- 1 O autor escreve de acordo com a antiga ortografia.
1A história do colecionismo continua a suscitar novos olhares e a sistematização do conhecimento, quer em contexto internacional, quer em contexto nacional (Neto e Malta 2020).1 Este estudo centra-se nas coleções reais, em particular na figura do Rei D. Carlos I (1863-1908), conhecido como colecionador, artista, cientista, em outras facetas. No entanto, este estudo circunscreve-se ao período em que o Rei D. Carlos passa a ocupar o Palácio das Necessidades (Lisboa) após a morte do seu avô, D. Fernando II, em 1885. Nessa sequência, o Rei D. Carlos irá criar dois “novos” espaços no edificado já existente: o seu Atelier de pintura e o Museu Oceanográfico, espaços que serão mantidos (aproximadamente) até à morte do monarca, em 1908. É sobre estes dois espaços que recai a análise deste artigo. Ainda que o Museu Oceanográfico tenha sido objeto de estudos anteriores (Saldanha 2006; Faria, Pereira e Chagas 2012, 813-826; Ceríaco 2014, 494-496; Jardim et al. 2014, 883-909; Silva, Groz, Leandro, Assis, Figueira 2018, 137-148; Marinha Portuguesa 2022), considerou-se ainda lacunar o conhecimento acerca do Atelier de pintura e do Museu Oceanográfico, nomeadamente a ocupação do espaço e a sua ambiência. Assim, este artigo pretende reconstituir a ocupação em planta destes espaços no palácio descrevendo as suas principais características, e respetiva museografia, no que se refere ao museu. Desta forma, este estudo visa contribuir para o aprofundamento da história destes espaços, e por sua vez para a história do colecionismo oitocentista em Portugal.
- 2 Neste âmbito refira-se que a identificação recente de uma fotografia da Biblioteca (fig. 9) de D. C (...)
2A metodologia adoptada teve por base a análise de documentação arquivística. Entre as fontes mais relevantes destacamos o Inventário Orfanológico Rei D. Fernando II (1887) (Arquivo Nacional da Torre do Tombo) e o Arrolamento Judicial do Palácio das Necessidades (1910-1911) (Arquivo do Palácio Nacional da Ajuda), que nos permitiram identificar objetos. A documentação iconográfica foi outra fonte fundamental para este estudo. O acesso a fotografias de época em arquivos (Arquivo Municipal de Lisboa | Fotográfico), em alguns casos inéditas2, assim como fotografias publicadas na imprensa da época, incluindo a planta do Palácio das Necessidades, permitiu estabelecer quais foram os espaços ocupados pelo Atelier e Museu. Além disso, contribuiu para identificar que tipo de mobiliário e de objectos foram usados para decorar e equipar estes espaços, reconstituindo a sua ambiência, e no caso do museu, aspectos da sua museografia. Neste contexto foi particularmente útil cotejar a informação proveniente das fontes documentais e iconográficas da época com a informação sobre os objectos que hoje se encontram em museus (ex. Museu Nacional de Arte Antiga) e palácios nacionais (ex. Palácio Nacional da Ajuda, Palácio Nacional da Pena, Palácio Nacional de Sintra), o que ajudou na pesquisa de procedência de objetos, identificando a localização atual dos mesmos. Metodologicamente, foi ainda fundamental uma revisão bibliográfica, que incluiu artigos de imprensa da época, e demais bibliografia que nos permitiu enquadrar o tema do ponto de vista histórico e cultural.
3Iniciamos o artigo com um breve resumo biográfico do Rei D. Carlos I, evidenciando o seu percurso, contexto familiar e interesses, nomeadamente a sua paixão pelo mar e pela oceanografia, e como serão determinantes para as escolhas do monarca, nomeadamente para a constituição de uma coleção, que se reflete na criação do espaço “Museu Oceanográfico” no Palácio das Necessidades. Segue-se a análise do Atelier de pintura e do Museu Oceanográfico de D. Carlos no Palácio, incluindo uma descrição do gabinete de trabalho e da biblioteca.
- 3 Do mesmo consórcio nasceu o seu irmão, o Infante D. Afonso (1865-1920).
4D. Carlos nasceu no dia 28 de Setembro de 1863 no Palácio da Ajuda, em Lisboa, e era filho do Rei D. Luís I de Portugal (1838-1889) e da Rainha D. Maria Pia (1847-1911).3 Era neto paterno da Rainha D. Maria II de Portugal (1819-1853) e do Rei D. Fernando II (1816-1885) e neto materno do Rei Vítor Emanuel II de Itália (1820-1878) e da Rainha Adelaide da Áustria (1822-1855).
5A Família Real Portuguesa era aparentada com as principais casas reinantes europeias, como a do Reino Unido, da Prússia, de Itália, da Áustria, da Bélgica e de Espanha, o que determinou uma educação apropriada para o jovem herdeiro do trono: fluente em vários idiomas e com uma cultura vasta.
6O facto do pai, o Rei D. Luís, ter sido oficial de Marinha e ter mantido contacto com o mar (Godinho 1990, 31-71), terá sido determinante para D. Carlos desenvolver uma paixão pelas actividades marítimas na infância. No mesmo período, a Família Real começou a ir a banhos para Cascais e instalou-se na respectiva cidadela, transformando-a no Real Palácio de Cascais.
7Em 1886, D. Carlos casou com a Princesa Amélia de Orléans (1865-1951) e tiveram os seguintes filhos: o Príncipe Real D. Luís Filipe (1887-1908), a Infanta D. Maria Ana (1887-1887) e o Rei D. Manuel II (1889-1932).
8No dia 19 de Outubro de 1889 o Rei D. Luís morreu no Real Palácio de Cascais e D. Carlos ascendeu ao trono como Rei D. Carlos I de Portugal. A morte do pai determinou a mudança para o Palácio das Necessidades (Lisboa), sendo que na época de veraneio a Família Real Portuguesa dividia-se entre o Palácio da Cidadela, em Cascais, e o Palácio da Pena, em Sintra.
9Na mesma época, é de notar a intensificação das campanhas oceanográficas. Disso é exemplo a expedição a bordo da corveta HMS Challenger (1858-1878) da Marinha Real Britânica, realizada de 1872 a 1876. Esta expedição pretendia estudar os oceanos e a fauna marítima, tendo sido iniciada pelo naturalista inglês William Benjamin Carpenter (1813-1885) e sob a supervisão do zoólogo escocês Charles Wyville Thomson (1830-1882), contando ainda com o apoio de cinco cientistas e de um fotógrafo (Aitken e Foulc 2019; Ashworth 2022).
10Esta expedição foi pioneira no estudo da oceanografia e várias figuras influentes seguiram o mesmo exemplo, como foi o caso do Príncipe Alberto I do Mónaco (1848-1922) e do Rei D. Luís I de Portugal (Valentim 2021, 292-293).
11Merece destaque neste contexto a realização de várias expedições oceanográficas em águas portuguesas. Esse foi o caso da expedição do Príncipe Alberto I do Mónaco, que em Junho de 1896 a bordo do seu Yacht Princess Alice (1891-1897), identificou um monte submarino no arquipélago dos Açores ao qual deu o nome de “Banco Princesa Alice”, uma descoberta relevante para a ciência.
12Na mesma época, o Rei D. Carlos I de Portugal encetou uma profícua amizade com o príncipe monegasco. É neste contexto que se destaca a preparação do Yacht Amelia para uma primeira campanha oceanográfica portuguesa, que se realizará em Setembro de 1896, como iremos analisar neste artigo.
13O Rei D. Carlos terá compreendido o enorme potencial das águas portuguesas para o estudo da oceanografia a nível mundial e promoveu a sua exploração. Esta seria também uma forma de posicionar Portugal entre as nações mais avançadas no domínio deste novo ramo científico e divulgar os espécimes zoológicos endémicos relacionados com o mar português (Saldanha 2006; Hidromar 2011, 21-23).
14Entre os múltiplos interesses do Rei D. Carlos também se destaca o gosto pelo desenho, pela pintura, pela aguarela, pela fotografia, pela cerâmica, assim como pela ornitologia. Estes interesses terão determinado a criação de um atelier, assim como a instalação do Museu Oceanográfico no final do séc. XIX no Palácio das Necessidades, onde residiu. É de notar que tanto a sua mãe como a sua mulher também se dedicavam às mesmas práticas artísticas. A Rainha D. Maria Pia, por exemplo, tinha atelier no Palácio da Ajuda e no Real Chalet do Estoril, enquanto a mulher de D. Carlos, a Rainha D. Amélia, tinha o seu atelier num pavilhão no jardim do Palácio das Necessidades (Cota 2019, 102-105; Fevereiro 2020, 69-73).
15No dia 1 de Fevereiro de 1908 o Rei D. Carlos foi morto conjuntamente com o filho, o Príncipe Real D. Luís Filipe, na Praça do Comércio, em Lisboa, em consequência da situação política que o país atravessava.
16Para contextualizar a criação do Atelier de pintura e do Museu Oceanográfico no Palácio das Necessidades importa apresentar alguns dados sobre os usos anteriores do Palácio pela Família Real.
17A morte da Rainha D. Maria II (avó do futuro Rei D. Carlos) no Palácio das Necessidades determinou a mudança de seu marido, o Rei D. Fernando II, para o edifício do Convento de São Filipe Nery, adossado ao anterior. Esse edifício seria adaptado para aposentos e para espaços de estar e de trabalho, onde também se reuniu uma substancial colecção de arte (Teixeira 1986, 179-221; Xavier 2022), tornando-se, assim, uma extensão do anterior.
18O Rei D. Fernando II permaneceu viúvo durante uns anos e por volta de 1860 uniu-se maritalmente com a cantora de ópera suíça-alemã, naturalizada norte-americana, Elisa Frederica Hensler (1836-1929). No dia 10 de Junho de 1869 contraíram matrimónio na freguesia de Benfica (Lisboa) e devido a este consórcio, Elisa Hensler foi agraciada com o título de Condessa de Edla. Nesse seguimento, Elisa Hensler mudar-se-ia para o Palácio das Necessidades (Ramalho 2015, 41-55).
- 4 A filha, a Infanta D. Maria Ana (1843-1884), casada com Jorge I, Rei de Saxe (1832-1904), morreu em (...)
19O casal habitou o edifício até à morte do monarca no dia 15 de Dezembro de 1885 e inevitavelmente procedeu-se à partilha dos seus bens, o que levou à elaboração de um inventário orfanológico (1887).4 Nesse inventário seriam descriminados os bens imóveis e móveis adquiridos antes e depois do segundo matrimónio do Rei em 1869, mas uma parte destes últimos foi vendida em 1892 num leilão no então Real Palácio das Necessidades (Catalogo 1892).
20O processo de partilha dos bens do Rei Fernando II foi moroso, sendo que no final desse processo o edifício do convento ficou parcialmente esvaziado. Esta situação seria aproveitada pelo Rei D. Carlos para instalar no final do século XIX (Guimarães 1899, 4-5) o seu Atelier de pintura e o Museu Oceanográfico em espaços que tinham sido ocupados previamente pelo seu avô.
21O Atelier de pintura de D. Carlos I (fig. 1) foi instalado no antigo Gabinete d’El Rei situado no cunhal da fachada nascente e sul e inserido na enfilade dos espaços que tinham feito parte dos aposentos privados do seu avô, virados a nascente.
Fig. 1 – Fotografia do Atelier de pintura do Rei D. Carlos, datada possivelmente do séc. XIX, mas sem data precisa e de autor desconhecido
Arquivo Municipal de Lisboa, cota NEG000330
- 5 No arrolamento judicial republicano (1910-1911) foram descritas como: «uma mesa “mère-gigogne” com (...)
22O Atelier de pintura foi equipado com mobiliário próprio para esta prática artística e também para a escultura. O Atelier terá tido também um órgão ao gosto da época da Renascença para rolos de música, duas cadeiras ao gosto da época do Rei D. João V (1689-1750) com assentos de veludo adamascado, três cadeiras italianas douradas com assento de palhinha – cadeiras igualmente ditas de Chiavari –, cinco bufetes, um conjunto de seis mesas ditas gigogne5 e mobiliário de assento moderno estofado ao gosto oriental, composto por um divã de canto, um divã e duas poltronas.
23No Atelier, a disposição assimétrica do mobiliário definia recantos para uma determinada função, de um lado as áreas oficinais próximas aos vãos exteriores e áreas de descanso e de lazer do lado oposto.
24O gosto ecléctico coadunava-se com a tendência coeva e foi complementado pela disposição de panejamentos de várias proveniências (alguns assimetricamente), por armas de fogo, por molduras com quadros e por peças em cerâmica de épocas e de origens diferentes pelas superfícies parietais. A decoração deste espaço contrastava com a procura de uma certa simetria em voga poucas décadas antes e presente em determinados espaços do Rei D. Fernando II no mesmo edifício.
- 6 Os objectos de valor artístico foram abordados de uma forma geral pela historiadora da arte Sofia B (...)
25Ainda sobre a decoração do Atelier, destacava-se a pintura Tentações de Santo Antão (hoje no Museu Nacional de Arte Antiga – MNAA, c. 1500, inv.º 1498 Pint) do pintor holandês Jheronymus Bosch (c. 1450-1516), que se encontrava colocada sobre o divã estofado.6 O espaço apresentava também cerâmica, sendo que parte dela provinha da colecção de cerâmica do Rei D. Fernando II. Neste contexto, é possível identificar alguns desses objetos:
- 7 No inventário orfanológico do Rei, uma das terrinas foi declarada como tendo sido adquirida antes d (...)
- uma terrina em forma de carpa em porcelana chinesa de exportação para o mercado europeu (Palácio Nacional de Sintra – PNS), inv.º PNS62 ou PNS64)7 da Dinastia Qing, reinado Qien Long de 1736 a 1795, numa peanha de madeira a ladear a pintura de Bosch atrás aludida;
- 8 Na historiografia há dúvidas sobre a quem teria pertencido este prato com o brasão de armas da famí (...)
- 9 Trata-se do prato com o número de inventário PNP115/1 e é visível na fig. 1. O prato PNP115/2 tem d (...)
- um prato com o brasão de armas da família Sampaio8 em porcelana chinesa de exportação para o mercado europeu (Palácio Nacional da Pena – PNP, inv.º PNP115/1)9, da Dinastia Qing, reinado Kangxi de 1662 a 1722, e pendurado acima da obra de Bosch referida;
- 10 Aparentemente, o par de potes com tampas não foram discriminados na Bibliotheca no inventário orfan (...)
- 11 O Palácio Nacional de Sintra tem um pote com tampa semelhante (PNS, inv.º PNS116).
- 12 Um dos potes com tampa esteve no Quarto de Sua Magestade El-Rei e junto ao leito de dossel, como po (...)
- um par de potes com tampas em porcelana chinesa (Palácio Nacional da Ajuda – PNA, inv.º 3988 e 3989)10 da Dinastia Qing, reinado Kangxi de 1662 a 172211. Um dos potes com tampa estava entre o divã e o órgão (este virado para o divã de canto) e o segundo no canto do espaço, entre a porta interior e o vão exterior;12
- 13 O prato foi depois colocado na casa forte do Palácio das Necessidades e no mesmo espaço constava ou (...)
- um prato em barro, espiralado e com reflexos metálicos no vidrado de Manises, na região de Valência em Espanha, sobre um dos panejamentos no enxalço do vão exterior e acima do pote com tampa no canto13 (APNA 1910-1911b, 798v.-818).
- 14 A Fundação da Casa de Bragança, Arquivo Histórico Casa de Bragança tem à sua guarda duas fotografia (...)
- 15 O historiador José de Monterroso Teixeira já tinha constatado em 1986 que as terrinas estiveram sob (...)
- 16 Neste armário-livreiro também esteve outro prato de Manises (Palácio Nacional de Sintra [PNS], inv. (...)
26Nas fotografias conhecidas da Bibliotheca ao tempo do Rei D. Fernando II (PNP, inv.º PNP3622/3, PNP3623/314 e PNP3646/6) podemos observar as terrinas em forma de carpa15 sobre o armário-livreiro entre a porta do corredor e o vão exterior; um dos pratos com o brasão de armas da família Sampaio sobre o armário-livreiro de canto no lado oposto e próximo ao outro vão e um dos potes com tampa a ladear o armário-livreiro no último vão mencionado16 (APNA 1910-1911c, fl. 808v.-809).
- 17 Nas fotografias conhecidas deste espaço como Gabinete d'ElRei de D. Fernando II, podemos observar u (...)
27O tecto do Atelier17 foi totalmente preenchido com uma pintura de temática marinha de autor desconhecido e personificava a paixão que o Rei D. Carlos tinha pelo mar. A moldura era composta por volutas, grinaldas de flores e concheados ao gosto da época do Rei D. João V, caracterizado por uma certa assimetria e alinhado com a tendência internacional coeva pela época do rococó (c. 1730-c. 1780). Na base era representado o mundo aquático com cardumes de peixes e alguns enleados em redes de pesca, com a superfície do mar e navios no horizonte, reflectindo o interesse do monarca pelo estudo da oceanografia e das pescas.
28A ocupação dos aposentos de D. Fernando II pelo Rei D. Carlos I no Palácio das Necessidades coincidiu cronologicamente com as expedições oceanográficas que este empreendeu na costa portuguesa, entre 1896 e 1907. Consequentemente, a criação do Museu Oceanográfico no Palácio das Necessidades está, por essa razão, estritamente ligada ao interesse do monarca pela actividade oceanográfica, que passaremos a analisar de seguida.
29Estão documentadas pelo menos 12 expedições oceanográficas. A primeira expedição oceanográfica do Rei D. Carlos foi realizada em Setembro de 1896 a bordo do Yacht Amelia – baptizado em homenagem à sua mulher, a Rainha D. Amélia. A expedição ficou circunscrita à zona entre a baía de Cascais e o Cabo Espichel, onde contou com o apoio da tripulação constituída por elementos da Marinha Portuguesa e do cientista franco-americano, naturalizado português, Albert Arthur Alexandre Girard (1860-1914) (Callapez 2007, 48-51) (fig. 3). Essa tripulação acompanharia o Rei D. Carlos até à última expedição em 1907.
- 18 No Arquivo Municipal de Lisboa | Fotográfico foi possível identificar dois negativos (cotas: NEG000 (...)
30As reduzidas dimensões do Yacht Amelia para as expedições levaram à aquisição do Yacht Amelia II18 e empreendeu-se a segunda em 1897, entre Sesimbra e (de novo) o Cabo Espichel, Sines, Cascais e Trafaria. No mesmo iate realizou-se em 1898 uma expedição entre o Rio Sado e a Arrábida, e uma expedição entre Lagos e Portimão.
- 19 No mesmo arquivo anterior identificámos vários negativos do Yacht Amelia III, com as seguintes cota (...)
- 20 O cientista Albert Girard foi enviado no mesmo ano para determinar a relação entre as variações e a (...)
31O entusiasmo do Rei em torno da oceanografia levou-o a adquirir um terceiro iate, o Amelia III19, que foi equipado com um laboratório e um canhão-arpoador. Este iate fez as seguintes expedições: a de 1899, ao largo de Sesimbra20, a de 1900, entre Cascais e Sesimbra, a de 1901, ao largo do Cabo Espichel, e a de 1902, de novo ao largo do Cabo Espichel.
32No ano de 1902 (ou de 1903) o Rei D. Carlos trocou o iate anterior pelo Amelia IV e nele fez as seguintes expedições: a de 1903 no Cabo Espichel e em Tróia, a de 1904 no Cabo Espichel e a de 1905, a de 1906 e de 1907 no Cabo Espichel e em Sesimbra.
33As expedições oceanográficas acima descritas permitiram constituir uma vasta colecção no âmbito da história natural. A coleção era constituída por exemplares de peixes taxidermizados, em solução de álcool e de formol armazenados em recipientes apropriados, de invertebrados marinhos, de aves marinhas e de material relacionado com a oceanografia e com as pescas. É considerada como sendo uma coleção de grande valor e de referência a nível mundial, reflectindo o interesse ocidental nessa época pela história natural (Gates 2007, 539-549; Syperek 2015).
34A considerável coleção reunida pelo Rei acabaria por exigir espaço para ser acondicionada. É neste contexto que seria criado o Museu Oceanográfico no Palácio das Necessidades, com o objetivo de divulgar a coleção, ainda que junto de um público muito restrito (Saldanha 2006; Faria, Pereira e Chagas 2012, 813-826; Ceríaco 2014, 494-496; Jardim et al. 2014, 883-909; Silva et al. 2018, 137-148; Marinha Portuguesa 2022).
35O Museu Oceanográfico seria, assim, criado no mesmo período em que foi instalado o Atelier de pintura anteriormente abordado (no mesmo andar do Palácio). À época, também o Real Palácio de Cascais seria ampliado com mais um piso para os novos aposentos do monarca e para a criação de um laboratório para tratamento dos espécimes capturados (Museu da Presidência 2018). Essa ampliação teria por base o projecto do construtor civil Frederico Augusto Ribeiro (1853-?) de Lisboa (Fevereiro 2012, 256-258).
36A partir da análise de fontes iconográficas, nomeadamente fotografias da época provenientes de diferentes acervos (Palácio Nacional da Pena, Fundação da Casa de Bragança – Arquivo Histórico Casa de Bragança, Arquivo Municipal de Lisboa | Fotográfico), assim como de fotografias publicadas na revista Illustração Portugueza, confrontámos essa informação com uma planta do Palácio das Necessidades datada de 1901 do mesmo piso (Teixeira 1986, 188). Desse confronto aventamos a hipótese de uma possível reconstituição da ocupação do espaço museu no palácio. Nesse contexto, avançamos com a possibilidade de que para a ocupação do museu se terem selecionado os espaços mais próximos à entrada do Palácio das Necessidades, de modo a receber visitantes e de forma a separar as áreas de exposição dos restantes gabinetes, e os de maior dimensão, anteriormente ocupados por D. Fernando. Assim, considerando uma planta do Palácio das Necessidades de 1901, propomos a seguinte explicação para a ocupação do espaço museu no palácio, demonstrando-o também de forma gráfica, a amarelo na figura 2.
Fig. 2 – Planta (1901) do piso do edifício do Convento de São Filipe Nery ocupado por D. Fernando II e depois por D. Carlos I. Os espaços do Museu Oceanográfico aqui identificados foram: II foi o Vestibulo; IV foi o Corredor de entrada; I foi a Primeira Sala do museu; V foi a Segunda Sala do museu; VI foi a Biblioteca e VIII foi o Gabinete de trabalho. O XI foi o Atelier (Teixeira 1986, 188). A sinalização dos espaços a amarelo é do autor.
Fonte: Teixeira (1986, 188)
- O Vestibulo (II) manteve a mesma função;
- O Corredor da frente deu lugar ao Corredor de entrada do museu (IV);
- A Salla d'armas deu lugar à Primeira Sala do museu (I);
- A Salla amarella deu lugar à Segunda Sala do museu (V);
- A Salla da muzica passou a ser a Biblioteca (VI);
- O Quarto de cama passou a ser o Gabinete de trabalho (VIII);
- E, como já referido antes, o antigo Gabinete d’El Rei passou a ser o Atelier de pintura (XI).
37É de sublinhar que nesta proposta adoptámos as mesmas designações dos espaços ao tempo de D. Fernando que foram usadas no inventário orfanológico (1887). Quanto às designações dos espaços do Museu seguimos sobretudo o artigo da Illustração Portugueza já antes citado.
- 21 O lustre em vida de D. Fernando II era metálico.
38O Vestibulo era o espaço onde os visitantes que vinham do pátio exterior eram recebidos antes de acederem ao Corredor de entrada (fig. 3). No Vestibulo foram dispostos espécimes zoológicos taxidermizados no pavimento, um dos armários-livreiros da Bibliotheca de D. Fernando (actualmente no Paço Ducal de Vila Viçosa). Este espaço era iluminado artificialmente por um lustre de vidro para gás21. Por sua vez, o corredor comunicava directamente para cada uma das salas do museu.
Fig. 3 – Fotografia do Corredor de entrada do Museu Oceanográfico, Palácio das Necessidades, publicada em 1904, mas de autor desconhecido (Illustração Portugueza 1904a, 325)
Proveniência de imagem com créditos à Hemeroteca Municipal de Lisboa
39A Primeira Sala (fig. 4 e 5) tinha armários envidraçados com espécimes em solução de álcool e de formol, e vitrines para expor parte do acervo ao longo das paredes. No centro encontrava-se uma mesa em forma de “U” para se poderem apreciar os espécimes taxidermizados expostos e no centro tinha espaço para mais uma vitrine. Nas paredes estavam penduradas molduras com representações do Yacht Amelia III, com mapas, com fotografias das campanhas oceanográficas e com dados científicos. Do tecto pendia um lustre metálico para gás com globos nos queimadores, possivelmente os ditos papillon, ou seja, com a chama em forma de borboleta (Deitz 2009, 262-272).
Fig. 4 – Fotografia da Primeira Sala do Museu Oceanográfico, Palácio das Necessidades, publicada em 1904, mas de autor desconhecido (Illustração Portugueza 1904, 324)
Proveniência de imagem com créditos à Hemeroteca Municipal de Lisboa
Fig. 5 – Fotografia da Primeira Sala do Museu Oceanográfico, Palácio das Necessidades, 1904 a 1908, autor desconhecido
Arquivo Municipal de Lisboa, cota NEG001000
- 22 A Salla amarella teve um lustre de bronze, com pingentes de cristal, para velas e foi colocado ao c (...)
- 23 Os queimadores eram do tipo Auer ou do tipo Argand, por causa do formato cilíndrico das chaminés e (...)
40A Segunda Sala (fig. 6 e 7) apresentava expositores com prateleiras e ao longo das paredes para a exibição de frascos com espécimes em solução de álcool e de formol e espécimes taxidermizados no pavimento. No centro havia outro expositor, no mesmo género que os anteriores, também com prateleiras, para o mesmo tipo de frascos. Nas paredes figuravam molduras com representações dos iates Amelia III e Amelia IV, com fotografias das campanhas referidas e com diferentes registos e espécimes taxidermizados. Do tecto pendiam dois lustres metálicos para gás22 com tulipas nos queimadores23.
Fig. 6 – Fotografia da Segunda Sala do Museu Oceanográfico, Palácio das Necessidades, publicada em 1904, autor desconhecido (Illustração Portugueza 1904a, 325)
Proveniência de imagem com créditos à Hemeroteca Municipal de Lisboa
Fig. 7 – Fotografia da Segunda Sala do Museu Oceanográfico, Palácio das Necessidades, 1904 a 1908, autor desconhecido
Arquivo Municipal de Lisboa, cota NEG000999
41Nestas duas salas observamos a mesma lógica de ocupação: móveis encostados às paredes, entre os vãos e ao centro, optimizando assim o espaço na sua totalidade. Esta configuração permite a existência de zonas de circulação entre o mobiliário e, porventura, uma melhor apreciação dos exemplares expostos, metodologicamente alinhados para serem facilmente retirados para posteriores observações. Esta disposição parece confirmar uma utilização pragmaticamente pensada para os estudiosos da oceanografia e das ciências naturais.
42Em termos de organização, nos frascos e nas bases dos espécimes taxidermizados foram colocadas etiquetas com os dados relevantes de cada exemplar, para fácil identificação e catalogação, como era igualmente seguido nos museus.
43O desenho do mobiliário expositivo estava alinhado com os demais exemplares coevos, como é o caso da Sociedade de Geografia de Lisboa ou de outros exemplos internacionais, nomeadamente do Muséum National d'Histoire Naturelle de Paris, do Natural History Museum de Londres, ou do Museum für Naturkunde de Berlim, entre outros (Lewis 1989, 8-18; Berkowitz e Lightman 2017).
- 24 Os expositores também tinham semelhanças com os congéneres utilizados nos estabelecimentos comercia (...)
44Os expositores onde foram colocados os frascos com espécimes em solução de álcool e de formol, eram adaptações da tipologia de aparador ou de trinchante – recorrentes nos espaços para refeições – e terão sido especificamente desenhados para esse fim24. Denota-se também o facto de a exposição ter sido pensada para uso pessoal e para um público muito restrito, visto não terem colocado sistemas dissuasores para os visitantes não se aproximarem em demasia dos expositores e dos espécimes taxidermizados.
- 25 Nas fotografias publicadas em 1904 na revista Illustração Portugueza (1904a, 1904b) constatamos que (...)
45A fonte de iluminação artificial no museu era a gás e, entre 1904 a 1908, os queimadores foram substituídos por lâmpadas eléctricas25.
46Importa destacar que os espaços e os métodos expositivos diferem dos museus abertos para o grande público na mesma época, mas efectivamente não foi esse o objectivo do Rei D. Carlos ao criar o Museu Oceanográfico no Palácio das Necessidades, como demonstramos aqui.
47A revista Illustração Portugueza – do jornal O Seculo – pediu permissão para visitar o museu e o Rei D. Carlos acedeu, através de Bernardo Pinheiro Correia de Melo, 1º conde de Arnoso (1855-1911). A visita foi marcada para o início da Primavera do ano de 1904 e os jornalistas foram recebidos pelo cientista Albert Girard no Gabinete de trabalho do Rei (1904, 323-325). No âmbito da reportagem realizada pelo jornal, a atmosfera do Gabinete de trabalho (fig. 8) seria descrita como sendo cheia de «… paz, de calma, d'um socego benedictino, gabinete simples, sem luxo, proprio para retiros de pensadores…» (Illustração Portugueza 1904a, 323).
- 26 O Rei D. Fernando tinha cinco medalhões da oficina de Andrea Della Robbia e do filho, Giovanni Dell (...)
- 27 A referência a peças de Meissen consta no artigo da revista Illustração Portugueza (1904a, 323).
- 28 As terrinas foram respectivamente mencionadas no inventário orfanológico. A terrina com tons predom (...)
48Incluímos também uma descrição do Gabinete de trabalho (fig. 8). O mobiliário comportava secretárias, um sofá de canto, cadeiras, contadores, um armário-livreiro e estantes, entre outras peças para pousar livros e documentos, para o uso do monarca e dos seus colaboradores. O gabinete foi ornamentado com peças de valor artístico, como o medalhão com a representação de São João Evangelista ou a de São Mateus Evangelista da oficina de Andrea Della Robbia (1435-1525) com a colaboração do filho, Giovanni Della Robbia (1469-1529) (MNAA, inv.º 680 Esc ou 684 Esc)26 na cambota do tecto. Entre os objetos decorativos incluíam-se ainda: peças em porcelana de Meissen27, uma terrina em forma de javali (PNS, inv.º PNS60 ou PNS63)28 no armário-livreiro e quadros emoldurados pelas superfícies parietais, entre outros.
Fig. 8 – Fotografia do Gabinete de trabalho do Museu Oceanográfico, Palácio das Necessidades, publicada em 1904, autor desconhecido (Illustração Portugueza 1904a, 324)
Proveniência de imagem com créditos à Hemeroteca Municipal de Lisboa
49O Gabinete de trabalho do Museu Oceanográfico seria complementado pela Biblioteca, onde o Rei D. Carlos reuniu obras literárias e de carácter científico, assim como manuscritos, entre outros documentos de valor histórico (APNA 1910-1911d, fl. 942v. a 1095v.). Os livros e a documentação estariam acondicionados em armários-livreiros de dois corpos envidraçados e por um dos armários-livreiros da biblioteca de D. Fernando entre os vãos, tal como foi possível identificar através de fotografia da época (fig. 9). É de notar que a fotografia (Arquivo Municipal de Lisboa) não está identificada como sendo a Biblioteca do Rei D. Carlos no Palácio das Necessidades, mas sim como “gabinete de trabalho”.
Fig. 9 – Fotografia da Biblioteca do Museu Oceanográfico, sem data e autor desconhecido
Arquivo Municipal de Lisboa, cota NEG001075
- 29 O busto foi entregue à Família Real no exílio.
50A representação da Biblioteca do Rei D. Carlos nesta fotografia (fig. 9) foi reveladora de vários aspetos fundamentais para este estudo. No armário-livreiro de dois corpos, entre a porta para o corredor e o vão exterior, foi possível identificar, no topo e a meio, um busto em gesso do Rei D. Luís I, possivelmente da autoria do escultor francês Célestin Anatole Calmels (1822-1906)29. Esse busto é exactamente igual a um outro em gesso (PNA, inv.º 1950) e um outro em mármore (PNA, inv.º 4087) do mesmo autor, que se encontram actualmente no Palácio Nacional da Ajuda. No mesmo sentido axial, na cambota do tecto figura o medalhão com a representação de São Marcos Evangelista da oficina Della Robbia (MNAA, inv.º 683 Esc). No arrolamento judicial republicano (1910-1911) menciona-se a existência de dois medalhões neste espaço, o que pode significar que um segundo medalhão estaria possivelmente colocado no lado oposto ao medalhão que se identifica na fotografia, do mesmo conjunto que os anteriores.
- 30 Uma estatueta foi transferida para o Palácio Nacional da Pena.
51O centro da Biblioteca era ocupado por uma mesa para trabalho, com uma cadeira ao gosto da época do Rei D. João V, sendo resguardado pelos seguintes móveis: uma secretária com alçado e uma estante, com um biombo entre elas. O topo da estante tinha um relógio e era ladeado por um par de estatuetas antropomórficas assentes em pedestais em porcelana chinesa (PNP, inv.º PNP130)30. Este mobiliário criava um corredor entre o armário-livreiro encimado pelo busto de D. Luís e era inferior em altura, provavelmente para fazer sobressair e enquadrar todos os elementos móveis nesse ponto do espaço.
- 31 As arandelas e os bocais para velas foram substituídos por lâmpadas eléctricas, como podemos consta (...)
52A luminária fixa era composta por um lustre e por dez placas para velas em cristal (ANTT 1887b, 341-341v.)31, colocada respectivamente ao centro e a ladear os cinco vãos. Nestes havia cortinados e porteiras, com as competentes sanefas, em seda carmesim (fig. 9). Os têxteis e a luminária foram das poucas peças de D. Fernando II que permaneceram no mesmo espaço. Estas peças foram selecionadas para irem a leilão em 1892 – conjuntamente com seis sofás, dez cadeiras de braços e seis cadeiras totalmente estofados a seda brocatelle carmesim, quatro consolas de madeiras de carvalho, uma mesa de nogueira e doze cadeiras douradas (ANTT 1887d, 498v.-500; Catalogo 1892, 75). Levantamos a hipótese de que estas peças não foram licitadas ou foram adquiridas pela Família Real, permanecendo assim no espaço.
- 32 O Rei D. Fernando tinha um sexto medalhão da mesma oficina, com a representação de Nossa Senhora co (...)
- 33 Importa mencionar o par de candelabros em porcelana da Königliche Porzellan-Manufaktur de Berlim (R (...)
53É de notar que o medalhão Della Robbia da Biblioteca e o do Gabinete de trabalho do Rei D. Carlos fizeram parte de um conjunto de cinco, composto pelo medalhão com a representação do Pelicano Eucarístico (MNAA, inv.º 682 Esc) e pelo medalhão com a de São Lucas Evangelista (MNAA, inv.º 681 Esc), da mesma oficina e dos mesmos autores.32 As peças encontravam-se penduradas na parede para a segunda sala da Bibliotheca, conforme podemos observar nas fotografias citadas, e foram adquiridas por D. Fernando antes do seu segundo casamento em 1869 (ANTT 1887a, 305). Efectivamente, outras peças em cerâmica33, como a terrina em forma de javali e as duas estatuetas assentes em pedestais anteriormente aludidas, também eram do mesmo espaço (APNA 1910-1911f, 972v.-973; ANTT 1887, 298) e foram usadas para decorar os espaços de trabalho do novo museu.
54O Museu Oceanográfico era composto por espaços de exposição para divulgar a colecção do Rei D. Carlos e por espaços complementares, como o Gabinete de trabalho e a Biblioteca, necessários para o trabalho em curso e para acondicionar toda a documentação realizada.
- 34 O Arquivo Municipal de Lisboa | Fotográfico preserva o negativo de uma fotografia de autor desconhe (...)
55Além do espaço no Palácio das Necessidades dedicado ao Museu Oceanográfico, estão documentadas várias exposições temporárias decorrentes de estudos da coleção do Rei D. Carlos, que terão sido produzidas entre 1897 e 1906, em contexto nacional e internacional. A primeira exposição a destacar é a que decorreu em 1897 na Escola Politécnica em Lisboa (fig. 10). Tendo sido preparada por Albert Girard, a exposição apresentou espécimes zoológicos, redes, desenhos, fotografias tiradas pelo monarca e instrumentos (Branco e Negro 1897, 53-54).34
Fig. 10 – Fotografia da exposição da colecção do Rei D. Carlos na Escola Politécnica, em Lisboa, possivelmente datada de 1897, de autor desconhecido
Arquivo Municipal de Lisboa, cota LSM000508
56Seguiram-se várias outras exposições em eventos nacionais, sendo de referir uma exposição aquando da inauguração do Aquário Vasco da Gama (1898), a participação na Exposição Internacional do Porto (Palácio de Cristal, 1902), na Exposição Agricola e de Productos Mineraes no Porto (Palácio de Cristal, 1903) e no Congresso Maritimo Internacional e Exposição Oceanographica (Sociedade de Geografia de Lisboa, 1904) (Occidente 1904, 113-115; Martins 1904, 466-474).
- 35 Na coleção denominada “Tesouros do Rei” do Aquário Vasco da Gama há fotografias das exposições refe (...)
57Finalmente, está ainda documentada a participação em 1906, em Itália, na Esposizione Internazionale del Sempione e na Mostra di Pesca e Acquicoltura de Milano, onde o Rei D. Carlos foi homenageado com uma placa em prata (Illustração Portugueza 1907, 451).35
58Importa sublinhar também que o trabalho científico do monarca deu origem a várias publicações editadas e impressas pela Imprensa Nacional, entre as quais: Yacht Amelia. Campanha Oceanográfica de 1896 (Bragança 1897), Resultados das Investigações Scientificas feitas a bordo do yacht «Amelia» e sob a direcção de D. Carlos de Bragança (Bragança 1899), Rapport préliminaire sur les Campagnes de 1896 à 1900 (Bragança 1902) e Ichthyologia (Bragança 1904)
59O Atelier de pintura e o Museu Oceanográfico, que descrevemos neste artigo, constituíram efetivamente espaços privados do Rei D. Carlos, com uma existência efémera. A morte trágica do Rei em 1908 e a implementação da República em 1910 determinaram um novo contexto com repercussões para o destino, quer do património artístico, quer da coleção oceanográfica. Os palácios afectos à Casa Real seriam encerrados e arrolado o seu recheio, sendo que nalguns casos, alguns desses palácios seriam musealizados nas décadas seguintes ou foram-lhes atribuídas outras funções ao serviço do Estado Português. Foi esse o caso do Palácio das Necessidades.
60De um modo geral, com o fim da monarquia, o espólio do Rei D. Carlos seria disperso por várias instituições (Braga 2020), como, aliás, ficou patente ao longo do artigo ao identificarmos o actual paradeiro de alguns dos objetos artísticos identificados no Atelier de pintura, no Gabinete de trabalho ou na Biblioteca (ex. Museu Nacional de Arte Antiga, Palácio da Ajuda, Palácio da Pena, Fundação Casa de Bragança).
- 36 No decorrer do trabalho, não foi possível encontrar documentação referente a esta doação. Curiosame (...)
- 37 A Liga Naval Portuguesa esteve anteriormente instalada no Palacete Pinto Basto no Chiado.
61No que concerne à coleção oceanográfica, o Rei D. Carlos, terá doado a coleção, ainda em vida, à Liga Naval Portuguesa para fazer parte do acervo de um museu dedicado ao mar.36 A instituição foi fundada no dia 17 de Fevereiro de 1910 como Museu Nacional de Marinha no edifício sede da referida liga37, então no Palácio Palmela ao Calhariz (Lisboa), com o intuito de construir um edifício próprio para o museu. Neste contexto, a colecção seria agrupada em três salas na Secção Oceanographica D. Carlos I (Diario Illustrado, 1910, 1; Illustração Portugueza 1910, 287; Occidente 1910, 43-44; Brasil-Portugal 1910, 35-36). Em 1935, a colecção do Museu Oceanográfico D. Carlos I foi doada pela Liga Naval Portuguesa à Marinha Portuguesa, encontrando-se actualmente preservada no Aquário Vasco da Gama, espaço museológico da Comissão Cultural de Marinha.
62Neste artigo contextualizamos e caracterizámos dois espaços criados pelo rei D. Carlos I no Palácio das Necessidades, o seu Atelier de pintura e o Museu Oceanográfico. A escolha do Palácio das Necessidades resulta do facto do edifício ter ficado parcialmente esvaziado, após as partilhas dos bens do Rei D. Fernando II, avô do monarca, que morreu em 1885. Assim, no final do séc. XIX, o Rei D. Carlos instalou nos antigos aposentos privados e em determinados espaços do avô, o seu Atelier de pintura e o Museu Oceanográfico. Desta forma, terá conseguido um certo distanciamento do edifício principal, onde se encontravam os aposentos privados da Família Real e da corte, os espaços de estar e de receber, assim como os espaços de carácter oficial, como a Sala do Throno e a Sala azul, entre outros.
63O Atelier de pintura e o Museu Oceanográfico foram espaços privados do Rei D. Carlos e tiveram uma existência efémera, tendo sido mantidos até aproximadamente à morte de D. Carlos I, em 1908. A análise das fontes documentais e iconográficas referenciadas neste artigo foram fundamentais para estabelecer a sua localização exacta destes espaços no Palácio das Necessidades e para evidenciar as suas características principais. Este estudo permitiu, assim, maior aprofundamento sobre a história destes espaços, assim como dos objetos e espécimes colecionados por D. Carlos I, contribuindo, por sua vez, para a história do colecionismo oitocentista em Portugal.
64Como podemos concluir, o Atelier de pintura era um espaço intimista do rei e onde este se dedicava a várias práticas artísticas. Do ponto de vista decorativo, o Atelier era complementado pela disposição assimétrica de objetos artísticos antigos que tinham pertencido ao Rei D. Fernando II. Globalmente, podemos considerar que o Atelier era, sobretudo, uma personificação de um certo ideal de civilidade e de urbanidade característico dos finais de oitocentos, entre as elites do mundo ocidental.
65No mesmo piso e próximo ao Atelier, o Rei D. Carlos I instalou o Museu Oceanográfico, que era composto por espaços de trabalho e de exposição. Os espaços de trabalho consistiam no Gabinete de trabalho e na Biblioteca. Estes espaços eram também decorados com objectos de valor artístico que tinham pertencido ao avô, ainda que de forma pontual e sem sobrecarregar os móveis, as superfícies parietais e as cambotas dos tectos. Nesta decoração prevalecia um certo ambiente apropriado para o estudo, mas sem descurar um certo requinte, revelador da vertente artística de D. Carlos e intrínseco à forma de estar e de viver de um soberano.
66Como evidenciamos no artigo, são dois os principais espaços de exposição do museu: a Primeira Sala e a Segunda Sala, onde se encontrava grande parte da colecção do monarca. Podemos concluir que a forma de expor se caracterizava por uma certa ordem metodológica exibindo e catalogando os espécimes taxidermizados em expositores, em muito alinhados com o mobiliário congénere e coevo utilizado no âmbito da história natural, sem quaisquer adornos ou outra decoração.
- 38 Como por exemplo o His Majesty's Yacht Victoria and Albert (1899-1954) da Família Real Inglesa. Foi (...)
67Tal como foi possível constatar, a criação deste museu é indissociável de um quadro mais vasto, nomeadamente o desenvolvimento do estudo da oceanografia no contexto internacional na segunda metade do séc. XIX. Este desenvolvimento, do qual a expedição britânica Challenger (1872-1876) é sintomática, terá influenciado cientistas e outras individualidades, entre os quais não o rei D. Carlos I. Por outro lado, neste quadro também se destaca o papel do desenvolvimento tecnológico. É de notar que no mesmo período se desenvolveram navios à vela com maior rapidez e segurança, o que levou à criação de iates somente para recreio38 e especificamente projectados para a realeza, para a aristocracia e para a grande burguesia. Estes barcos, com todo conforto possível e conveses para apreciar o mar, proporcionaram viagens lúdicas para vários pontos do globo (Herreshoff 2007). Toda esta conjectura terá sido prolificamente aproveitada pelo Rei D. Carlos, que mandou adaptar os seus iates para o estudo da oceanografia, dando assim azo à paixão que nutria pelo oceano e pelas suas actividades. É a partir das expedições oceanográficas realizadas entre 1896 e 1907, tal como documentado neste artigo, que o monarca irá constituir a coleção do Museu Oceanográfico.
68O Museu Oceanográfico do Rei D. Carlos reflete a qualidade inestimável da coleção e, em certa medida a personalidade do monarca. O Museu foi ordenado e disposto para ser estudado por si, pelos seus colaboradores e, eventualmente, pelos visitantes que pediam para o ver. Contudo, convém salientar que o método expositivo era destinado para uso pessoal do rei e da sua equipa, não tendo sido pensado para o grande público, como é o caso dos museus de história natural desse período.
69A exposição dos espécimes foi sendo feita de forma pragmática e à medida que eram capturados e tratados esses espécimes. Ou seja, o Rei D. Carlos foi ocupando provisoriamente os espaços vagos com o intuito de constituir um acervo que pudesse vir a fazer parte de um futuro museu dedicado ao mar. A doação da colecção, ainda em vida, à Liga Naval Portuguesa parece suportar essa hipótese, ou seja a intenção de tornar acessível a sua coleção a um público mais alargado. Por outro lado, é provável que esta intenção pretendesse posicionar Portugal num lugar de destaque a nível mundial e reforçar ainda mais os laços históricos e ancestrais com os oceanos. Por outro lado, o Rei D. Carlos não seria indiferente ao espírito da sua época, aos avanços científicos em torno do mundo subaquático, e ao interesse que se começava a evidenciar na divulgação científica através da criação de edifícios especificamente desenhados para albergar aquários dedicados à zoologia marítima. É de sublinhar que no mesmo período, o Príncipe Alberto do Mónaco, com quem D. Carlos I mantinha amizade, ordenou a construção do que viria a ser o primeiro museu dedicado à oceanografia no mundo: o Musée Océanographique de Monaco. As obras deste museu começaram em 1899, segundo projecto do arquitecto francês Paul Delefortrie (1843-1910), e o edifício foi oficialmente inaugurado em 1910.
70Podemos considerar que a criação do Museu Oceanográfico no Palácio das Necessidades foi, em certa medida, pioneira no panorama científico e serviu como embrião para os futuros espaços de divulgação dos oceanos em Portugal, como é o caso do Oceanário de Lisboa, espaço fundado em 1998 por ocasião da Exposição Universal de 1998, e complementado em 2011 com o Edifício do Mar.
71Justifica-se uma última nota para destacar a ênfase dada às características da tecnologia de iluminação na descrição dos vários espaços (atelier, museu e espaços de trabalho), uma vez que este estudo decorre de um projeto mais alargado em torno do uso da iluminação artificial da Casa Real Portuguesa. Foi nesse âmbito que nos foi possível localizar fontes documentais relativas ao reinado de D. Carlos, o que esperamos que seja possível continuar a fazer no futuro de forma a aprofundar o conhecimento acerca do Museu Oceanográfico.