- 1 Entrevista realizada a 24 de abril de 2024, em formato virtual.
Elisa Noronha e Patrícia Roque Martins (EN e PRM) – Marília, gostávamos que nos contasse um pouco sobre o início do seu trabalho colaborativo com as comunidades indígenas do Brasil, e quais foram os principais desafios que encontrou no desenvolvimento deste trabalho.1
1Marília Xavier Cury (MXC) – Eu comecei a trabalhar no Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo (MAE-USP) em 1992. Como museóloga do MAE-USP, eu procurei sempre interagir especialmente com a antropóloga Sonia Ferraro Dorta. O MAE-USP tem uma enorme coleção arqueológica e etnográfica indígena brasileira muitíssimo importante. Hoje é a maior coleção arqueológica e etnográfica indígena no Brasil, com um conjunto muito importante de objetos, histórico, em termos de coleta. Então, eu fui aproximando-me da Sonia, que já tinha uma carreira, com muita experiência, que conhecia muito as coleções etnográficas indígenas brasileiras e, juntas, fizemos diversos trabalhos, e principalmente diversas exposições, também catálogos e livros a respeito das coleções etnográficas. Neste processo eu fui percebendo como era o trabalho dela tanto na relação com os objetos indígenas – ao fazer a etnografia dos objetos –, como na etnografia que ela realizava em campo, com os grupos indígenas. A Sonia sempre fez trabalho de campo, especialmente com os Bororo, inclusive a sua dissertação é em cima de um objeto Bororo.2 Então, eu comecei a perceber que quando organizávamos nossos livros e exposições, a Sonia trazia a voz indígena para aquele processo de trabalho. A voz, a presença, o que os indígenas levavam ou solicitavam a ela, ou as dúvidas que ela tinha com relação à utilização/posição de um objeto, seja para expor, seja para fotografar. A Sonia consultava os grupos indígenas e trazia esta voz. E eu fiquei com isso na minha formação, muito acompanhada por ela até determinado momento – sou muito grata à Sonia.
2Mas, com o passar do tempo, mesmo entendendo a importância dos objetos indígenas dentro do Museu – a Sonia ensinou-me muito a como olhar e respeitar, expor estes objetos, sempre valorizando os grupos indígenas pelos objetos – eu resolvi aventurar-me a fazer trabalhos diretamente com os grupos indígenas. Ou seja, numa abordagem museológica, porque eu sou museóloga – por mais que eu leia e me interesse por antropologia e etnografia, a minha formação é museologia – e porque eu achei que assim eu podia também levar a museologia para o trabalho de campo, com os povos indígenas, tendo o Museu como centro do trabalho, entendendo que os museus têm uma relação muito antiga com os povos indígenas, desde que os europeus começaram a levar objetos brasileiros para os seus museus, e lógico, com a criação dos museus, no Brasil, no início do século XIX.
3Como sabemos, no final do século XX, décadas de 1970, 1980 e 1990, um grande processo global aconteceu, de direitos sociais, na mais ampla possibilidade de segmentações e fragmentações. Então surgiu os direitos às memórias, às falas e os direitos à musealização. Ou seja, o olhar se voltou também para os museus no sentido de perceber o que foi reunido pelas instituições e o que dizia respeito aos povos indígenas. E este processo levou-me a seguinte questão: nós temos coleções indígenas no MAE, mas será que os povos indígenas sabem disso? Será que eles sabem que têm objetos dos seus antepassados guardados no Museu? Será que eles sabem o que é o Museu, como guarda, como trabalha? Será que eles não têm vontade e curiosidade de se aproximar destes objetos? Será que estes objetos fazem parte ainda da vida deles, e de que forma?
- 3 Chefes e líderes políticos de um grupo, aldeia ou terra indígena.
- 4 Instituição vinculada à Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, com gestã (...)
4Então, fui muito motivada por questionamentos que cruzam o que o MAE tem sob a sua responsabilidade e a vida dos indígenas hoje, como vivem, quais são as suas histórias, os seus trabalhos, as suas lutas por direitos constitucionais. Assim, no início de 2010, pela primeira vez eu me desloquei para uma terra indígena (TI) que se chama Vanuíre, no município de Arco-Íris, no estado de São Paulo, para conversar com os grupos indígenas – o MAE possui na sua coleção objetos coletados naquele território. E nesta primeira aproximação eu fiz uma coisa intuitiva, mas muito acertada. Ao chegar na TI, e os indígenas estavam me esperando, os caciques3, os professores indígenas… Nós nos reunimos numa sala da Escola Estadual Indígena Índia Vanuíre, e eu fiz um convite: «olha, eu não conheço vocês, mas o Museu onde eu trabalho tem objeto de vocês, dos seus antepassados, estão lá, estão guardados… e eu faço o convite para nós organizarmos uma exposição conjuntamente». E é importante dizer que neste lugar, que é bem distante da cidade de São Paulo, mais de 500 km. Eu tinha um vínculo com o Museu Histórico e Pedagógico Índia Vanuíre (MIV)4 próximo à TI Vanuíre. E foi através deste vínculo que eu cheguei na TI. Precisamos chegar com uma apresentação, com uma outra instituição ou profissional que nos introduza naquele outro lugar cultural e social. Então foi com o MIV e com a proposta de uma exposição, que eu cheguei com o convite: trabalharmos a partir de um museu e organizarmos uma exposição.
5E aí puxamos o fio da meada. Esses indígenas nunca tinham participado de uma exposição... Mesmo o MIV, que é ali perto, a 20 e poucos km, nunca tinha organizado uma exposição com eles. Então, começamos a conversar: «Mas como é essa exposição?» Eu falei: «eu não sei, a gente não discutiu, a gente não pensou, eu só vim fazer um convite de uma exposição sobre a cultura de vocês com vocês. Eu não vou vir aqui escutar vocês e eu sozinha montar a exposição. Eu quero fazer com vocês».
6Nesta época já havia a noção de que uma exposição, na maioria das possibilidades, é a representação sobre o “outro”. Então, eu já tinha noção que eu queria uma exposição que integrasse as vozes indígenas, no seu discurso, na sua estrutura. Mas eles me perguntavam: «como é que é?» Eu falei: «eu não sei, nós vamos fazer juntos. Eu vou falar para vocês o que é uma exposição, como é que o museu expõe os objetos, como é que se organiza. Mas uma exposição conta uma coisa. Então, o que vai ser contado na exposição é o que vocês vão dizer, eu não posso contar por vocês». E assim foi.
- 5 Essa exposição de longa duração está patente no Museu Índia Vanuíre e denomina-se Tupã Plural, com (...)
7Nós montamos, de facto, uma exposição em 2010 no MIV.5 Começamos a trabalhar, em janeiro, e em outubro a exposição estava pronta. E foi um processo mesmo, porque eles foram descobrindo o que queriam da exposição. E eu fui descobrindo como se organiza exposição com a participação dos grupos indígenas implicados na musealização. Foi bastante positivo, porque os próprios indígenas foram os curadores da exposição, mas eles eram também os visitantes e levavam a família a visitar a exposição, um “mostrar-se” com orgulho. Então, a minha experiência com a museologia colaborativa começou em 2010 e não parou, só expandiu.
8A partir do trabalho na TI Vanuíre, com os Kaingang e os Krenak, eu fui apresentada para outra terra indígena, a TI Icatu. Como essa exposição teve uma repercussão para os Kaingang e os Krenak, começaram a falar em outras TIs sobre esse trabalho.
9Então, um dia, chega o interesse dos grupos que vivem na TI Icatu, no município de Braúna, para uma exposição. Quem me trouxe este recado e me levou para Icatu, no interior do Estado de São Paulo, como a TI Vanuíre, foi a arqueóloga Marcia Hattori e a antropóloga e arqueóloga Louise Prado. Na TI Icatu fui apresentada para as lideranças, para os professores, para o diretor da Escola Estadual Indígena Índia Maria Rosa e para os dois grupos, Kaingang e Terena.
10E o que aconteceu? A mesma coisa. Nós montamos uma exposição com eles, porque é o que eles queriam, eles precisam e querem visibilidade, é muito importante a visibilidade para que eles sejam reconhecidos, respeitados e valorizados. Então, a ideia de exposição agrada muito.
11Então, fizemos uma outra exposição, com base no MIV, instituição do Estado de São Paulo próxima as duas TIs, e com o apoio do MAE-USP. No entanto, nós organizamos a exposição itinerante Dois Povos, Uma Luta, que ficou com a comunidade, com a Escola. Uma exposição fácil de ser montada e reproduzida. E essa exposição circulou por outros museus na proximidade.
12Mas não parou aí. Depois de chegar à Vanuíre e Icatu, eu me senti mais à vontade de me aproximar da terceira TI da região centro-oeste paulista, a TI Araribá, no município de Avaí.
13Eu cheguei na TI Araribá, pela Aldeia Nimuendaju. Na Aldeia Nimuendaju e fui me apresentar para os Guarani Nhandewa. E depois eu fui nas outras aldeias, são quatro ao todo [Ekeruá, Kopenoti, Nimuendaju e Tereguá], com a Kaingang Lucilene de Melo. Duas das aldeias manifestaram interesse em trabalharmos juntos – a Aldeia Guarani Nhandewa Nimuendaju, e a Terena, Aldeia Ekeruá. E o que aconteceu a partir disso? Nós nunca mais parámos de trabalhar juntos. Então, hoje, eu trabalho com essas três terras indígenas e com os grupos Guarani Nhandewa, Terena e Kaingang, estamos ligados pelo Museu e pelas coleções museológicas.
14Nós sempre estamos fazendo alguma coisa juntos. E todos os trabalhos sempre são conjuntos, sempre sentamos à mesa, sempre decidimos tudo juntos. Quando é uma exposição, eles selecionam os objetos, eles definem a narrativa a partir da articulação dos objetos, eles escolhem se vai ter texto ou não na exposição, o título, o conteúdo das etiquetas. Se vai ter texto, eles preparam o texto ou a gente grava e transcreve e coloca a fala deles na exposição.
15Hoje eu falo, é um trabalho conjunto que não tem fim. A relação entre os indígenas e os museus e vice-versa, a relação que os museus têm com os povos indígenas é marcada historicamente. E não é uma relação fácil nem simples, e às vezes é uma relação dolorida, porque a história da colonização do Brasil afetou profundamente as culturas indígenas e foi violenta, muito violenta. Então, essa relação, também é marcada por esses objetos dentro dos museus que foram obtidos muitas vezes de uma forma brutal e violenta, envolvendo chacinas, contaminações e tantas outras violências. Então, é uma relação histórica que estamos refazendo no presente, com outras bases, com outras formas de trabalhar. Ou seja, desenvolver ações museais que sejam boas para os indígenas, que eles se envolvam por vontade própria, fazer algo que traga um resultado concreto, demonstrou ser uma coisa muito estratégica, importante para eles, e sendo importante para eles é importante para o Museu também, onde a gente incorpora esse discurso como discurso institucional.
16Então, nunca para, a relação está sempre se transformando e outras questões vão entrando na conversa. É um trabalho que não tem fim e é muitíssimo importante para os museus e para a museologia por aquilo que ele não só realiza em termos de exposições, mas pelo quanto nós profissionais e os museus se modificam, a partir dessa relação contínua.
EN e PRM – Em 2010, quando a Marília começou esse trabalho, qual eram as narrativas e/ou discursos adotados pelos museus brasileiros, nas exposições de objetos ou representação dos povos indígenas? O que mudou, desde então?
17MXC – O Brasil é um território indígena. [Quando os Portugueses aqui chegaram], o Brasil era todo ocupado por grupos indígenas. Tem algumas estimativas de que a população indígena no Brasil ultrapassava milhões. Eu já ouvi cinco milhões, mas o território brasileiro era todo ocupado por muitos povos indígenas. Se hoje nós temos mais de 310 povos indígenas6, na época deveria ter muito mais. Então, partindo desse princípio, deveria haver mais museus que falassem disso no Brasil inteiro.
18Contudo, a colonização do Brasil começou no litoral em direção ao interior e isso foi forçando os indígenas a se deslocarem mais para o interior. Não que eles não estejam no litoral hoje, mas muitos foram fugindo desse processo “civilizatório”. Ao mesmo tempo, a distribuição de museus no Brasil é muito desigual, por conta da colonização – há mais museus no litoral –, mas também por uma série de outras questões, de recursos, inclusive financeiros, porque a grande concentração de museus no Brasil é nas grandes metrópoles, nas grandes capitais, e nas regiões sudeste e sul, principalmente no sudeste.
19Então, a visão de que os indígenas deveriam estar em todos ou em muitos museus distribuídos no Brasil de uma forma equilibrada, ela não é possível, porque há uma ocupação territorial ainda hoje desequilibrada e uma distribuição de recursos e rendas, e economia muito desequilibrada. Mas, acho que os povos indígenas merecem espaço em qualquer museu, porque eles são cidadãos desta terra, do Brasil. Se a arqueologia e a antropologia são fundamentais para se entender a história indígena neste território, a longo prazo devemos prever uma participação museal maior.
20Contudo, em 2010 e até muito recentemente, a grande concentração da abordagem sobre as culturas, aos povos indígenas, ainda estava muito circunscrita aos museus de arqueologia e antropologia/etnologia no Brasil. Depois, o mundo da arte começou a se abrir para a arte indígena – e alguns antropólogos também trabalham nessa perspetiva. A 34.ª Bienal de São Paulo abriu em alguns momentos para exposições indígenas e na edição de 2021, abriu-se plenamente. Muitos artistas indígenas estavam presentes naquela Bienal – “Faz escuro mas eu canto”. Também a 60.ª Bienal de Arte de Veneza deste ano, Foreigners Everywhere, com um grande destaque aos povos indígenas, com obras de Joseca Yanomami e, na fachada do Pavilhão central, um mural do Movimento MAHKU (Movimento de Artistas Huni Kuin, Amazônia), grande, maravilhoso.
21E essa abertura do mundo das artes foi muitíssimo importante, porque insere-se a participação dos povos indígenas em outras tipologias de museus, mesmo que nesses outros lugares continuem a ter uma organização etnográfica. Por exemplo, a Brasil + 500 Mostra do Redescobrimento, São Paulo, 2000, com uma chamada à arte contemporânea, contou com o módulo Artes Indígenas, com o apoio da antropologia. Ou seja, até o fim do século XX era muito recorrente os modelos de exposição com objetos etnográficos e com uma lógica etnográfica. E por isso também foi muito importante para mim trabalhar com a Sonia, porque eu a acompanhava, e eu queria entender como é que ela trabalhava. Então, acompanhando as exposições que ela organizava, comigo no apoio com conhecimentos museológicos, eu comecei a entender o que é a lógica etnográfica numa exposição, os módulos, as separações e os agrupamentos, o que fica perto do quê, porquê, o que se reúne com o quê, como ela organizava os objetos. Então, eu consegui, organizando com ela algumas exposições, entender que aquele tipo de exposição era etnografia. É uma etnografia sofisticada, elaborada. As etiquetas elaboradas pela Sonia Dorta é etnografia sendo compartilhada com o grande público. E eu reconheço e valorizo muito, mas hoje entendo que é um tipo de abordagem de exposição.
22A arqueologia também leva todo o seu conhecimento, o seu pensamento, a sua lógica para a organização das exposições. Eu vi isso muito de perto, trabalhando no MAE, e continuo vendo. Mas a arqueologia constantemente cai na estetização das exposições. Eu sei que tem arqueologia por trás, eu sei que tem a lógica na seleção daquele acervo, na articulação, na sequência das peças, na distribuição, eu sei, mas eu não enxergo. Porquê? Porque o que prevalece é a estetização. E muitas vezes, em outras exposições organizadas por antropólogos – e eu não quero generalizar – tem uma lógica antropológica que não é tão clara quanto a lógica etnográfica da Sonia quando se vê partes claramente separadas/classificadas/catalogadas. E, às vezes, em algumas exposições antropológicas, isso não é tão claro, porque também cai na estetização. Então, quando cai na estetização, cai no fetiche, no objeto fetiche. E, ao mesmo tempo, se cria um distanciamento com o visitante, pois o visitante não tem elementos para apreender esse pensamento antropológico ou arqueológico. Reconheço que tem um grande valor, mas se o visitante não consegue apreender, ocorre um distanciamento.
- 7 Foi possível nessa exposição um estudo de recepção com os visitantes. Veja-se em Cury e Carneiro (2 (...)
- 8 Sobre a exposição, veja-se Cury, Dorta e Carneiro (2009).
23Mas, com o tempo, na viragem do século XX, a gente começou a ver exposições com objetos indígenas mais contextualizadas. Não raro, essa contextualização começou a contar com elementos cenográficos, reconstituições de ambientes, com cabanas. Então, aos poucos, a gente vai começando a ver outros elementos – não que a etnografia se retirou, ela está lá – como os recursos expográficos e a presença do indígena presente no processo expográfico. Não que não tivesse antes. A Sonia Dorta falava com o Xavante: «como é que eu posso colocar isso, o que eu posso, o que eu não posso». Então, ela conversava. Mas o Xavante ou o Bororo não vieram aqui [no MAE]. Porque era um outro momento também, não era fácil chamar e trazer dessa forma. Mas, com o tempo, essa presença indígena dentro dos trabalhos, nos museus, nas exposições começou a ampliar-se. Eu diria que nós redescobrimos os grupos indígenas dentro dos museus, porque antes eles eram visitantes. Com a Sonia Dorta testemunhamos registros de visitantes7 indígenas na exposição Beleza e Saber – Plumária Indígena8 [2 de outubro a 29 de novembro de 2009], que faziam questão de colocar o seu nome, o nome do seu povo agregado a este registo. Aos poucos, esse indígena visitante passa a ser o indígena sujeito ativo dos processos de musealização. Ele entra dentro do museu atuando com o seu saber, com o seu conhecimento, com a sua perspetiva, com a sua visão. E, com isso também, esses processos todos, expográficos e museológicos, foram tornando-se menos estáticos e mais dinâmicos: a inserção de elementos cenográficos, reconstituições, materiais fotográficos, às vezes objetos para serem tocados, mexidos, vídeos e tantas outras coisas. As exposições começaram a ser mais mediáticas, multimídias, mais sensoriais, fugindo do modelo objeto-vitrina. Fugindo também do modelo objeto-etiqueta, ampliando para outros elementos que possam trazer chaves interpretativas para os visitantes. E hoje podemos, entre outras formas de atuação, fazer museologia colaborativa com grupos indígenas ou outros.
24Há alguns anos eu usava a expressão pesquisa-ação, que desloca o pesquisador da observação, levando-o a uma ação de pesquisa com um grupo ou coletivo. Na pesquisa-ação todos são pesquisadores e todos estão em uma ação conjunta, uma equipe só. Não há um pesquisador e um pesquisado. A pesquisa-ação, ela rompe com essa relação. Mas hoje há um pensamento que se traduz num outro termo que é colaboração. Somos pesquisadores de museus, eu sou uma pesquisadora neste Museu, mas eu sou tanto pesquisadora quanto é o indígena, o Kaingang, o Terena, o Guarani Nhandewa. Eu sei uma coisa, mas eu não sei o que eles sabem, e vice-versa, e para uma exposição nós temos que trabalhar juntos, de uma forma colaborativa.
25Isso significa que nós temos objetivos comuns, fora outros objetivos que possam existir, e nós trabalhamos em torno desses objetivos comuns. Isto é um outro formato de exposição. Isso é muito atual e não é tão fácil de encontrar, mas a gente está trabalhando com esse desafio, o de trabalhar junto.
26Isto diz respeito também com a ocupação pelos indígenas do espaço museal e da musealização. No Brasil, os museus, na maioria, são públicos. Sendo públicos, são dos indígenas também, eles são cidadãos brasileiros. E, por outro lado, nós estamos lidando com aquilo que é deles, que é a cultura deles, a vida deles, o património deles, são as memórias, as identidades deles. Acho que cabem muitos modelos de exposição no mesmo museu, isso eu reconheço, mas, dentre tantos modelos, não podemos deixar de lado a autorrepresentação (exposições na primeira pessoa), porque eles querem falar por eles. Então, as exposições que se colocam na terceira pessoa continuarão existindo, contudo como uma outra base teórica, conceitual e ética. Ela vai se ajustando aos novos pensamentos, com novas posturas com relação aos museus. Mas os museus não podem deixar de, cada vez mais, ter exposições onde a autorrepresentação seja o tom do processo.
27A gente pode montar exposições falando de povos indígenas, mas não podemos montar exposições pelos povos indígenas, porque esse o lugar de fala é deles. Não somos nós profissionais de museus que damos este lugar, a fala é deles. É só os museus reconhecerem que, na verdade, são uma estrutura pública, que tem que expandir muito além das perspetivas anteriores e, sobretudo, das perspetivas hegemônicas e elitistas. Esse museu não cabe mais, ele está aí, mas ele tem que se abrir, seguramente, para essas participações e muitas outras.
28Acho que este processo está acontecendo e mudando o pensamento, a prática, as relações e, consequentemente, mudando a cara da exposição, a maneira de expor. Nos museus eu tanto posso encontrar o modelo vitrina/objeto/etiqueta, não tem problema nenhum, mas não posso abrir mão também de outras exposições, de outras formas, de outros modelos.
29A exposição colaborativa que temos atualmente no MAE, Resistência Já! Fortalecimento e União das Culturas Indígenas – Kaingang, Guarani Nhandewa e Terena, por exemplo, os objetos estão em vitrina, são objetos museológicos de mais de 100 anos, não teria como não ser. Mas é uma exposição que não têm texto, por que eles não quiseram pôr texto. É cheia de vida, de material fotográfico. Não tem texto na parede, mas tem as etiquetas e na hora que você lê as etiquetas, não é um padrão de etiqueta, não é uma classificação, uma catalogação. É uma fala indígena a respeito daquele objeto, uma fala com vida, porque eles viram a avó fazer um objeto como aqueles ou eles mesmos cozinharam numa panela como aquela e lembram da infância.
30São exposições que, na verdade, têm um outro formato, tem uma outra narrativa, têm uma empatia maior com os públicos, porque está falando de pessoas e vidas e cotidiano. E as pessoas gostam disso, gostam de ver o cotidiano dentro dos museus e elas se acham no cotidiano, mesmo que seja do cotidiano do outro cultural. Então, está mudando e acho isso muito bom, espero que mude ainda muito mais.
EN e PRM – De toda essa experiência colaborativa, de muita troca, o que fica como uma aprendizagem positiva para os indígenas, para a criação e/ou construção dos seus próprios museus?
- 9 Sobre o Museu Magüta, ver https://museumaguta.com.br (consultado em maio 30, 2024).
- 10 Sobre o Museu Indígena Kanindé, ver Santos (2021).
31MXC – Existe um movimento aqui no Brasil em torno da ideia de museus indígenas. É um movimento que vem da década de 1990. O primeiro museu indígena criado, em 1991, no Brasil é o Museu Magüta9, em Benjamin Constant, Amazonas. Depois veio o Museu Indígena Kanindé10, no Ceará. O Ceará é um estado brasileiro que tem um movimento político indígena muito forte, de décadas, o que que gerou uma proliferação de museus indígenas. Em Pernambuco também. E o interessante é que esses museus indígenas ganham muita força e muita vida, a partir da pauta política dos povos indígenas. É aquilo que eu estava falando: a visibilidade de uma exposição mas, sobretudo a visibilidade que o museu é capaz de ter e é capaz de assumir foi entendida pelos indígenas que, então, começaram a criar os seus museus. E estes museus são peças estratégicas do processo interno, fundamental para a questão da transmissão cultural entre várias gerações. Mas estes museus têm também um papel muitíssimo importante no esforço constante dos povos indígenas de estabelecer comunicação com a sociedade, a sociedade da qual eles fazem parte, mas, ao mesmo tempo, os segrega, os discrimina, os persegue.
- 11 É uma trilha numa mata, por onde, ao caminhar, se torna possível conhecer, como em um museu, muitas (...)
- 12 O dossiê O Protagonismo Indígena e Museu: Abordagens e Metodologias (2021) inclui artigos de autori (...)
32Hoje, no Brasil, há a Rede Indígena de Memória e Museologia Social que agrega uma grande concentração de museus indígenas do Ceará e de Pernambuco. Mas em São Paulo, nesse fluxo que eu tenho o privilégio de participar, também foram criados museus indígenas. Tem o Museu Worikg, por exemplo, um Museu Kaingang, o Museu Akãm Orãm Krenak do povo Krenak, o Museu Guarani Nhandewa, na aldeia Nimuendaju, os Terena de Ekeruá estão pensando como fazer o museu deles, os Kaingang e os Terenas de Icatu possuem a exposição itinerante Dois Povos, Uma Luta e a Trilha-Museu11. E essa ideia de museu não como um prédio, mas um museu como um território.12
33Na verdade, hoje há um trânsito entre museus. A equipe do Museu Worikg tanto cuida do seu museu na TI Vanuíre, quanto daqui do MAE, visitando a exposição na qual eles são curadores e também tendo ciência de como o Museu está cuidando dos objetos que eles herdaram dos seus antepassados. Então, esse é um fluxo, e é muito bom isso, pois entendemos que existem formas diferentes de se fazer museus, responsabilidades diferentes, alcances diferentes, porque o que o MAE faz, eles não conseguem fazer, mas o que eles fazem, o MAE também não consegue fazer. E para nós que somos da museologia, pesquisadores, professores de museologia, é uma eterna aprendizagem. Tudo o que eu pensava de museus se garante até um certo ponto, porque eu estou começando a ver que dá para fazer museus diferentes, e são museus muito bons, ótimos. Os indígenas conseguem o que a gente não consegue, pois são estruturas diferentes, pessoas diferentes.
34E esse fluxo é muitíssimo importante. Com o MIV, já organizamos várias edições do Encontro Paulista Questões Indígenas e Museus/Seminário Museus, Identidades e Patrimônios Culturais [2012-2018]13, para reunir indígenas, pesquisadores e profissionais de museus, no mesmo espaço, no mesmo auditório. Todos são palestrantes e todos devem escutar o outro, porque não é uma questão de dar uma palestra, é falar com o outro e discutir e tentar entender o ponto de vista do outro, ao mesmo tempo que você mostra o seu. Não como uma disputa. Porque a museologia é um lugar de muita disputa, os museus são lugares de muita disputa, tudo bem, a gente disputa mesmo, e não é necessariamente uma coisa ruim, mas em algum momento temos que deixar as disputas para um outro plano se queremos aprender a trabalhar juntos, trabalhando juntos mesmo que em modelos de museus diferentes. Isto é um enorme desafio para o qual devemos investir esforços.
EN e PRM – O tema da decolonização dos museus tem suscitado muitas perspetivas críticas, que vão para além da problemática da restituição das coleções aos seus povos de origem, rompendo com muitos valores que sustentam a cultura museológica ocidental. Se, por um lado, muitas destas coleções museológicas foram constituídas de forma violenta e os princípios que integram o discurso museológico ocidental foram desenvolvidos em pleno período colonial europeu, por outro lado, é também à luz da cultura ocidental que apontamos a responsabilidade social dos museus para atuarem junto das comunidades. Será este um desejo por reformular ou decolonizar a própria museologia? E, esta reformulação ou decolonização, limitar-se-á a aprofundar o conhecimento sobre o “outro” ou poderá implicar a construção de outros paradigmas sobre nós próprios e sobre a sociedade na qual vivemos?
35MXC – Eu acho que estamos num processo que não tem retorno. Quando falamos de decolonização estamos a falar de outras estruturas e de outras abordagens. Não se trata de substituir um modelo por outro, mas de ampliar as possibilidades, dialogando mais. Quando juntamos à volta de uma mesa de trabalho o museólogo, o educador, o arqueólogo, o antropólogo, e o indígena Pajé, cacique, discutimos algo que vamos fazer juntos ou diferentes formas de entender algo. Os indígenas usam um termo que eu gosto muito: “parceiros”. Isso significa que nós estamos juntos agora, mas não pensamos igual. Às vezes há um sentido de uma autoridade única, que é a do museu e do pesquisador do museu. E de repente, um Pajé, entra na nossa frente e é uma autoridade! O cacique é uma autoridade! Mas quando os museus se fecham, escondem as suas coleções e são inflexíveis, virando as costas aos indígenas, mantêm uma estrutura autoritária, elitista e antidemocrática. E isso não favorece a museologia, nem o museu, nem quem trabalha dentro dos museus, e nem os povos indígenas.
36Então, hoje, os museus devem ser um lugar de respeito. Um museu não pode ser mais encarado como um lugar fechado, um prédio dentro do muro. Até a expressão “extramuros”, reforça a ideia que existe um mundo dentro e outro fora. Os museus não podem ser proprietários das coleções e decidir quem vê e como se vê, porque são estruturas democráticas. Os modelos do museu integral e museu social dos anos 1970 ainda estão muito na pauta e, atualmente, estamos a expandir as formas de participação e a descentralização dos museus, que no Brasil continuam centralizados nas grandes metrópoles. E a função social dos museus continua na pauta, então, juntando isso à participação com outros processos democráticos, há vários ajustes que se têm de fazer, indo no contínuo de uma formação permanente.
37Eu tive uma formação bastante aberta e flexível na década de 1980 e, atualmente, já estamos na terceira década do século XXI. E, então, essa formação tem de ser sempre atualizada, renovada, reajustada.
38Eu acho que é um processo que passa por abrir as coleções, pois, muitas delas estão fechadas ou não foram estudadas. Abrigar as coleções, significa abrir a documentação museológica, para torná-las digitalmente acessível. Os grupos indígenas têm o direito de saber o que é deles e em que museu está. Aliás, é uma obrigação. Então, isso mexe muito com a estrutura. E não é desprezar todas as técnicas museográficas, é só recolocá-las dentro de uma outra dimensão, tornando o museu, de facto, uma instituição democrática, realizando democracia. E todo o exercício da democracia exige mexer com a estrutura para fazer diferente. Reposicionando, deixando uma estrutura mais flexível e com isso vamos conseguir estar mais próximo das dinâmicas sociais, dos movimentos sociais. Então, entendo que as estruturas precisam se flexibilizar para novas vozes, novas visões. Novamente, não estamos colocando nada de lado. As disciplinas continuam tendo seu papel fundamental dentro das instituições, a arqueologia, a antropologia, a museologia e tantas outras.
39Só estamos ampliando o trabalho dos museus e fazer também com que muitas vezes esses agentes envolvidos se comuniquem, pois as trocas são muito frutíferas. Temos que aprender a caminhar, seguindo nesse processo. E são passos duros de serem dados, e são lentos também, porque trabalhamos muito para dar um passo, mas que seja um passo firme, que seja um passo sólido. E isso tem que envolver as equipas, e as gestões têm que estar abertas a isso. Tantas vezes que as equipas querem trabalhar para um lado e as gestões para outro! É um novo museu com novos procedimentos, novas perspetivas, novas formas de trabalhar e, sobretudo, garantindo a participação principalmente de grupos culturais implicados nas questões concetuais dos museus, com as coleções que estão ali armazenadas. Não tem retorno! Não dá para pensar em museus fechados, concentrados numa perspetiva hegemónica. É uma questão de tempo e processo.
40Eu trabalho há décadas na museologia e consigo ver que estamos a avançar, talvez pudéssemos ter avançado mais, mas não nego que não tenha havido uma proliferação de pensamentos e de práticas que estão sendo já incorporadas e que não estão sendo tão questionadas. Então, acho que é um processo mesmo e só vejo possibilidades positivas nas relações dialógicas nos museus. Quantos museus fecham as suas coleções e não dão acesso? Então isso é uma barreira imensa. E quando eu vejo que os meus parceiros Kaingang, que sabem que o objeto do seu antepassado está no museu, a exemplo da panela Kaingang no Museu Nacional de Arqueologia, em Lisboa, e que está a ser bem cuidado, eles agradecem! Eles agradecem ao profissional pelo cuidado. Eles agradecem e ficam emocionados e só falam bem daquele museu: «aquele museu guarda objetos dos meus antigos!». E sabem também que está guardado para o seu neto que um dia vai lá ver o objeto, senão ele mesmo.
41As pessoas têm que se despreocupar de algumas amarras, de algumas visões, de sentimento de posse. Acho que temos que ter medo da falta de diálogo porque isso só causa distanciamento, ruturas, clivagens. Fora isso, temos que ter uma relação dialógica muito aberta, muito equilibrada, muito respeitosa e, sobretudo, sustentada em relações confiáveis. Quando se faz um acordo, estamos confiando que aquele acordo vai ser cumprido pelo outro. Mas se ele não conseguir cumprir, por algum motivo, ele vai voltar e vai dizer porque não conseguiu e vai querer refazer o acordo. E aí tudo bem. O que não pode haver é pautas diferentes e, sobretudo, quem não respeite as relações.
EN e PRM – Aproveitando essa questão do diálogo, do acordo, e trazendo aqui, então, a sua relação com Portugal, gostaríamos de saber que colaborações tem desenvolvido e que considera positivas no que diz respeito à representação da questão indígena. Em Portugal, ou em outras geografias dentro da Europa, ou mesmo na América do Sul, ou seja, que outras leituras e interpretações, a Marília tem proposto, a partir da sua experiência com as comunidades indígenas para os museus fora do Brasil?
42MXC – Neste momento estou desenvolvendo um projeto em Portugal “Diálogos Museológicos e Trânsitos Portugal-Brasil/Brasil – Portugal: Uma Prospecção nas Coleções Arqueológicas e Etnográficas Brasileiras em Museus Portugueses” que é dessa linha de pensamento. Estou levantando as coleções com o objetivo de saber o que é, onde está, como chegou? Quais foram essas questões de trânsito de algo que estava no Brasil, e como é que foi coletado aqui e foi para outro lugar? Quem são as instituições, quem são as pessoas relacionadas, quem são os agentes até chegar a determinado museu?
43É um trabalho enorme. É tentar, na medida do possível, ter um inventário, um catálogo, uma lista. E com isso localizar a procedência desses objetos com a maior informação possível.
44O objetivo principal é ter dados e informações, estabelecer possíveis intercâmbios entre os museus portugueses e brasileiros, dar acesso também a pesquisadores, a antropólogos, a arqueólogos interessados nesse fluxo, nessas coleções ou nesses objetos. Mas o objetivo principal é dar conta aos povos indígenas daquilo que é deles e aonde está! Para que eles saibam! Eu não sei se eles vão querer a repatriação, eu não sei o que eles vão querer no futuro! Mas eu sei que eles têm direitos legítimos.
45Visitando os museus em Portugal, vejo que essa perspetiva decolonial não é tão frequente. Ainda vejo modelos de museus bastante tradicionais. Mas eu também acho janelas, coisas novas, bastante interessantes. No Porto, o caso do “Museu do Porto – Reservatório” é muitíssimo interessante. Tem uma pauta arqueológica bastante aberta e flexível porque ao mesmo tempo que tem alguns elementos tradicionais, a abordagem já é nova. Apresenta uma exposição que nos faz entrar na cidade do Porto de uma outra perspetiva, partindo da arqueologia e da pesquisa arqueológica. São muitas as camadas daquele lugar, no centro do Porto, e as camadas mais antigas colocam o cidadão num outro lugar, numa outra perspetiva.
46Em Lisboa, no Museu Nacional de História Natural e da Ciência da Universidade de Lisboa, onde está a sede do projeto que estou realizando agora, é uma instituição que acolhe os arquivos do Instituto de Investigação Científica Tropical. Então, abrir esses arquivos não é nada simples, eu reconheço. Mas ao mesmo tempo, é muito necessário! Vai doer, vai! Mas são feridas que precisam de ser tratadas. E neste momento tem uma exposição temporária muitíssimo interessante que é O Impulso Fotográfico: (Des)Arrumar o Arquivo Colonial [2022-2024], porque é essencialmente um arquivo que foi aberto, foi estudado, foi olhado, visitado, revisitado, analisado, já com uma ótica democrática atual a partir de um corpo transdisciplinar de pesquisadores. E traz uma visão crítica a partir do presente. Mas é uma exposição também muito inteligente, muito bem elaborada, porque ela revela e aflige qualquer pessoa, porque revela muitas coisas dolorosas do passado. Mas ao mesmo tempo que ela revela, é uma exposição que tem camadas que busca dar identidade para o sujeito anónimo. Como é que ele foi colocado anonimamente num registo fotográfico? Ou ela busca a partir do anonimato, um jogo estético, um jogo artístico e um jogo de linguagem, revelando que numa mesa de jantar onde só estavam homens brancos sentados, o único negro era quem estava servindo. E o rosto dele foi apagado, enxerga-se um homem negro trabalhando como se não tivesse identidade, rosto, nem fisionomia, só um corpo trabalhando. Então é uma exposição que busca identidade e o protagonismo dessas pessoas. E, além disso, tem uma outra camada que é a artística. Através da arte, do sensível, das cores, do diagonal, uma camada artística crítica. Ela é contundente. Ela é forte, mas ao mesmo tempo ela é poética ao ponto de conseguir falar de coisas muito profundas de uma outra forma. Então essa exposição é uma janela de esperança museológica, porque é forte e necessária. É importante também porque é uma exposição colaborativa em que os artistas entraram com os pesquisadores nessa configuração de dupla narrativa de camadas.
47A Fundação Calouste Gulbenkian também teve experiências recentes bastante interessantes como a exposição Europa Oxalá [2022]. No caso da exposição O Tesouro dos Reis: Obras-primas da Terra Sancta Museum [2023-2024], numa montagem tradicional, há pontos que antes não se consideravam. Por exemplo, ao contrário do que o título possa sugerir, na exposição a relação com o poder está explícita.
48Então, vejo tudo isso de uma forma ao mesmo tempo que crítica – porque tem muita coisa que fazer por Portugal e Brasil –, mas também vejo isso de forma muito positiva. Aí entra a museologia e a formação de pesquisadores que devem estar muito atentos nessas novas formas, maneiras de pensar, de fazer e de encontrar as nuances. Ainda tem que se trabalhar muito a museologia na prática dos museus, mas é necessário trabalhar muito com um olhar analítico e crítico para se entender o que está sendo feito.
49Então, agora temos que formar um profissional e um pesquisador que consiga observar, analisar e fazer uma crítica no sentido construtivista. A coisa mais difícil é entender o lugar da posição de um museu. Porquê? Temos que dar um passo atrás para chegar ao todo, ao mesmo tempo que olho as particularidades para entender o lugar social desse corpo social que é o museu. Não é nada trivial, é um exercício enorme de entendimento. Não tem nada a ver com o julgamento porque isso tem a ver com os meus gostos. E não é o meu gosto que está em pauta, o que eu gosto ou não gosto. Então, para se entender o que é a sua dimensão é preciso um profissional novo e uma formação também bastante cuidadora nesse sentido.
EN e PRM – Então, no que diz respeito à formação do museólogo e centrando no seu papel enquanto professora de museologia, como é que tem trabalhado o tema das comunidades dentro dessa lógica da curadoria colaborativa? Como é que leva isso para a sala de aula, que tipo de experiências proporciona, por exemplo, no desenvolvimento desse pensamento, dessa formação, desse olhar através da museologia, dessa outra museologia?
50MXC – A sala de aula é um lugar privilegiado porque é quando o diálogo é possível com pessoas que estão em formação, querem aprender, e têm uma abertura porque estão buscando algo que não têm. A sala de aula estabelece-se dentro dessa relação entre professor e alunos, entendendo-se o professor como alguém que tem uma visão, uma experiência, algo a compartilhar e muito a aprender também!
51Eu valorizo muito a sala de aula para traçar um caminho curatorial. E qual é a sua principal linha condutora? Não adianta só falar do presente e não falar do passado. É preciso mostrar as bases da museologia. São várias bases, vários processos e pensamentos. Há várias particularidades, mas a perspetiva tem que ser sempre do hoje, olhando para diferentes contextos e entrando em outras geopolíticas que levem ao entendimento que a museologia parte de um lugar social e cultural.
52O ponto de vista é sempre atual e a pauta da decolonização é inevitável, não tem como uma formação profissional de um mestrado, de um doutorado, de uma graduação não reconhecer que existe uma pauta atual, que existem políticas culturais. Inclusive que a sociedade civil está cada vez mais avançando nos museus e que isso é muito bom. Aliás, é isso que vai mudar os museus e a museologia! É o avanço da sociedade civil. Então, a sala de aula é um lugar muito privilegiado de troca e de discussão, sobretudo, um meio para levar um pensamento que fique na formação das pessoas. E dali para a frente cada um vai escolher o seu rumo, as suas possibilidades. E vai entender que tem um enorme desafio trabalhar na museologia porque o museu é um microcosmo social, político, cultural, económico.
53Essa formação não é fácil, mas temos que enfrentá-la sempre com o pé no presente, sobretudo, mas com o horizonte nesse museu que projetamos, mas que não existe. Um museu que está nos nossos sonhos, nos nossos anseios, nas nossas expetativas. O que se consegue fazer hoje são algumas experimentações para ultrapassar aquilo que se nega, porque está ultrapassado, e é algo do passado e que tem de ficar no passado, embora exista hoje. No fundo, o que se faz hoje é uma tentativa de negação e, ao mesmo tempo, de projeção e experimentação porque esse museu que queremos não existe e o museu que existe não queremos.
54Então, estamos exatamente nesse meio caminho, nesse trânsito, nessa transição. É o que chamo de “metodologia de transição” onde temos todas as possibilidades ou, se não, temos que buscar as possibilidades de fazer experimentações. São experimentações sociais envolvendo a sociedade civil. Fazemos experimentações sociais em museus, em comunidades que a nova museologia fazia, mas agora são novas experimentações dentro de estruturas tradicionais sempre buscando processos colaborativos participativos e compartilhados. É essa experimentação que temos que privilegiar na formação.
55Quando visito um museu indígena, eu tenho oportunidade de receber uma aula diferente, melhor e com poucos recursos porque os indígenas trabalham com pouquíssimos recursos. E daí fica a minha pergunta, se eles conseguem fazer bem melhor, porque nós não conseguimos? Como é que se pode levar esse espírito para os nossos museus, tão cheio de amarras, em que nada pode e não há dinheiro para nada? Visitar museus indígenas é uma outra formação porque dá para fazer o que ainda não se sabe fazer: dá para investir mais nas pessoas, no ser humano, na oralidade, nas emoções, nos sentimentos sem abandonar a razão, porque parece que para ter ciência não pode ter emoção e sentimentos. E dá para fazer tudo isso muito bem feito, sem abandonar nada na verdade e por baixo custo.
56Para mim, isso é uma enorme aprendizagem para que eu comece a olhar as coisas ao meu redor de um jeito diferente, vendo outras possibilidades que eu não tinha pensado antes. Mas, também, precisamos aprender a formar outros profissionais com outras equipes porque falamos em processos colaborativos entre profissionais de museus e grupos sociais. Temos que aprender a fazer colaboração dentro da nossa própria instituição com o colega de trabalho, usando uma estratégia política de organização de equipe. É preciso entender que a equipe parte de estratégias de organização política, porque senão não se faz política e o museu é um espaço político.
EM e PRM – Marília, muito obrigada por compartilhar connosco a sua generosidade, a sua experiência e o seu pensamento.