1A Declaração Internacional de Direitos Humanos (DUDH), adotada a 10 de dezembro de 1948 pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (resolução 217 A III), reforça a participação ativa da comunidade em diferentes contextos, sejam eles social, cultural, político ou educacional. No entanto, a promoção do acesso a estes contextos foi vedada por muito tempo a pessoas com deficiência. Esta “minoria” – entre aspas, pois os dados mais recentes apontam para mais de 1 bilião de pessoas com deficiência no mundo, o que representa cerca de 16% da população mundial, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS)1 – de uma certa forma tem sido negligenciada e, nos espaços culturais como museus, teatros e galerias de arte, por exemplo, continuam a ser necessários esforços para que as diretrizes e reflexões propostas pela DUDH sejam materializadas.
2Neste sentido, o livro de Cíntia Mariano, intitulado Um Encontro Possível Através da Tecnologia: Definição de Requisitos para Aplicativos Destinados a Prover Acesso de Pessoas com Deficiência Visual a Museus de Arte, publicado em 2022 pela Dialética Editora, no Brasil, reitera a discussão da acessibilidade em espaços museológicos, sobretudo no acesso às obras de arte pelo público com deficiência visual, através da tecnologia. Cíntia Mariano, professora e investigadora brasileira na área de acessibilidade em museus, produziu esta obra como resultado de um extenso trabalho académico. Transpondo os preceitos básicos de acessibilidade, como por exemplo, a mobilidade e outros requisitos mínimos para consolidar a participação deste público, a autora traz reflexões acerca da mediação entre a comunidade, o espaço e os objetos artísticos, incluindo a experiência estética.
3Esta obra fundamenta-se nos princípios estabelecidos através da Convenção das Pessoas com Deficiência – CPCD (2009) e do Relatório Mundial sobre a Deficiência – RMSD (2011), documentos que solidificam os direitos humanos da pessoa com deficiência visual, indo ao encontro do que tinha sido estabelecido previamente pela DUDH de 1948. Num panorama mais genérico, a autora reitera que estes documentos incentivam as políticas públicas para a consolidação de práticas mais acessíveis.
4Cíntia Mariano começa por contextualizar a situação das pessoas com deficiência visual no Brasil, abordando questões de mobilidade e acessibilidade cultural. Os objetivos da pesquisa são claramente definidos, bem como a metodologia utilizada para alcançá-los, que se centra na análise de estudos de caso em museus – em São Paulo, e em Paris, considerados exemplificativos de práticas e metodologias que demandam atenção à acessibilidade.
5A discussão sobre a mediação tecnológica e cultural aborda como a tecnologia pode ser um recurso importante para melhorar a experiência dos visitantes com deficiência visual, facilitando o acesso às obras de arte e enriquecendo a sua compreensão estética. Além disso, a autora apresenta uma metodologia detalhada para a conceção e implementação de soluções tecnológicas acessíveis e a sua materialização num espaço museológico.
6Mariano destaca neste estudo um ponto que considero frequentemente negligenciado: a arte não é exclusiva daqueles com plena capacidade visual. Assim, é ressaltada a urgência de se repensar como a arte é apresentada e interpretada, buscando adaptá-la para atender a um público diversificado, que inclui pessoas com deficiência visual. A autora enfatiza o potencial dos museus como catalisadores da inclusão, sugerindo estratégias para um caminho mais sensorial. Essas estratégias devem desafiar conceitos pré-estabelecidos (preconceitos), uma vez que a inclusão de pessoas com deficiência visual não se deve resumir apenas à adaptação do espaço, mas também à sua reestruturação, de modo a enriquecer a experiência artística de todos os visitantes.
7Ao longo da obra são exploradas abordagens práticas e teóricas para aprimorar a acessibilidade nos museus, destacando-se o recurso a soluções tecnológicas como guias de áudio, descrições detalhadas e impressões em 3D, e a relevância da organização do espaço para facilitar a navegação táctil. No entanto, a autora defende que é vital garantir que tais tecnologias sejam não apenas implementadas, mas também mantidas e atualizadas para permanecerem eficazes e úteis a longo prazo.
8Também a organização espacial e a comunicação eficaz desempenham um papel fundamental na criação de um ambiente museológico inclusivo. O design arquitetónico, a disposição das exposições e a clareza na sinalização são elementos que influenciam diretamente a acessibilidade para pessoas com deficiência visual, exigindo atenção cuidadosa por parte da instituição, dos seus programadores e parceiros, para garantir uma experiência cultural verdadeiramente inclusiva.
- 2 N. do Ed. A publicação Acessibilidade a Museus (2012) foi objeto de recensão crítica na revista MID (...)
9Para ilustrar a relevância prática das teorias de inclusão e o estabelecimento de metodologias eficazes, são considerados, como já foi referido, exemplos específicos de museus que implementaram com sucesso estratégias de acessibilidade. A pesquisa de Cíntia Mariano fundamenta-se, assim, em estudos de caso, dando enfoque ao contexto brasileiro (Museu de Arte Moderna de São Paulo e Pinacoteca de São Paulo), e estabelecendo um contraponto com experiências internacionais, em particular no Museu do Louvre. Essas escolhas foram orientadas por documentos como Acessibilidade a Museus (2012), do Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), que investiga as condições de acessibilidade a nível nacional e internacional2, e a reportagem 5 Museus Acessíveis e Incríveis para Visitar em São Paulo, de Marina Yonashiro (2017), publicada no website da Fundação Dorina Nowill para Cegos. Essa base documental também inclui entrevistas a funcionários das instituições e revisões de literatura sobre acessibilidade, que abordam os recursos utilizados para tornar museus mais inclusivos, subsidiando a compreensão das principais necessidades nessa área.
10Nos casos dos museus brasileiros estudados, a autora conclui que há um esforço significativo para melhorar a acessibilidade e a inclusão, apesar das limitações de recursos e de infraestrutura. O Museu de Arte Moderna de São Paulo e a Pinacoteca de São Paulo têm implementado várias iniciativas, como visitas guiadas específicas, materiais tácteis e audiovisuais adaptados, além de programas educativos voltados para estes públicos. Porém, embora os esforços sejam evidentes, a autora conclui que ainda há um longo caminho a percorrer para atingir um nível de acessibilidade e inclusão, comparáveis aos padrões internacionais e que respondam às diretrizes da DUDH.
11Além disso, analisa-se a implementação por parte do Museu do Louvre de uma política destinada a facilitar o acesso de pessoas com deficiência. Este museu oferece diversas atividades específicas para visitantes com deficiência, como visitas individuais com acesso a galerias tácteis, visitas em grupo, cursos de formação e materiais sensoriais tácteis e interativos, incluindo uma maquete táctil do prédio do museu. Apesar de receber muitos visitantes, a abordagem educativa do museu acabou por ser considerada pela autora um tanto limitada, sobretudo tendo em consideração a diversidade e a complexidade do seu acervo.
12É evidente que o compromisso com a acessibilidade nos museus é uma jornada contínua, como aliás tem ficado patente no panorama dos museus portugueses, onde também se têm dado passos nesse sentido, como evidenciam algumas publicações (Mineiro 2004 e 2017; Martins 2017; Vlachou 2020). Com efeito, o livro de Cíntia Mariano chama a atenção para a necessidade de um diálogo e colaboração permanentes entre especialistas em acessibilidade, artistas, instituições museológicas e a comunidade em geral. Essa colaboração é essencial para desenvolver e aprimorar estratégias que evoluam com as necessidades e as expectativas das pessoas com deficiência visual. Direcionada aos profissionais de museus, educadores, pesquisadores em acessibilidade, desenvolvedores de tecnologias assistidas e todos aqueles comprometidos com a promoção da inclusão e acessibilidade em espaços culturais, esta obra convida os leitores a repensar como os espaços culturais podem ser transformados para acolher a diversidade, promovendo um diálogo cultural mais inclusivo e enriquecedor.
13Em conclusão, a publicação Museus de Arte e a Deficiência Visual é um estudo que transcende a mera discussão sobre a inclusão nos museus. Ele representa uma transformação cultural, social e artística, convidando os leitores a repensar não apenas o espaço físico dos museus, mas também a abordagem da sociedade relativamente à diversidade. A inclusão de pessoas com deficiência visual nos espaços culturais não é apenas um ato de justiça, mas uma oportunidade de enriquecer a experiência artística para todos. É um convite para criar um mundo mais inclusivo, onde a arte seja acessível e significativa para cada indivíduo, independentemente das suas capacidades sensoriais. Esta expansão oferece uma visão mais aprofundada sobre a importância da inclusão nos museus, discutindo desafios práticos, soluções e a importância de uma abordagem colaborativa para promover a acessibilidade.