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Notações

Exposições de cosmorama e o museu: um projecto para reimaginar futuros de uma história esquecida

Cosmorama Exhibitions and the Museum: a Project to Reimagine the Future of a Forgotten History
Susana S. Martins

Resumos

Este artigo examina a relação entre os museus e a história esquecida do Cosmorama, uma prática imersiva de visualização de imagens que se popularizou nas cidades ocidentais na primeira metade do século XIX, sobretudo sob a forma de exposições. Apresentados principalmente em galerias urbanas e, pontualmente, em alguns museus da época, poucos vestígios materiais desta cultura óptica sobreviveram nas colecções museológicas de hoje, contribuindo tanto para a sua ausência generalizada do campo da história das exposições, como para a sua “perda” museológica. Este texto tem por objectivo redefinir o lugar museológico das exposições de cosmorama a partir da apresentação dos objectivos e desenvolvimentos do projecto de investigação “CURIOSITAS: Espreitar antes da Realidade Virtual. Uma Arqueologia dos Media Imersivos através da Realidade Virtual e dos Cosmoramas Ibéricos” (2022-2025) que estuda estas exposições numa perspectiva de humanidades digitais. Numa primeira fase, são identificadas características para-museológicas dos cosmoramas e discutidas hipóteses que podem explicar a sua atual invisibilidade museológica. Subsequentemente, descreve-se o alcance internacional e os princípios metodológicos que orientam este projecto, propondo-se novas soluções possíveis para reavaliar e reintegrar este património esquecido nas práticas e discursos museológicos de hoje e do futuro.

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Notas da redacção

Artigo recebido a 06.05.2024

Aprovado para publicação a 09.07.2024

Texto integral

Do museu e da perda

  • 1 A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.
  • 2 Este artigo tem por base a comunicação apresentada no VII Fórum Ibérico de Estudos Museológicos (Ci (...)

1Os museus afiguram-se, desde a sua génese moderna, como instituições culturais assentes numa ambivalente relação entre “perda” e “permanência”.1 A ideia de permanência será provavelmente aquela cujo sentido primeiramente se evidencia.2 Embora a mitologia do museu como lugar imutável e suspenso no tempo (tantas vezes expressa na sua qualificação de túmulo, sarcófago ou mausoléu) esteja já fortemente ultrapassada, a mais recente definição de museu, aprovada pelo Conselho Internacional de Museus (ICOM) em 2022, continua a contemplar o seu carácter estável de “instituição permanente”, ainda que introduza uma renovada atenção aos aspectos da diversidade, sustentabilidade e inclusão.

2Mas, como sabemos, apesar desta «obsessão moderna com a permanência» (Lubar et al. 2017, 4), nem os museus nem as suas colecções e narrativas são tão permanentes ou duradouros. Mesmo quando se procura assegurar a boa sobrevivência dos objectos ao longo de gerações, existe nos museus um diálogo constante e estrutural com a instância da “perda” – que se faz sentir nos diferentes planos da vida dos museus, e com sentidos distintos. As perdas com que um museu se confronta, ou pode confrontar, são múltiplas. Por um lado, o museu está sujeito à perda directa de objectos por via de factores externos e imprevisíveis como roubos, acidentes, catástrofes naturais, ou conflitos armados. Por outro lado, existem casos em que a perda de objectos pode partir voluntariamente do museu, e ser motivada por políticas institucionais, internas ou externas, conducentes a situações de restituição, repatriamento, desincorporação, entre outras.

  • 3 Para mais sobre esta discussão, veja-se o artigo de Jennie Morgan e Sharon Macdonald (2020) sobre m (...)

3A outro nível ainda, a “perda” pode ser também entendida museologicamente de forma aparentemente mais indirecta, mas significativa. Lembre-se, por exemplo, como muito do valor patrimonial das grandes colecções dos principais museus ocidentais frequentemente decorre de perdas patrimoniais noutros lugares do mundo. Ou como as políticas de acumulação centrípeta, adoptadas como modelo em grande parte dos museus no passado, resultam hoje na perda de acção – e de espaço – por parte de curadores e dirigentes que não podem mais replicar as mesmas dinâmicas, sob pena de comprometer os meios e a sustentabilidade das suas instituições.3

4Não cabendo aqui realizar um mapeamento exaustivo de perdas museológicas, importa destacar como algumas delas podem ainda assumir um outro alcance histórico. O presente artigo lida precisamente com uma dessas situações na medida em que pretende discutir a história “perdida” do cosmorama, um media óptico imersivo da primeira metade do século XIX que é praticamente inexistente nas colecções museológicas actuais. Em muitos sentidos, os museus, em particular os museus de arte, articulam as suas histórias, memórias e patrimónios em função dos objectos e documentos que conservam e guardam (função essa que visa evitar outras perdas). Este entendimento da história da arte como disciplina e discurso assente na materialidade do que se guarda, conserva e expõe, é também acompanhado por toda uma dimensão “invisível” que os museus também comportam, e que é constituída pelo que falta – se quisermos, pela história das suas ausências, perdas e vazios. Ainda que certamente difícil de escrever, a história destes vazios corre paralelamente à dos objectos guardados, constituindo-se como reverso de uma narrativa sobre o mesmo passado, e que será tanto mais rica quanto os investigadores e as instituições forem capazes de o incluir e reintegrar nas suas visões de futuro. E se há colecções problemáticas, os museus não devem esquecer que há outras colecções que despareceram, e outras mesmo que nunca chegaram a existir, como a do cosmorama. Torna-se necessário, então, encontrar formas tão rigorosas como imaginativas de lidar com essas perdas.

  • 4 CURIOSITAS é um projecto de investigação coordenado por Victor Flores (Investigador Responsável) e (...)

5Partindo deste entendimento, é essa a proposta do projecto de investigação académico que aqui se apresenta – o projecto “CURIOSITAS: Espreitar antes da Realidade Virtual. Uma Arqueologia dos Media Imersivos através da RV e dos Cosmoramas Ibéricos” (doravante CURIOSITAS).4 Concebido de forma interdisciplinar e com uma equipa de investigação internacional, o projecto (2022-2025) pretende explorar a memória histórica e as potencialidades das humanidades digitais, contribuir para resgatar a história esquecido de um relevante media óptico imersivo – o cosmorama – reavaliando o seu o lugar histórico e museológico, como passaremos a detalhar.

Cosmorama: breve recorte de um dispositivo perdido

  • 5 Estas ideias sobre a exploração metodológica da ruína e do fragmento foram primeiramente propostas (...)

6À semelhança da própria História, um dos grandes desafios dos museus enquanto instituições de memória é o de conferir sentidos aos mais diferentes – por vezes parcos – fragmentos que nos chegam do passado. Nessa medida, o projecto de investigação que aqui se expõe partilha dessa vocação histórica ao mesmo tempo que procura transformar as noções de ruína e fragmento em conceitos metodologicamente relevantes para o estudo dos media, da arte e da cultura visual oitocentista (Mendes e Martins 2023).5

  • 6 Excepto em situações de outro modo creditadas, todas as traduções são da autora.
  • 7 Patenteado em 1787 pelo irlandês Robert Barker (1739-1806).
  • 8 Inventado em 1821 por Louis Daguerre (1787-1851) e Charles-Marie Bouton (1781-1853).

7A perda histórica e museológica que a equipa do projecto CURIOSITAS pretende compreender e recuperar é a do Cosmorama. Mais concretamente, das exposições de Cosmorama – singulares dispositivos de visualização imersiva de imagens, populares na primeira metade do século XIX, que se enquadram no conjunto mais alargado de tecnologias da visão que caracterizaram a modernidade. Como foi já notado, não obstante a sua «condição moderna enquanto nova forma de experienciar imagens, o Cosmorama é hoje um meio arqueológico esquecido»6 constituindo um capítulo relativamente «invisível na história dos media ópticos» que tem recebido pouca atenção académica quando comparado com dispositivos mais estudados como o Panorama7 ou o Diorama8 de Louis Daguerre e Charles-Marie Bouton (Flores e Martins 2022, 226).

Fig. 1 – View of the Cosmoramic Room, 1850. Salão de Cosmorama do P. T. Barnum’s American Museum (Nova Iorque). Ilustração publicada no livro guia do museu (Barnum 1850, s/p)

Library of Congress, Rare Book and Special Collections Division

8As exposições de cosmorama eram locais modernos para experienciar imagens que apresentam elementos distintivos. Por contraste com o Panorama, por exemplo, no qual a imersividade se afirma pela grande escala das imagens que envolvem (colectivamente) os espectadores, o cosmorama irá propor uma observação mais individualizada, em que cada espectador visualiza as imagens singularmente, através de lentes convexas pelas quais espreita e se deslumbra com vistas de todo o mundo. Os cosmoramas participam assim, de forma decisiva, de uma longa tradição e de uma cultura visual de «práticas de espreitar», para usar o conceito de Erkki Huhtamo (2012).

  • 9 Mais tarde, em 1828, o Cosmorama de Gazzera será reinstalado na Passage Vivienne da (já em vidro) G (...)

9Mas embora decorrentes das caixas e dos dispositivos ópticos comummente associados às feiras itinerantes e à cultura popular de rua (Balzer 1998), os cosmoramas diferenciam-se dessa tradição e «não apresentam nenhuma das associações vulgares e baratas do peepshow» (Plunkett 2015, 26). Vão instalar-se em espaços elegantes, em salas de exposição instaladas nos centros das cidades, visando um público burguês bastante mais culto, e nas quais a visualização de imagens declarava fazer-se com propósitos simultaneamente recreativos e educativos. Como grande referência fundadora desta prática, podemos apontar o Cosmorama de Paris, primeiramente aberto ao público em 1808 nas galerias de madeira do Palais Royal9 pela mão do abade piemontês Jean-Antoine-Henri-Eugène Gazzera que aí instalou, para visualização lenticular, uma longa série de pinturas a aguarela e a guache com vistas da Ásia, de África, da América e da Europa, permitindo assim uma viagem pelo mundo através da imagem (Encyclopédie 1846, 88). Sabe-se que Gazzera manterá o seu reputado cosmorama em funcionamento, com rotatividade de vistas, até 1832.

  • 10 A par de alguns casos documentados apontarem variações na tipologia das imagens (por vezes aguarela (...)

10Paralelamente, porém, várias outras exposições de cosmorama vão proliferar nas principais cidades ocidentais, com especial incidência nas décadas de 1820 a 1840, e Portugal não é excepção. Que imagens se exibiam nestes salões de cosmorama? Seriam sobretudo pinturas a óleo10 com vistas de diferentes cidades, paisagens e monumentos do mundo, muitas vezes combinadas com representações da actualidade, como personalidades, batalhas e outros feitos da história recente. Camufladas atrás de paredes falsas onde eram iluminadas por candeeiros a óleo, estas pinturas não seriam observadas a olho nu, mas sim através de lentes convexas que se distribuiriam ao longo das paredes. Nestas exposições, o observador era assim solicitado a percorrer o espaço, parando em cada um destes pontos de observação para espreitar sobre as imagens. As lentes ofereciam uma visão ampliada que permitia a contemplação do detalhe, ao mesmo tempo que acentuavam a profundidade da perspectiva e os efeitos feéricos decorrentes da luz bruxuleante da iluminação.

11De acordo com a imprensa da época, é possível perceber que as entradas nos salões de Cosmorama eram pagas, e que novas séries de imagens inauguravam regularmente a cada duas, três, ou mais semanas, tornando o cosmorama numa estrutura comum e dinâmica na maioria das capitais europeias e americanas, onde operavam por períodos de largos meses. Apesar desta popularidade, os cosmoramas foram permanecendo fora de uma história da visualidade do século XIX que, embora já relativamente bem identificada no campo da arqueologia dos media e do pré-cinema, não participa ainda nos discursos da história da arte e dos estudos de museus. Compreender esta ausência e contribuir para a inscrição da história dos cosmoramas nestas áreas disciplinares constitui também um dos objectivos do projecto CURIOSITAS.

Cosmoramas e museus: uma relação?

12Das várias especificidades que o cosmorama apresenta, duas merecem especial destaque neste contexto. Por um lado, o seu singular sistema óptico que permitia espreitar de forma imersiva para as imagens. Por outro lado, importa realçar que os cosmoramas não eram à época apresentados como espectáculos, mas sim como “exposições”. Este último aspecto revela-se particularmente significativo uma vez que, apesar do seu formato original de exposição, o cosmorama tem permanecido à margem dos estudos de museus, em especial do mais recente e crescente campo das histórias das exposições.

13Como já se sugeriu anteriormente, esta ausência disciplinar pode ser explicada, antes de mais, pelos raros vestígios e provas materiais que se preservam em arquivos e colecções de museus, muito dificultando a reconstituição da história e da memória deste meio antigo. Mas esta ausência museológica torna-se bastante mais intrigante quando se verifica que, desde muito cedo, os cosmoramas apresentaram características que os aproximam do pensamento dos museus, tendo inclusivamente chegado a fazer parte de espaços museológicos do século XIX, nomeadamente de museus eclécticos em que a arte, a natureza, a ciência e o entretenimento geralmente conviviam.

Fig. 2 – The Artist in His Museum, 1822, óleo sobre tela, de Charles Wilson Peale

Pennsylvania Academy of the Fine Arts

  • 11 Este auto-retrato de grandes dimensões intitula-se The Artist in His Museum e está hoje na Pennsylv (...)
  • 12 O Grand Cosmorama do American Museum, mais tarde adquirido por P. T Barnum que o vai reinstalar no (...)

14Um desses casos é o museu do prolífico Charles Wilson Peale (1741-1827) em Filadélfia, eternizado no célebre auto-retrato de 1822 (fig. 2), no qual o artista-coleccionador levanta espectacularmente um pano de cena, em jeito de showman, para apresentar ao observador as suas preciosas colecções.11 Menos conhecida será, porventura, e como notou a historiadora de arte Wendy Bellion, uma outra aguarela pintada por Peale em colaboração com o seu filho Titian Ramsay Peale no mesmo ano (fig. 3). Essa aguarela, que mostra precisamente o espaço expositivo do auto-retrato – o designado long room –, tem outra curiosidade. Foi exposta nessa mesma “sala longa” de forma a ser observada através de um pequeno dispositivo cosmorâmico a que o próprio Peale chamou «the lens» [a lente]. De acordo com os seus escritos, sabe-se que Peale decidiu instalar “a lente” em frente à pintura depois de ter tomado contacto, durante uma viagem a Nova Iorque em 1817, com o Grande Cosmorama12 que se integrava o American Museum de John Scudder (1776-1821), inaugurado em 1810 (Bellion 2011, 3-6).

Fig. 3 – The Long Room, Interior of Front Room in Peale's Museum, 1822, carvão e aguarela sobre papel, de Charles Willson Peale e Titian Ramsay Peale

Detroit Institute of Arts, Founders Society Purchase, Director's Discretionary Fund, 57.261.

15Curiosamente, o fascínio de visualizar pinturas através de lentes parece ter-se transmitido à geração seguinte. Quando, um pouco mais tarde, outro dos filhos de Charles Peale, Rubens Peale, inaugura em Nova Iorque o seu museu e galeria de belas-artes (Rubens Peale’s Museum and Gallery of Fine Arts) em 1825, é aclamado por exibir «um cosmorama de qualidade superior» entre as suas atracções (Barber e Howe 1841, 333). Estes exemplos, não sendo exaustivos, permitem-nos no entanto verificar que a visualização cosmorâmica de pinturas era uma prática existente em museus, fosse através de uma única lente, fosse por via de salões mais completos, como o do P.T. Barnum’s American Museum, do qual subsiste uma relevante representação visual (fig. 1).

16A esta relação documentada, entre o cosmorama e o museu, acresce ainda o facto de os cosmoramas apresentarem um conjunto de características que antecedem os próprios museus e que aqui podemos designar como “para-museológicas”.

17Em primeiro lugar, o cosmorama e a sua lente de aumento convidavam a um escrutínio demorado e háptico semelhante ao que se activava nos primeiros gabinetes de curiosidades e, tal como estes, também permitia aos espectadores viajar e aprender sobre o mundo através das imagens. Além disso, as galerias e salas urbanas apresentam cosmoramas em exposições rotativas (à semelhança das actuais exposições temporárias) que exigiam uma observação individual e um visitante móvel capaz de percorrer as diferentes vistas, ao seu próprio ritmo.

  • 13 Veja-se o caso do anúncio da exposição exibida na cidade do México em 1833 em que consta que o seu (...)

18Talvez por promoverem este tipo de observação atenta como forma de aprendizagem, é curioso notar que algumas exposições de Cosmorama, de Lisboa à cidade do México, se anunciavam na imprensa justamente como “museus” e como formas de “viagem” pelos sítios mais diversos sem sair da mesma cidade.13 Tal educação pela imagem, como acontece ainda hoje numa visita a um museu, contava também com o elemento verbal, e seria acompanhada de narrativas que forneciam apoio e guiavam o espectador na experiência. Tomavam a forma da palavra escrita (nos prospectos e folhetos que se comercializavam nos cosmoramas) mas também se materializavam oralmente, pela voz do director que explicaria ao espectador a cena sobre a qual espreitava, chamando a atenção para detalhes da composição ou fornecendo relatos históricos relacionados com a vista em exposição. Nessa medida, o apresentador de cosmorama actuava com um “mediador” museológico, ou seja, como um agente capaz de orientar a experiência, fornecer o discurso, e estimular a criação de significados e a interpretação.

De volta ao museu e à história das exposições?

19Pelas semelhanças e questões acima descritas, os cosmoramas parecem assim reunir todas as condições para se poderem afirmar enquanto capítulo válido e relevante no campo da história das exposições. Para que tal se possa consolidar, importa aprofundar e compreender melhor o Cosmorama tanto em termos de investigação histórica como museológica, questionando também as razões pelas quais os cosmoramas não se encontram bem preservados ou documentados nos museus. Que sentido podemos fazer desta perda?

  • 14 É o caso do cosmorama dos museus de Scudder e P. T. Barnum, cujas pinturas, muito elogiadas, eram « (...)

20Este vazio museológico não pode certamente ser dissociado da frágil materialidade do cosmorama – dispositivo concebido para ser transportado e temporariamente montado e desmontado em diferentes cidades, sendo as pinturas por vezes vendidas neste processo. Num outro plano, porém, as práticas de espreitar são associadas a registos populares “pouco elevados”, de rua, por vezes até com conotações vulgares. Tal aspecto poderá ter contribuído para manter os cosmoramas afastados dos critérios de valoração do museu de arte, ainda que as evidências históricas demostrem que, pelo contrário, muitos destes cosmoramas eram justamente aclamados pela sua qualidade artística.14 É, no entanto, possível que as pinturas apresentadas tenham características formais e estilísticas que possam ter sido mal compreendidas pela história da arte (um quase hiper-realismo e uma luminosidade pouco consentânea com padrões de época), conduzindo assim à sua desvalorização. Por estes motivos, talvez algumas destas pinturas existam ainda nos museus e colecções sem referência ao seu passado no cosmorama, e essa é uma via de investigação a explorar.

21Um dos desafios do projecto CURIOSITAS consiste em encontrar modos de visibilizar e trazer os cosmoramas de volta à história da arte e ao museu. As pinturas de cosmorama, apresentadas fora do seu dispositivo original, têm frequentemente a aparência de uma comum pintura a óleo de média dimensão. Assim, um primeiro passo passa por tornar a história dos cosmoramas conhecida dos museus e dos seus investigadores e profissionais. Quanto mais as instituições conhecerem esta história, mais facilmente poderão identificar pinturas, rever colecções, e até reescrever as narrativas da arte e do património do século XIX. Tal revisão afigura-se necessária porque não perdemos apenas o rasto de muitos pintores e pinturas dos cosmoramas; perdemos também a memória de que, no passado, existiram pinturas que foram originalmente concebidas para ser percepcionadas desta forma. Neste sentido, os cosmoramas poderão configurar um capítulo perdido não só na história dos media ópticos e dos museus, mas também na própria história da arte.

22No âmbito do CURIOSITAS, a investigação da história dos cosmoramas passará pelo desenvolvimento de instrumentos e métodos de humanidades digitais que permitam uma remediação actual deste dispositivo com base na investigação de fontes históricas por um lado, e na recriação da sua percepção e dos seus efeitos, por outro. Sendo um projecto de génese ibérica, a equipa tem vindo a alargar o âmbito do estudo de cosmoramas a outras geografias, contemplando várias realidades fora da península, como o Reino Unido ou o Brasil.

23No momento em que este artigo é escrito, a investigação transnacional na imprensa histórica está já numa fase adiantada e os dados extraídos dos anúncios de cosmorama revelam detalhes surpreendentes sobre estas exposições, os seus agentes e públicos, e as próprias temáticas das pinturas em exibição. Depois de agregados numa ampla base de dados partilhada, alguns destes dados foram trabalhados e estão disponibilizados numa cronologia digital – uma timeline pesquisável que, através de um sistema de visualização de informação, permite ao utilizador consultar e procurar que exposições de cosmorama existiram num determinado momento, filtrando por ano ou por apresentador, por exemplo, e podendo também explorar que imagens e vistas estavam em exposição (ver fig. 4). Esta cronologia encontra-se já acessível no website bilingue do projecto.15 Será posteriormente complementada com mapas e formas de visualização que permitam cartografar e extrair as amplas redes de circulação e itinerância (no espaço e no tempo), de diferentes exposições, agentes e pinturas, dando conta do seu alcance global. Deste modo, estes recursos servirão não apenas como plataforma de divulgação, mas pretendem servir também como ferramenta de investigação para trabalhos futuros e identificação de pinturas.

  • 16 Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, em Lisboa (Portugal) e Museu do Cinema – Coleção Tomàs Mal (...)
  • 17 A este respeito vejam-se os dois recentes volumes de síntese Doing Experimental Media Archaeology, (...)

24Numa outra frente de investigação, mais experimental, um dos objectivos do projecto será desenvolver formas de recriar, em realidade virtual, a experiência das exposições e a observação de pinturas iluminadas através de lentes de cosmorama. Será ainda possível compreender, hoje, como funcionava esta “visão cosmorâmica” a partir dos fragmentos históricos de um dispositivo há muito descontinuado? Recorrendo a fontes de época, ao conhecimento de outros media ópticos, e ao trabalho nas colecções dos museus parceiros16, estão a ser desenvolvidos protótipos analógicos do dispositivo de cosmorama. Alinhado com os princípios da arqueologia experimental dos media, que considera este “re-fazer” (“re-doing”) como uma forma produtiva de aprendizagem17, o projecto CURIOSITAS pretende assim aproximar-se de um modelo de cosmorama que permita compreender e percepcionar melhor este meio, “sentindo-o” em vez de apenas o imaginar. O protótipo físico informará depois o trabalho de virtualização, e ambos serão testados nos museus parceiros, na perspectiva de poderem depois alcançar outras instituições e públicos mais alargados. Em paralelo, será também desenvolvido uma plataforma virtual para apresentar, de forma complementar, a investigação desenvolvida e potenciar novas linhas de pesquisa e conhecimento.

Notas finais

25Nas múltiplas vias de investigação que o projecto CURIOSITAS explora, com vista à recuperação da história destas exposições esquecidas e à sua integração disciplinar nos estudos museológicos, é fundamental salientar a importância de desenvolver a investigação em colaboração com os museus. As últimas duas décadas têm sido particularmente produtivas na forma como os museus realizam e promovem publicamente a sua própria crítica. Da investigação sobre proveniências problemáticas à restituição de objectos, da descolonização de discursos e colecções ao preenchimento de lacunas históricas, da valorização de mulheres artistas e colecionadoras à exposição de falsos, de cópias, e de patrimónios indesejáveis, muitas têm sido as formas como as instituições têm reapreciado a sua história, revisitando as suas colecções, e ensaiado modalidades museológicas marcadamente plurais, interdisciplinares e colaborativas.

26É, pois, neste contexto actual em que os museus se afirmam cada vez mais como espaços de experimentação e mudança, que a colaboração activa do projecto CURIOSITAS com os museus se revela essencial para lidar com a “perda” museológica do Cosmorama. Para poder trazer o Cosmorama de volta ao museu, uma parte substancial da investigação e do resgate da memória destas exposições e dispositivos, pretende reactivar hoje – prática e conceptualmente – a relação com o museu a vários níveis. Neste sentido, se académicos e investigadores, juntamente com profissionais de museus e especialistas em tecnologia, forem capazes de reflectir e trabalhar em conjunto, acreditamos estar em boas condições para ultrapassar a falta de conhecimento e memória, em torno dos cosmoramas, e assim contribuir para a sua valorização e patrimonialização – para as presentes e futuras gerações.

Financiamento

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Bibliografia

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), no âmbito dos projectos UIDB/00417/2020, UIDP/00417/2020, LA/P/0132/2020 e PTDC/COM-OUT/4851/2021.

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Notas

1 A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

2 Este artigo tem por base a comunicação apresentada no VII Fórum Ibérico de Estudos Museológicos (Ciudad Real, 2023): “As Exposições Cosmorama e o Museu: Repensar Futuros para uma História Esquecida”.

3 Para mais sobre esta discussão, veja-se o artigo de Jennie Morgan e Sharon Macdonald (2020) sobre modelos estratégicos e sustentáveis de “de-crescimento” das colecções de museus («de-growing»).

4 CURIOSITAS é um projecto de investigação coordenado por Victor Flores (Investigador Responsável) e por Susana S. Martins (Co-Investigadora Responsável) que cruza a investigação documental e iconográfica com a realidade virtual, tendo por objectivos resgatar a história esquecida do Cosmorama, reavaliar o seu impacto cultural noutras artes e media, e contribuir para os actuais desafios sobre o património virtual (PTDC/COM-OUT/4851/2021). Financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, tem como unidades de acolhimento o Centro de Investigação em Comunicação Aplicada, Cultura e Novas Tecnologias (CICANT) da Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias e o Instituto de História da Arte (IHA, FCSH/IN2PAST) da Universidade Nova de Lisboa e tem, como parceiros, a Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema (Lisboa) e o Museu do Cinema – Coleção Tomàs Mallol em Girona, Espanha. Mais informações sobre o projecto, equipa e actividades no website: https://curiositas.ulusofona.pt/.

5 Estas ideias sobre a exploração metodológica da ruína e do fragmento foram primeiramente propostas na comunicação “Historically Lost, Digitally Found? Cosmorama’s Fragmented Histories as Virtual Heritage” apresentada na conferência internacional Arts and Humanities in Digital Transition em Junho de 2023 em Lisboa (Mendes e Martins 2023).

6 Excepto em situações de outro modo creditadas, todas as traduções são da autora.

7 Patenteado em 1787 pelo irlandês Robert Barker (1739-1806).

8 Inventado em 1821 por Louis Daguerre (1787-1851) e Charles-Marie Bouton (1781-1853).

9 Mais tarde, em 1828, o Cosmorama de Gazzera será reinstalado na Passage Vivienne da (já em vidro) Galerie d’Orléans onde permanecerá até 1832, data do seu encerramento.

10 A par de alguns casos documentados apontarem variações na tipologia das imagens (por vezes aguarelas, guaches ou mesmo gravuras coloridas), a investigação realizada até ao momento revela que a pintura a óleo nos cosmoramas é preponderante.

11 Este auto-retrato de grandes dimensões intitula-se The Artist in His Museum e está hoje na Pennsylvania Academy of Fine Arts, em Filadélfia.

12 O Grand Cosmorama do American Museum, mais tarde adquirido por P. T Barnum que o vai reinstalar no seu museu, seria um dos mais extensos e esplêndidos cosmoramas, tanto em termos de número de lentes como de qualidade das vistas (Barber e Howe 1841, 333).

13 Veja-se o caso do anúncio da exposição exibida na cidade do México em 1833 em que consta que o seu apresentador «D. Cárlos tem a honra de participar aos respeitáveis habitantes da capital do México, que abriu um museu das principais cidades e monumentos do mundo no portal de Agustinos, n.º 4» (El Fénix de la Libertad, 1833, itálico nosso).

14 É o caso do cosmorama dos museus de Scudder e P. T. Barnum, cujas pinturas, muito elogiadas, eram «vistas executadas por artistas italianos de renome na sua profissão» (Barber e Howe 1841, 333), ou do cosmorama do austríaco Hubert Sattler (1817-1904), cujas qualidades excepcionais foram publicamente celebradas num artigo de jornal assinado por um colectivo de reputados pintores que recomendavam a visita referindo-se ao Prof. Sattler como um «real artist» (AAVV 1851, 37).

15 https://curiositas.ulusofona.pt/pt/cronologia/ (consultado julho 15, 2024).

16 Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema, em Lisboa (Portugal) e Museu do Cinema – Coleção Tomàs Mallol em Girona (Espanha).

17 A este respeito vejam-se os dois recentes volumes de síntese Doing Experimental Media Archaeology, o primeiro dedicado à teoria (Fickers e Oever 2022) e o segundo à dimensão prática que este tipo de investigação envolve (Heijden e Kolkowski 2023).

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Índice das ilustrações

Legenda Fig. 1 – View of the Cosmoramic Room, 1850. Salão de Cosmorama do P. T. Barnum’s American Museum (Nova Iorque). Ilustração publicada no livro guia do museu (Barnum 1850, s/p)
Créditos Library of Congress, Rare Book and Special Collections Division
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/midas/docannexe/image/5432/img-1.jpg
Ficheiro image/jpeg, 497k
Legenda Fig. 2 – The Artist in His Museum, 1822, óleo sobre tela, de Charles Wilson Peale
Créditos Pennsylvania Academy of the Fine Arts
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/midas/docannexe/image/5432/img-2.jpg
Ficheiro image/jpeg, 544k
Legenda Fig. 3 – The Long Room, Interior of Front Room in Peale's Museum, 1822, carvão e aguarela sobre papel, de Charles Willson Peale e Titian Ramsay Peale
Créditos Detroit Institute of Arts, Founders Society Purchase, Director's Discretionary Fund, 57.261.
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/midas/docannexe/image/5432/img-3.jpg
Ficheiro image/jpeg, 490k
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/midas/docannexe/image/5432/img-4.jpg
Ficheiro image/jpeg, 242k
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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Susana S. Martins, «Exposições de cosmorama e o museu: um projecto para reimaginar futuros de uma história esquecida»MIDAS [Online], 19 | 2024, posto online no dia 16 outubro 2024, consultado o 14 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/midas/5432; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/12ndc

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Autor

Susana S. Martins

É Professora Auxiliar do Departamento de História da Arte da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa, onde lecciona nas áreas da museologia, arte contemporânea e cultura visual. É investigadora integrada do Instituto de História da Arte (IHA-FCSH/IN2PAST), sendo coordenadora do grupo de investigação MUST-Museum Studies. Doutorada em Fotografia e Estudos Culturais pela Katholieke Universiteit Leuven (KUL, Bélgica), a sua investigação centra-se nos estudos fotográficos em intersecção com a história das exposições e das culturas impressas. Actualmente, integra o conselho editorial da Revista de História da Arte e é Co-Investigadora Responsável do projecto de investigação “CURIOSITAS: Espreitar antes da Realidade Virtual. Uma Arqueologia dos Media Imersivos através da Realidade Virtual e dos Cosmoramas Ibéricos”, financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT).

Instituto de História da Arte (IHA-FCSH/IN2PAST), Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade NOVA de Lisboa, Colégio Almada Negreiros, Campus de Campolide (Gab. 347), 1099-032 Lisboa, Portugal, susana.martins[at]fcsh.unl.pt, https://orcid.org/0000-0002-7504-9832

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Ref. PTDC/COM-OUT/4851/2021

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