Navegação – Mapa do site

InícioNúmeros31ArtigosEntre desrespeito e reconheciment...

Artigos

Entre desrespeito e reconhecimento: Racismo e sexismo no cotidiano de advogadas negras brasileiras

Between disrespect and recognition: Racism and sexism in the daily life of black Brazilian female lawyers
Andressa Lidicy Morais Lima

Resumos

Neste artigo analiso situações nas quais advogadas, interlocutoras de pesquisa etnográfica, vivenciaram experiências de desrespeito envolvendo questões de raça e gênero no contexto de sua atuação profissional. Faço uso dos conceitos de racismo e sexismo (Gonzalez, 2018; 2020), de insulto moral (Cardoso de Oliveira, 2002) e reificação racial (Morais Lima, 2020) para tratar das diferentes situações em que as expectativas de reconhecimento são negadas e acompanhadas de rebaixamento e desqualificação. Também procuro esboçar em que circunstâncias é possível pensar as mesmas experiências profissionais ressignificadas em termos de práticas de liberdade (Hooks, 2013) e de lutas por reconhecimento (Honneth, 2003).

Topo da página

Notas da redacção

Versão original recebida em / Original version 20/12/2022 Aceitação / Accepted 30/05/2023

Texto integral

Introdução

1Como é sabido, por muito tempo, o estudo do direito foi reservado ao campo disciplinar da filosofia, seja no subcampo da filosofia do direito, seja em outras variantes da filosofia, a exemplo da filosofia política e da filosofia moral. Porém, com advento da sociologia e da antropologia, o direito ganhou um estatuto de objeto de interesse científico, resultando em diferentes lentes interpretativas a seu respeito. Karl Marx (2010), por exemplo, enxergou no direito uma engrenagem da “superestrutura” social que opera como instrumento de dominação de classe. Max Weber (2015) enxergou no direito uma esfera secular dotada de autonomia relativa constituída por um poder que arbitra os conflitos sociais a partir da dominação de tipo racional-legal. Émile Durkheim (1999), por sua vez, enxergou no direito a “materialização” institucional dos mecanismos de coesão e integração moral das sociedades, cuja diferença entre sociedade (“tradicional” ou “moderna”) se verifica pelo grau de diferenciação e de especialização do direito.

2A antropologia do direito, enquanto subcampo disciplinar, frequentemente tem apontado Henry Maine (1986) como um precursor importante e, dentro da antropologia, destacam-se os trabalhos pioneiros de Isaac Schapera (1940), Alfred Radcliffe-Brown (1973), Bronislaw Malinowski (1926), Karl Lewellyn e Adamson Hoebel (2002). Conforme bom apontamento do antropólogo Roberto Kant de Lima (2008, p. 7) “a questão fundamental na Antropologia do Direito nesse quadro teórico era como descrever e classificar as diferentes formas de controle social bem como descobrir a origem e leis de seu desenvolvimento”.

3Posteriormente, nomes como os de Max Gluckman (1967) e Paul Bohannan (1968) são evocados como principais referências desta tradição. No entanto, na etnologia clássica, campo disciplinar situado dentro da órbita da antropologia, Marcel Mauss (2003), a meu ver, se destaca por uma abordagem inovadora para o estudo do direito. Mauss [1924] - em seu famoso Ensaio sobre a Dádiva – definiu os sistemas de trocas e contratos das sociedades tradicionais como “fenômenos sociais totais”, estruturados por uma mesma lógica geral: o princípio de reciprocidade. Em concordância com o seu tio (Durkheim), Mauss destacou a obrigação moral como pano de fundo (simbólico) objetivo das trocas e contratos.

4Igualmente, dentre os clássicos das ciências sociais acima mencionados, o direito ocupou um lugar de interesse científico privilegiado. Ao mesmo tempo, apesar das diferenças de abordagens e métodos empregados na sociologia e na antropologia, havia o entendimento sobre a natureza socialmente construída do direito. Sobre isso, ao destacar que os fatos jurídicos são “construídos socialmente”, o antropólogo Clifford Geertz (2013) assinala que o “fato jurídico”, como qualquer outro fato social, guarda uma história passada do trabalho de “edição” da realidade e das evidências. Essa compreensão “construcionista” dos fatos jurídicos, com efeito, exige do trabalho antropológico a prática etnográfica do processo de construção do fato, isto é, a observação e a descrição de todas as fases e atores envolvidos no circuito de produção social do fato. E nesse circuito de produção, lembra Geertz (2013, p. 175), o “processo de representação” é o fenômeno mais importante do fato jurídico. Isso porque a “parte jurídica” do mundo é uma “maneira específica de imaginar a realidade”, entendendo que essa representação não apenas retrata a realidade, mas a constitui.

5A partir dessa tradição de investigação etnográfica sobre o direito e as instituições que o constitui, situo este trabalho, numa tentativa de compreender a representação ou representações particulares do direito e da justiça articuladas pelas advogadas da TamoJuntas de Salvador-BA. Ocupo-me do entendimento acerca dos “sentidos de justiça” (Geertz, 2013) articulados interlocutoras mediante a compreensão que o trabalho de pesquisa etnográfico realizado possibilitou e resultou em minha tese de doutorado intitulada “Azul Profundo: Etnografia das práticas de advocacia feminista e antirracista na Bahia” (Morais Lima, 2020).

6Durante a pesquisa foi comum ouvir relatos de situações envolvendo constrangimentos em relação ao fato de serem mulheres negras no direito, especificamente, mulheres negras na advocacia, assim como sobre a baixa representatividade e representação das mulheres no Poder Judiciário. Em outros momentos as interlocutoras da pesquisa advertiram sobre as assimetrias que estão dando o tom de um tratamento desigual no seu local de trabalho e, ainda, como o marcador racial tem evidenciado uma demanda por tratamento digno. Argumento que isto se dá a partir das experiências vividas no domínio relacional das instituições do sistema de justiça e que as categorias “racismo” e “sexismo”, acionadas pelas interlocutoras, adquirem poder explicativo para entender as práticas de sua advocacia no direito brasileiro. Destaco que tais categorias serão mobilizadas neste texto em interface com as contribuições da antropóloga brasileira Lélia Gonzalez ([1983] 2018).

7Em particular, neste artigo o que me interessa mais precisamente é analisar as concepções de igualdade e demandas de tratamento digno encontradas na pesquisa. Conforme a exposição das experiências, os sentidos práticos de justiça, cidadania e de boa vida que são acionados pelas operadoras do direito interlocutoras da pesquisa ganham lugar. Se, por um lado, a etnografia permitiu uma observação dos processos de construção e, sobretudo, de reconstrução da realidade (jurídica), uma vez que essas mulheres procuravam, em suas ações intervir e inserir novos significados na prática jurídica. Por outro lado, conforme veremos no artigo, as ações das operadoras do direito não ocorrem sem tensões e conflitos no campo. Em razão disto, aproximo contextos de desrespeito vividos pelas interlocutoras e as possibilidades de ressignificação dessas experiências em demandas de reconhecimento.

  • 1 O uso de nomes reais das interlocutoras foi autorizado e ponto de entendimento comum compartilhado (...)

8Posto isso, apresento neste artigo duas experiências de advogadas negras, Laina Crisóstomo e Maria Nazaré1, que permitiram entender esses conflitos, as tensões e os sentidos tributados à luta pela institucionalização de uma justiça de gênero e uma justiça antirracista no Brasil. Discuto situações nas quais as interlocutoras vivenciaram experiências de desrespeito envolvendo questões de raça e gênero. Para isso, faço uso do conceito de insulto moral (Cardoso de Oliveira, 2002) e proponho uma aproximação com a categoria de reificação racial (Morais Lima, 2020b) para tratar das diferentes situações em que as expectativas de reconhecimento são negadas assim como são acompanhadas de rebaixamento e desqualificação. Também procuro esboçar em que circunstâncias é possível pensar as mesmas experiências profissionais ressignificadas em termos de práticas de liberdade (Hooks, 2013) e de lutas por reconhecimento (Honneth, 2003).

Expectativas dissonantes sobre tratamento igualitário

9Em outubro de 2017, retornava ao campo após meu exame de qualificação, quando Laina Crisóstomo, advogada negra, à época presidenta da TamoJuntas, narrou uma situação curiosa. Conta que em um momento de lazer, enquanto caminhava na companhia de sua filha por um shopping em Salvador foi surpreendida por gritos em tom acusatório: “ela roubou, ela roubou”. Atenta para a situação, procurou se inteirar do que estava acontecendo.

  • 2 As entrevistas mencionadas no presente texto foram realizadas durante o período de pesquisa de camp (...)

Entrei numa loja de sapatos onde essa menina estava e vi várias pessoas ao redor olhando para ela e a julgando. Ela estava apenas de sutiã e short e com um jarro na mão, chorava e gritava ao mesmo tempo e os seguranças do shopping tentavam conter ela à força. Segundo ela, decidiu ouvir a orientação do segurança do shopping e caminhar até a loja X. Nessa caminhada fui tentando conversar com ela, mas ela estava muito nervosa e não conseguia formar frases para que eu entendesse o que estava acontecendo2.

10A interlocutora lembra que havia um certo tumulto em torno da situação com a presença de muitas pessoas curiosas olhando a mulher já exposta. Ao se deparar com a cena, se prontificou a ajudar e acompanhar o que estava acontecendo, se colocando como advogada.

Era uma menina jovem negra e pobre, os seguranças ao me verem seguir atrás dela e deles imediatamente perguntaram o que eu era dela. Eu me apresentei enquanto advogada dela, disse que não a deixaria sozinha porque eu sabia qual era a prática corriqueira de lojas de departamento e a abordagem em shopping de Salvador. Apesar da minha apresentação eles não acreditaram que eu era advogada quando mostrei minha carteira da OAB.

11O ato de mostrar a carteira da Ordem dos Advogados do Brasil, procedimento comum, não foi suficiente para que a entrevistada de fato fosse reconhecida como advogada em face de sua apresentação para acompanhar o conflito e oferecer auxílio à “jovem mulher negra”. Questionada sobre a veracidade de sua identidade, a interlocutora se viu mais uma vez surpreendida com o desenrolar da história. O shopping interessado em colocar um fim no conflito sugeriu a saída do estabelecimento e pediu para que todos os envolvidos na cena se dirigissem até um posto policial ali próximo.

12A advogada conta que esse posto estava desativado, mas que ao chegar lá já havia uma guarnição da polícia para fazer o encaminhamento para a delegacia. Porém, no posto, percebeu que um dos seguranças do shopping detinha a posse de uma chave que daria acesso ao espaço que estava fechado, não só ele abriu a porta para que entrassem, como sugeriu que lá aguardassem a chegada de outra viatura da polícia. Nesse momento, a advogada passou a conversar com a jovem mulher negra para entender o que estava acontecendo. A “menina” narrou para a advogada que foi agredida pelo segurança do shopping e que ambos entraram em luta corporal, chegando ao ponto de rasgar a sua roupa. A advogada continuou a conversar com a “menina” até a chegada da viatura policial ao local. A entrevistada lembra que já havia se apresentado como advogada para os seguranças do shopping e não sendo reconhecida como tal, conta que resolveu permanecer com a carteira da OAB em mãos “para não gerar nenhum tipo de dúvida”.

13Segundo relata é comum enfrentar situações de desconfiança quando se apresenta como advogada pois, em geral, as pessoas não só gesticulam de modo a franzir a testa, inclinar a cabeça ou mover os lábios, como também explicitam verbalmente com questionamentos do tipo “você é mesmo advogada?”. A desconfiança e o questionamento não são gratuitos, são articulados por um traço ideológico disseminado na sociedade brasileira que se inclina a pensar o lugar social de uma mulher negra em posições de subalternidade e não de atividades que detenham algum grau de prestígio, como a advocacia (Morais Lima, 2020a). Voltaremos a abordar esse ponto adiante.

14Com a chegada de outra viatura a interlocutora se viu mais uma vez imersa em uma situação vexatória:

Após a viatura da polícia chegar, eu que sempre sofro discriminação e incredulidade de ser advogada, já costumo ficar com a carteira da OAB em mãos para não gerar nenhum tipo de dúvida. Então levantei minha carteira da OAB quando vi o policial chegar, ele simplesmente ao entrar no módulo policial, vendo a minha OAB, me perguntou se eu havia roubado com ela. Na hora não consegui pensar em nada, mas o respondi à altura e por isso ele me proibiu de ir na viatura “dele”.

15O caso chamou a atenção e ganhou repercussão em âmbito local. Era um assunto presente na fala da entrevistada, sua repetição me fez pensar sobre o quanto sentiu-se insultada e os prejuízos que se acumularam sobre seu self (Honneth, 2003; Taylor, 2005). Atuante na esfera pública de Salvador, a entrevistada escreveu um texto expondo a situação ao público em que questiona no título “O que é ser advogada negra em Salvador?”. Além da situação de insulto que a advogada experenciou naquele momento, há dimensões outras do mesmo conflito envolvendo o policial que também era negro e mesmo assim reproduziu a narrativa de descrédito quanto ao perfil profissional ora afirmado por Laina. A advogada questiona:

Isso foi em agosto e até hoje me dói falar sobre isso, escrevo esse texto ainda chorando a dor de ver um homem preto se transformar em capitão do mato para me ofender e me desrespeitar. Na delegacia foi semelhante, mas não me calei, briguei, resisti e no dia seguinte as advogadas Carla Lima e Letícia Ferreira conseguiram a liberdade daquela menina. Mas não posso negar que chorei demais, passar cinco anos na faculdade, ter três especializações, ser estudante de mestrado não te muda a cor e por isso não te faz sofrer menos discriminação.

  • 3 Destaco as narrativas de Isabella Pedreira e Bianca Chetto como elucidativas para entender contrast (...)
  • 4 Durante a pesquisa um caso que chamou a minha atenção foi repercutido em diversos jornais, diz resp (...)

16A partir desse relato, assim como outros casos encontrados na pesquisa, percebi um padrão de denegação da estima social (Honneth, 2003). Padrão que é marcado por um tratamento diferenciado para advogadas negras, pois em relação às advogadas brancas esse tipo de relato não é comum, sequer foi mencionado3 - falo sobre o tratamento em relação a ter sua identidade profissional denegada quando apresentada a carteira da OAB. Isso não significa dizer que advogadas brancas não enfrentam situações vexatórias4.

17Havia um confronto ideológico sobre o lugar social ocupado por uma mulher negra nos contextos de sua atuação profissional. Percebi então que nas audiências, nos fóruns, nas varas e nas delegacias, locais em que pude acompanhá-las, nem sempre essa expectativa de reconhecimento da sua identidade como advogada era vivida plenamente. Todavia, em experiências de interação com outros atores sociais dos universos institucionais pelos quais circulam as advogadas negras, os marcadores de identidade como a cor da pele, a vestimenta ou mesmo o tipo de cabelo interferem no modo como elas eram tratadas e lidas socialmente. A experiência de ser negra em contextos institucionais do direito vinha acompanhada de práticas negativas e reificadoras, como presumir que toda mulher negra presente numa audiência é uma mulher agredida, violentada ou auxiliar de serviços gerais. Observo que nunca vi nenhuma delas ser confundida com uma juíza, desembargadora ou promotora de justiça. Ser “doutora” ou “advogada” precisava ser enunciado e, mesmo quando era, encontrava dificuldade para reconhecer.

18Ao descrever tais situações, as interlocutoras acionaram o termo “direito racista”, categoria usada para se referir à maneira como eram tratadas e recebidas no contexto de sua atuação profissional no campo do direito. O uso dessa gramática tem sido útil para descortinar a formação de um campo em que predomina um corte de gênero masculino, cor branca e classe abastada. A rigor, tal estrutura pode ser bem compreendida nos termos do racismo estrutural (Almeida, 2018).

19Outrossim, o caso em tela é modelar de um tipo de desconsideração social que pode ser lida na perspectiva teórico interpretativa do antropólogo Luís Roberto Cardoso de Oliveira (2002), como um insulto moral. Segundo Cardoso de Oliveira, o insulto moral seria qualquer ato ou atitude que agrida os valores éticos e morais, posto que fere a dignidade da pessoa naquilo que ela tem genuinamente como substância moral - seu self. A jovem advogada negra se viu em situação vexatória, pois mesmo após apresentar sua carteira da OAB, continuou a ser tratada com desconfiança e incredulidade. A expectativa de receber um tratamento coerente com o porte do documento não somente foi frustrada como também levou a uma sobreinterpretação por parte dos atores envolvidos em acusá-la de praticar o crime de falsidade ideológica, uma vez que ninguém ali acreditava que o documento da OAB era oficial.

  • 5 No direito brasileiro a “parte” é um sujeito que participa do processo pleiteando algum direito. As (...)

20Ainda conforme assinala Cardoso de Oliveira (2002), em muitos casos não é preciso uma violência física mas a intenção que o agressor comunica para a vítima. O insulto moral está associado ao tipo de agressão que fere e atenta à dignidade da pessoa. Assim, da condição de advogada em atividade profissional, a advogada negra passou para a condição de vítima de violência moral, uma violência com registro de gênero e raça. Laina afirma que situações como essa tem incidência em Salvador e que há dificuldade em mudar essa percepção, uma vez que está associada a uma estrutura social que classifica mulheres negras sempre como “parte”5. A violência moral, de certo modo, incide tão violentamente contra o corpo como uma violência física, pois tal maneira de agredir provoca lesões na autocompreensão da pessoa que a sofre, deixando rastros traumáticos em sua autoestima, como bem apontado por Axel Honneth (2003).

  • 6 Outros desdobramentos dessa formulação conceitual foram levantados e no momento tenho procurado apr (...)

21Destaco ainda o seguinte trecho: “mas não posso negar que chorei demais, passar cinco anos na faculdade, ter três especializações, ser estudante de mestrado não te muda a cor e por isso não te faz sofrer menos discriminação”, ora os atributos que em outras situações seriam acionados para efeito de reconhecimento de mérito, lidos como signos de prestígio social do campo, não são reconhecidos e não conferem o tratamento equivalente ao concedido a outros sujeitos inseridos no mesmo campo. Portanto, novamente as variáveis cor e gênero figuram como determinantes para que a interlocutora tenha recebido o insulto e para que se produza a reificação racial, isto é, a insistência de uma percepção distorcida e estereotipada acerca de qual lugar social mulheres negras podem habitar (Morais Lima, 2020a; 2020b). Quando utilizei esse termo a primeira vez fui movida pelo sentido de coisificação, comumente associado ao pensamento de Karl Marx para falar de relações sociais que seriam ocultadas no momento de realização das trocas monetárias do capitalismo. Porém, não estava convencida de que esse entendimento inicial era suficiente, pois o não reconhecimento e a desqualificação me pareciam aspectos igualmente importantes nas relações de reificação. Para minha surpresa, o que era uma intuição, no ensaio de Axel Honneth, “A reificação” (2015), se revelou uma sistematização teórica. De fato, para Honneth (2015) a reificação compreende o sequestro de relações de reconhecimento intersubjetivo que podem ocorrer em qualquer domínio da vida social e não apenas na esfera das relações de forma-mercadoria (Marx, 2017).6

22Notem que a experiência narrada pela interlocutora aponta para os limites contextuais nos quais a identidade profissional afirmada por uma mulher negra é rejeitada em face de uma “construção ideológica”, nos termos de Gonzalez (2020, p. 55). Estruturas como o racismo e o sexismo que ainda predominam nos ambientes do mundo do direito e na esfera pública brasileira se concretizam em diferentes processos de discriminação. Na delegacia, no posto policial e no shopping, a entrevistada teve sua identidade profissional questionada pelo impensado social que associa a imagem da mulher negra a um conjunto limitado de atributos, sempre negativos, marcados pela falta, marginalidade e subalternidade.

  • 7 Caso que aconteceu no Fórum Ruy Barbosa, em Salvador, em um dia de campo quando estávamos a entrevi (...)

23Nos termos de Lélia Gonzalez ([1983] 2018), na sociedade brasileira a mulher negra só poderia caber nos tipos ideais da “mulata”, “doméstica” ou “mãe preta”; não por acaso, fora desses enquadramentos, as interlocutoras da pesquisa percebiam que a noção de igualdade era dissonante com a expectativa de uma cidadania plena para todas. Posso enumerar onde observei os principais incômodos enfrentados por advogadas negras, situações em que são tratadas de maneira rebaixada, principalmente, nos fóruns e nas delegacias, quando eram questionadas se de fato eram advogadas, assim como era indicada a entrada de serviço em determinados espaços7 e, no limite, a veracidade dos documentos oficiais de identificação da OAB era desacreditada. A respeito deste tipo de negação de reconhecimento por parte de profissionais da segurança e da justiça, em desacreditar a identidade profissional e a legitimidade dos documentos de identificação oficial da OAB, tive a necessidade de reposicionar a discussão sobre a desigualdade, na forma do racismo e sexismo, expressos em situações aqui descritas e outras que foram objeto de análise na tese. Movida por uma questão que se perpetua na Antropologia e nas Ciências Sociais brasileiras a partir da tese damattiana expressa na forma da frase “você sabe com quem está falando presente no seu livro “Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro” publicado em 1979. Tal frase é acionada quando uma pessoa sente que sua posição de autoridade está em jogo e, segundo o antropólogo Roberto DaMatta (1997, p. 182), sugere que no Brasil encontramos “uma separação radical e autoritária de duas posições sociais real ou teoricamente diferenciadas: o indivíduo e a pessoa”. Enquanto a primeira sustenta uma posição de universalidade, na segunda encontramos o potencial relacional do jogo entre poder e hierarquia, aqui retomado com base no relato etnográfico acima narrado. Ora, para navegar socialmente no contexto de um conflito que estava ácido, a advogada negra apresenta sua carteira de identidade profissional da OAB, por um lado num ato de reserva, uma vez que relata ser comum a desconfiança de que seja de fato uma advogada; por outro lado, numa posição de autoafirmação em que cobra um tratamento adequado à posição social que uma advogada ocupa dentro do quadro social brasileiro.

24O conteúdo descrito pela cena em que se narra o conflito protagonizado pela advogada e os policiais (pessoas negras), sugere uma mensagem similar à descrição de DaMatta, numa estratégia de garantir-lhe naquele contexto uma posição social mais bem localizada. No entanto, conforme podemos perceber na descrição da própria advogada, ao elevar sua carteira de identidade da OAB ante o segurança do shopping e os policiais, estamos diante da falha na carteirada. Nesse sentido, a lógica que informa a condição de portadora de prestígio e distinção para navegar socialmente enquanto uma “doutora advogada”, encontra resistência por parte do segurança e dos policiais que não só deslegitimam a identidade da mulher negra como advogada, como também a rebaixa e não permite que acompanhe a cliente, ou no que me parece mais ofensivo, desconfiar de sua identidade.

25Assim, enquanto a entrevistada tentava navegar socialmente como advogada, insistindo em garantir o direito ao acompanhamento da cliente e receber um tratamento privilegiado, em face das prerrogativas da advocacia, com base no porte do seu documento, encontra mensagens reiterando uma posição de subalternidade de gênero e raça por parte do segurança e dos policiais que não aceitam o documento, pois no contexto referido é lido como uma “carteirada” e disparam mensagens que a desqualificava socialmente, ao passo que a advogada resistiu enquanto lhe foi permitido.

26A interlocutora buscava uma posição de “cidadã comum” (Damatta, 1997) no quadro da hierarquia social que designa prestígio e reconhecimento às pessoas doutas - profissionais das leis. Todavia não foi bem recebida e sequer foi aceita pelos seguranças e policiais. No relato da entrevistada, tanto o segurança do shopping quanto os policiais se veem e creem que estão dentro de uma ordem superior à advogada. Com isso assumem uma identidade relacional que inverte e rejeita sua identidade, negando-se a reconhecer e tratar uma mulher negra como “doutora advogada”, revelando para nós o duplo lugar de opressões que recaem sobre essa mulher: o gênero e a raça.

  • 8 A interlocutora não expressa a frase “você sabe com quem está falando?”, aciona frases como “sim, e (...)

27Todas as pessoas ali eram negras. A entrevistada insiste e crê na sua posição de prestígio social, ela goza de prerrogativas do seu campo profissional, mas o que vejo em seguida é o limite contextual e relacional do ‘você sabe com quem está falando?’8. Todos ao seu modo procuram afirmar uma posição social de poder reconhecido, mas interessante perceber que todas as recusas se dão para uma mulher negra. Logo, tanto os seguranças quanto os policiais tentam posicionar a advogada como alguém da margem. Ostentando algum nível de poder naquele contexto submetem a advogada aos seus interesses.

28Nesse momento, se poderia colocar a questão sobre os diferentes atravessamentos que tais experiências de racismo e sexismo podem levantar para além dos efeitos negativos e imediatos que incidem sobre a formação da identidade da mulher negra advogada, aqui já apontados a partir das contribuições de Lélia Gonzalez, Cardoso de Oliveira e Axel Honneth. Então, a partir de agora quero me dirigir para outra questão. Ao se defrontar com experiências de rebaixamento que fere sua dignidade, que posição estratégica é possível adotar, por assim dizer, que oriente novos contornos epistêmicos para escapar a esse destino social pré-escolhido para a mulher negra? Vejamos.

A advocacia como uma prática de liberdade

  • 9 Axel Honneth em seu estudo “O Direito da Liberdade” (2015) procurou investigar as condições de poss (...)
  • 10 Em “As fontes do Self” (2005), Charles Taylor chama a atenção para o fato de que em cada contexto h (...)
  • 11 No sentido articulado por Joice Berth (2018), isto é, de que o poder só existe de maneira justa qua (...)

29Maria Nazaré, uma das interlocutoras da TamoJuntas, costumava afirmar a importância que a noção de liberdade assumia para ela no mundo do trabalho9. Principalmente quando se referia ao coletivo: “eu acho que a maior liberdade está na confiança que a organização tem, ao lidar com mulheres e selecionar mulheres para esse trabalho”. A entrevistada descreve como se sente mais livre no ambiente de trabalho na TamoJuntas, pois enxergava naquele espaço um contexto de reconhecimento das mulheres e, em especial, das mulheres negras. Menciona o fato de fazer parte de uma organização que reconhece a importância da afirmação da identidade racial no contexto da advocacia. Para uma jovem advogada em início de carreira, aspirando uma boa vida10, a experiência de trabalho como advogada ainda estava fortemente marcada pela constituição de vínculos profissionais. Logo, mais do que autonomia financeira, o trabalho para Maria envolve também práticas de empoderamento11 da mulher negra. Em suas palavras: “porque o meio jurídico é um meio muito machista, né, é um meio muito machista, muito racista”.

30A noção de liberdade era evocada pela interlocutora para se referir ao fato de poder ser ela mesma. Por isso destaca a relevância de construir sua subjetividade na estética do seu cabelo, na maneira de escolher suas roupas e sapatos, no modo de existência da cor da sua pele, sem ser objeto de “desconfiança” ou “descrédito” e sem precisar moldar forçadamente sua subjetividade para caber num padrão estético socialmente pré-estruturado ao mundo jurídico. Por isso ressalta o quanto a experiência de coletividade compartilhada na TamoJuntas proporciona “maior liberdade” e “a credibilidade da minha atuação sendo mulher, advogada e preta, não ter isso relativizado em nenhum momento, isso é libertador”.

  • 12 Temos aqui a articulação de um sentido de bem (“liberdade”), nos termos de Charles Taylor (2005, p. (...)
  • 13 Sobre os diferentes sentidos de bem como “dignidade” e “liberdade” ver Taylor (2005).

31O relato destacado não evidencia apenas uma constatação objetiva de experiência de liberdade, mas um “sentimento moral” de liberdade12. Quando questionada sobre a relação assimétrica de gênero no judiciário, a interlocutora afirma que as mulheres são subalternizadas nas diferentes profissões que exercem no domínio do judiciário. Nesse sentido, poderia dizer o mesmo sobre o relato descrito anteriormente, quando reiteradamente a entrevistada diz “ter um mestrado não muda a sua cor”, articulando um sentimento de indignação por estar tendo seu trabalho cerceado e demandar um tratamento que não rebaixe sua dignidade. Ambas entrevistadas estão reivindicando o seu valor ou status de dignidade na condição de ser uma mulher negra, trabalhadora e advogada. Maria aspirava o ideal13 de liberdade, Laina aspirava o ideal de dignidade, dois ideais distintos cujo domínio de sua concretização é o mesmo, isto é, a experiência do trabalho.

32Para a entrevistada, as práticas de subalternização das mulheres são uma constante nas carreiras do judiciário, porém acredita que no serviço público o problema é mais grave. Em sua percepção, a presença de mais pessoas negras nessas carreiras poderia romper com um impensado que define padrões estéticos “aceitáveis” para uma mulher advogada, naturalizando uma percepção equilibrada e respeitosa de que “uma advogada negra de black power, por exemplo, não tem que ser surpresa, pois existem pessoas negras que usam black power em qualquer de suas profissões”.

33Sucessivos encontros na TamoJuntas, trocas de mensagens e curtidas nas redes sociais revelavam que outras mulheres negras viviam situações semelhantes na advocacia e juntas poderiam encontrar uma maneira de tornar essas experiências de sofrimento uma motivação coletiva. Sobre isso, a experiência de advocacia em outros ambientes como escritórios particulares e fóruns mobilizou novos repertórios morais sobre a sua atuação profissional. Aliás, ponto interessante a ser levantado é o fato de que Maria viu um post da TamoJuntas numa rede social que a fez pensar sobre algo até ali vivido como uma experiência unilateral de sofrimento: ser uma advogada negra de cabelos black power frequentemente exposta a situações de racismo e sexismo. A partir dali, não parou de pensar que deveria se somar ao coletivo de advogadas negras.

34Reconheceu que “eram necessárias negras em posição de poder” para reivindicar mudanças nas camadas profundas no campo do direito e das carreiras jurídicas, pois entende que “o direito racista acaba assim”. Com isso expressava uma forte expectativa sobre a premissa “tudo pode ser resolvido com educação básica de qualidade”. Por mais que lhe parecesse “utópico” no Brasil da década de 2010, acreditava fortemente na ideia de que o direito e o judiciário precisavam ser mais acessíveis para todas - assistidas e advogadas. Ainda que estejam longe de alcançar uma posição mais estruturada de poder nessas carreiras, a interlocutora reconhecia que o maior preço que ela e suas companheiras de coletivo estavam enfrentando era uma “barreira cultural”.

35Talvez por isso articule o que seria na prática uma justiça antirracista, isto é, aquela onde “mulheres negras em posições de poder sendo ouvidas, sendo respeitadas, em todas as esferas possíveis deve se tornar algo natural”. Era assim que afirmava a ruptura com as noções preconceituosas que emergiram nas interações com agentes do sistema de justiça. Para mulheres negras, como Maria, esse drama racial aparece com frequência em diferentes contextos de atuação na esfera do direito. Suas consequências são descritas como sensações de “dor”, “sofrimento”, “insegurança”, “descontentamento” e “desigualdade”. Isto se dava em um exercício comparativo que fazia durante a entrevista ao dizer “se as mulheres com cabelos lisos podem usar seus cabelos lisos soltos sem qualquer retaliação, porque as pretas black power não podem?”.

36A dificuldade para transitar socialmente como advogada preta em instituições públicas do judiciário fez esta interlocutora articular esse questionamento, demonstrando que este tipo de diferenciação, de preconceito vivido no cotidiano, em situações mais comuns como pedir uma informação e ser tratada como alguém da margem, atrapalhava sua desenvoltura e autoconfiança no trato institucional. Como consequência a experiência de trabalho almejada como “autonomia”, “liberdade” e “reconhecimento” era tornada “violência”, “desrespeito” e “humilhação”.

37Coube a Maria autodeterminar sua construção estética como um modo de existência, impor a si mesma que deveria lutar para ser respeitada como mulher negra, como advogada preta e isso significava não alisar os cabelos para fazer uma audiência ou não usar salto agulha para conseguir uma informação no balcão do cartório. A interlocutora não ignorava a importância de que através da afirmação de sua existência étnica, poderia suscitar mudanças nessas barreiras de “gênero” e “raça”.

  • 14 A preocupação de Maria em defender que mais mulheres negras ocupem espaços institucionais de poder (...)

Eu acho que quanto mais pessoas ocupam esses espaços, menos é verbalizado esse discurso de ódio14. Eu não acho que ele deixa de existir, porque o racismo é muito estrutural e a gente tem um problema seríssimo no Brasil, que o racismo é nas entrelinhas, tipo assim, ele é velado. Porque as pessoas dizem que não estão sendo racistas e que é só a opinião delas. Não foi racismo, ‘você que entendeu errado’, entende? E é por isso que eu acho que a gente não acaba, mas acho que a gente dá espaço para outras narrativas, né? A gente dá espaço para que ele não seja mais velado, mas que ele seja silenciado. Porque mesmo velado a gente vê nos comportamentos, no muxoxo, no corpo, mas quando é corriqueiro vai ter mais. Não vai ter muxoxo se meu chefe, meu superior é preto e empoderado, por que ele vai destratar uma advogada preta? Não tem muito sentido, né?.

  • 15 As narrativas aqui apresentadas parecem confirmar o argumento de Honneth (2003, p. 220) acerca da e (...)

38A exemplo da experiência vivida por Maria, outras interlocutoras negras narram experiências de rebaixamento moral referentes à cor e à estética da mulher negra relacionadas à pressão estética que emoldura a advocacia. Por serem mulheres negras nesse contexto profissional, também denunciam essas experiências em outros espaços da vida social15. As narrativas aqui apresentadas parecem confirmar o argumento de Honneth (2003, p. 220) acerca da experiência de desrespeito social ser a “base motivacional afetiva” de lutas moralmente motivadas de indivíduos e grupos sociais. Além disso, as próprias experiências de desrespeito acabam orientando moralmente Maria, Laina e outras advogadas negras na direção de afirmação de uma justiça de gênero (Silva; Wright, 2016) e racial.

39Contudo, a fala da entrevistada contém elementos que estão presentes nas narrativas das demais interlocutoras da pesquisa, tanto entre advogadas da TamoJuntas, quanto de outros coletivos de advocacia com os quais pude interagir em campo e entrevistar (Coletivas Helenas e a Rede Feminista de Juristas - DeFEMde). O sexismo é um marcador comum encontrado nas diferentes coletivas, mas em se tratando de racismo, este ponto fica mais evidente entre as entrevistadas negras da TamoJuntas, que inclusive mencionaram o efeito “surpresa” demonstrado em pessoas que se mostravam “incrédulas de que uma mulher negra possa ser advogada” ou de que essas mulheres pudessem estar nesses espaços de atuação profissional em que se exige uma “forte afirmação oral”, “poder de fala”, “eloquência” e “imposição discursiva”, nas palavras de Maria.

40A entrevistada recorda uma das experiências de sofrimento que deixou marcas na sua biografia profissional: o trabalho em um escritório de advocacia particular. Ao recordar tal vivência, demonstra o acúmulo de um profundo mal-estar vivido na experiência relacional com o antigo ambiente de trabalho: “eu via que não tinha muita utilidade ser advogada onde eu trabalhava, porque eu era apenas uma estagiária de luxo”. Essa ferida pertencia ao ambiente institucional e estava relacionada ao modo de tratamento de seu chefe, “porque eu não tinha autonomia para fazer muitas coisas, mas eu era necessária para assinar alguma petição na ausência dele ou na ausência de qualquer pessoa”. A interlocutora lembra que por trás das petições havia estruturas de poder e posições adotadas pelo escritório com as quais não “concordava”; mesmo assim, diante da relação de subordinação fazia o que o chefe mandava.

41Mesmo se mostrando discordante sobre a construção de alguma tese durante a produção da peça, a interlocutora percebia que não era ouvida e nem respeitada em sua opinião, “isso me afligia muito também, aliada a essas questões pessoais e comportamentais”. O chefe não aceitava nenhuma de suas sugestões, lembrando sempre a Maria que “só precisa assinar a peça”. Esse tipo de ambiente profissional conflitava com as expectativas pessoais de autorrealização, pois “a verdade toda é que eu escolhi o direito como meio de independência financeira e isso não acabou acontecendo da forma que eu imaginei que aconteceria”. Para a interlocutora, a prática profissional dentro desse escritório era uma fonte de descontentamentos acumulados.

E foi quando eu saí de lá [um dos escritórios onde trabalhou] que eu fiz a seleção para a TamoJuntas. Porque eu sentia falta de fazer algo que me contemplasse enquanto pessoa. Então eu buscava algo que me contemplasse mesmo, que me fizesse encontrar algo de bom no direito.

42Em outras palavras, a experiência de mal-estar acumulada em seu trabalho fez com que pensasse novos horizontes de atuação profissional. Estabelecendo uma reflexão mais contundente acerca de sua orientação ética, no sentido de que agora deveria ter em mente que há outras maneiras para conduzir as escolhas profissionais. Embora tivesse tido algum contato com experiências de advocacia popular, prestando serviços para grupo de minorias sociais durante a graduação, bem como nas atividades de catequista em campanhas sociais da igreja, ela percebia que na TamoJuntas era diferente.

43O coletivo de advogadas surgia como uma possibilidade de se reaproximar do sentido pleno de liberdade, era um contexto de realinhamento com as expectativas e consigo mesma, deixando para trás a traumática experiência de emprestar seu nome e sua assinatura em documentos e peças que não podia criar, aplicar um direito justo ou desenvolver suas competências. Por isso procurou a TamoJuntas, depois que tomou conhecimento do coletivo através da postagem na linha do tempo do Facebook de Aline Nascimento, cofundadora do coletivo e ex-colega de turma na faculdade. Esse lugar de associação e atividade coletiva ventilava a possibilidade de liberdade e reconhecimento da sua identidade racial.

44Embora reconheça que estava decepcionada com o direito e com o tipo de advocacia que vinha praticando, decidiu arriscar em uma nova possibilidade de atuação profissional. A TamoJuntas nutria a expectativa de uma “prática de liberdade” para sua atuação profissional, pois trocaria a experiência de um chefe abusivo e poderia ressignificar sua carreira através de uma aproximação com outras mulheres que vivenciavam frustrações semelhantes com o trabalho de advocacia e o acúmulo de experiências de sofrimentos raciais vividos no domínio de sua atuação profissional.

45De fato, após meses no coletivo, essa experiência de presença já lhe conferia aprendizados não só técnicos de como aplicar a Lei Maria da Penha (Lei n. 11.340/2006), mas de aprofundamento intelectual do seu universo de atuação profissional e sobre novas relações de aprendizados intersubjetivos. A experiência de ser invisibilizada pelo chefe era acompanhada de práticas de exclusão do espaço comum: ela era colocada num corredor sem saída de ar afastada dos outros membros da equipe. Sem lugar de voz ativa para colaborar na produção das peças, segregada espacialmente no trabalho, a experiência de ser advogada era vivida pela interlocutora como profundo desrespeito. Não era a primeira nem a única experiência de desrespeito que enfrentaria. No entanto, Maria aspirava uma experiência diferente e reconhecia a TamoJuntas como o “lugar de me encontrar, de me reencontrar profissionalmente”.

  • 16 Outra interessante abordagem a respeito do conceito de “prática de liberdade” é encontrada nas cont (...)

46A coletiva de mulheres mostrava um horizonte de engajamento político para as interlocutoras e uma forma de eticidade. Maria sentia-se feliz em poder afirmar-se como uma advogada preta. Chegar aos lugares, cartórios e fóruns, com seu black power nas alturas, calçando tênis, portando seus documentos, reconhecendo que “eu sou advogada e essa formação pode ter força, pode ter validade, pode ter sentido, pode ter importância” parecia ser a fonte da advocacia vivida como uma “prática de liberdade”16 (Hooks, 2013).

47Nesse sentido, recorro à contribuição de “Ensinando a transgredir: a educação como prática da liberdade” (2013), onde Bell Hooks interpõe o sentido de uma prática que transgride o aprisionamento em estereótipos. É evidente que a autora está tomando como pano de fundo a educação e o ambiente escolar, mas para os propósitos do meu argumento aqui nos interessa o seu sentido epistêmico, isto é, de nutrir um engajamento e uma consciência política sobre uma prática tradicional encontrada no direito e nas suas instituições. Portanto, penso que movimentações feministas e antirracistas como a TamoJuntas surge como um campo de possibilidades, onde “temos a oportunidade de trabalhar pela liberdade, [...] e que nos permita encarar a realidade ao mesmo tempo em que, coletivamente, imaginamos esquemas para cruzar fronteiras, para transgredir” (Hooks, p. 273). Ora, na TamoJuntas muitas mulheres tentaram constituir um lugar político em que experimentassem também relações de reconhecimento, não só para as assistidas, mas em relação a elas mesmas. Não escapa à memória quando Maria menciona a importância de existir e enxergar na TamoJuntas “uma rede de fortalecimento de mulheres negras” e sobre isso Lélia Gonzalez já apontava:

O lugar em que nos situamos determinará nossa interpretação sobre o duplo fenômeno do racismo e do sexismo. Para nós o racismo se constitui como sintomático que caracteriza a neurose cultural brasileira. Nesse sentido, veremos que sua articulação com o sexismo produz efeitos violentos sobre a mulher negra em particular (Gonzalez, 2018, p. 191).

  • 17 Segundo Pierre Bourdieu (2007, p. 41) “habitus são sistemas de disposições duráveis”. Tal sistema d (...)
  • 18 O conceito de branquitude expressa bem o domínio da racialidade branca, onde Cida Bento aponta para (...)

48Considerando o fato de que mulheres negras e periféricas têm assumido lugares diferentes da servidão e da subalternidade, a TamoJuntas surge como esse ambiente relacional em que há espaço para transgredir as práticas de racismo e sexismo tornadas habitus17 no campo do direito brasileiro. Maria discute a experiência de retaliação da branquitude18 expressa em interrogações do tipo: “[como] uma neguinha ter voz”. Outro ponto relevante apontado pela interlocutora diz respeito ao status tão característico da advocacia tradicional que se forma em escritórios de grife/boutique, isto é, tradicionais marcas que se acumulam em gerações de profissionais formados de pais para filhos.

49A interlocutora ressalta que tais espaços não são reais possibilidades para autorrealização de jovens mulheres negras recém-formadas e sem vínculos dessa tradição familiar. A maioria das advogadas negras interlocutoras da pesquisa eram as primeiras a ter um diploma de nível superior na sua família, então como “montar um escritório e formar uma clientela?” ou como acessar espaços consolidados no campo? Apontada essa estrutura de classe que se impõe sobre as aspirações de um ambiente de trabalho legítimo para um perfil como Maria, imaginemos um possível cliente que entra no escritório e se percebe em frente a uma mulher preta de cabelo black power, Maria pondera, “o que você acha que ele vai enxergar? Será que ele vai pensar que eu sou a advogada? Dificilmente. Eu já vivi isso, sei como funciona”.

50Muitas vezes, em silêncio, no escritório, a entrevistada se via questionando a si mesma sobre seu potencial, se aquele era um lugar para ela, pois embora bem remunerada não era valorizada naquilo que era indispensável: ser respeitada como uma advogada preta. Perceber essa dimensão da alteridade era muito sutil nas relações de trabalho, a interlocutora lembra que era a única negra num espaço predominante de homens brancos. Por isso a importância de que houvesse “uma mudança de sensibilidade no campo do direito, da cultura brasileira, para respeitar as pessoas negras”.

51A advocacia poderia ser vivida como uma prática de liberdade contanto que despertasse um potencial de criatividade para sua produção, pois mesmo trabalhando na companhia de um chefe que reprimia suas ideias, a entrevistada destaca a experiência de aprendizado contida naquela situação como determinante para buscar outras formas de praticar o direito de uma forma justa. Estamos diante de uma mulher negra inserida no mercado de trabalho, cuja vivência ali era frequentemente interrogada e rebaixada. Ora, trabalhando em um escritório de advocacia “tradicional e familiar” de grande porte, a interlocutora optou por pedir demissão. A segregação racial não estava somente no espaço do escritório quando foi colocada num corredor sem saída de ar, estava também sobre a fala, o corpo, as ideias que ela apresentava. Tudo era objeto de negação e exclusão, pois ali o necessário era “assinar a peça”.

52A decisão de pedir demissão tornou possível avançar em um projeto bem definido: buscar mais autonomia e engajar-se em uma causa política. Nesse sentido, a TamoJuntas surge como aspiração que possibilitou a essa jovem advogada preta um espaço de reconhecimento no campo e, dessa forma, seu trabalho adquire novos horizontes de autorrealização. Portanto, vivido como uma “prática de liberdade”, o trabalho na TamoJuntas lhe permitia “caminhar e avançar de forma combativa”, pois era possível “estudar mais, pesquisar mais e com isso a gente aprende a se relacionar e aplicar um direito justo”. O ambiente de estímulo à criatividade da ação era vivido finalmente como uma possibilidade de existência: “As meninas [advogadas da TamoJuntas] têm uma base intelectual muito forte e de experiência também. São muitas vivências, são muitas histórias e o exercício da escuta é muito interessante”.

53Não caberia às advogadas negras apenas o espaço da subalternidade nas relações de trabalho e estavam recusando o enquadramento social de serem lidas como “raivosas”, “briguentas”, “insolentes” por estarem afirmando um lugar de enunciação na advocacia. Para Laina e Maria, assim como para outras advogadas negras, a experiência de atuação nesses espaços coletivos era um desafio por tratar de casos envolvendo violência doméstica e feminicídio. Ambas ressaltam as implicações da ambiguidade dos operadores do direito em tratar adequadamente a administração de conflitos envolvendo esses casos. Maria menciona que nas peças processuais dos agressores e no tratamento dos advogados que nos defendiam, o uso de estereótipos de gênero para desqualificar a mulher e dificultar a aplicação da Lei Maria da Penha era comum, portanto exigia por parte das advogadas a contestação sobre o direito e a lei, assim como era incontornável a necessidade de uma perspectiva feminista e antirracista para confrontar esses estereótipos. Além disso, percebia-se que não era só dirigida às mulheres assistidas que o “racismo” e “machismo” eram acionados, mas no trato dirigido às advogadas negras, razão pela qual a afirmação da própria identidade profissional durante as audiências cobrava um tratamento igualitário e respeitoso naquele ambiente profissional. Maria menciona que uma das estratégias adotada pelas advogadas da TamoJuntas foi de ir às audiências em grupos de três ou quatro, pois a experiência de ir sozinha fragilizava a disputa.

54No sentido articulado pela interlocutora, a prática feminista e antirracista é uma forma de enfrentamento político diante de um direito e um sistema de justiça atravessados por desigualdades raciais e de gênero, onde seus operadores se beneficiam de um uso indiscriminado de estereótipos de raça e gênero para reproduzir desigualdades sobre mulheres vítimas de violência doméstica e sobre as próprias advogadas. Tendo observado as diferentes situações em que as advogadas negras eram alvo de racismo e sexismo, passei a considerar que buscar o direito é não só uma maneira de se profissionalizar, mas um modo de recompor suas narrativas e sua autocompreensão. Conforme vimos, a partir da entrevistada, a carreira no direito pensada inicialmente como um horizonte de autorrealização para alcançar independência financeira, tornou-se um horizonte de lutas moralmente motivadas. Contudo, ressalto que apesar do aparente enfrentamento em situações de “racismo” e “sexismo”, a interlocutora aponta marcas emocionais que resistem sobre o corpo.

Considerações finais

55Quando comecei a escrever este artigo, minha intenção era continuar a explorar os processos de desrespeito e reconhecimento, como havia feito na tese e posteriormente em comunicações sobre o tema aqui já mencionadas, para então aproximar leituras sobre estratégias políticas propugnadas pelo ativismo das interlocutoras da pesquisa e avançar sobre o modo como advogadas negras ressignificam suas experiências de desrespeito.

56Embora eu tivesse diferenciado anteriormente a ação política na defesa da causa de mulheres em contextos de violência doméstica no direito e o ativismo das advogadas na esfera pública, agora entendo ambas as formas de atuação como elementos que integram a luta social contra o racismo e o sexismo. Em outras palavras, a experiência da TamoJuntas é um gesto político afirmativo, contracolonial e prospectivo sobre o direito e as instituições que orbitam em torno dele, mas não deve ser lido como algo exclusivo desse campo. É ainda um modo de tornar um conjunto de táticas discursivas e estratégias políticas de exclusão visíveis em suas especificidades históricas. A rigor, as estratégias de resistência observadas com a realização da etnografia têm ressonância e se delinearam em outros momentos históricos, anos 1970 e 1980, como apontado por Gonzalez (2020; 2018), diante de um movimento mais amplo de contestação do racismo e do despontar de novos movimentos sociais aproximando demandas feministas e antirracistas.

57De certa maneira, tentei aqui ajustar as lentes antropológicas sobre a emergência de políticas de reconhecimento como um meio para superar as injustiças e enclausuras epistêmicas que as interlocutoras frequentemente encontravam em sua vivência como advogadas. Os relatos permitiram apreender o espectro de opressões que marca a experiência de advogadas negras nos contextos de justiça. Propus um diálogo crítico com as teorias sociais abordadas por Roberto Damatta (1997) para lembrar a distância social que o corpo da mulher negra experimenta na tentativa de encontrar um tratamento digno, justo e igualitário que seja compatível com a ordem social vigente no campo do direito, e argumentei, a partir das contribuições de Lélia Gonzalez (2020) sobre racismo e sexismo, a dificuldade que as interlocutoras encontram para superar a “neurose cultural brasileira” no tempo presente.

58Entendo que lançar um olhar mais demorado sobre o campo a partir das práticas de liberdade da advocacia feminista e antirracista permitiu alcançar em vários níveis as diferentes dimensões da vida social e aqui se destaca a maneira pela qual as interlocutoras imprimem um tipo de movimentação política aspirando uma justiça de gênero (Silva; Wright, 2016) e uma justiça antirracista. Este olhar proporcionou uma compreensão sobre as persistências e mudanças encontradas nos processos de atualização que passa o próprio direito e a advocacia.

59Apontei expectativas de igualdade presentes nos conflitos descritos, lembrando que as demandas de tratamento igualitário também estão associadas ao reconhecimento de “pessoas dignas” (Cardoso de Oliveira, 2002). De acordo com esse autor, a sociedade brasileira é marcada por um dissenso, ou melhor, uma compreensão distorcida sobre hierarquia, privilégios e tratamento diferenciado que borram a noção de “igualdade”. Como consequência se dá o estreitamento das possibilidades de realização da cidadania plena para mulheres negras. Podemos dizer que demandar um tratamento igualitário, como fizeram Laina e Maria, pode revelar-se, conforme vimos, uma expectativa elevada de cidadania que, no contexto do campo pesquisado, se mostra cada vez mais circunscrita a grupos específicos.

60Sobre tais concepções, reforço a importância de olhar para a TamoJuntas como agente coletivo e entender a lacuna entre a expectativa de efetivar aspirações de igualdade e dignidade frente às vivências do racismo e do sexismo no cotidiano dessas mulheres. Vê-se, com isso, que os diferentes contextos de atuação do coletivo não são, necessariamente, espaços de convivência harmônica, mas certamente mostrou-se propício à contestação, conflitos e lutas sociais.

61Dito isso, é interessante perceber a expectativa de mudança sobre o modo de tratamento que reiteradamente é evocado em suas narrativas. Vimos, por exemplo, como as desigualdades de gênero e de raça se manifestam ancoradas nos tipos ideais da “mulata” e “doméstica”, descritos por Lélia Gonzalez (2018). Sem deixar de mencionar, muitas vezes as desigualdades são vocalizadas em expressões “nativas” como “direito machista” e “direito racista”. Tais situações referem-se aos contextos nos quais as interlocutoras foram diferenciadas pela cor de sua pele, pela performance de gênero, pela maneira de se vestir que confrontam a expectativa atribuída a priori sobre o ethos profissional da advocacia.

62No que concerne às dinâmicas de reconhecimento, atentei para o fato de que as advogadas negras não experimentam apenas a negação de reconhecimento. Em interação com familiares, amigos, profissionais do campo e membros de movimentos sociais, o reconhecimento vem associado às lutas feministas e antirracistas que deram origem ao coletivo, e observo que o seu pertencimento de cor é vivido como vínculo de solidariedade e estima social, como argumentei em outro lugar (Morais Lima, 2022). Diferente da sororidade, a experiência da mulher negra na diáspora constrói vínculos pela dororidade (Piedade, 2017). Nesse sentido, o reconhecimento se dá pelo compartilhamento da experiência lacunar de viver num contexto marcado pela herança de um passado escravocrata. Logo, a dor, a cor, o gênero e a localização constituem assim uma experiência compartilhada entre mulheres negras que vivenciam o desrespeito e o reconhecimento na diáspora.

63Finalmente, a pesquisa que originalmente deu vida a este artigo foi frequentemente marcada por uma crítica ao modo como o direito e a sociedade brasileira pressupõem papéis estruturados em estereótipos de gênero, raça e classe para dentro e para fora do campo. Contudo, parece-me promissor termos no tempo presente uma renovada movimentação feminista e antirracista que reivindica o desmoronamento de estruturas de opressão que historicamente buscaram extinguir as aspirações de bem viver das mulheres negras no Brasil. E é exatamente aí que se crava a diferença entre desrespeito e reconhecimento.

Topo da página

Bibliografia

ALMEIDA, Sílvio Luiz. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letramento, 2018.


ALLEN, Amy. Emancipação sem utopia. Novos Estudos CEBRAP, Nov., 103, 2015, p.115-132.

BERTH, Joice. O que é empoderamento?. Belo Horizonte: Letramento, 2018.

BOHANNAN, Paul. Justice and Judgmment among the Tiv. London: Oxford University Press, 1968.

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007.

CARDOSO DE OLIVEIRA, Luís Roberto. Direito Legal e Insulto Moral: Dilemas da cidadania no Brasil, Quebec e EUA. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.

BENTO, Cida. Pacto da Branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

DAMATTA, Roberto. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. 6ª Ed. Rio de Janeiro: Rocco, 1997.

DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. 2º Ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 13ª Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.

GLUCKMAN, Max. The Judicial Process among the Barotse of Northern Rhodesia (Zambia). Manchester: Manchester University Press, 1967.

GONZALEZ, Lélia. Primavera para as rosas negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa. 1ª Ed. Diáspora Africana: Editora Filhos da África, 2018.

______. A mulher negra na sociedade brasileira: Uma abordagem político-econômica. In:. Por um feminismo afro-latino-americano: ensaios, intervenções e diálogos. Orgs. Flávia Rios, Márcia Lima. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2020, p. 49-64.

HABERMAS, Jünger. A inclusão do outro: estudos de teoria política. São Paulo: Editora Unesp, 2018.

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: A gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo: Editora 34, 2003.

______. O direito da liberdade. São Paulo: Martins Fontes - Selo Martins, 2015.

HOOKS, Bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.

KANT DE LIMA, Roberto. Ensaios de antropologia e de direito: acesso à justiça e processos institucionais de administração de conflitos e produção da verdade em uma perspectiva comparada. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008. 

LEWELLYN, Karl N. e HOEBEL, E. Adamson. The Cheyene way: conflict and case law in primitive jurisprudence. Buffalo [N.Y]: W.S. Hein & Co, 2002.

MAINE, Henry James Sumner. Ancient Law, its Connection with the Early History of Society, and its Relation to Modern Ideas. Tucson, Arizona: The University of Arizona Press, 1986.

MALINOWSKI, Bronislaw. Crime and custom in Savage Society. New Jersey: Harcourt, Brace & Company, Inc, 1926.

MARX, Karl. Crítica da filosofia do direito de Hegel. 2ª Ed. São Paulo: Boitempo, 2010.

______. O Capital: crítica da economia política. Livro I: O processo de produção do capital. 2ª Ed. São Paulo: Boitempo, 2017.

MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Forma e razão da troca nas sociedades arcaicas. In: Sociologia e Antropologia. V. II. São Paulo: Edusp, 2003.

MORAIS LIMA, Andressa Lidicy. Azul Profundo: Etnografia das práticas de advocacia feminista e antirracista na Bahia. 447f. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Universidade de Brasília, Brasília, 2020a.

______. Alteridades denegadas e reificação racial no sistema de justiça. In: 44º Encontro Anual da ANPOCS, 2020, USP. Anais do 44º Encontro Anual da ANPOCS. São Paulo: Síntese Eventos, 2020b.

______. Cor, dor e gênero nas teorias da reciprocidade. In: VII Reunião Equatorial de Antropologia REA, Migrações, Deslocamentos e Diásporas: Violações de Direitos, 2022, UFRR. Anais da VII Reunião Equatorial de Antropologia REA, Migrações, Deslocamentos e Diásporas: Violações de Direitos. Recife: Even3, 2022. v.1.

PIEDADE, Vilma. Dororidade. 1ª Ed. São Paulo: Editora Nós, 2017.

RADCLIFFE-BROWN, Alfred Reginald. Estrutura e função na sociedade primitiva. Petrópolis: Vozes, 1973.

SCHAPERA, Isaac. Married Life in an African Tribe. London: Faber and Faber, 1940.

SILVA, Salete Maria da; WRIGHT, Sonia Jay. Uma reflexão feminista sobre o conceito de justiça de gênero. Revista de Teorias da Justiça, da Decisão e da Argumentação Jurídica. V. 2. n. 1., Jan/jun., 2016, p. 42-62.

TAYLOR, Charles. As fontes do Self: a construção da identidade moderna. 2° Ed. São Paulo: Edições Loyola, 2005.

WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. 4ª Ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2015.

YOUNG, Iris Marion. Justice and Politics of Difference. Princeton: University Press, 1990.

Topo da página

Notas

1 O uso de nomes reais das interlocutoras foi autorizado e ponto de entendimento comum compartilhado por elas quando perguntadas sobre manter o anonimato durante a pesquisa e a escrita da tese. Nas entrevistas esse registro foi colocado como questão na abertura das gravações, todas elas optaram por manter sua identidade e quando perguntei se não desejavam o anonimato ressaltaram a importância de ter sua identidade positivada na esfera pública e, dessa forma, poder acionar um lugar de enunciação e falar com voz ativa sobre as desigualdades de gênero e raça que enfrentam coletivamente. Como se trata de um movimento social contemporâneo com forte atuação na esfera pública e midiática ao optar por manter a identidade, as mulheres de alguma forma ressaltam o ativismo político que constitui um fator determinante sobre a questão racial e de gênero por elas enfrentadas e mantém o seu protagonismo. De uma perspectiva mais combativa contra o racismo, se expressa bem no que diz a antropóloga Lélia Gonzalez (2018) “é preciso ter nome e sobrenome senão o racismo vem e bota o nome que quiser”.

2 As entrevistas mencionadas no presente texto foram realizadas durante o período de pesquisa de campo realizado entre março e dezembro de 2017. As duas interlocutoras concederam entrevistas gravadas, respectivamente, em outubro e novembro do referido ano. Ao longo do texto trechos curtos com as falas das interlocutoras coletadas nessas entrevistas serão apresentadas entre aspas duplas. Também utilizarei as aspas duplas para citações diretas de autoras e autores utilizados como referências.

3 Destaco as narrativas de Isabella Pedreira e Bianca Chetto como elucidativas para entender contrastes presentes nesse tratamento desigual, sobretudo por articularem o “privilégio branco” como categoria que marca tal distinção na percepção de advogadas brancas e negras da TamoJuntas (Morais Lima, 2020a).

4 Durante a pesquisa um caso que chamou a minha atenção foi repercutido em diversos jornais, diz respeito à prática de medição do cumprimento das saias de advogadas para entrada em audiências. Ver: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2019/10/26/juiza-acusada-de-medir-saias-/diz-que-se-preocupa-com-o-decoro.htm > . Acesso em 07 jun 2023.

5 No direito brasileiro a “parte” é um sujeito que participa do processo pleiteando algum direito. Assim, as “partes” de uma relação processual são autor e réu no processo. Ambos estão em conflito e atuando para demandar um direito.

6 Outros desdobramentos dessa formulação conceitual foram levantados e no momento tenho procurado aproximar as contribuições de Lélia Gonzalez (2018; 2020) com as formulações de Axel Honneth (2015) sobre o conceito de reificação.

7 Caso que aconteceu no Fórum Ruy Barbosa, em Salvador, em um dia de campo quando estávamos a entrevistada e eu nos dirigindo para um atendimento na sala da OAB e fomos surpreendidas pelo segurança que impediu minha entrada e orientou que eu desse a volta no quarteirão para entrar pela porta dos fundos. Sou uma mulher negra nascida no interior do Rio Grande do Norte, onde é comum uma presença de negritude com os traços racializados e cabelos lisos. Até aquele momento estava navegando socialmente como uma negra que tem “passabilidade”, se tomarmos como referência pessoas negras de pele retinta. Tal situação desencadeou naquele momento um déjà vu em relação às entrevistas que vinha realizando, mas levou-me a um esboço de autoanálise em campo. As tamojuntas comentaram sobre o ocorrido e reforçaram a denúncia do racismo nas instituições do sistema de justiça.

8 A interlocutora não expressa a frase “você sabe com quem está falando?”, aciona frases como “sim, eu sou advogada”, “estou aqui como advogada”, “aqui está minha carteira”, “esse é meu documento oficial”.

9 Axel Honneth em seu estudo “O Direito da Liberdade” (2015) procurou investigar as condições de possibilidades da liberdade nas “instituições modernas” e assinalou que nem sempre a experiência do trabalho é vivida como uma relação de exploração. Mas em contextos experienciais do trabalho nos quais prevalece o reconhecimento de demandas intersubjetivas dos partícipes, podemos então falar em uma “instituição de reconhecimento” (Honneth, 2015, p. 422-425).

10 Em “As fontes do Self” (2005), Charles Taylor chama a atenção para o fato de que em cada contexto histórico nós desenvolvemos nossa identidade mediante a relação com “Outro", relação essa que está sempre situada a partir do compartilhamento valores de uma comunidade moral. Nesse sentido, a noção de “boa vida” diz respeito a um diálogo que realizamos intersubjetivamente e no qual examinamos o “que torna a vida digna de ser vivida” (Taylor, 2005, p. 16).

11 No sentido articulado por Joice Berth (2018), isto é, de que o poder só existe de maneira justa quando é coletivo.

12 Temos aqui a articulação de um sentido de bem (“liberdade”), nos termos de Charles Taylor (2005, p. 44), de compromisso/adesão ou orientação para o bem.

13 Sobre os diferentes sentidos de bem como “dignidade” e “liberdade” ver Taylor (2005).

14 A preocupação de Maria em defender que mais mulheres negras ocupem espaços institucionais de poder se aproxima do que tem sido defendido por diferentes nomes da tradição da teoria crítica, a exemplo de Iris Marion Young (1990), Axel Honneth (2003) e Jürgen Habermas (2018). A saber, que as lutas por reconhecimento no Estado Democrático de Direito se caracterizam, especialmente, pelos esforços de institucionalização de novas demandas de justiça e de boa vida articuladas pelos novos movimentos sociais. Processo de institucionalização que passa, conforme defende Young (1990, p. 183-184) em particular, pela ocupação dos espaços institucionais de poder e decisão.

15 As narrativas aqui apresentadas parecem confirmar o argumento de Honneth (2003, p. 220) acerca da experiência de desrespeito social ser a “base motivacional afetiva” de lutas moralmente motivadas de indivíduos e grupos sociais. Além disso, as próprias experiências de desrespeito acabam orientando moralmente Maria, Laina e outras advogadas negras na direção da afirmação da justiça de gênero e racial.

16 Outra interessante abordagem a respeito do conceito de “prática de liberdade” é encontrada nas contribuições de Amy Allen (2015). Partindo de Michel Foucault, a autora ressalta a dimensão da experiência como produtora de sentido.

17 Segundo Pierre Bourdieu (2007, p. 41) “habitus são sistemas de disposições duráveis”. Tal sistema de disposições ao mesmo tempo produz e estrutura as práticas e as representações. Nesse sentido, o “habitus” é o produto da obediência a regras socialmente compartilhadas, pode por isso ser expresso em estilos de vida, moralidades, estética, aspectos políticos e são incorporados durante processos de socialização.

18 O conceito de branquitude expressa bem o domínio da racialidade branca, onde Cida Bento aponta para o fato de que as pessoas brancas inseridas em uma sociedade marcada pelo racismo estrutural, estabelecem um pacto não verbal que reproduz e auxilia na manutenção de suas vantagens simbólicas, psíquicas e materiais. Noutros termos, expressa a construção social da superioridade do branco baseada no poder assimétrico em relação a não brancos (Bento, 2022). A autora destaca a noção de medo do outro para se referir ao modo como o branco vivencia uma perspectiva de superioridade e unicidade em relação ao negro. Portanto, reforçaria a formação de locais brancos com favorecimento de pessoas e a exclusão de pessoas não brancas, assegurando posições de poder, decisão, privilégios e sistemas de oportunidades circunscritos ao “confiar em seus iguais”. Nesse sentido, reforçam práticas produtoras de “dor, dúvida em relação à competência profissional e insegurança em relação ao futuro profissional” (p. 11). Entendo que as experiências descritas por Maria e Laina atualizam e se aproximam das proposições apontadas por Bento.

Topo da página

Para citar este artigo

Referência eletrónica

Andressa Lidicy Morais Lima, «Entre desrespeito e reconhecimento: Racismo e sexismo no cotidiano de advogadas negras brasileiras»Ponto Urbe [Online], 31 | 2023, posto online no dia 10 dezembro 2023, consultado o 14 dezembro 2024. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/pontourbe/15314; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/pontourbe.15314

Topo da página

Autor

Andressa Lidicy Morais Lima

Doutora em Antropologia Social Programa de Pós-graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília

E-mail: andmoraislima@gmail.com

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2232-0799

Topo da página

Direitos de autor

CC-BY-4.0

Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.

Topo da página
Pesquisar OpenEdition Search

Você sera redirecionado para OpenEdition Search