Proctor, Maximilien Luc. 2022. “A Classical Taste: A Conversation with Gaëlle Rouard.” MUBI. Julho 22. https://mubi.com/en/notebook/posts/classical-taste-a-conversation-with-gaelle-rouard
Gaëlle Rouard: Escuridão Flamejante [exposição]
Gaëlle Rouard: Escuridão Flamejante. 2023. Exposição patente no Centro de Arte Oliva, São João da Madeira, Portugal, entre 7 de julho e 23 de novembro de 2023. Curadoria de Andreia Magalhães.
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1Gaëlle Rouard (1971, França) é uma das mais reconhecidas autoras do cinema experimental europeu. O seu percurso criativo, iniciado em 1991, distingue-se pela exploração de métodos de processamento químico de película, produção de bandas sonoras e performances ao vivo de projeção, experimentando com as possibilidades do material fílmico, da multiprojeção e do som, na criação de filmes de uma grande plasticidade, hipnotismo e misticismo. As suas criações têm sido apresentadas internacionalmente em festivais de cinema e em espaços artísticos como o Centro Georges Pompidou em Paris, o Festival Internacional de Cinema de Siros, ou o Instituto de Arte Moderna de Brisbane. O seu mais recente filme Darkness, Darkness, Burning Bright (2022), estreado no Festival Internacional de Cinema de Roterdão, foi galardoado em vários festivais, com destaque para o prémio do Festival Internacional de Cinema de Istambul e o prémio da Competição Experimental do Curtas de Vila do Conde no ano de 2022, e Melhor Banda Sonora do Festival de Cinema Ann Arbor em 2023, um dos mais importantes festivais norte-americanos de cinema experimental.
2Em Gaëlle Rouard: Escuridão Flamejante, patente no Centro de Arte Oliva, de 7 de julho a 19 de novembro de 2023, com curadoria de Andreia Magalhães, a cineasta transpõe o seu mais recente filme Darkness, Darkness, Burning Bright (2022), dividido em duas partes, para o espaço expositivo, num díptico-instalação, exibindo pela primeira vez uma obra sua lado a lado à exibição inédita de uma dezena de fotogramas criados entre 2020 e 2023, revelando novamente uma diferente perspetiva acerca do seu trabalho.
Fig. 1 – Vista da exposição Gaëlle Rouard: Escuridão Flamejante no Centro de Arte Oliva, 2023
Fotografia de Dinis Santos © Centro de Arte Oliva
3Na passagem do cinema para a galeria, fenómeno visível e significativo, que se foi intensificando ao longo dos últimos 30 anos, devido ao aumento de exposições de cineastas em galerias, museus e bienais de arte, os realizadores têm pensado e criado outras formas de exibir os seus filmes. Reformulando as regras convencionadas da sala de cinema, as produções são muitas vezes apresentadas em formato instalação, com multiprojeção, experimentação da variação na duração e edição das imagens, ou na exploração da banda sonora para lá do imagético, alterando radicalmente a experiência do espectador. Estas manifestações, tão frequentes na arte contemporânea, permitem a análise e a reflexão sobre as implicações da descontextualização de um filme, como o de Gaëlle Rouard, para o espaço expositivo.
4Darkness, Darkness, Burning Bright (2022), formado por Prelude e Oraison (Prelúdio e Oração), é uma mediação entre paisagem e morte, numa série de planos hipnotizantes, em que vegetação e animais estão envoltos em tons noturnos, rúbeos e crepusculares, por entre chuva, arco-íris e luzes estrelares, numa plasticidade onírica, aurática e misteriosa, enfatizada por sons de sinos, vento, relógios e música obscura, reverberando uma certa melancolia, inquietude e misticismo.
Fig. 2 – Vista da exposição Gaëlle Rouard: Escuridão Flamejante no Centro de Arte Oliva, 2023
Fotografia de Dinis Santos © Centro de Arte Oliva
5Filmado em 16mm, foi realizado, editado e processado ao longo de três anos, seguindo-se nove meses de criação da banda sonora, em que cada plano é meticulosamente pensado, numa sobreposição de imagens fixas e em movimento, com uma montagem em diversos ritmos, desde a câmara lenta ao fast-forward, num crescendo de elementos pictóricos. Segundo a cineasta, em entrevista (2023) realizada no âmbito deste texto, uma das suas maiores inspirações são as pinturas dos grandes mestres holandeses do século XVII.
6A forma como trabalha plasticamente os seus filmes recorda, não só as cenas pictóricas invernais de Hendrick Avercamp (1585-1634), em que a linha entre céu e terra é suavemente esbatida numa fina névoa, ou o contraste claro/escuro das pinturas de Rembrandt (1606-1669) e a luminância quente da luz incidente, mas também a magnificência, dinamismo e simbolismo dos céus de Jacob van Ruisdael (1629-1682), que se destacam na paisagem, preenchendo quase a totalidade da tela, repletos de nuvens carregadas, flamejantes e soturnas, onde também encontramos o arco-íris. A autora já havia dito que se considera uma pintora (Proctor 2022). Todavia, as suas influências também partem do cinema experimental, como por exemplo: o modo como o cineasta francês Patrick Bokanowski (n. 1943), conhecido por L'ange (1982), desenvolve diferentes truques óticos e de processamento de película em filmes com animações e imagens reais, explorando o mundo dos sonhos e da subjetividade; os filmes de Yuri Norstein (n. 1941), entre os quais Hedgehog in the Fog (1975), em que o realizador russo, através da criação de uma nova técnica de dar a desenhos a ilusão de movimento, juntamente com planos da realidade, envolvendo várias camadas de vidro, adapta um conto infantil em que cada momento da jornada do herói é envolto numa espessa camada de nevoeiro, por entre mochos, criaturas marinhas e cavalos brancos; ou ainda as películas de Sergei Parajanov (1924-1990), como a obra de culto A Cor da Romã (1969), em que nos é contada a biografia do poeta arménio Sayat Nova através dos seus poemas e pensamentos, numa série de tableux vivants (pinturas vivas) riquíssimos em cor, simbolismo e mitologia.
7No texto que acompanha a exposição de Gaëlle Rouard, lemos:
Cada plano de Darkness, Darkness, Burning Bright é cuidadosamente composto e resulta da combinação de imagens fixas com imagens em movimento, tendo sido já descrito como uma sucessão de tableux vivants (quadros vivos), onde os efeitos visuais “conferem uma luminosidade alienígena ao mundo natural”.
8O modo como a cineasta explora as imagens em movimento, como se fossem pinturas, numa montagem poética, sem narrativa, com uma banda sonora eclética, criada especialmente para o efeito, resultou da espontaneidade do convite da curadora, Andreia Magalhães, à cineasta, para fazer uma exposição num contexto das artes visuais.
9No Centro de Arte Oliva, a montagem do projeto expositivo foi trabalhada em constante diálogo entre a curadora e a artista. Darkness, Darkness, Burning Bright foi exposto numa instalação em dois ecrãs lado a lado, num díptico recordando os retábulos religiosos, com a projeção simultânea de Prelude e Oraison. O filme foi convertido para digital, de modo a poder ser visto em loop, a sala foi transformada numa blackbox, para se conseguir ver melhor as cores, tonalidades e contrastes das imagens em movimento, e a montagem teve de ser ligeiramente alterada. De acordo com Rouard, em entrevista (2023) concedida no contexto desta recensão:
Inicialmente queria dividir o filme em duas telas de projeção, instalando-as em duas paredes diferentes, para que o público não pudesse ver as duas partes ao mesmo tempo, mas a Andreia convenceu-me a expor as projeções uma ao lado da outra, e de facto funciona muito bem assim. Tive que adaptar um pouco a montagem, porque a segunda parte é dez minutos mais curta que a primeira, e como queria que a banda sonora de ambas fosse ouvida uma após a outra, tive também que mudar a edição do som na segunda parte.
Fig. 3 – Vista da exposição Gaëlle Rouard: Escuridão Flamejante no Centro de Arte Oliva, 2023
Fotografia de Dinis Santos © Centro de Arte Oliva
10Com a disseminação de imagens em movimento em espaços artísticos contemporâneos, os cineastas têm exibido os seus filmes em diversos formatos: desde a apresentação de projeções em blackbox, a monitores, instalações e projeções monocanal e multicanal. Os filmes podem ainda ser apresentados com outros processos e suportes artísticos, como a fotografia, o texto ou o som, não desvirtuando o sentido da obra no seu todo, mas acrescentando outros valores e significados – e apresentando, por vezes, outras práticas artísticas que os cineastas desenvolvem paralelamente à sua atividade principal. No caso de Gaëlle Rouard, foi exposta sobre três mesas uma série de fotogramas criada recentemente, em que colocando objetos sobre papel fotográfico, recorrendo apenas à luz, a emulsões químicas, a desenhos, ou a colagens, são reveladas imagens únicas sem a utilização de câmara fotográfica. A cineasta esclarece, na mesma entrevista anteriormente citada, que: «A Andreia propôs que eu os apresentasse. Costumo viajar com os fotogramas para os vender depois das projeções. Não há relação com Darkness, Darkness, Burning Bright, é algo diferente. Também gosto de fazer imagens que sejam objetos».
11Deste modo, Gaëlle Rouard explora o processamento químico em composições abstratas, mas também em desenhos e narrações de pequenas histórias. Tal como nos filmes, a coloração é em tons soturnos e dourados, com paisagens oníricas e simbólicas, com a presença de animais e elementos naturais tornados místicos, como o cão, o cavalo, ou a lua, numa coerência temática, estética e estilística.
Fig. 4 – Vista da exposição Gaëlle Rouard: Escuridão Flamejante no Centro de Arte Oliva, 2023
Fotografia de Dinis Santos © Centro de Arte Oliva
Fig. 5 – Vista da exposição Gaëlle Rouard: Escuridão Flamejante no Centro de Arte Oliva, 2023
Fotografia de Dinis Santos © Centro de Arte Oliva
12Gaëlle Rouard: Escuridão Flamejante distingue-se por demonstrar uma perspetiva diferente do trabalho da realizadora, enfatizando a sua prática enquanto artista plástica e revelando outras interpretações face à sua produção. Ao mesmo tempo, a exposição convoca questionamentos sobre o pensamento e práticas curatoriais, sobretudo relacionados com a alteração da experiência do espetador perante a obra: ele pode mover-se pelo espaço, interromper o visionamento, assistir apenas a uma parte, ou ao todo, apanhar a projeção a meio, ou no fim, vendo apenas a primeira parte ou a segunda, fazendo a sua própria montagem das imagens em movimento, mudando a sua perceção da duração do filme.
Índice das ilustrações
Legenda | Fig. 1 – Vista da exposição Gaëlle Rouard: Escuridão Flamejante no Centro de Arte Oliva, 2023 |
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Créditos | Fotografia de Dinis Santos © Centro de Arte Oliva |
URL | http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/midas/docannexe/image/5014/img-1.jpg |
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Legenda | Fig. 2 – Vista da exposição Gaëlle Rouard: Escuridão Flamejante no Centro de Arte Oliva, 2023 |
Créditos | Fotografia de Dinis Santos © Centro de Arte Oliva |
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Legenda | Fig. 3 – Vista da exposição Gaëlle Rouard: Escuridão Flamejante no Centro de Arte Oliva, 2023 |
Créditos | Fotografia de Dinis Santos © Centro de Arte Oliva |
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Legenda | Fig. 4 – Vista da exposição Gaëlle Rouard: Escuridão Flamejante no Centro de Arte Oliva, 2023 |
Créditos | Fotografia de Dinis Santos © Centro de Arte Oliva |
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Legenda | Fig. 5 – Vista da exposição Gaëlle Rouard: Escuridão Flamejante no Centro de Arte Oliva, 2023 |
Créditos | Fotografia de Dinis Santos © Centro de Arte Oliva |
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Para citar este artigo
Referência eletrónica
Ana Isabel Moreira Martins, «Gaëlle Rouard: Escuridão Flamejante [exposição]», MIDAS [Online], 18 | 2024, posto online no dia 01 abril 2024, consultado o 05 outubro 2024. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/midas/5014; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/midas.5014
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