- 1 Os países ibero-americanos são os seguintes: Andorra, Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, (...)
- 2 Este artigo tem por base a comunicação apresentada no VII Fórum Ibérico de Estudos Museológicos (Ci (...)
1Desde julho de 2023 que os museus portugueses, assim como os museus e de 21 países ibero-americanos1 contam com uma nova ferramenta de apoio à melhoria das suas práticas quotidianas rumo a uma maior sustentabilidade.2 O Guia de Autoavaliação em Sustentabilidade de Museus do Programa Ibermuseus é um instrumento valioso para as equipas dos museus e para os processos museais. Neste contexto, entendemos os processos museais como:
As atividades, os projetos e os programas com base nos pressupostos teóricos e práticos da museologia, tendo o território, o patrimônio cultural e a memória social de comunidades específicas como objeto, visando à produção do conhecimento e ao desenvolvimento cultural e socioeconômico. Os processos museais, que se iniciam pela articulação e formação de redes, buscam o empoderamento social e o desenvolvimento cultural, por meio da afirmação da identidade, da apropriação do patrimônio cultural e da construção da memória social. (IBRAM 2014, 22)
2O Guia reflete sobre as iniciativas dos museus e a sua gestão no âmbito da sustentabilidade, compreendendo as suas quatro dimensões – cultural, ambiental, económica e social – por meio do preenchimento de um questionário autogerido, que está disponível online e gratuitamente.3
3A partir de quatro dimensões da sustentabilidade – ambiental, social, cultural e económica –, esta ferramenta de autodiagnóstico foi concebida para ser intuitiva e acessível, e construída numa perspetiva multidimensional e integrada, o que permite aos museus conhecerem o seu grau de sustentabilidade.
4Para garantir a fluidez do processo de preenchimento, as questões apontadas no Guia são agrupadas por função museológica (investigação, comunicação, conservação e educação), precedidas de uma contextualização da sua temática, natureza e objetivos. Os indicadores contidos nas questões abrangem aspetos centrais do dia a dia das instituições, como meios e recursos utilizados, processos e rotinas de trabalho, serviços oferecidos à sociedade e resultados alcançados, mecanismos de liderança, planeamento, gestão, buscando sempre correlacionar o cumprimento das funções primárias e de direção/gestão com práticas sustentáveis.
5O Guia de Autoavaliação de Sustentabilidade faz parte do compromisso do Programa Ibermuseus em ampliar os seus estudos neste âmbito, processo que iniciou com o Marco Conceitual Comum de Sustentabilidade (2019), um documento que propõe um novo conceito de sustentabilidade ao agregar a perspetiva cultural às dimensões económica, social e ambiental, considerando a mesma na sua integralidade no desenvolvimento humano; e teve continuidade com a série audiovisual Museus + Sustentáveis4, que se materializou em quatro episódios sobre as dimensões estabelecidas, a partir das experiências e iniciativas sustentáveis desenvolvidas por 11 museus ibero-americanos (Argentina, Chile, Equador, México, Colômbia, Costa Rica, Espanha, Portugal, Brasil, Uruguai e Peru), buscando inspirar novos modelos de gestão.
6A ferramenta resulta de um amplo processo de trabalho colaborativo e reflexivo desenvolvido entre 2020 e 2023, no qual participaram profissionais e especialistas em museus de 12 países ibero-americanos que compõem a mesa técnica da Linha de Ação de Sustentabilidade do Programa Ibermuseus.
7Desde 2008, quando aprovado como Programa Ibero-americano na XVIII Cúpula Ibero-americana de Chefes de Estado e de Governo, em San Salvador, o Programa Ibermuseus definiu como missão promover o desenvolvimento sustentável dos museus e o fortalecimento das políticas públicas museológicas na Ibero-América, por meio da cooperação e integração regional dos museus. Entre os seus objetivos, estão: 1) Contribuir para o fortalecimento das políticas públicas museológicas; 2) Contribuir para a proteção do património museológico da região; 3) Fortalecer a função social dos museus; e 4) Aperfeiçoar a gestão das instituições museais da região.
8Em 2015, o Programa assume o papel de propulsor de iniciativas e reflexões no campo da sustentabilidade, notadamente com a criação de uma linha de ação dedicada à “Sustentabilidade das Instituições e Processos Museais”, que juntamente com outras quatro linhas de ação – “Formação e Capacitação”, “Observatório de Museus Ibero-americanos”, “Proteção do Patrimônio” e “Educação” – compõem um mosaico integrado de ações deste programa intergovernamental.
- 5 Em 2015 o Conselho Intergovernamental do Programa Ibermuseus estava constituído por 10 países – Arg (...)
9As iniciativas da linha dedicada à Sustentabilidade das Instituições e Processos Museais envolvem desde atividades de formação até reflexões e desenvolvimento de ferramentas, como o Guia de Autoavaliação em Sustentabilidade de Museus, amparadas em acordos firmados entre mais de uma dezena de países ibero-americanos.5 Estas iniciativas buscam apoiar a gestão, por evidência no desenvolvimento de práticas sustentáveis que sejam capazes de contribuir para melhorar a vida das comunidades, a partir dos museus.
- 6 18 países são signatários da Declaração (Andorra, Argentina, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equ (...)
10A Linha de Ação em Sustentabilidade vem ganhando impulso também diante do contexto de fortalecimento da agenda neste campo, consolidada em foros e acordos internacionais norteadoras das políticas culturais em território ibero-americano. Nesse sentido, as iniciativas da linha consideram a Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (2015) com os seus 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, a Estratégia Ibero-americana de Cultura e Desenvolvimento (2020) da Secretaria-Geral Ibero-Americana e a declaração final da Conferência Mundial da UNESCO sobre Políticas Culturais e Desenvolvimento Sustentável (MONDIACULT 2022). Além disso, como marco referencial específico do contexto ibero-americano, a Declaração do 10.º Encontro Ibero-Americano de Museus (2022), firmada por 18 países ibero-americanos6, assume a sustentabilidade nas suas quatro dimensões – económica, ambiental, social e cultural – como uma perspetiva transversal às 14 recomendações emanadas do documento e destaca a missão de museus na articulação das agendas de cultura e desenvolvimento sustentável.
11Diante da multiplicidade de entendimentos, práticas e tratamentos do tema da sustentabilidade no campo da cultura e especialmente no campo dos museus, como primeira medida para balizar as diferentes referências e compreensões sobre o termo, o Ibermuseus desenvolveu um Marco Conceitual Comum em Sustentabilidade (2019). Este documento tem como objetivo reunir e esmiuçar as quatro dimensões da sustentabilidade norteadoras das práticas museais, a partir da compilação de referências conceituais, entrevistas e um extenso mapeamento teórico entre os vários países que compõem a região ibero-americana.
12Graças a esse esforço na definição de um Marco Conceitual, foi possível entrar em consenso sobre cada uma das dimensões prioritárias no âmbito do Ibermuseus. A dimensão ambiental contribui para a proteção e conservação dos ecossistemas, dos recursos hídricos e da biodiversidade; a dimensão social incorpora as perspetivas da ação para melhoria social, de qualidade de vida e bem-estar das suas comunidades a partir da diminuição das desigualdades; já a dimensão cultural estabelece o respeito à diversidade de valores e às particularidades das comunidades e dos povos, e o acompanhamento de seus processos de mudança; por outro lado a dimensão económica tem como premissa o equilíbrio dos recursos materiais no desempenho das funções museais, bem como a sua contribuição para um desenvolvimento mais igualitário.
13Assim, a partir dessas quatro dimensões, o Ibermuseus estabeleceu seis eixos prioritários no desenvolvimento dos seus trabalhos no âmbito da linha de Sustentabilidade das Instituições e Processos Museais Ibero-Americanos. São eles a promoção de políticas públicas no campo da sustentabilidade; o fomento à aplicação local das iniciativas da linha de ação nos países ibero-americanos; a articulação da transversalidade da sustentabilidade em todas as ações do Programa Ibermuseus, o estímulo à conexão e à articulação entre profissionais e suas instituições no âmbito da sustentabilidade; o fortalecimento da articulação entre os países para a implementação de iniciativas mais sustentáveis e a promoção da implementação de ações locais integradas de sustentabilidade.
- 7 No projeto-piloto participaram os seguintes: Vilamuseu (Espanha), Museu Nacional y Centro de Invest (...)
14Esses princípios encontram-se articulados nas áreas de investigação, ação e promoção na área da sustentabilidade, de modo a apoiar o desenvolvimento de uma cultura mais sustentável nas instituições e nos processos museológicos ibero-americanos. O processo, desenvolvido entre 2020 e 2023, foi liderado por especialistas em indicadores culturais integrantes da equipa do IBRAM (Instituto Brasileiro de Museus) junto de outros 12 especialistas em museus, representantes de 12 países. O processo envolveu 10 oficinas de construção coletiva, além de grupos de trabalho dedicados à distintas etapas do processo, como o desenvolvimento da ferramenta online e a aplicação do projeto-piloto junto de quatro museus ibero-americanos7. Os indicadores desenvolvidos relacionam-se especificamente com base nas funções primárias dos museus e nas dimensões da sustentabilidade, porém consideraram outras experiências de desenvolvimento de indicadores, como as de monitoramento da contribuição da cultura (UNESCO 2019) para os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030.
15O diagnóstico que integra o Guia contempla aspetos centrais da rotina dos museus, que dizem respeito tanto à sua organização interna e institucional – como planeamento, recursos humanos, instalações técnicas – até aos serviços e práticas disponibilizadas à sociedade, como serviços educativos, comunicação com os públicos e promoção de atividades externas.
16Os 55 indicadores do Guia são fruto da interseção entre as funções primárias dos museus – preservação, comunicação, educação e investigação, mais a função transversal de direção/gestão –; as quatro dimensões da sustentabilidade e também aspetos da sociedade contemporânea que atravessam o fazer dos museus, tais como a globalização, a relação dos museus com a economia e a qualidade de vida, a função social dos museus e a sua relação com as tecnologias de informação e comunicação (TICs). Essas questões foram identificadas como relevantes pelos especialistas envolvidos na relação da sociedade com os museus e, portanto, consideradas na transversalidade dos indicadores.
17Tais parâmetros dão origem a perguntas diretas sobre o funcionamento rotineiro do museu, como podem ser: “O museu possui pessoa especializada e com experiência nas atividades de conservação preventiva e gestão/gerenciamento de riscos do imóvel onde está localizado o museu, suas coleções, funcionários e visitantes?”, “A pessoa ou equipe educativa participa no planeamento e decisões estratégicas do museu?” ou “O sistema de planeamento e gestão estratégica é participativo?”
18A partir dos indicadores, estabelecem-se opções de respostas absolutas como “Sim” e “Não”, também as parciais “Em parte/Parcialmente” como alternativas intermediárias já medidas ou quantificadas entre o máximo e o mínimo possíveis e “Não se aplica” para aspetos inexistentes ou pouco relevantes para o museu e suas coleções. Cada uma dessas opções atribui pontuações específicas em relação ao índice de práticas sustentáveis da instituição.
19Embora o Guia ofereça uma métrica quantitativa, a ferramenta permite, ao longo do preenchimento, observações qualitativas, que podem ser feitas em campos vinculados a cada um dos indicadores/questões, além de campos gerais de sugestões, tanto em relação à perceção de como a instituição poderia ter melhor desempenho em cada quesito como à melhoria dos conteúdos e técnicas do Guia. Por isso, a ferramenta coloca-se numa posição crítica permanente de coletar sugestões e indicações dos seus usuários, compreendendo o preenchimento como contribuição ao caminho continuado de desenvolvimento e aperfeiçoamento.
20No final do processo de preenchimento do Guia, que deve ser transversal e colaborativo entre a direção e as áreas envolvidas, é possível obter uma pontuação que permite identificar percentualmente o atual grau de sustentabilidade da instituição, de acordo com os critérios adotados neste instrumento. O preenchimento, envolvendo múltiplas áreas, possui dois objetivos: o primeiro é promover o diálogo entre as distintas ações de sustentabilidade desenvolvidas na instituição e o segundo é fortalecer uma visão sistémica do conhecimento interno neste campo.
21Assim, o processo que se desenvolve é encarado como um convite à reflexão e uma contribuição a conhecer mais aspetos quotidianos relacionados com práticas mais sustentáveis. Cada um dos museus pode preencher a ferramenta uma vez ao ano, acompanhando assim, a melhoria dos seus índices de sustentabilidade de acordo com as iniciativas que implementa a partir desta análise. A proposta é que o processo indique as evidências de práticas sustentáveis e contribua para a identificação das fragilidades e pontos fortes da instituição nesse quesito, incidindo no fortalecimento da relação entre a instituição e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), bem como seus indicadores.
- 8 Dados coletados entre 18 de maio de 2023 e 10 de abril de 2024.
22Desde julho de 2023, data do lançamento do Guia, foram registadas 223 instituições museais de 14 países ibero-americanos – Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, El Salvador, Espanha, Honduras, México, Peru, Portugal, República Dominicana e Uruguai.8 Um total de 126 autoavaliações foi aplicado, também provenientes dos mesmos 14 países. As instituições participantes registaram 22 boas práticas de sustentabilidade nas dimensões económica, social, cultural e ambiental, em sete países.
23Além disso, com o objetivo de melhor conhecer os impactos da aplicação e a eficácia do Guia, entre junho e setembro de 2023, foi realizada uma aplicação monitorada junto a 36 museus que foram selecionados previamente por especialistas dos países envolvidos no desenvolvimento do Guia e convidados a preencher as informações como parâmetros a serem acompanhados pela mesa técnica da linha de ação.
24Embora a participação dos museus portugueses no preenchimento seja considerada ainda tímida, nos últimos meses o Programa Ibermuseus teve oportunidade de apresentar e dialogar com as instituições do país sobre os benefícios do uso da ferramenta em território nacional. Neste âmbito, destacamos o VII Encontro da Rede de Museus de Vila Nova de Famalicão (30 e 31 de outubro 2023), promovido pela Rede de Museus de Vila Nova de Famalicão (Portugal), no qual o Ibermuseus participou com uma apresentação geral do Guia junto de profissionais de museus. O Programa também integrou o 5.º Encontro dos Museus do Médio Tejo, organizado pela Rede de Museus do Médio Tejo (RMMT), que decorreu no Sardoal (20 de novembro 2023), e foi dedicado ao tema “Museus, Sustentabilidade e Bem-Estar”. Este encontro procurou consolidar o trabalho da rede e afirmar a atuação do setor nas diferentes áreas e contextos culturais, sociais, económicos e ambientais da região e do próprio território nacional. Em outro encontro regional (29 de novembro de 2023), através da Direção Regional de Cultura do Norte de Portugal, o Ibermuseus realizou uma oficina sobre ao Guia com o objetivo de aprofundar orientações de preenchimento da ferramenta. Finalmente, o Programa apresentou o Guia, no âmbito da “Museus e Monumentos de Portugal, EPE” e a propósito do encontro anual da Rede Portuguesa de Museus (RPM), que se realizou no Museu Marítimo de Ílhavo (21 de março de 2024). Nessas instâncias, foi possível conhecer o interesse dos museus portugueses em desenvolver mais suas práticas no campo da sustentabilidade e, assim, contribuir para um futuro mais igualitário e sustentável.
25O compromisso do Ibermuseus com a sensibilização sobre a importância da sustentabilidade e o uso do Guia permanecerá como uma prioridade nas suas atividades. Além de fornecer orientações práticas, o Guia desempenha um papel fundamental ao promover uma consciencialização mais ampla sobre a sustentabilidade nos museus. Através de uma série de encontros nacionais, regionais e internacionais, como a Conferência-geral do Conselho Internacional dos Museus, realizada em 2022, buscamos ampliar o alcance e o impacto positivo deste recurso, capacitando profissionais e instituições para implementarem práticas sustentáveis nas suas atividades diárias. Este trabalho contínuo de sensibilização não apenas fortalece os museus como agentes de mudança, como também contribui para a preservação das memórias e do património cultural e ambiental para as gerações futuras.
26Destacamos o impacto do Guia, não somente no que diz respeito ao desempenho das instituições e no apoio ao desenvolvimento individual das práticas, mas também no que se refere à construção de uma mostra de dados que pode vir a ser representativa como parâmetro de desenho de políticas públicas para o setor museológico norteadas pelos princípios da sustentabilidade. Nesse sentido, prevê-se a elaboração de relatórios por país que possam oferecer uma visão ampliada do desempenho das instituições museológicas em matéria de sustentabilidade no território nacional. O exercício de olhar sempre ao futuro fortalecimento da experiência, fez a mesa técnica do Programa Ibermuseus estabelecer uma série de propostas para a implementação do Guia a curto e médio prazo. Entre estas propostas destaca-se o estabelecimento de um “Selo de Boas Práticas Sustentáveis” para os museus, o desenvolvimento conjunto e contínuo de indicadores de sustentabilidade, e a concessão de “Prémios de Reconhecimento de Sustentabilidade”. Ainda em 2024, está prevista a implementação de distintos protocolos para ampliar na acessibilidade técnica e linguística da ferramenta, além de ações mais intensivas territoriais nos 14 países que compõem o Programa Ibermuseus.
27A sustentabilidade parece, muitas vezes, um desafio complexo para os museus ibero-americanos, sobretudo quando há dificuldades em estabelecer parâmetros para a identificação do que podem ser as práticas sustentáveis. O Guia de Autoavaliação em Sustentabilidade de Museus do Ibermuseus propõe ser uma componente de apoio a esse processo, uma vez que de maneira simples e colaborativa, oferece às instituições a possibilidade de refletir sobre 55 perguntas que, transformadas em ações, podem contribuir para que o museu se fortaleça como um agente de promoção da sustentabilidade, nas suas quatro dimensões, e em estreita articulação com o território.
28Apesar da curta trajetória do Guia até ao momento, é possível identificar o crescente interesse e compromisso das instituições ibero-americanas em promover não somente práticas mais sustentáveis, mas em agir de forma mais proactiva no sentido de um futuro mais igualitário e promissor da nossa sociedade.