- 1 A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.
- 2 Este ensaio baseia-se na comunicação com o mesmo título apresentada no “VII Foro Ibérico de Estudio (...)
1Creio que reflectir sobre a sustentabilidade nos museus nos interpela a pensar na relação com os grandes desafios da sociedade – de que é exemplo a crise climática, entre tantos outros problemas da sociedade actual.1 E a sensação, frequente, seja na perspetiva individual seja do ponto de vista das organizações, de impotência face aos grandes e complexos problemas do mundo. Por essa razão escolhi esta imagem (fig. 1) para ilustrar o início deste ensaio, uma imagem que representa uma criança a observar uma grande escultura, claramente desproporcional para a sua escala humana e de criança. Penso que esta imagem pode servir de metáfora para os museus (e para nós próprios), até certo ponto. Qual é o lugar dos museus, qual é a responsabilidade dos museus face à complexidade dos grandes desafios da sociedade?2 E se num primeiro momento nos pode assolar uma sensação de impotência, essa sensação é logo substituída pelo reconhecimento de que os museus podem efectivamente contribuir para a construção de um futuro mais sustentável, como se pode constatar pela acção de vários museus, um pouco por todo o mundo.
Fig. 1 – Criança frente a escultura de cavalo, junto a fachada de edifício, em Roma, 2017
Fotografia: Ana Carvalho
2A palavra sustentabilidade faz hoje parte do nosso vocabulário quotidiano e é usada nas mais diversas áreas e situações, da economia, ao ambiente, às questões sociais e culturais. E tal como acontece com outras palavras, pode querer dizer coisas diferentes em contextos distintos. Neste ensaio, quando me refiro à sustentabilidade, associo-a à ideia de procura por um futuro melhor, que só é possível se abordarmos as diferentes, mas interligadas dimensões da sustentabilidade: a cultural, a ambiental, a económica e a social. Dimensões para as quais os museus podem dar contributos importantes. Além disso, a sustentabilidade, como irei tentar defender, desafia todas as funções e áreas de trabalho dos museus.
3Mas esta procura pela sustentabilidade só é possível se guiada por um exercício crítico e planeado. Nesse sentido, continua a ser útil a definição de desenvolvimento sustentável tal como é proposta no relatório de Bruntland (Our Common Future), em 1987 (UN), ou seja, a consciência de que é preciso uma gestão inteligente e equilibrada dos recursos, que são finitos, se efectivamente queremos ter um futuro. Não há planeta B, como tantas vezes ouvimos repetir no senso comum.
4Parto também da premissa do valor intrínseco da cultura, e como tal do papel activo que a cultura pode ter numa abordagem de desenvolvimento da sociedade. A propósito da ideia de desenvolvimento e da sua relação com o património lembro o museólogo francês, Hugues de Varine, quando reivindica o património como recurso para o desenvolvimento, defendendo que um desenvolvimento que ignora o seu património não tem futuro (Varine 2012). Não obstante, para além do valor intrínseco da cultura para o desenvolvimento, tem-se reclamado também uma outra dimensão, porventura mais instrumental da cultura, que também perspetiva o papel da cultura para alcançar objectivos e metas de outros âmbitos das políticas públicas.
5O tema da sustentabilidade não é um tema novo para os museus. É de notar, por exemplo, o contributo da nova museologia, que já desde os anos 1970 e 1980, interligava os museus com o território e o ambiente. Hugues de Varine, autor que já referi, é aliás um dos protagonistas dessa museologia e desse olhar mais integrado para o território (cf. Varine 1991). De facto, os museus ao longo das últimas décadas têm vindo a trabalhar sobre várias dimensões da sustentabilidade, provavelmente algumas mais do que outras, com diferentes respostas. Mas, de um modo geral, os museus têm integrado a sustentabilidade de uma forma compartimentada, ou seja, sem atender a uma abordagem mais integrada que interligue todas as dimensões e desafios da sustentabilidade.
6Não obstante, a importância de uma abordagem mais integrada da sustentabilidade tem ficado patente, por exemplo, no trabalho do Ibermuseus, programa de cooperação de museus no espaço iberoamericano, que pelo menos desde 2015 tem uma linha de acção dedicada à sustentabilidade, que inclui as quatro dimensões: a cultural, ambiental, social e económica, e cujo trabalho tem dado vários resultados, nomeadamente a publicação Marco Conceitual Comum em Sustentabilidade de 2019.
- 3 Entretanto, este grupo de trabalho deu origem a um comité internacional, criado em 2023.
7Este compromisso com uma abordagem mais integrada da sustentabilidade também é evidente no trabalho que o Conselho Internacional de Museus (ICOM) desenvolve nos últimos anos, com a criação em 2018 de um grupo de trabalho sobre sustentabilidade com o objetivo de tornar a sustentabilidade mais integrada e refletida na acção dos museus.3 Do trabalho deste grupo resultou uma resolução sobre sustentabilidade adotada na Assembleia-geral do ICOM em Quioto (2019). Essa resolução chamou a atenção dos museus para a necessidade de integrar a sustentabilidade na missão, valores e estratégias dos museus, incorporando-a na sua programação e parcerias, reduzindo a pegada ecológica. Além disso, a resolução do ICOM apelava também a que os museus apoiassem o mais possível a implementação dos 17 Objectivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da Agenda 2030. Mais recentemente, o ICOM lançou um prémio internacional para distinguir museus que contribuam para o desenvolvimento sustentável, que tem em 2024 a primeira edição (ICOM 2024).
8A Agenda 2030 das Nações Unidas representa um compromisso político, uma agenda global em prol de um futuro mais sustentável, compreendendo 17 objectivos e 169 metas, aprovada em 2015 e com o horizonte em 2030. Uma Agenda que assenta sobretudo em três pilares, tidos como os principais pilares tradicionais: a sustentabilidade económica, social e ambiental. Nesta Agenda, apesar de mencionada, a cultura tem um papel praticamente marginal, com apenas uma meta diretamente relacionada, a dedicada à proteção e salvaguarda do património cultural (meta 11.4). Ou seja, na prática a cultura não é activada como um pilar da sustentabilidade, ainda que o reconhecimento de uma maior articulação entre políticas culturais e desenvolvimento sustentável faça parte das discussões há largas décadas, de que é exemplo a Conferência Mundial sobre Políticas Culturais (MONDIACULT), entre outros fóruns internacionais.
- 4 Numa perspectiva mais alargada, é de notar o papel da UNESCO na criação de indicadores que permitem (...)
9Apesar desta lacuna na Agenda 2030, e para mobilizar o sector, têm sido produzidas várias publicações no sentido de mostrar a importância e os contributos que os museus e o património podem dar para cumprir os ODS (McGhie 2019, 2021; Labadi et al. 2021), demonstrando o papel destas organizações culturais na relação com os grandes desafios globais, como a educação, a saúde, a inclusão social, a economia, o ambiente, a inovação e a investigação científica.4
10No plano europeu, a Network of European Museum Organisations (NEMO) tem igualmente desempenhado um papel muito activo na colocação deste assunto na agenda museológica, através do desenvolvimento de pesquisas, da promoção de ações de formação e, desde 2022, mediante a criação do grupo de trabalho “Sustentabilidade e Ação Climática”.5
11Importa sublinhar também que em 2022 a palavra sustentabilidade passou a fazer parte da nova definição de museu aprovada pelo ICOM, assim como várias outras palavras “novas” também estas relacionadas com a noção de sustentabilidade, como são a acessibilidade, a inclusão e a diversidade, a participação e a partilha (ICOM 2022a). Todavia, desde 1974, e na sequência da Mesa Redonda de Santiago do Chile, realizada em 1972, o conceito de museu do ICOM definia esta instituição permanente “ao serviço da sociedade e do seu desenvolvimento”, noção que permaneceu durante décadas e apelava à ideia de museu como factor de desenvolvimento. Na definição de 2007 do ICOM esta ideia é ajustada, sendo expressa como o museu ao serviço “do desenvolvimento da sociedade” Esta expressão é, assim, na nova definição de museu preterida com a introdução da palavra “sustentabilidade”.
12Concluído este preâmbulo, seguem-se algumas reflexões que considero relevantes para discutir a sustentabilidade nos museus, atentando à necessidade de perpectivas mais integradas ou sistémicas sobre o tema. Procuro, neste ensaio, identificar alguns desafios e interrogações em aberto sobre a integração da sustentabilidade nos museus, ainda que sem a pretensão de esgotar todas as reflexões que o tema evoca. É desse ponto de vista um exercício subjetivo e inacabado, intrinsecamente moldado pelo meu percurso de investigação e de docência, e pelo confronto de ideias que as leituras sobre o tema me têm proporcionado. Na identificação dos desafios terá particular relevo uma possível articulação da actividade dos museus com a Agenda 2030, por ser uma agenda global que interpela todos os sectores da sociedade em prol de um futuro mais sustentável.
13A primeira reflexão a fazer sobre sustentabilidade tem a ver com a evolução do panorama museológico. Quando atentamos ao crescimento do número de museus em todo o mundo nas últimas décadas – os dados mais recentes apontam para uma estimativa de cerca de 104 000 museus (UNESCO 2021, 5). Mas observando sobretudo a situação de Portugal – onde essa expansão também tem sido evidente nas últimas décadas (INE e PORDATA 2023) – há várias perguntas que se impõem. Até que ponto esta expansão não é contraditória ou contracorrente com o ciclo de crises económicas sucessivas em Portugal, e de carência de recursos, a vários níveis? Que museus ficam para trás? Será esta expansão verdadeiramente sustentável? Até que ponto é possível a sobrevivência de todos estes museus?
14Outro aspecto a reflectir sobre sustentabilidade relaciona-se com o coleccionismo. O acto de coleccionar, enquanto função museológica, implica um impulso para o crescimento contínuo e para acumulação de objectos, para a acumulação de património. Vivemos num tempo caracterizado pela profusão de património (Macdonald, Morgan e Fredheim 2020), ou seja, valorizamos cada vez mais patrimónios. E a pergunta a fazer é se não estamos a assistir a um desequilíbrio entre os objetos a preservar e a possibilidade real de os preservar? Creio que reflectir sobre sustentabilidade nos museus significa também colocar em causa a ideia de crescimento ilimitado das colecções, uma ideia que, aliás, tem prevalecido no mundo dos museus (Mairesse 2010).
15Em Portugal, um estudo recente sobre as reservas dos museus, palácios e monumentos nacionais sob tutela do Ministério da Cultura alertou para sobrelotação das reservas e para o problema da falta de espaço, chegando à conclusão de que um terço destas organizações já não têm possibilidade de incorporar mais objectos (Neves e Santos 2020). Perspectivar um crescimento mais sustentável das colecções poderá significar a necessidade de redefinir políticas de incorporação, de forma mais ativa e mais sustentável, avaliando e revendo critérios no sentido de uma maior racionalidade, em função da missão, da estratégia e da capacidade de crescimento de cada museu. Poderá significar também a necessidade de reflectir sobre as políticas de desincorporação, tema habitualmente controverso para os museus e cronicamente adiado em Portugal. Mas refiro-me sobretudo a práticas dentro dos limites da ética e no âmbito da desincorporação responsável. Considerando em particular o sector museológico português, este é um tema que merecia, porventura, maior discussão e desenvolvimento (cf. Filipe et al. 2021).
16O crescimento sustentável das colecções museológicas implica não só requalificar e optimizar as reservas e infraestruturas existentes, mas também equacionar a expansão física das reservas de forma mais estratégica, com um planeamento a médio e longo prazo. Uma das recomendações do Grupo de Projecto Museus no Futuro – grupo criado em 2019 pelo Ministério da Cultura português para elaborar propostas de política pública para os museus, palácios e monumentos nacionais até 2030 – contemplou esta questão. Uma das recomendações do Grupo consistiu na possibilidade de se criarem reservas mutualistas, ou seja, reservas comuns a vários museus com vista à partilha de espaços, equipamentos, recursos técnicos e recursos humanos no sentido de uma gestão mais optimizada e sustentável (Camacho 2021). No plano internacional, é disso exemplificativo a iniciativa holandesa – Collectie Centrum Nederland (2021), que consiste num projeto de reservas mutualistas que junta quatro museus com colecções nacionais, concentrando objectivos de preservação e investigação de forma partilhada (Rijksmuseum s/d).
17Por outro lado, no contexto da expansão física dos museus e das suas reservas é fundamental que os novos edifícios integrem princípios ambientais na sua construção (e funcionamento) no sentido de uma maior eficiência energética. Desta forma seria possível reduzir o impacto ambiental, sem com isso comprometer os requisitos da conservação dos objetos. Esse é o caso do Collectie Centrum Nederland, e terá sido também o caso da construção das novas reservas deslocalizadas do Louvre (2019). São de referir também projetos de remodelação e expansão em curso, de que é exemplo o Museo de Bellas Artes de Bilbao (Bilbao Museoa 2024), cuja ampliação integra preocupações com a sustentabilidade ambiental no desenho e funcionamento dos novos edifícios.
18Outra reflexão que a sustentabilidade suscita tem a ver com a massificação de alguns espaços museológicos, na sequência da turistificação dos espaços, que se reflecte na sobrecarga de visitantes, no impacto nas condições-ambiente, e por sua vez, no aumento do consumo energético e da pegada ecológica. Como harmonizar uma relação, aparentemente contraditória, entre sustentabilidade ambiental e gestão responsável?
- 6 A este propósito refiro alguns casos, entre os quais o estudo de públicos realizado em 2013 na Fund (...)
19A história mais recente tem mostrado o compromisso de muitos museus em se tornarem instituições mais abertas, socialmente mais comprometidas, ao serviço dos públicos e da sociedade. Neste sentido, a perspectiva social da sustentabilidade é também uma dimensão relevante, uma vez que assenta no compromisso de se ultrapassarem as desigualdades de acesso aos museus, sejam estas desigualdades sociais, económicas, culturais ou outras. O último estudo de públicos nos museus nacionais portugueses (DGPC e CIES – IUL 2016) mostra que o perfil social predominante nestes museus é o perfil de públicos qualificados em termos de escolaridade, com hábitos de visita a museus, maioritariamente do género feminino, adultos e caucasianos. Significa que estes museus não estão a representar suficientemente a sociedade na sua diversidade. Com efeito, estes resultados não são muito divergentes em relação a outros estudos de públicos, que têm evidenciado que os museus continuam a atrair sobretudo públicos com um nível de educação mais elevado.6 Mas significa que o compromisso para captar públicos mais diversos, implica uma programação proactiva, contínua e estratégica da parte dos museus. Este tema remete para a necessidade de investimento por parte das tutelas, nomeadamente em recursos e no reforço das equipas de mediação para que os museus possam gerar maior impacto educativo e social. Por outro lado, tal como muitos museus já o fazem, é necessário um esforço contínuo para que as organizações se tornem mais inclusivas. Esta premissa está, aliás, presente nos ODS, nomeadamente na meta que se refere à inclusão e à acessibilidade dos espaços públicos (meta 11.7), e onde também se podem incluir os museus como parte integrante das cidades que se desejam sustentáveis e inteligentes. Ou seja, colocar na agenda a sustentabilidade, significa também trazer a inclusão para a agenda e ultrapassar as barreiras que impedem o acesso e a participação das pessoas nos museus. Desde logo, refiro-me às barreiras físicas, que apesar dos avanços neste campo (ex. legislação) e de se observarem cada vez mais museus preocupados com a acessibilidade, nem todas as barreiras estão vencidas e é preciso reconhecer o quanto falta fazer neste domínio.
20Mas para responder aos desafios da inclusão é preciso também continuar a questionar a acessibilidade de múltiplos pontos de vista. E mais uma vez perguntar, quem é que fica para trás? Será que, por exemplo, o mobiliário expositivo é acessível a todas as pessoas? Cumpre os requisitos do design universal? Será que os textos dos museus são legíveis para todos e acessíveis aos públicos não especialistas? Será que existem suportes de apoio para pessoas com deficiência e necessidades específicas? Será que os websites, aplicações e conteúdos digitais são efectivamente acessíveis? Importa notar que a disponibilização de conteúdos online não significa que estejam acessíveis para todas as pessoas, nomeadamente pessoas com deficiência e necessidades específicas.
21No âmbito da sustentabilidade social, a igualdade de género é outro tema contemplado nos ODS (5) da Agenda 2030. Também nesta área os museus vão dando paulatinamente contributos, nomeadamente na revisão das políticas que levaram à menorização do lugar das mulheres artistas nas colecções e nas exposições dos museus. Mas atendendo a que os estereótipos se podem manifestar de várias formas, é preciso continuar a questionar até que ponto os espaços físicos dos museus não são também veículos de estereótipos que será necessário continuar a desconstruir e ultrapassar.
Fig. 2 – Estereótipos e sinalética em museus
Fotografia: Ana Carvalho
22A representação das identidades de género LGBTQIA+ nos museus é outro campo de intervenção mais recente, mas que vai tendo algum desenvolvimento (veja-se Sandell, Lennon e Smith 2018; Chantraine e Soares 2020). Na Agenda 2030 não há uma referência explicita às pessoas LGTQIA+, mas este tema convoca também uma questão de desigualdade social, sendo a redução e o combate das desigualdades um elemento estruturante da Agenda 2030 (meta 10.2).
- 7 Sobre o âmbito da Rede de Museus para a Inclusão na Demência, criada em Portugal em 2023, veja-se: (...)
- 8 No contexto português destaca-se o debate promovido pela Acesso Cultura sobre “Equipas Exaustas: Po (...)
23Seguimos, ainda no contexto da sustentabilidade social. Com frequência se discute hoje o potencial impacto dos museus no bem-estar e na qualidade de vida das pessoas, e no contributo que os museus podem dar para melhorar a saúde física e mental. Também se associa os museus à promoção da autoconfiança, ao empoderamento e inclusão, ao combate ao isolamento social e o reforço do sentido de pertença (Camacho 2021). Podemos observar nos últimos anos o aparecimento de vários estudos (Center for the Future of Museums 2016; Cull e Cull 2022), projetos e iniciativas (ex. Rede de Museus para a Inclusão na Demência)7 que assinalam o papel dos museus nesta área. Importa destacar também que a saúde e o bem-estar, um dos ODS da Agenda 2030, foi em 2023 selecionado como tema do Dia Internacional de Museus (ICOM 2022b). No entanto, a reflexão é mais escassa no que se refere à promoção do bem-estar no seio dos museus, nas equipas. E a pergunta impõe-se: estarão os museus a cuidar das suas equipas? Num tempo de pós-pandemia, demasiado acelerado, de excesso de trabalho, de equipas exaustas, porventura subdimensionadas, e perigosamente perto de estados extremados de burnout requer por parte das tutelas e lideranças maior atenção e respostas ajustadas.8 No rescaldo da pandemia parece haver mais consciência dos problemas de saúde mental na sociedade, mas restam dúvidas se de facto estas lições também se reflectiram no sector dos museus.
24Na Agenda 2030, o crescimento económico inclusivo e sustentável corresponde a um objetivo concreto (ODS 8), agregando várias metas correlacionadas. No campo dos museus, a dimensão económica da sustentabilidade é frequentemente associada à possibilidade de os museus contribuírem para a economia e desenvolvimento local (OECD e ICOM 2023), ao possibilitarem a criação de emprego e gerarem impactos económicos, diretos ou indiretos, entre outros. Refiro-me aos museus que estão nas grandes rotas do turismo, mas também aos museus integrados em estratégias de desenvolvimento local ou regional.
25De um outro ponto de vista da sustentabilidade económica, também se associa o potencial dos museus e das colecções para promover a criatividade e a inovação, ou seja, perpectivando os museus como espaços para a incubação de ideias e de ligação às indústrias criativas (NEMO 2018), ainda que essa relação mereça um estudo mais detalhado quanto a esse impacto.
26Ainda na esfera da economia, há, no entanto, outras dimensões da sustentabilidade que são menos discutidas no sector dos museus. É o caso da relação dos museus com a promoção do trabalho digno e do combate à precaridade. Este tema, sem a relação explícita com os museus, faz parte da Agenda 2030, que o identifica como meta (8.5), assim como fazia parte a agenda política do último ciclo governamental português (XXIII Governo Constitucional, 2022-2024), que pretendia implementar no país a “Agenda do Trabalho Digno”. Em Fevereiro de 2023 um grupo de assistentes de sala do Museu de Arte, Tecnologia e Arquitetura (MAAT), em Lisboa, protestou publicamente para denunciar uma situação irregular de “falsos recibos verdes” e assédio moral que alegadamente se vivia naquele museu (cf. Duarte 2023). Estes profissionais reclamavam então contratos de trabalho e a promoção do trabalho digno. Independentemente do desfecho destes casos em tribunal, esta é uma realidade que não deve ser ignorada. Discutir a sustentabilidade nos museus implicará também a resolução destes problemas internos, cujo caso referido não é situação isolada em Portugal no sector dos museus ou no sector da cultura de forma mais alargada. De futuro será necessária uma outra cultura de trabalho, uma que seja mais justa e saudável, se de facto pretendemos uma museologia mais sustentável, uma museologia que efectivamente coloca as pessoas em primeiro lugar, nomeadamente os seus profissionais.
27Ainda no contexto das equipas dos museus e da relação com a sustentabilidade, importa realçar um aspecto geralmente ausente da agenda museológica, nomeadamente no contexto português – o da diversificação das equipas. Refiro-me à diversificação das equipas em termos de género – atente-se, por exemplo, às assimetrias na representação das mulheres em lugares de liderança (cf. Andrade 2021; Anim-Addo, Golding e Modest 2022) –, mas também do ponto de vista social, económico e étnico, incluindo ainda a diversidade do ponto de vista das experiências e dos percursos disciplinares e académicos dos profissionais.
28Regressando aos ODS, uma potencial ligação aos museus pode ser identificada numa das metas da Agenda 2030 que tem a ver com o desenvolvimento da investigação científica (meta 9.5). E mais uma vez, embora não se refiram os museus, esta é uma relação particularmente relevante, sobretudo no que diz respeito ao papel que as colecções podem ter para o desenvolvimento da investigação científica a partir de diferentes áreas da ciência (história da arte, antropologia, história, arquitectura, arqueologia, entre outras). O caso das colecções de história natural são porventura dos exemplos mais referidos, enquanto recursos que preservam informação e diversidade genética com potencial utilização para a ciência contemporânea, nomeadamente para uma variedade de áreas de estudo – biologia, clima, saúde pública, toxicologia, veterinária, virologia, ambiente, agricultura, entre outras (Lourenço 2005, 126). Cito a este propósito um breve artigo da plataforma Museum Next (Murphy 2021) que é exemplificativo do potencial das colecções de história natural para a ciência. O argumento central deste artigo defende a necessidade de investimento na digitalização completa das colecções, neste caso as colecções do Museu de História Natural em Londres, no sentido de dar maior acesso aos cientistas, permitindo, assim, um maior desenvolvimento de investigação científica, com a potencial descoberta de novos fármacos, estimando-se inclusive um retorno económico significativo por esta via.
29Destaco, por último, mas não menos importante, a sustentabilidade ambiental e a acção climática como resposta ao grande desafio da crise ou emergência climática, que nos afecta como indivíduos e como colectivo, e que também traz consequências nefastas e alarmantes para a conservação do património cultural (cf. European Union 2022).
30Parece haver um maior reconhecimento dos efeitos da crise climática, começando pelo aumento de catástrofes e riscos naturais, continuando pelo número crescente de debates e atenção na comunicação social, é um tema societal que está na ordem do dia. Observamos cada vez mais museus a contribuir para a sustentabilidade ambiental, de diferentes formas. Identificamos museus que estão a fazer um esforço para adaptar os seus edifícios históricos e a forma como trabalham, para se tornarem mais amigos do ambiente, de uma forma estratégica. Alguns museus procuram inclusive esse reconhecimento público, como é o caso do Rijksmuseum (Amesterdão, Holanda), que em 2021 era considerado o primeiro museu a receber um selo de certificação ambiental com a mais alta classificação de sustentabilidade (NL Times 2021). São também conhecidos novos museus cujos edifícios já foram pensados de raiz com princípios de sustentabilidade ambiental como é o caso do Museu de Ciência de Trento (2013), em Itália, ou o Museu do Amanhã (2015), no Brasil, para o qual a sustentabilidade é, aliás, a matéria de reflexão e trabalho. Observamos também museus que se reposicionam publicamente sobre a urgência da acção climática e sobre o papel dos museus (e do sector cultural) em trazer esta discussão para a programação, para as exposições, agindo (ex. Tate 2019). Este posicionamento público pode também incluir a participação dos museus em actividades de rua, como sejam as manifestações pelo clima, que por exemplo é comum em países como a Alemanha, estando completamente ausente de Portugal.
31Neste contexto, podemos aludir ao potencial dos museus pela sua capacidade de influência na sociedade, activando a sua dimensão educativa, ou seja, a sua capacidade de sensibilizar para uma maior consciência ambiental e para a mudança de comportamentos junto dos públicos, que vários museus têm vindo a colocar em prática.
32Por outro lado, do ponto de vista dos públicos, podemos observar um maior escrutínio sobre o lugar dos museus e o seu (não) contributo para a acção climática. Até certo ponto, os actos de vandalismo em museus dos últimos anos por parte de activistas parece evidenciar que existe uma percepção pública de que os museus não estão comprometidos com a açção climática. A crise climática também tem suscitado um dilema ético para alguns museus. Refiro-me ao caso do Museu Britânico, que tem sido objecto de várias manifestações a favor da justiça ambiental e em protesto contra as companhias petrolíferas. Em particular, destacam-se pelo menos desde 2012 protestos contra a relação do Museu Britânico com a BP, denunciando a influência dessa companhia petrolífera, mecenas do museu, em decisões de programação (ver Serafini, e Garrard 2019). Neste contexto, reivindica-se não só a independência do museu como princípio ético, como também uma relação pouco ética pelo facto das companhias petrolíferas contribuírem de forma significativa para a crise climática, o que deverá ser contrário aos valores defendidos pelo museu, evidenciando um dilema ético. Além de que a actividade da BP enquanto mecenas do museu poder corresponder a uma tentativa de ecobranqueamento.
33Em 2022, a NEMO, rede europeia de organizações de museus, publicou os resultados de um inquérito sobre como os museus europeus estão a trabalhar com a emergência climática. Apesar de alguns sinais positivos, em que a maior parte dos museus reconhece a relevância do tema, apenas uma minoria de museus deu passos concretos para a ação climática (NEMO 2022). O relatório da NEMO destaca a necessidade de maior agenciamento dos próprios museus no reconhecimento de que o seu contributo pode fazer a diferença. Nesse sentido, identifica-se a necessidade de trazer a sustentabilidade para a agenda, para a estratégia dos museus. O mesmo relatório também evidencia a necessidade de investimento na adaptação dos edifícios e a adopção de formas de funcionamento mais sustentáveis do ponto de vista ambiental, assim como o fortalecimento de competências que possibilitem a integração e o apoio de estratégias que contemplem a sustentabilidade em cada museu (NEMO 2022). Este último aspeto liga-se com o papel das políticas públicas neste campo e com a necessidade de trazer os ODS e a acção climática em particular para a agenda das políticas culturais. Ou seja, políticas culturais que criem condições para o desenvolvimento dos museus nesta área. Mas para além isso, seria necessário implementar políticas transversais para a sustentabilidade que juntassem as várias áreas governamentais – da cultura, da economia, do ambiente, da área social – na concretização de objectivos e metas comuns. Ou seja, uma visão menos compartimentada das políticas públicas e da sustentabilidade propriamente dita.
34Não obstante a importância de políticas públicas por parte dos governos nesta matéria, creio que integrar a sustentabilidade nos museus passa também por estabelecer objectivos e metas, caso a caso. Significa promover uma cultura de avaliação e de aprendizagem interna. Isto implica medir o impacto, sem que os museus se esgotem na própria medição. Em 2023, o Ibermuseus apresentou o Guia de Autoavaliação em Sustentabilidade para Museus. Trata-se de uma ferramenta para medir a sustentabilidade a partir de 55 indicadores, com uma visão integrada da sustentabilidade, e que foi pensada para ajudar os museus a colocar em prática uma acção mais alinhada com os ODS, e com práticas sustentáveis. Esta ferramenta de autoavaliação oferece no contexto ibero-americano, no qual Portugal e Espanha se incluem, uma proposta concreta de aplicação para os museus, de acesso livre e gratuito.9
- 10 Sobre o CISOC veja-se: https://cisoc.pna.gov.pt (consultado em Junho 28, 2024).
- 11 Lançado em Dezembro de 2023, o CISOC teve, de Janeiro a Setembro de 2024, a adesão formal de 7 enti (...)
35Também é relevante referir uma outra ferramenta de autoavaliação lançada em 2023 em Portugal, o CISOC, Compromisso de Impacto Social das Organizações Culturais, desenvolvida pelo Plano Nacional das Artes (Ministério da Cultura e Ministério da Educação).10 Apesar de esta iniciativa se dirigir para as questões da sustentabilidade social, é um exemplo recente de uma medida de política pública que incentiva uma cultura de autoavaliação no contexto das organizações culturais, em que se incluem os museus. Creio que um dos problemas observáveis nas últimas décadas nos museus em Portugal é a ausência de uma maior cultura de avaliação, que fragiliza uma cultura de aprendizagem interna e que, por sua vez, poderá não favorecer à partida a desejável monitorização e avaliação de abordagens integradas de sustentabilidade. O CISOC poderá representar, assim, um passo significativo no contexto português, fomentando a mudança na forma como as organizações culturais trabalham, através de uma ferramenta (gratuita) que não só permite medir e promover o impacto social (110 indicadores) como ajuda a alinhar as metas dos museus com necessidades sociais específicas da sociedade (Maravalhas et al. 2023). Apesar do sucesso da iniciativa depender da adesão voluntária das organizações, não deixa de ser uma possibilidade em aberto e à disposição dos museus para a construção de práticas mais sustentáveis do ponto de vista social.11
36Concluo este ensaio, com outro aspecto que me preocupa enquanto cidadã, investigadora e professora. Abordar a sustentabilidade nos museus desafia todas as áreas de actividade e todas as funções museológicas, exige respostas para perguntas que estão interligadas. Requer, sobretudo, que se responda a perguntas, como por exemplo: o que podem os museus fazer para dar melhor uso aos seus recursos e de forma mais duradoura? Neste contexto considerando o museu como um todo, com os seus objectos, pessoas e infraestruturas. Além disso, como podem os museus colocar estes recursos ao serviço da sociedade e dos seus desafios? A reflexão em torno destas perguntas exige tempo de qualidade, o que se afigura um bem escasso. Vivemos um tempo demasiado acelerado, de trabalho e de modos de vida, provavelmente insustentável. É urgente uma cultura de abrandamento. Talvez isso signifique fazer menos, mas pode querer dizer também fazer com mais eficácia, relevância e sustentabilidade.