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Entangled Pasts 1768-now. Art, Colonialism and Change [exposição]

Raquel Henriques da Silva
Referência(s):

Entangled pasts 1768-now. Art, Colonialism and Change. Exposição patente na Royal Academy of Arts, Burlington House, Londres, entre 7 de fevereiro e 28 de abril de 2024. Curadoria de Dorothy Price, Cora Gilroy-Ware, Esther Chadwick, Sarah Lea e Rose Thompson.

Texto integral

We need to ask the questions and give the answers: creative people are the best people to give the answers, we can imagine untold layers of history, we are able to do it, we can summon it up, and we can tell these trues.

Lubaine Himid (Zanzibar, 1954), pintora

  • 1 Dedico este texto a Jorge Calado, que no artigo “Arte e Colonialismo”, publicado no Expresso – Revi (...)
  • 2 A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.
  • 3 Devido a direitos de autor, não foi possível incluir imagens da mostra que estão, contudo, disponív (...)

1A epígrafe de Lubaine Himid, a autora da última peça da exposição, Naming the Money (2004), esclarece muito bem a questão central desta mostra: só os artistas, ou melhor e como ela diz, “creative people” podem abrir os passados tenebrosos e confrontar-nos a nós, europeus, com eles.1 Para melhor se compreender a dimensão do que há para fazer, acrescenta: «Acknowledgement of what’s been hidden, what’s been erased is more important than destroying something that’s already there» (citada em Entangled Pasts, p. 16).2 Trata-se, portanto, de trabalho de parto e não de trabalho de morte, resposta do campo “criativo” aos actos gratuitos de “destruição das estátuas” que Dorothy Price e Sarah Lea, comissárias da exposição, afirmam ter sido um dos pontos de partida desta mostra (Entangled Pasts, p. 11).3

2Organizada numa série de secções fluidas entre si, a exposição Entangled Pasts 1768-now. Art, Colonialism and Change iniciava-se no exterior, no pátio de acesso ao prestigiado edifício com a gigantesca escultura de Tavares Strachan (n. 1979), The First Supper (Galaxy Black), de 2023. Esta obra mimetiza a Última Ceia da iconografia cristã, com as mesmas treze figuras dispostas à volta de uma mesa posta: são homens e mulheres negras, o mais antigo dos quais Zumbi dos Palmares (1655-1940), «pioneiro da resistência à escravatura portuguesa no Brasil» (idem, p. 47) no centro da composição, e o mais jovem, o próprio artista, no limite à esquerda, assumindo o papel de Judas. Entre um e outro estão, todos identificados, resistentes e militantes pelas causas da libertação, ou afrodescendentes que se afirmaram nos campos da ciência, da literatura, da música ou da política, como o imperador da Etiópia, Haile Selassie (1892-1975). São corpos expressivos e teatrais em tamanho natural (em bronze, pintados de negro ou com esfusiante patina dourada), recriando aspectos do hiper-realismo dos anos de 1970. No entanto, não se trata de mera confrontação com a “branquitude” da Ceia cristã. O artista refere «o poder da mesa de jantar para juntar as pessoas» (idem, p. 47). O que está disposto sobre ela, são manjares oriundos de toda a América e de África evocando outros conteúdos, mais profícuos, dos barcos negreiros.4

3Ao longo da exposição (apoiada por excelentes textos de sala e legendas desenvolvidas) a positividade dos curadores e dos artistas estimulam atitude idêntica nos visitantes, perante a evidência do “poder da arte” em dar a ver as contradições de sucessivas épocas históricas em que os potentados políticos, económicos e sociais exibem constantes brechas plenas de contradições.

4A entrada de negros na pintura e na escultura inglesa desde meados do século XVIII é maravilhosamente apresentada: muitas vezes criados, ainda que de qualidade superior, alguns começam a ser retratados pela importância cultural das suas obras. Um dos casos mais interessantes será o retrato de Ignatius Sancho (c. 1729-1780), escritor e compositor pintado por Thomas Gainsborough, destacado retratista inglês do século XVIII (fig. 1).

Fig. 1 – Thomas Gainsborough, Portrait of Ignatius Sancho, 1768. Óleo sobre tela, 73,7 x 62,2 cm. Col. National Gallery of Canada

Wikipedia Commons

5Mas estes retratos, que se inscrevem na ascensão social de uma reduzida elite, dialogam com a história do pintor S. M. (talvez Scipio Moorhead) que só é conhecido por ser citado no livro de poesia de Phillis Wheatley, o primeiro publicado por uma afro-americana que ainda era escrava quando o escreveu, em 1773. Na ausência de obra atribuída ao pintor S. M., o artista contemporâneo Kerry James Marschall (n. 1955) pintou-o, inventando-o, em pose frontal, perante o cavalete.

6As extraordinárias histórias que nos vão sendo apresentadas possuem uma poderosa articulação com três temas entrecruzados: a progressiva conquista dos direitos de cidadania e afirmação artística de afrodescendentes até ao esplendor da diversidade e qualidade de obras contemporâneas que arrasam, com criatividade e determinação, visões estereotipadas que ainda não desapareceram; a história da Royal Academy of Arts, fundada em 1778 e que, apesar da resistência de muitos, foi sendo capaz, desde o século XVIII, de acolher um mundo cada vez mais plural e desejavelmente anti-europocêntrico; a clara afirmação que a exploração capitalista de milhares de escravos, transportados através de um “oceano de sangue”, como o Atlântico tem vindo a ser designado, foi também o início da destruição dos recursos naturais, especialmente dos marítimos. Na verdade, este é o aspecto mais surpreendente da exposição, desenvolvido na secção intitulada «Crossing Waters», mas introduzido numa das primeiras secções, quase sem darmos por ele, com a pintura de história do norte-americano John Singleton Copley (1738-1815), Watson and the Shark, de 1778, que regista o ataque de um tubarão a um jovem caído ao mar do navio em que viajava com um grupo de homens, próximo de Havana (fig. 2).

Fig 2 – John Singleton Copley, Watson and the Shark, 1778. Óleo sobre tela, 182,1 x 229,7 cm. Col. National Gallery of Art, Washington DC, EUA

© National Gallery of Art

  • 5 Esta obra notável, intitulada no world (from the series An Unpeopled Land in Uncharted Waters), foi (...)

7Não sendo possível deter-me na multiplicidade de questões que envolvem esta obra (relacionadas com o decurso da independência dos Estados Unidos e do estatuto do pintor que possuía, em sua casa, pelo menos três criados escravos), ela simboliza a relação violenta entre homens e animais e a progressiva destruição destes, à medida que a capacidade tecnológica é incrementada. Uma espécie de vingança do mar, perante a brutalidade do tráfego, ressurge num conjunto de belíssimas gravuras de Kara Walker (n. 1969), datado de 2010, especialmente numa em que o “oceano” ergue com mãos sobre-humanas (que a nós, portugueses, não pode deixar de recordar o Adamastor) uma embarcação da época do tráfego negreiro, enquanto nas águas se percebe um corpo negro feminino que origina o marmoto.5 No final da exposição, um espectacular vídeo de John Akomfrah (n. 1957), de 2015 (48 minutos de duração, três écrans em simultâneo) traça a história dos mares, desde as épocas pré-humanas, à destruição avassaladora de que actualmente são objecto, bem como a circulação através deles de povos sem direito a história, das populações escravizadas aos emigrantes de hoje.

8A mensagem é complexa e claríssima: a civilização ocidental, que instituiu durante três séculos o tráfego negreiro e sobre ele construiu a prosperidade capitalista, é a mesma que hoje ameaça tudo à volta e, simbolicamente, os reis dos mares profundos, os tubarões, são a metáfora de significados múltiplos e contraditórios da nossa história e do nosso futuro. Ou, dando voz à co-curadora Rose Thompson: «Within art, the ocean remains a central motif for critical discourse around migration, extraction economies and environmental issues, and a metaphorical expanse pertinent to collective memory» (idem, p. 165). A par de obras carregadas de narrativas traumáticas, havia, à entrada da respectiva secção, destaque para duas belíssimas pinturas de William Turner (1775-1851), nomeadamente Whalers, de 1845, abrindo a dimensão sublime da natureza onde a história humana é reduzida à sua gigantesca pequenez.

9No final da mostra, atravessava-se uma animadíssima instalação de Lubaina Himid (n. 1954), Naming the Money, de 2004, constituída por 100 manequins de cartão.6 Através da música e de vozes, de J. Coltrane a canções da África do Sul, cada um daqueles afro-descendentes, renomeados como os escravos eram, narra-se usando os seus sonhos, a capacidade de resistência e uma conivente auto-ironia. É o caso de um topógrafo e de um ceramista:

My name is Akin

They call me Jack

I used to measure mountains

Now I measure the estate

But I have the sky

*

My name is Azisa

They call me Sally

I loved to work the clay

Now I sweep the yard

But I love the mud.

10A exposição Entangled Pasts dá fala ao passado, através de obras académicas e românticas dos séculos XVIII e XIX, mas é o futuro que promove através de obras imaginosas e fraternas de dezenas de artistas contemporâneos, num poderoso movimento que contraria os jogos perversos das cenas artísticas e dos mercados de arte. Como afirmam duas das curadoras da exposição, Dorothy Price e Sarah Lea: «One of the most powerful ways in which we might activate a decolonial mode of looking and thinking is by bringing historical and contemporary artworks together in a new visual conversation that illuminates both» (idem, p. 16).

11A circulação fazia-se entre pintura, escultura, fotografia, documentação vária, instalações, vídeos. Os públicos, com um número inusitado de afrodescendentes, nomeadamente americanos, apropriavam-se de cada uma das peças que, de formas diversas, proclamam a vitalidade de comunidades díspares oriundas da grande infâmia que foram o tráfego negreiros e a escravatura como base de desenvolvimento económico. Mas também eram motivados a tomarem posição contra os riscos reais da infâmia da destruição da natureza de que somos cúmplices, como alguns artistas ingleses do século XVIII foram da escravatura.

12Termino, regressando a uma das linhas da exposição que antes enunciei: o confronto com a História é também um esplendoroso confronto de uma instituição com três séculos e meio consigo própria. Alguns dos artistas contemporâneos presentes não conseguiram antes ingressar na Royal Academy, aspecto que a instituição assume e se dispõe a corrigir. Com uma autonomia e meios de actuação sem os quais os museus e instituições afins não podem trabalhar. Infelizmente é o que continua a acontecer na maioria dos museus portugueses.

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Bibliografia

AAVV. 2024. Entangled Pasts, 1768-now. Art. Colonialism and Change [catálogo de exposição]. Londres: Royal Academy of Arts.

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Notas

1 Dedico este texto a Jorge Calado, que no artigo “Arte e Colonialismo”, publicado no Expresso – Revista em 29-02-2024, considerou esta “a melhor exposição de 2024” e me motivou a visitá-la.

2 A autora escreve de acordo com a antiga ortografia.

3 Devido a direitos de autor, não foi possível incluir imagens da mostra que estão, contudo, disponíveis online através dum vídeo criado pela Royal Academy of Arts: https://www.youtube.com/watch?v=XJCii4y5JCw (consultado julho 13, 2024).

4 Acerca desta obra, na voz do próprio artista, ver: https://www.youtube.com/watch?v=HLWIs2PoWPg (consultado julho 13, 2024).

5 Esta obra notável, intitulada no world (from the series An Unpeopled Land in Uncharted Waters), foi cartaz da exposição e pode ser vista em https://www.moma.org/collection/works/142454?association=series&page=1&parent_id=142211&sov_referrer=association (consultado julho 12, 2024).

6 As imagens da obra em exposição e o relato da artista podem ser consultados em https://www.youtube.com/watch?v=pdO5tM T7JdI (consultado julho 12, 2024).

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Índice das ilustrações

Legenda Fig. 1 – Thomas Gainsborough, Portrait of Ignatius Sancho, 1768. Óleo sobre tela, 73,7 x 62,2 cm. Col. National Gallery of Canada
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/midas/docannexe/image/5248/img-1.jpg
Ficheiro image/jpeg, 168k
Legenda Fig 2 – John Singleton Copley, Watson and the Shark, 1778. Óleo sobre tela, 182,1 x 229,7 cm. Col. National Gallery of Art, Washington DC, EUA
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/midas/docannexe/image/5248/img-2.jpg
Ficheiro image/jpeg, 443k
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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Raquel Henriques da Silva, «Entangled Pasts 1768-now. Art, Colonialism and Change [exposição]»MIDAS [Online], 18 | 2024, posto online no dia 13 julho 2024, consultado o 07 dezembro 2024. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/midas/5248; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/127lt

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Autor

Raquel Henriques da Silva

Instituto de História da Arte, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade NOVA de Lisboa/IN2PAST – Laboratório Associado para a Investigação e Inovação em Património, Artes, Sustentabilidade e Território, rhs@fcsh.unl.pt, https://orcid.org/0000-0002-8217-4586

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