.aba.abant.org.br/files/20190624_5d10e7b0c5bdb.pdf consulta em 2/07/2019

MARCHEZAN, A. Discurso sobre deficiência e sua relação com os conceitos o normal e o anormal, de Georges Canguilhem. MEMENTO – UNINCOR, p. 14, jan./jun. 2018. file:///D:/_D/Documentos%20Usu%C3%A1rios/ Desktop/artigo%20Andressa%20Marc hezan.pdf. Acesso em: 19 de maio 2021.

MATOS, Liziane Gonçalves de Como se decide a (in)capacidade e a deficiência? Uma etnografia sobre moralidades e conflitos em torno da perícia médica previdenciária / Liz-- 2016. 267 f. Tese de doutorado PPGAS/UFRGS https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/168938/001047150.pdf?sequence=1&isAllowed=y

Consulta em 13 de julho de 2023.

MELLO, A. G. de. Olhar, (não) ouvir, escrever: uma autoetnografia ciborgue. UFSC, 184 p. 2019. https://repositorio.ufsc.br/bitstream/handle/123456789/215355/PASO0498- T.pdf?sequence=-1&isAllowed=y. Acesso em: 15 de maio de 2021.

MERLEAU-PONTY, M. Le visible et l’invisible. Paris: Galimard, 1964.

Projeto de Lei 1615/2019 https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/135839 acesso em 4 de julho de 2022.

PEDRETE, Leonardo. Como “dar o care” para quem “não tem o home”? Deficiência e judicialização de cuidados domiciliares em saúde Horiz. antropol., Porto Alegre, ano 28, n. 64, p. 233-262, set./dez. 2022 file:///C:/Users/ceres/OneDrive/%C3%81rea%20de%20Trabalho/artigo%20para%20Ponto%20Urbe/artigo%20Leonardo%20Pedrete.pdf

Consulta em 13 de julho de 2023

RIBEIRO, D. Lugar de fala. São Paulo: Pólen, 2019.

RICOEUR, P. Percurso do reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2006.

ROCHA, Letícia e SARTORI, Giovanni. Visão monocular: direito à aposentadoria especial e à isenção do imposto de renda

SANTOS, B. de S. A cruel pedagogia do vírus. São Paulo: Boitempo, 2020. Disponível em: file:///D:/_D/Documentos%20Usuários/Downloads/A-cruel- pedagogia-do-Vírus-by-Boaventura-de-Sousa-Santos-. Acesso em: 15 de agosto de 2021.

SARAMAGO, J. Ensaio sobre a cegueira. Porto: Porto Editora, 2020.

Topo da página

Notas

2 Com o Decreto 186/2008 o Brasil torna-se signatário da convenção internacional sobre deficiência. A Lei Complementar 142/2013 estabelece a aposentadoria especial para trabalhadores deficientes e o Estatuto das Pessoas com Deficiência - Lei 13146/2015- estabelece um conjunto de disposições a respeito dos direitos da categoria. Apesar do viés capacitista já assinalado, estes são marcos incontestáveis neste processo e devem ser considerados como conquistas.

Topo da página

Para citar este artigo

Referência eletrónica

Ceres karam Brum, «“Em terra de cego quem tem um olho é rei”: reflexões sobre capacitismo, deficiência e reconhecimento»Ponto Urbe [Online], 31 | 2023, posto online no dia 10 dezembro 2023, consultado o 08 dezembro 2024. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/pontourbe/15540; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/pontourbe.15540

Topo da página

Autor

Ceres karam Brum

Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professora titular do Departamento de Ciências Sociais da UFSM.

E-mail : cereskb@terra.com.br

ORCID : https://orcid.org/0000-0001-6152-8616

Topo da página

Direitos de autor

CC-BY-4.0

Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.

Topo da página
Pesquisar OpenEdition Search

Você sera redirecionado para OpenEdition Search