Art/archaeology encourages the use of work (thus created) to disrupt existing discussions of and approaches to social and political challenges of our times. (Art/archaeology 2023, s/p)
- 1 O presente artigo teve o apoio dos Fundos Nacionais através da Fundação para a Ciência e a Tecnolog (...)
1Em 1956, Vere Gordon Childe defendeu que os dados arqueológicos são constituídos por todas as alterações no mundo material resultantes da ação humana (Childe 1956).1 Se esse conjunto constitui o que se designa de “testemunho arqueológico”, para aquele autor, todos os dados arqueológicos compõem expressões de pensamentos e de finalidades humanas diferenciadas da filatelia ou de uma coleção de arte. Encaramos esta definição do termo “artefacto” como uma primeira camada de solo humoso da arqueologia enquanto disciplina das ciências sociais e humanas. À medida que formos discutindo neste artigo os nossos referentes teóricos e as hipóteses que fundamentam a nossa abordagem, deparar-nos-emos com um palimpsesto de realidades arqueológicas e artísticas que compõem, em ofício, uma nova cartografia de estudos.
2Ao longo dos últimos anos temos vindo a observar como a arqueologia procura complementar os seus protocolos e modos de produção através da ligação a outras áreas, como é o caso da prática de arte/arqueologia.
3Em 2017, o arqueólogo Doug Bailey veio defender que a colaboração entre as artes e a arqueologia deveria passar pela criação de um novo tipo de trabalho fora dos limites académicos, da arqueologia interpretativa ou de projetos de campo (nos quais se incluem a prospeção e a escavação arqueológica). Para este autor, dever-se-ia pensar nesse novo tipo de trabalho como algo com impacto na vida das sociedades contemporâneas. Propôs, então, a noção de arte/arqueologia (Bailey 2017) para alcançar o núcleo da mudança da perceção social contemporânea; seria como um método com efeitos na ação legislativa do século XXI, abordando noções de conflito político, de avanço das comunidades e levantando questões sobre independências e autonomias, assim como sobre exclusões e alienações baseadas na idade, género ou etnia.
4Muitos têm sido os arqueólogos que, desde 2000, procuram formas inovadoras de interpretar a própria disciplina. Como exemplo, refira-se a obra Theatre/Archaeology de Mike Pearson e de Michael Shanks (2001), que surgiu com uma postura desafiadora às práticas disciplinares e às fronteiras intelectuais das mesmas. Esta obra reuniu propostas inovadoras para as teorias arqueológicas e da performance, gerando estruturas metodológicas provocatórias. Ou seja, para estes autores, a arqueologia não seria apenas um campo disciplinar, mas uma aparência do nosso tecido social – o “arqueológico” – uma referência à entropia social e cultural, à perda e à ruína. Neste contexto defende-se também que a arqueologia deve ser inclusiva na abordagem poética e metafórica, ser capaz de contar histórias, de criar significados e de evocar emoções: «This, I propose, is an archaeological poetics, the work of poetry» (Pearson e Shanks 2001, 43).
5Se a arqueologia é entendida como uma forma de interpretação, os arqueólogos devem ser conscientes das limitações e das possibilidades da sua própria interpretação. Os autores propõem, então, que a arqueologia possa ser entendida como uma forma de performance, em que os objetos arqueológicos são elementos cénicos e os arqueólogos são intérpretes que criam essas performances (Pearson e Shanks 2001). Apesar da filiação da disciplina da arqueologia com a da história, a sua temporalidade não é primariamente linear, do passado ao presente. Pelo contrário, esta apresenta-se como turbulenta, passado e presente percolando na construção de modos de vida (Pearson e Shanks 2001).
6Procuramos, assim, explorar a curadoria em arte/arqueologia e entender de que formas poderá esta prática contribuir para a investigação científica. Da mesma forma, procurar novos formatos de divulgação de conhecimento, entendendo que a arqueologia e a arte contemporânea podem atuar em conjunto para a produção de novas interações com o passado. Para tal, será necessário percorrer os limites disciplinares da arqueologia e das artes com um olhar reflexivo e especulativo. Por exemplo, a obra Entangled, de Ian Hodder (2012), foi além dos limites da cultura material e da teoria social da arqueologia e incorporou coisas mecânicas e moleculares nas suas próprias temporalidades e interações entre si. O arqueólogo elevou, assim, a natureza objetual das coisas – não para regressar ao materialismo e à determinação ecológica, mas para procurar uma explicação mais completa na qual “coisas” e pessoas heterogéneas estão emaranhadas entre si. Para o autor, o entrelaçamento (enquanto mistura heterogénea de humanos e “coisas”, potencialidades e constrangimentos, ideias e tecnologias) evita os dualismos entre subjetivo/objetivo e material/ideal.
7Alfredo González-Ruibal (2008) apontou a necessidade de uma nova retórica arqueológica que expusesse o que a “máquina de poder supermoderna” não se interessava em expor: a devastação de seres humanos e a destruição de coisas. O autor sugeriu a produção artística a partir do registo arqueológico de ruínas industriais, de campos de batalha, de campos de concentração, entre outros (González-Ruibal 2008). Inspirado nas obras de Aby Warburg e de Walter Benjamin na antropologia da arte, Laurent Olivier (2011) veio defender que a arqueologia não estuda o passado, mas sim registos materiais do passado que resistiram até ao presente.
8Encaramos estas quatro obras – Theatre/Archaeology (Pearson e Shanks 2001), Entangled (Hodder 2012), The Dark Abyss of Time (Olivier 2011) e Time to Destroy: An Archaeology of Supermodernity (González-Ruibal 2008) – como exemplo dos pilares fundadores para uma nova disciplina capaz de agregar artistas e arqueólogos no desenvolvimento de novos projetos.
9Para Maria Conceição Lopes (2005), a paisagem estudada pela arqueologia apresentar-se-á como um sistema complexo e de interações dinâmicas entre elementos físicos e sociais. Isto é, a paisagem entende-se como não pensada e de interações múltiplas, nem sempre produzidas por factos históricos. Segundo a arqueóloga, este “objeto de estudo” exige novas bases teóricas e novos utensílios de trabalho que libertem a disciplina do “espartilho dos estereótipos”, possibilitando novas leituras e definições. Defendendo uma arqueologia que exuma fragmentos do passado depositados no presente, Olivier (2011) questiona também a tentação arqueológica pelo “tempo linear” histórico e cultural. Para o autor, esses conceitos de tempo e origens sequenciais estabelecem narrativas. Defende, assim, que o tempo arqueológico, como na memória humana, deverá ser multidimensional, envolvendo múltiplos quadros de tempo sobrepostos entre si (Olivier 2011). Esta viragem temporal defende que a arqueologia localiza os fragmentos fundamentalmente incompletos e truncados do passado, não atrás do nosso presente, mas adiante, como uma memória que enfatiza o seu entrelaçamento com a arqueologia, e não o contrário.
10Do lado das artes, encontramos artistas que se inspiram na arqueologia para o desenvolvimento do seu trabalho conceptual, como é exemplo o processo criativo da artista e investigadora Sara Navarro (fig. 1); outros/as cujas criações são alvo de especulação arqueológica, tal como demonstrou o arqueólogo Cornelius Holtorf e o artista Martin Kunze, no seu projeto Preserved for the Future, sobre a criatividade existente nos processos de preservação do registo arqueológico (Moreira, Bailey e Navarro 2020). Assim, desde 2020, a arte/arqueologia tem sido descrita como prática de justaposição e desarticulação que procura fundamentos de compreensão de registos arqueológicos, desde a antiguidade até à contemporaneidade, pelo processo criativo (Bailey 2018; Bailey, Navarro e Moreira 2020).
Fig. 1 – Exposição Formas de Terra e Fogo (2012), com a escultura da artista Sara Navarro, no Museu de Portimão
© Sara Navarro
11Entendemos este recente ofício como um meio para a promoção de diálogos que vão além do cognitivo, ativando registos sensoriais, emocionais e afetivos. São as presenças e as ausências de perspetivas sobre locais, espaços, populações e suas arquiteturas edificadas e/ou do simbólico que traduzir-se-ão em narrativas várias. Isto é, a partir da curadoria em arte/arqueologia, será possível estudar e compreender as ínfimas relações entre “sujeito e objeto”, assim como questionar as noções de belo, de grotesco e até mesmo a morte nas/das narrativas históricas:
A arqueologia compreende, também ela, que não só o passado é sempre uma construção mental do presente, mas que não há nunca apenas um passado em cada presente. Há o passado “oficial” (o dos manuais de história, o das comemorações, o que circula nos discursos políticos e legaliza as opções dos decisores) e há o passado que cada comunidade constrói, o passado plural (…) de uma sociedade, necessariamente heterogénea, mas cuja heterogeneidade se torna cada vez mais visível, como um dos elementos componentes da tal “aldeia global”. (Jorge e Jorge 1998, 35)
12A (forma de) apresentação do passado já não se evidencia apenas como uma vontade governativa, mas também por manipulações políticas de arqueólogos, uma vez que todos os textos da arqueologia representam o mundo subjetivo de hoje no passado. Não é de surpreender, então, que seja cada vez mais discutido o papel dos museus nestas narrativas – porque a teoria e a prática estão integralmente ligadas.
13Se a arte/arqueologia é um chamamento para um espaço indefinido que vai para além dos limites da arqueologia e da arte, e onde existe espaço para, em comunidade heterogénea, falar, pensar, discutir e, acima de tudo, pôr em prática processos criativos que vão além do esperado dentro da arqueologia, questionamos o papel dos museus para dar resposta a esse mesmo apelo. No ano de 2021 foi inaugurado o Museu Ibérico de Arqueologia e Arte de Abrantes, espaço que dispõe de uma coleção e exposição permanente de artefactos arqueológicos e mais cinco salas destinadas a exposições temporárias, incluindo algumas exposições de arte contemporânea. Apesar de ser apelativa a conjunção de áreas, vemos esta solução organizacional e programática como exemplo do que não vai de encontro com o ofício de arte/arqueologia.
14Para exemplificar de que forma o espaço museal importará para a arte/arqueologia, recuamos até 2020. Entre maio e setembro desse ano, o Museu Internacional de Escultura Contemporânea de Santo Tirso abriu ao público a exposição intitulada Creative (Un)Makings: Disruptions in Art/Archaeology. Com a curadoria de Álvaro Moreira, Doug Bailey e Sara Navarro, contou com três instalações: Releasing the Archive, de Doug Bailey; Beyond Reconstruction, de Sara Navarro; e Ineligible, um conjunto de múltiplas exibições de diferentes agentes que desenvolveram o seu processo criativo a partir de artefactos resultantes de uma mesma escavação em San Francisco (EUA). A exposição contou ainda com um programa de conferências aberto a qualquer público interessado e uma atuação de performance-arqueologia da arqueóloga e performer Suvi Tuominen. Este evento terá sido, no nosso entender, a primeira grande referência em Portugal para a integração desta nova metodologia em espaço de museu.
15A arte/arqueologia aparenta, como vimos, oferecer uma metodologia que relaciona aspetos não relacionáveis em disciplinas de origem que, por serem pouco evidentes, carecem de mediação no momento de exposição pública. Estes projetos artísticos articulam e evidenciam pós-materiais que, sendo ambíguos, expandem as possibilidades de interpretação e desafiam a sua fixação em tipos, arquétipos ou categorias do iluminismo. Pela projeção de exposições antológicas que englobam a pintura, a fotografia, o vídeo e a performance, a curadoria em arte/arqueologia deverá responder às agendas que envolvam questões de democratização e de cidadania, por sua vez inerentes ao crescimento de sociedades do conhecimento.
16Exploramos, assim, as ferramentas que a arte/arqueologia nos oferece, ativando-as por processos curatoriais que propomos e designamos de “proto-escavação” e “pós-escavação” (fig. 2). Estes são, simultaneamente, processos de investigação e estudo da própria prática e teoria arqueológica. Para tal, utilizamos dois casos de estudo, nomeadamente os povoados proto-históricos de Ovil (Espinho) e de Romariz (Santa Maria da Feira), onde as especulações artísticas e arqueológicas são aplicadas para uma ampla interpretação em termos contemporâneos.
Fig. 2 – Diagrama conceptual e sincrónico dos processos em curso na curadoria em arte/arqueologia
Pedro da Silva e Inês Moreira
Reavaliando o que é já classificado como património, estes campos começam a imaginar e a indicar novos valores, usos, interpretações e a considerar as heranças produzidas pela cultura contemporânea: o abandono, a poluição, o lixo, as ecologias adaptadas a terrenos perturbados pela presença humana, o surgimento de novos padrões, materiais e objetos relevantes na cultura de massas, entre outros. (Duarte e Moreira, no prelo)
17A arqueologia desenvolveu-se como uma disciplina dedicada ao passado distante, não apenas para ajudar a estabelecer uma antiguidade da humanidade, mas também para desvendar histórias antigas, há muito enterradas e antes inimagináveis. Porém, desde a década de 1960, essa atitude perante a história começou a alterar-se lentamente, sendo que arqueologia não é mais considerada como uma disciplina definida por balizas temporais (Buchli e Lucas 2001).
18A arqueologia da cultura material moderna ou contemporânea surgiu durante essa reviravolta, manifestando-se durante a década de 1970 com o movimento de contracultura conhecido por Potencial Humano (Campos 2006). A adesão de jovens àquele movimento seria regida pela crença de que estaria em marcha um processo de “desumanização do ser humano”, cujas políticas repressivas estabelecidas por uma elite, muitas vezes baseadas na política do medo, seriam perpetuadas pelas próprias instituições sociais (Silva 2022b). Este discurso de protesto foi partilhado no âmbito artístico ao longo das décadas seguintes, transmitindo mensagens libertárias que teriam, por sua vez, um impacto na ciência, incluindo na arqueologia (Hodder 1982; Earle e Preucel 1987), dando origem ao que se convencionou designar de “arqueologia pós-processual”. Se a arqueologia não se traduz num conhecimento absoluto do passado, poderá esta servir como forma de resistência à autoridade política e às pretensões elitistas contemporâneas?
19Em 2021 concretizou-se o projeto cultural “Escola dos Confins e de Nenhures”, na Praça Marquês do Pombal, no Porto (Teatro Municipal do Porto 2021). A sua premissa consistiu em convidar coletivos de artistas e agentes culturais da cidade do Porto para darem a conhecer as fronteiras físicas ou metafóricas da cidade. A “Escola” foi concebida como plataforma de análise e reflexão sobre o contexto sociocultural da cidade do Porto, como um local de cruzamento de diferentes freguesias, comunidades e percursos (Costa, Azevedo e Moreira 2021). Nessa colaboração entre artistas, criativos e cidadãos, como foi o caso do coletivo Visões Úteis e o seu Mapa de Interrupções de Campanhã (fig. 3) – um mapa adaptado às realidades demográficas, históricas, culturais e sociais locais, o projeto da “Escola” veio reforçar o diálogo crítico através de mapeamentos entre a criação artística e a cidade (Costa, Azevedo e Moreira 2021).
Fig. 3 – Mapa das Interrupções de Campanhã (2021), do Coletivo Visões Úteis. Mapeamento crítico criado para o projeto curatorial “Escola dos Confins e de Nenhures”
© Coletivo Visões Úteis
20Este projeto decorreu enquanto palimpsesto vivo que acumulou ruas e sentidos, edifícios e memórias, mas que também gerou fronteiras, barreiras e interrupções (Costa, Azevedo e Moreira 2021). A “Escola” tornou-se numa plataforma física de cartografia geopolítica e sociocultural situada na praça e nas suas ativações, através de programas públicos e da publicação Escola dos Confins e de Nenhures (2021). A dimensão arqueológica está também presente pela incessante procura de caminhos, percursos e locais esquecidos e que seriam revelados pelas diversas vozes dos seus participantes (Ingold 2011). O resultado do projeto “Escola dos Confins e de Nenhures” foi, na perspetiva da arqueologia, explorar essas “coisas”: as paisagens, os lugares, as próprias temporalidades, expondo as relações entre homem-coisa pela arte contemporânea. O arqueólogo Ian Hodder (2012) veio relembrar que os seres humanos são particularmente dependentes pelo facto dos seus sistemas nervosos incorporados precisarem de ser ativados por estímulos culturais e ambientais. Nesse emaranhado entre humanos e “coisas”, a passagem dos objetos para “coisas” é comparável às mudanças dos discursos sobre o ambiente para a paisagem, do espaço para o lugar, do tempo para a temporalidade (Hodder 2012).
21A diversidade de perceções sobre a cultura material, esboçada na construção de múltiplas relações entre pessoas e “coisas”, amplia o escopo da arte/arqueologia. O emprego de estratégias curatoriais críticas e situadas pode resultar em novas leituras de contextos específicos, assim como ampliar diferentes perspetivas in situ (Moreira e Coelho 2023). Isto é, quando aplicado em campo, o ofício curatorial pode contribuir para criar novas narrativas de sítios. Simultaneamente, este fornece as bases para novos projetos culturais durante processos de transição em lugares cujas realidades sofrem pressões exteriores (imobiliárias, extração, alterações climáticas, entre outros). Para compreender, importará considerar a cidade, o território e a paisagem enquanto entidades com processos próprios de transição, incluindo a própria leitura arqueológica.
22A curadoria em arte/arqueologia envolve, desde logo, este trabalho de campo, em proto-escavação e/ou pós-escavação. Opera, assim, para além dos limites de museus e galerias, numa relação com lugares em processo de transição, tendo a possibilidade de formar plataformas temporárias que reúnem diversos agentes em novos projetos sobre sítios arqueológicos ou sítios históricos.
23Os sítios arqueológicos tornam-se, desde logo, centrais para abordagens e prospeções curatoriais situadas que se envolvem com contextos frágeis, especialmente se considerarmos esses sítios instáveis, em processos de transformação, decadência ou abandono. Este trabalho de acompanhamento de arqueólogos e/ou artistas explora processos passados e presentes, considerando diferentes estilos artísticos, performativos e efémeros, práticos – alguns orientados para a produção de conhecimento, outros para a sua descrição e transmissão.
24Um arquivo de pós-materialidades – que recolhe, através de trabalho de campo, exemplares e fragmentos de locais contemporâneos desaparecidos – foi já discutido por Inês Moreira (2017; 2020), após o encontro e contacto com espaços e vestígios pós-industriais que ocorreram através do trabalho artístico de campo realizado durante projetos curatoriais. Nesses lugares, os edifícios originais desapareceram, tornando-se amontoados de escombros, sucatas ou estruturas irreconhecíveis, dispostos a tornarem-se em outras coisas, seja em novos edifícios ou memoriais do passado. Esses pós-materiais, são materiais encontrados que perderam as suas qualidades construtivas-quantitativas de função, mas que encapsulam os processos tecno-culturais que os tornaram absolutos.
25Milhões de fragmentos existentes são testemunhos de construções passadas, da severa transformação da paisagem e das muitas matérias-primas que moldaram a indústria: parte material de construção, parte resíduos, na maioria das vezes parciais e desprovidos da função anterior; são a prova reveladora de processos de decadência e de desconstrução que tendem a ser deixados de lado, tanto no campo do conhecimento da construção quanto no da preservação (2017). Não ressignificando os materiais/objetos, a coleção (carregada de presenças passadas) ressignificou (e habitou) o campo, rasgando-o física e materialmente.
26Partindo da premissa de que os territórios não são estáveis e que a curadoria e as práticas artísticas podem conduzir à transformação dos lugares, surgiu a plataforma de cultura e de pensamento crítico “Práticas Pós-Nostálgicas”, orientada por Inês Moreira e Aneta Szylak. Iniciado em 2019, o programa consistiu em conferências, masterclasses, caminhadas e sessões de trabalho em grupo. Nesse mesmo ano, curadores e artistas, arquitetos, ativistas e a comunidade local reuniram-se para uma experiência curatorial sobre uma área pós-industrial na cidade do Porto, o Freixo (Moreira e Coelho 2022). Foram levantadas as seguintes questões: em que medida a ação curatorial e cultural em antigos espaços industriais poderá contribuir para ressignificar as transformações da cidade? De que forma podem os processos artísticos permitir novas expectativas culturais e alterar narrativas históricas da cidade?
27Para além da dimensão económica dominante que versa o espaço urbano, esta plataforma multidisciplinar agregou práticas artísticas e curatoriais contemporâneas que se articularam com histórias, arquiteturas, materialidades e memórias coletivas em desaparecimento, abrindo a possibilidade da reinscrição tática de novas narrativas, imagens e experiências no processo de transformação urbana (Moreira e Coelho 2022). Em suma, essa alteridade espacial é produzida por uma tomada de consciência, por sua vez extrapolada pela forma violenta que a arquitetura e a construção são realizadas pela improdutividade e pela fala (Moreira 2012).
28Apontamos como campos da arte/arqueologia: as ambiências, as práticas sociais e as vidas daqueles presentes durante as construções de locais; as incertezas que parecem controlar os modos pelos quais as diferentes sociedades entendem a sua forma de ser e de estar no mundo; as disparidades entre aquilo que sabemos, cremos ou experimentamos quando pensamos sobre o tempo que é arqueológico. Assim, por um trabalho curatorial em arte/arqueologia, importará pensar e interpretar contextos performativos em que, num determinado espaço e tempo, uma ou várias comunidades dão lugar a eventos e a sequências de comportamentos observáveis, sobrepostas numa equação de realidades múltiplas entre a arqueologia e a arte contemporânea (Silva 2021).
29Em 1999 foi lançada a obra Mark Dion: Archaeology. Nela, o arqueólogo Colin Renfrew (1999) questionou-se sobre o que é ciência e sobre o que é arte contemporânea. Se a arqueologia nasceu da exibição, da paixão pelo colecionismo, os arqueólogos são aqueles que sondam superfícies, coletando e registando cuidadosamente os fragmentos de coisas antigas, colocando-as em exibição museal. Concluiu Renfrew que, se esta ciência é definida como o estudo do passado humano como inferido dos restos materiais sobreviventes na contemporaneidade, o artista Mark Dion não ilustrou apenas o passado de Londres a partir de artefactos encontrados na margem do rio Tamisa: tal como os arqueólogos da modernidade, este artista estabeleceu uma conexão pessoal e íntima com a história passada da cidade e do rio, refletindo sobre ela e sobre si próprio (Renfrew 1999).
30Este projeto internacional é um importante ponto de referência para o conceito curatorial da exposição Tate Thames Dig: Beachcombing London's Foreshore, comissionada pela Tate Modern em 1999. Em suma, no verão de 1999, uma equipa de arqueólogos realizou uma campanha de escavações nas margens do rio de Londres, cujos artefactos foram utilizados para este projeto artístico. Entre outros artefactos, foram recolhidos cartões de crédito, baterias e telemóveis. Depois de classificados, foram limpos e documentados para depois serem apresentados em vitrines num “armário de curiosidades”.
31Explorando questões da arqueologia, o artista Mark Dion optou por investigar os vestígios materiais do passado e as implicações disso para o presente numa multiplicidade de níveis interpretativos e especulativos, fazendo do rio Tamisa o objeto da sua investigação. Durante a primeira etapa do projeto, cada trabalhador de campo preenchia uma caixa não classificada com achados. Esse material seria depois limpo de toda a lama durante a lavagem e os objetos classificados em categorias. À medida que estes eram separados por tipologias amplas (cerâmica, vidro, osso, couro, conchas, orgânico, plástico, metal), o artista e os arqueólogos organizavam as diferentes espécies de artefactos de acordo com subdivisões amplamente sugeridas por uma tipografia de objetos. Essa taxonomia artefactual serviria de base para o design e para a organização do armário a ser exposto. Nessa etapa, Dion examinou o material, identificando os itens para a sua exposição: a natureza democrática da coleção proporcionou à equipa uma visão microcósmica da atividade natural e humana nas margens do Tamisa.
32Para a curadora Emi Fontana (1999), o trabalho de Mark Dion relaciona-se com a ciência arqueológica e com a ficção. A “presença”, para a autora, parece pairar sobre as suas instalações: são coisas, são objetos ou fragmentos que tomam o lugar das pessoas e não hesitam em contar histórias e diferentes versões dos factos. Qualquer projeto de arte/arqueologia poderá então ser encarado como uma prática onde o processo (englobando todo o conjunto de atividades associadas) se torna num artefacto. O processo é, em si mesmo, como uma estratificação, com diferentes níveis para serem encontrados, explorados e estudados em cada contexto (Giannachi, Kaye e Shanks 2012); uma experiência que, na sua fase final, é tanto uma escavação arqueológica como a metodologia e linguagem do próprio projeto de arte/arqueologia.
If archaeology does not reinvent itself and adapt to the 21st century, it will become part of the archaeological record. Perhaps, as the interpretation of a work of art implies invisibility and interpretability will imply invisuality, in archaeology, archaeologists are challenged by the unmistakable temporal dynamics and they plunge into their own political narratives. (Silva 2022a, s/p)
33A arqueologia contemporânea integrou a reflexão e o debate crítico do pós-estruturalismo e passou a considerar, dessa forma, a teoria crítica, a hermenêutica, a fenomenologia e a filosofia realista e pós-positivista. Releva-se, pela arte/arqueologia, uma articulação significante entre arqueologia, arquitetura e arte contemporânea, ao compreendermos as dimensões entre tempo vivenciado e espaço habitado. Isto significa a possibilidade de novas respostas às exigências das próprias ciências na contemporaneidade, sejam elas exatas ou sociais e humanas. Com o imaginário de significações de habitat e a dinâmica de paisagens no tempo, a arte/arqueologia surge como modo de sondar e interrogar as aparências supostamente pré-estabelecidas, as convicções fixadas, os hábitos e os costumes predominantes, se forem entendidos e praticados como exercícios subversivos.
34A escolha de contextos, conjuntos de relações que conferem significados, é inteiramente uma decisão interpretativa, não epistemológica ou metodológica, dependendo de quais são os nossos propósitos e interesses, conscientes de que estes nos pertencem no presente. Assumindo a premissa de que o conhecimento pertence a uma dimensão não-temporal, a interpretabilidade da arte/arqueologia pode oferecer, ainda, respostas aos mais comuns receios dos arqueólogos: poderá o conhecimento arqueológico ser político? A aceitação do presente no conhecimento (objetivo) do passado não abrirá também as portas para a manipulação política do passado?
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35Após vários anos de estudo do sítio arqueológico de castro de Romariz (Santa Maria da Feira), na sua vertente física e virtual (Silva 2022b), o investigador e arqueólogo Pedro da Silva fez uma encomenda ao artista plástico João Gomes Gago.2 Para esse efeito, lançou-lhe o seguinte repto. Face à definição daquela estação arqueológica a partir de objetos de luxo (extrapolados pelo próprio Museu Convento dos Lóios3), que vozes poderiam ser dadas àquelas outras, silenciadas pelo próprio registo arqueológico? Que histórias nos poderiam contar esses fragmentos da chamada “cerâmica comum”?
36Com a revisão do contexto histórico das campanhas arqueológicas realizadas naquele sítio, a especulação artística foi aplicada, resultando, numa primeira etapa, na criação do Diário Arqueológico do Artista (fig. 4).
Fig. 4 – Arqueologia das Presenças, Diário de uma arte/arqueologia, 2021, projeção de transparência de desenho sobre diário gráfico, do artista João Gomes Gago
© João Gomes Gago
37Nessa pós-escavação, a partir desse “diário”, procuraram-se ausências. O passado revelou-se como um livro cujas cores nos esquecemos de ler. De carácter íntimo e cru, este trabalho reflete um debate reflexivo. É como se a busca por um passado tão longínquo, como o proto-histórico, pudesse ser alcançado pela tinta no papel: a construção do redondo transparece o pensamento contemporâneo. O passado proto-histórico foi sentido, por esta arte/arqueologia, como um alucinógeno geométrico, ou arquiteturas de todo o tipo e sentido. O passado neste contexto é um desencadeamento de pensamentos desmesuráveis, ilimitados e eternos e, simultaneamente, um presídio. Por uma ausência, em confinamento no interior das interpretações que nos rodeiam como o mundo contemporâneo – redondo, circular ou semicircular – como uma sombra de um caco cerâmico pousado sob um papel ainda por escavar com a ajuda de um pincel. Numa relação entre o olhar contemporâneo e o solo epistemológico da proto-história, transformou-se visualmente a cerâmica que nos chegou de um passado inatingível, para que esta fosse experienciada de diferentes formas (fig. 5).
Fig. 5 – Arqueologia das Presenças sobre o povoado proto-histórico de Romariz, 2021, do artista João Gomes Gago
© João Gomes Gago
38Hoje é amplamente entendido que o consumo da cultura material pode ser significativo na construção social e na negociação das nossas identidades culturais (Buchli e Lucas 2001). Assim, uma profunda desconstrução e análise da rede de metáforas de design na cultura material poderá resultar numa compreensão mais ampla sobre as relações humanas. Ao abordarem o passado através dos “objetos do quotidiano”, os arqueólogos e os artistas conseguem corrigir o desequilíbrio criado pelas histórias do design. Por outras palavras, a destilação do design historiográfico em volta de grandes nomes, como aqueles “clássicos” associados a uma elite, resultará em histórias palatáveis, mas estas dir-nos-ão pouco sobre o quotidiano das pessoas que viveram naqueles tempos passados (Buchli e Lucas 2001).
39Defendemos que a arte/arqueologia poderá servir o estudo da “arqueologia das presenças”, assumindo uma nova escrita, enquanto metodologia, para dar resposta às ausências da prática e teoria arqueológica sobre sítios institucionalizados e artefactos desconsiderados. A arqueologia das presenças é neste contexto entendida como uma abordagem metodológica que tem como objetivo compreender as relações entre os seres humanos e os objetos no passado. Enfatiza a importância das experiências sensoriais e das representações simbólicas no processo de construção do significado dos objetos arqueológicos. Concentra-se nas dimensões imediatas e interativas da vida quotidiana e das suas performatividades, procurando compreender como eram utilizados e experienciados os objetos no passado. Ou seja, considera como as “coisas” seriam vistas, tocadas, sentidas e incorporadas nas práticas quotidianas e nas representações simbólicas das pessoas que as usavam (Giannachi, Kaye e Shanks 2012).
40Há, no entanto, um problema endémico irremediavelmente associado a ambas as conceções. Trata-se da tensão que surge entre a pesquisa orientada para a descoberta de verdades factuais, como a base forense exigida para as necessidades coletivas de justiça, e aquela dirigida para a colmatação e persecução de resposta a necessidades humanitárias de indivíduos, ou grupos desprivilegiados, para o seio dos quais diferentes articulações de verdade poderão servir fins conflituantes. Isto é, a dimensão cultural inerente ao próprio exercício de interpretação e de exposição de factos pode conduzir a efeitos não previsíveis num paradigma universalista. As intervenções artísticas sugerem, porém, outras possibilidades de implicação ética socialmente criativa em várias arqueologias da arte contemporânea que, assim, sugerem uma reavaliação do significado social do trabalho arqueológico em pleno século XXI.
41No deambular do seu processo, o artista confidenciou com o arqueólogo; construíram uma narrativa poética e interrogaram-se sobre a vida de comunidades que já não existem atualmente. Viajaram, assim, por estes infinitos percursos, no espaço e no tempo; pela mão que representa aqueles que outrora criaram ou projetaram o seu universo. Na própria estação em ruína, o artista João Gomes Gago “escavou” a imaginação do arqueólogo; procurou disputar diferentes reações aos fragmentos que outrora compuseram vasos, tigelas, pratos, coisas que seriam “comuns”. Pelo olhar, pelo toque, por um sentimento de libertação dos constrangimentos que a prática arqueológica implica, foi exposto o seu mundo a partir de um grão de argila. Por uma psicometria arqueológica, este trabalho proporcionou uma sinestesia pela arte contemporânea; foi como “transmogrificar” presenças de uma outra dimensão temporal ou arqueológica, fazendo-as dialogar pela imaginação (fig. 6).
Fig. 6 – Arqueologia das Presenças sobre o povoado proto-histórico de Romariz, 2021, do artista João Gomes Gago
© João Gomes Gago
42Shanks e Tilley (1987) defendem que a arqueologia deverá ser menos guiada por princípios epistemológicos e metodológicos, do que ser concebida como uma prática material no/do presente. Colocando os achados arqueológicos em contexto, esta prática permite abordagens flexíveis e interpretativas sobre os dados arqueológicos, sem acomodar o passado dentro de um quadro metodológico pré-estabelecido. Portanto, significa conceber um conjunto de ferramentas teóricas que nos permitam ser sensíveis ao objeto arqueológico (Shanks e Tilley 1987). Se a quebra ritual de vasos cerâmicos foi praticada por diversas comunidades num passado proto-histórico, a sua fragmentação resultará, desde logo, da tipologia das peças e o uso que delas se fez naquele passado.
43A arqueologia é atenta às (possíveis) fatalidades desses fragmentos: estes podem ter sido abandonados, depositados ou reaproveitados. Perante esta realidade, Raquel Vilaça (2007, 16) veio designá-las de “semanticamente promíscuas”. Para a autora, a invenção da cerâmica foi uma alteração da natureza. A argila, informe e crua, deu lugar ao cultural, com forma irreversível. O registo arqueológico é, assim, deslocado por natureza – os objetos do passado são entendidos enquanto manifestações do presente e, quem os estuda, expõe a sua própria contemporaneidade. Se a arqueologia, enquanto disciplina, começou por ser encarada como um projeto que se concentra em experiências particulares com o passado, a arte/arqueologia dará ferramentas para uma compreensão desse passado que será (i)material, concebendo e envolvendo conceções sociais para uma (re)construção. No teatro da arte/arqueologia, o passado, posto a descoberto, é a peça; arqueólogos e artistas são atores que produzem esta performance. Que significados poderão ser extraídos para a audiência?
44A produção cerâmica do coletivo artístico Pedra no Rim tem-se enquadrado na perspetiva curatorial em arte/arqueologia pelos conteúdos e meios da sua prática artística. Como na arqueologia, aprendemos a voltar a olhar para o chão e entender os artefactos como despojos da vida e da morte, como um reflexo de quem habita hoje os espaços de cidade. Para o coletivo Pedra no Rim esta variedade de despojos é plasmada através de um olhar especulativo e satírico, o drama de um quotidiano cínico e trágico (Costa, Azevedo e Moreira 2021). A título de exemplo, a entrada para o seu estúdio de produção revela despojos de violência e crueldade, de abandono ou morte, reflexos da fatalidade que renascem do pó e do fogo para se constituírem indícios numa narrativa sobre a contemporaneidade da freguesia do Bonfim, no Porto (fig. 7).
Fig. 7 – Mostruário, Coletivo artístico Pedra no Rim, 2022
Fotografia de Rudi Navarro
45Este coletivo artístico foi fundado em 2016, mas só em 2018 começaram a criar objetos cerâmicos a partir de despojos contemporâneos característicos da cidade do Porto. Os Pedra no Rim exploram a fronteira entre o belo e o grotesco, entre a vida e a morte, através de objetos em cerâmica artesanal (edições limitadas). Contam mudanças de uma zona histórica e simbolicamente rica, habitada desde o século XIX, por uma classe operária em convívio com uma classe média burguesa. Com a chegada do século XXI, floresceram as pequenas infraestruturas culturais pelas escolas artísticas do Bonfim e, em simultâneo, a gentrificação e um rápido processo de desenraizamento dos habitantes. É um coletivo que surge na urgência de produzir, invocar e fixar memórias iconográficas de mitologias urbanas, históricas e contemporâneas, como resposta a um processo de rápida transfiguração do bairro onde habitam.
46A partir do trabalho deste coletivo aplicamos a especulação arqueológica – um contínuo questionamento a nível geográfico de despojos que são agora cerâmicos. Assim, possibilitamos a identificação de tipologias e de presenças de artefactos, questionando as malhas sociais e as significações de perda, morte e melancolia. Por sua vez, os artistas questionaram os abandonos da cidade e de suas arquiteturas do simbólico, ou fruto de alguma cegueira – uma passagem para a invisibilidade.
47Temos procurado neste artigo, através de um processo de proto-escavação, entender a dimensão mais íntima e fetichista das relações humanas com os seus artefactos, refletindo sobre os fatalismos associados ao desaparecimento da cerâmica (acidentes, desleixos, sentidos estéticos que se perdem) quando esta é descartada naquele momento que é arqueológico. Se a vontade social de sedentarismo e a sua intensificação foi criada através do “drama” (Hodder 1990), o coletivo Pedra no Rim compõe esse “drama” de um quotidiano que, por vezes, é trágico e precário. A produção cerâmica dos despojos da cidade questiona, entre outras coisas, o que se mantém ou se perde de original ou de identitário da cidade e do bairro, da comunidade local e suas culturas – camélias, lingerie, perucas, fanecas, gaivotas, sacos, sapatos, varejas, rebuçados, polvos, sapatilhas, pombas esventradas. Em ofício e a partir de artefactos vários, os artistas desenham um mapa que questiona os bonfinenses, em particular, e todos as outras pessoas que passam pelo seu estúdio. Assim, questionam-se a si mesmos, os habitantes e as estruturas políticas e socioculturais locais (fig. 8).
Fig. 8 – Estúdio de Produção, coletivo artístico Pedra no Rim, 2022
Fotografia de Rudi Navarro
48Na teoria e prática da performance ou do teatro, a “presença” é fundamental e, simultaneamente, altamente contestada. Os debates sobre a natureza da presença do ator estão no cerne dos principais aspetos da prática e da teoria desde o final de 1950, e são uma parte vital dos discursos que envolvem a vanguarda e a performance pós-moderna. Simultaneamente, as questões de presença também ganharam terreno no pensamento arqueológico. Para Giannachi, Kaye e Shanks (2012), as relações entre a teoria da performance e a teoria da arqueologia fornecem lentes para examinar noções e processos de presença. E se a arqueologia é uma prática de ativação de historicidades dos arqueólogos e de presenças do passado (Gomes 2017), o próprio conceito de presença passa a afirmar-se como importante figura no seio destes dois diferentes campos de atuação (Silva 2020). Isto é, a arqueologia e a arte contemporânea partilham um mesmo desafio – o de serem captadas e documentadas experiências em todos os seus detalhes matizados e sensoriais, com base no que vem depois do evento.
49A curadoria em arte/arqueologia procurará, irremediavelmente, transcender a velha dicotomia entre abordagens subjetivas e objetivas. Colocará ênfase na prática social da interdependência entre o real e o teórico, o imaginário e o que poderá ser considerado como testemunhos arqueológicos. Um dos grandes constrangimentos da arqueologia durante o estudo da cultura material prende-se com o facto de esta ser utilizada como um termo de qualificação (Hodder e Hutson 2003). O seu conceito está profundamente ligado a uma forma moderna do ocidente de apreender o mundo, impedindo, de forma irremediável, a compreensão absoluta do passado. Assim, a imaginação arqueológica deverá ser como uma faculdade metafísica que questiona as formas de representação do testemunho material, para que o passado possa ser investigado (Shanks 2012).
A opticalidade é imaterial porque esta é uma faculdade conceptual da retina. Uma pintura ou uma instalação são entidades opacas que substituem e cobrem, dando forma e existência à imaterial opticalidade. Vemos, portanto, a iluminação sem ver a luz (fonte), e vemos a pintura sem ver o seu médium. (Vidal 2021, 86)
50Neste mise-en-scène surgem-nos, pela curadoria em arte/arqueologia, estas proto-escavações e pós-escavações pelas quais obras artísticas se vão revelando em todos os seus fragmentos, ainda que pelos mais minúsculos e os mais inessenciais da expressão e do pensamento, da experiência, da imaginação ou do inconsciente em que artistas e arqueólogos se encontram enredados. Descrever o que não se conhece implica questionar o que pressupomos como conhecido, assim como valorizar os diversificados códigos simbólicos e científicos, numa perspetiva complementar sem exclusões (Volz 2017).
51Em contexto expositivo, a arte/arqueologia manifestar-se-á por elementos epistémicos, seja em museus (Tybjerg 2017), galerias, estúdios, entre outros. Enquanto ofício, a arte/arqueologia apresenta-se como elemento disruptivo para com “gabinetes de curiosidades” e reservas institucionalizadas de artefactos arqueológicos. Como meio impulsionador, é diferenciador e galvanizador do conhecimento arqueológico, descentralizando a exibição, participação e criação de práticas artísticas contemporâneas. Rejeitando monólogos museográficos, pela curadoria em arte/arqueologia, “entender” será como “dialogar” ou conversar; uma união de diversos horizontes. Será como dar uma oportunidade para serem vistas as imperfeições nas premissas, abordagens da teoria arqueológica, entender as mudanças necessárias para os próprios discursos dos arqueólogos (Shanks 1992).
- 4 Cf. Lei n.º 107/2001 de 8 de setembro, que estabelece as bases da política e do regime de proteção (...)
52A curadoria em arte/arqueologia permite, então, não só contribuir para um esclarecimento do passado, mas também oferecer um colherim para quem queira escavar o tempo contemporâneo. Citamos, como exemplo, o programa “Práticas Pós-Nostálgicas” (2019), que resultou «numa reflexão de práticas curatoriais e artísticas que promoveram o pensamento coletivo para ressignificar lugares e territórios que perderam as suas características identitárias, evitando a nostalgia sobre o passado e sobre o sentimento de perda» (Moreira e Coelho 2022, 147). Se as comunidades têm o direito à fruição dos valores e bens que integram o património cultural e arqueológico, como modo de desenvolvimento da personalidade através da realização cultural4, um dos objetivos da prática curatorial em arte/arqueologia passa por esse desejo de contribuir com novas narrativas sobre um passado que é construído no presente a partir de modalidades do processo criativo pelo registo das (i)materialidades arqueológicas e pelas obras de arte. Isto é, com a ativação da arte/arqueologia, significa atuar sobre a realização artística e cultural, libertar os sítios arqueológicos institucionalizados pelo poder político e oferecer a possibilidade de serem manifestadas vontades de ressignificações contemporâneas a partir do conhecimento arqueológico.
53Tim Ingold afirmou que a arqueologia se ocupa de tratar de “coisas” como registos de tempos passados. Mas para o autor, existe uma outra arqueologia – uma que se preocupa não com datações, mas pela passagem e continuidade dessas “coisas”. O que importa, para essa arqueologia da perduração, será a nossa capacidade de acompanhar as “coisas” nas suas múltiplas trajetórias temporais, desde o passado até ao presente (Ingold 2013, 81). A escavação da definição de artefacto é longa e está longe de estar fechada. Gordon Childe cometera suicídio em 1957, nas Montanhas Azuis, Austrália (ou Ered Luin, na obra de Tolkien), mas o seu contributo vive até hoje nos manuais de arqueologia (Barton 2000). Na curadoria em arte/arqueologia, no entanto, não só importam as tipologias de materiais, como também aquelas de processos, de abstração e de figuração, de linguagem e de conceito, de corpo e de performatividade. Isto é, através de exercícios de mediação, recolha, interpretação, representação e diálogo, a curadoria em arte/arqueologia perspetivará essa interdisciplinaridade em torno da arte contemporânea e da arqueologia, expandindo os horizontes de atuação das duas áreas que, na verdade, se complementam em ofício.
54Concluímos que a curadoria em arte/arqueologia tem um papel fundamental no questionamento da própria definição de “artefacto arqueológico” enquanto objeto ou “coisa” passiva e imutável. Isto é, a curadoria em arte/arqueologia enfatiza a importância das perspetivas individuais e das relações sociais e históricas na construção do significado dos artefactos arqueológicos; estes são vistos, por si, como “coisas” dinâmicas e em constante mudança. Os exemplos identificados e discutidos neste artigo demonstraram que a materialidade objetual da arqueologia, tal como a cerâmica, não é passível de ser apenas compreendida de forma objetiva e descontextualizada, uma vez que a sua compreensão será sempre influenciada pelas perspetivas e pré-conceitos de indivíduos e grupos sociais que os estudam, sendo que estas se vão mutando ao longo do tempo. Pela curadoria em arte/arqueologia, os artefactos arqueológicos serão sempre ativos e dinâmicos, sendo-lhes atribuído este potencial de influenciar e ser influenciados pelas relações sociais e históricas em constante mudança.