- 1 Adoptamos a data que consta do treslado que publicamos. António Domingues de Sousa Costa (“Leis ate (...)
- 2 COSTA, António Domingues de Sousa, o. c., p. 524.
1A 19 de Dezembro de 14191 o Doutor Diogo Martins publicitou perante todos os desembargadores, ouvidores e sobrejuizes de D. João I um conjunto de quarenta ordenações que logo foram designadas por “leis jacobinas”2 por serem da inspiração ou mesmo da autoria de Diogo Martins, isto é, Iacobus Martini.
2Tendo em conta a relevância dessas leis, o concelho e homens bons de Lisboa pediram ao rei o respectivo treslado, o qual consta na carta testemunhável, datada de 24 de Agosto do ano seguinte, que agora publicamos. António Domingues de Sousa Costa revelou a existência de outros treslados na Biblioteca Apostólica Vaticana, alguns contendo comentários dos ouvidores pontifícios João Gonçalves e João de Mela3.
- 4 Este trabalho destinava-se a uma colectânea de estudos jurídicos medievais portugueses a ser public (...)
3É frequente que os incautos estudantes4 considerem a Idade Média como um tempo de total preponderância da Igreja, incluindo aí, também, a supremacia em questões de poder, isto é, de jurisdição concreta sobre os territórios, súbditos, capacidade de legislar, de vigiar ou de punir... se me é permitido lembrar Foucault.
- 5 Vejam-se, entre outros, VENTURA, Margarida Garcez, Igreja e poder…, pp. 32-38, “O ofício de rei no (...)
4Fixemo-nos nas questões da jurisdição da igreja na sua correlação com o poder temporal, chamando a atenção desde já para o facto de essa relação se ter alterado durante os longos mil anos da Idade Média. Assim, convém referir que o âmbito cronológico em que nos movemos é o dos finais do século XIV e o primeiro quartel do século XV em Portugal, e que os actores são, por um lado, o rei e seus legistas e, por outro, a clerezia nacional, o papa e a cúria romana, também com os seus juristas5.
5Em Portugal, as relações entre o rei e o clero estiveram sempre longe de ser tranquilas. Não se erguiam, porém, conflitos de ordem teológica ou disciplinar, mas sim de ordem jurisdicional que resultavam da progressiva definição dos conteúdos do “ofício de rei”.
6O ofício de reinar exerce-se nas conjunturas concretas e em interacção com os outros poderes: da nobreza, da clerezia, dos oficiais régios, dos concelhos, dos povos em geral cuja voz se ouve em cortes e fora delas... Mas, quando se debate o porquê, o para quê e, sobretudo, o como do poder régio, tudo é remetido para os membros do clero: súbditos do rei mas presença máxima da Igreja, essa instituição que, na terra e por mandato de Cristo, é a dispensadora do poder. Na verdade, se, como escreveu São Paulo em frase repetida até à exaustão na Idade Média, não há poder que não venha de Deus, é a Igreja que o dispensa, ou controla, ou permite ou vigia... conforme se acolha uma das muitas formulações a este respeito. Tudo isto nos territórios do poder temporal sobre fiéis leigos súbditos do rei ou sobre matérias de índole económica ou financeira. As querelas sobre as liberdades eclesiásticas resultam desta imbricação de poderes.
7Na Idade Média chamava-se libertas ecclesiastica ao conjunto de imunidades e prerrogativas da Igreja. Tais isenções tinham como finalidade permitir que membros do clero tivessem condições de vida que lhes permitissem, sem preocupações, dedicar-se à oração e à administração dos sacramentos, isso é, ao serviço de Deus a tempo inteiro. Por isso toda a restrição sobre pessoas, bens e locais da Igreja seria considerada um atentado contra o serviço de Deus. Deixemos, porém, as enumerações gerais para nos aproximarmos, ainda que de forma breve, das condições vividas em Portugal nos finais do século XIV e começos do século XV.
- 6 COELHO, Maria Helena da Cruz, o. c., pp. 32s; VENTURA, Margarida Garcez, O Messias…, pp. 9s e Igrej (...)
- 7 LOPES, Fernão, Crónica del Rei Dom Joham I…, Caps. CLXXXII-CXCII.
- 8 HOMEM, Armando Luís de Carvalho, O Desembargo…, p. 157.
8D. João I sobe ao poder na sequência da crise aberta pela morte de seu irmão D. Fernando6. O então mestre de Avis é um entre outros candidatos ao trono, porventura aquele que estava mais afastado de uma solução estritamente legitimista. Para além da mobilização de alguma nobreza, cidadãos ou vizinhos de cidades e vilas e de outras muitas pessoas ou grupos referidos por Fernão Lopes na sua Crónica de D. João I – e não consideramos de somenos surtos de adesão com laivos de messianismo – foi, porém, nas cortes de Coimbra de 1385 que D. João se tornou rei7. Aí João das Regras, doutor em leis na universidade de Bolonha8 e discípulo de Bártolo, aplicou os princípios do direito romano no sentido de demonstrar que, estando vago o trono pelas razões que aduziu, caberia ao povo a escolha de um novo rei. Mas, para além do direito, o jurista esclarece o critério a que deveria obedecer o voto dos povos: que o eleito teria de ser de boa linhagem, corajoso na defesa do reino, amigo do povo, bom, devoto e disposto a permanecer ao lado do verdadeiro papa - o papa de Roma - contra os hereges e cismáticos castelhanos, adeptos do papa de Avinhão. O discurso de João das Regras produziu efeito, se é que a eleição não estava já assegurada.
9Mas os apoios pagam-se, se nos permitem a crueza da linguagem. E não só o apoio da nobreza, do clero e dos concelhos nessas cortes, mas ainda durante os largos anos de guerra contra Castela.
10Importa pois destacar a relação entre D. João I e o clero, uma relação de cooperação visível nas cortes de Coimbra, prolongada pelos tempos de guerra que se seguem em algo tão objectivo como a participação em acções bélicas e na utilização dos dinheiros de seus benefícios para financiar campanhas militares. É certo que, na época, o facto de os castelhanos serem cismáticos parece atenuar estes comportamentos irregulares. O envolvimento activo na guerra, assim como a aplicação de proventos eclesiásticos nesses projectos eram contra as determinações do direito canónico, pelo que, logo após 1411, encontramos inúmeras súplicas ao papa para que lhes conceda a absolvição.
- 9 COSTA, António Domingues de Sousa, o c., pp. 519-521.
11A consolidação do mestre de Avis no trono de Portugal faz-se também através de prelados fiéis ao papa de Roma, Urbano VI. Bastará percorrer os nomes dos detentores dos cargos episcopais e de prelazia9 para vermos fiéis ao mestre, por vezes seus familiares, que são também chamados a representar o reino nos concílios de Pisa e de Constança, tendo alguns deles ocupado altos cargos na burocracia régia, pois eram doutores em leis pelo estudo de Bolonha ou de Pádua.
- 10 Expressão registada ou forjada pelo cronista inspirado no “evangelho eterno” das concepções joaquim (...)
- 11 Não queremos deixar de assinalar que o processo de canonização de D. Nuno Álvares Pereira, iniciado (...)
12Na verdade, irão confundir-se a fidelidade a D. João e ao papa de Roma. Para usar a expressão registada por Fernão Lopes, o evangelho português10 que o Mestre (equiparado ao Filho de Deus) mandou pregar a D. Nuno11 (equiparado a São Pedro) e à sua gente (os apóstolos) era que todos acreditassem firmemente que o papa Urbano era o verdadeiro pastor da Igreja e que deveriam defender o reino com os seus bens e com a própria vida.
13Todavia, a indecisão na definição das esferas do temporal e do espiritual, comum a toda a Idade Média, tal como se converte em cooperação entre o rei e o clero ou em protecção mútua, assim muito facilmente resulta em abusos e em gravíssimos conflitos. No caso que agora importa podemos dizer que o ponto de viragem se dá após a assinatura das tréguas com Castela, que se realizou em Ayllon a 31 de Outubro de 1411.
14É claro que existiram, já no reinado de D. João I, alguns conflitos antes dessa data, por exemplo, no que dizia respeito à salvaguarda dos bens de igrejas e mosteiros ameaçados por leigos poderosos, aos quais o novo rei também tinha de ceder. Mas eram querelas geradas por casos pontuais, não por um plano sistematizado, nem na legislação, nem na prática, como sucede com as “leis jacobinas”. Ordenações essas que, se é certo, como ficou registado, que respondem a dúvidas e a situações particulares, irão provocar, como ordenações régias que são, um enorme impacto em todo o reino e, porventura, em situações até então pacíficas.
- 12 ZURARA, Gomes Eannes de, Crónica da Tomada de Ceuta..., Caps. I - XI.
15Voltemos então às tréguas de 1411. Livre dos encargos da guerra com os castelhanos e ressarcidos os povos das sequelas da guerra, D. João I pode direccionar o combate contra quem sempre quisera combater: os muçulmanos. A sequência não é nossa, mas de Zurara12, que nos indica também o direccionamento inicial do projecto (Granada), as razões da opção por Ceuta e todo o debate teológico suscitado por D. João I a propósito da licitude da conquista. Passemos ao lado deste assunto, fixando somente que D. João I tratou de assegurar desde logo a sua posição como guarda avançada da cristandade contra o avanço do Turco, primeiro junto do clero nacional e, depois, solicitando ao papa a bula de cruzada.
- 13 Segundo o próprio D. Duarte no Cap. XIX do seu Leal Conselheiro, texto sem dúvida usado por Zurara (...)
16Para se dedicar totalmente à condução global do projecto de Ceuta, o rei conferira aos infantes D. Pedro e D. Henrique as tarefas do recrutamento de homens e do provimento de navios, delegando em D. Duarte, herdeiro do trono, as áreas da justiça e da fazenda13. O infante D. Duarte iniciou essas funções na primavera de 1413, no contexto da preparação da expedição, mas nunca mais foi delas dispensado: muito pelo contrário, a sua intervenção é cada vez mais visível, mesmo, ou sobretudo, em pontos-chave da governação. Por isso são indubitavelmente da sua responsabilidade todas as situações que emergem da leitura das Leis Jacobinas, assim como a intencionalidade destas ordenações.
- 14 DUARTE, Luís Miguel, D. Duarte, pp. 65s.
17Como se verá, o texto das leis refere algumas situações concretas no âmbito da justiça, nomeadamente relacionadas com o comportamento de corregedores e juizes. Ora, o infante publicara em 1418 um novo Regimento dos Corregedores14, notável pela sua novidade e abrangência. Este regimento e as leis jacobinas terão se ser considerados por nós como o foram na época, isto é, fazendo parte de uma estratégia concertada para a definição do efectivo poder régio na sua mais problemática fronteira.
- 15 NASCIMENTO, Aires Augusto Nascimento, “Estratégia diplomática…”, passim.
18Trata-se, pois, de uma nova inflexão no governo do reino fundamentada numa concepção do ofício de reinar que, não sendo nova, usa vigorosamente a convicção de que o poder régio deverá exercer-se sobre todos os súbditos, sobre todo o território, e sobre todos os assuntos, indubitavelmente sobre pessoas leigas e sobre questões relacionadas com aspectos patrimoniais e económicos em geral. Uma concepção de poder que encontramos explícita ou implícita nos escritos de D. Duarte e do infante D. Pedro, e que vive tanto da utilização do direito romano como da reivindicação de uma sacralidade régia da qual a conquista de Ceuta fora a confirmação15.
- 16 VENTURA, Margarida Garcez, “Portugal e Castela…”, pp. 132s.
19Ceuta foi a primeira praça do norte de África a ser reconquistada aos muçulmanos, retomada por cristãos sucessores de Roma... Foi D. João I que logrou essa conquista, mau grado as pretensões castelhanas que vinham desde o tempo de Afonso X, o Sábio16. Os dividendos de política externa e perante o papa foram logo reivindicados no concílio de Constança, que reuniria no ano seguinte. Na sessão de 5 de Junho de 1416, um dos embaixadores de D. João I proferiu um discurso, o qual incluía a notícia da conquista que afirmou ser uma “vitória que deve trazer grande alegria e júbilo a toda a Igreja”. A importância geoestratégica (a questão religiosa está, na Idade Média, incluída neste conceito) de Ceuta justificou a expedição e justificará todos os sacrifícios em gente e em dinheiro. Dos continuados anos de grande esforço militar lembremos somente que o cerco de 1418-1419 obrigará a gastos acrescidos. Havia que buscar financiamento, também, junto do clero nacional, através de terças decimais e outras contribuições reclamadas pelo rei ou melhor, pelo infante D. Duarte enquanto encarregue da fazenda régia.
- 17 HOMEM, Armando Luís de Carvalho, o c., pp. 290-291; COSTA, António Domingues de Sousa, o c., pp. 52 (...)
20Convém que nos detenhamos sobre o Doutor Diogo Martins, autor destas leis que proclamam eloquentemente a sua matriz romanista17. Diogo Martins é um discípulo da célebre universidade de Bolonha, onde se licenciou a 30 de Maio de 1401 e se doutorou a 18 de Março de 1402. Entre 1407 e 1430 será desembargador de D. João I. Uma longa carreira de serviço, de que dão testemunho as cento e cinquenta e seis cartas régias que subscreve em parceria com outros desembargadores. Para além desta normal actividade, foi nomeado embaixador ao concílio de Pisa em Maio de 1409, juntamente com o Doutor Lançarote Esteves, Mestre Frei João Xira, Mestre Lourenço Afonso, o bispo de Lamego e o arcebispo de Lisboa. Depois do concílio, já em 1410, aparece designado como “cavaleiro”. Mas a marca do Doutor Diogo Martins são as quarenta leis por si publicadas e por certo redigidas sob a sua orientação, quando não da sua autoria, como ficou dito. Como se verá mais em pormenor, essas ordenações enformam um momento de enorme acutilância nas relações entre o rei e o clero no medievo português.
- 18 Podemos referir, nas cortes de 1390-91, o cap. 6º; nas de 1406, o cap. 3; nas de 1408, o cap. 10; n (...)
- 19 Nas 8ª, 9ª, 16ª, 22ª, 27ª, 28ª e 36ª leis.
- 20 Vd. A. Leite, “Concordatas”, in Dicionário de História Religiosa…, Vol. 1, pp. 423-429.
- 21 O A. refere-se insistentemente à concordata chamada dos “40 artigos” assinada em Roma a 12 de Fever (...)
21Algumas das leis jacobinas surgem como que suscitadas por situações que teriam sido colocadas às justiças régias, como se pode ler no texto, ou mesmo em cortes, onde os representantes do povo reclamam contra abusos de jurisdição por parte dos prelados18. Paro o conteúdo de outras, o autor recorre à anterioridade das disposições legislativas como forma de as justificar. Num processo muito comum à mentalidade medieval, a novidade está sob suspeita: declara-se que os reis anteriores já teriam legislado de forma semelhante19. De facto, não faltaram concórdias firmadas entre os reis de Portugal e o episcopado, algumas das quais receberam a aprovação do papa, tomando, por isso, o nome de concordatas20. Porém a grande referência é D. Dinis21. É muito instrutivo para nós percebermos a lógica da interpretação do Doutor Diogo Martins a respeito de este ou daquele artigo das concordatas dionisianas ou de ordenações deste mesmo rei relativas ao clero. Trata-se de facto de clarificações surpreendentes, e tanto mais quanto os documentos de D. Dinis irão ser, na cúria romana, objecto de oposta interpretação.
22Retomando, pois, as ordenações dionisianas - por vezes pouco claras, defensivas e escassamente implementadas – as leis jacobinas manifestam, como já referimos, uma concepção de “ofício régio” que entra em colisão com as tradicionais prerrogativas do clero e que, claramente, trazem a marca do infante D. Duarte. De notar, ainda, o cuidado em frisar que as decisões legislativas foram tomadas consultando os doutores em leis e no âmbito do desembargo régio (as 23ª, 25ª e 29ª, entre outras), onde, note-se também, já não existem clérigos.
- 22 VENTURA, Margarida Garcez, Poder régio..., Vol. II, Quadro I (Esferas de conflito). Aí se podem enc (...)
23A redacção das leis é suficientemente clara para dispensar grandes explicações, pelo que nos limitamos a acentuar alguns comportamentos legislativos que surgem de forma recorrente em muitos acordos entre o rei e a clerezia. Vejamos então alguns desses temas, sem grandes preocupações de sistematização ou de inventário completo22.
- 23 O conceito “civil” pode parecer anacronismo quando trabalhamos no século XV, mas note-se que Diogo (...)
24Uma das indubitáveis intenções destas leis é marcar o direito à presença do rei, isto é, de tabeliães régios, em todas as circunstâncias, mesmo em casos de jurisdição eclesiástica (1ª). Paralelamente, nota-se a exigência da entrega às justiças régias de todas as querelas, denúncias e escrituras em geral, mesmo de processos da competência eclesiástica (5ª, 14ª). Essa tentativa de omnipresença vê-se também quando se ordena que as justiças civis23 tomem conta dos casos em que há suspeita de que o juiz eclesiástico é negligente (2ª).
25Outra grande linha de força é aquela que considera todas as questões relativas aos bens temporais como sujeitas à jurisdição civil, mesmo que sejam praticadas por clérigos. É por aí que estes podem ser chamados ao foro secular, com inúmeras ocasiões de especificação (3ª, 18ª).
26Mas não só os clérigos que lidam com bens materiais, sejam eles terras ou mercadorias, devem responder civilmente (3ª, 18ª). A exigência de foro secular estende, por outra via, aos moradores da casa real (22ª, 36ª) e professores na universidade (37ª), assim como aos clérigos dissolutos, como os goliardos e jograis (31ª). Ou ainda quando o réu é leigo, como afirma o direito romano, o juiz deve seguir o foro do réu (4ª, 20ª, 25ª).
27Notáveis também são as consequências jurisdicionais retiradas da condição laical: os leigos devem, por norma, responder em tribunal civil em todas as questões que não sejam espirituais. A excepção aberta para os rendeiros das terras das igrejas e mosteiros cessa com o contrato, sendo aplicada pena de prisão e multa para os que ousarem o contrário (26ª). Paralelamente, define-se o campo espiritual no sentido restritivo. O espiritual não abrange, por exemplo, questões de dotes ou arras matrimoniais, fuga de mulheres aos maridos, responsabilidade na criação dos filhos... (10ª, 11ª 20ª, 38ª). Também aqui a legislação é severa, ameaçando os leigos que, nestes casos, recorram a tribunal eclesiásticos, com prisão e multas. É por essa via que o rei reserva veementemente para si tudo o que se relacione com injúrias cometidas contra judeus ou mouros convertidos ao cristianismo, assim como o castigo daqueles que depois voltem à antiga fé (24ª, 40ª).
28Destaquemos a constatação de muitos clérigos de ordens maiores ou menores que o são para fugir à justiça régia (23ª, 33ª), o que implica desconfiança e vigilância. De facto, há que saber se os que se dizem clérigos realmente o são, através do controle do traje, da tonsura e das letras apostólicas que exibem (8ª, 35ª).
29É porque desconfia da licitude das razões de alguns eclesiásticos, que o rei vai actuar sobre questões tão graves como a excomunhão, não através da recusa da aplicação das consequências temporais dela, mas querendo ter a certeza de que os leigos estarão bem excomungados (9ª, 17ª).
- 24 VENTURA, Margarida Garcez, “Elementos para a compreensão...”.
30Finalmente, uma chamada de atenção para o beneplácito24 (28ª). De facto esta instituição não é novidade, mas é-o a explicitação da sua justificação: poderiam vir da cúria romana e de instituições religiosas cartas contra o bem do reino. O legislador declara que só a passagem pela chancelaria régia poderia assegurar a legitimidade de tais diplomas. O castigo é severo para qualquer que ignore a ordem régia e publique tais cartas: pena de morte e confisco de bens.
- 25 COSTA, António Domingues de Sousa, o c., p. 506.
31Como é óbvio, as leis jacobinas suscitaram muitas querelas, das quais D. Duarte estaria informado pela dupla via das suas responsabilidades na justiça e na fazenda do reino. Assim, em 1423, o infante manda fazer um “ajuntamento” dos prelados e procuradores da clerezia de Lisboa, mas recusa ouvir as queixas e manda-os regressar a casa sem qualquer resposta25.
- 26 Resumidos por COSTA, António Domingues de Sousa, o c., pp. 536-537. Sobre o impacto das leis jacobi (...)
32A partir de então, por iniciativa do arcebispo de Braga, o clero inicia o processo de recurso para Roma, através de dois enviados: João Vasques e Rui Dias, cónego de Braga e ex colector apostólico em Portugal. É este último que leva a João Vasques a carta, datada de Agosto ou Setembro de 1425, que acompanha as leis jacobinas, assim como uma lista de dezassete agravos26 perpetrados sobre o clero pelo rei seus oficiais.
33Entretanto, o ambiente na cúria papal, influenciado pelas posições de alguns padres conciliares, não era favorável às pretensões dos reis em geral no plano da apropriação de direitos eclesiásticos. Exemplo disso é a recusa dada em 1423 ao cavaleiro Pedro Lobo, enviado por D. Duarte para pedir as terças eclesiásticas, e que regressa a Portugal sem nada ter conseguido.
34Voltemos a João Vasques, encarregue de apresentar a Martinho V a referida carta de Agosto-Setembro de 1425, com o auxílio dos cardeais de S. Marcos e de Veneza, assim como de dois portugueses residentes na cúria, o Doutor Vasco Rodrigues e seu irmão o Doutor Afonso Rodrigues Garcia. Em carta enviada ao cabido de Braga, João Vasques dá conta de todas as diligências efectuadas, nomeadamente que fizera todos os possíveis para falar com o Doutor João de Mela, o mais famoso doutor que há na corte de Roma, pedindo-lhe que visse a lista de agravos e as ordenações.
- 27 COSTA, António Domingues de Sousa, o c., pp. 525 e 531. Nos começos dos anos 90 o próprio Sousa Cos (...)
35João Vasques foi bem sucedido. Efectivamente, não só João Mela, mas também João Gonçalves, outro célebre ouvidor apostólico, vão comentar as leis jacobinas27. Tal como as citações abonatórias que encontramos junto de alguns capítulos no treslado de Lisboa, os comentários dos juristas papais estão baseados no direito canónico e civil, embora em muito maior número, pormenor e erudição.
36O conflito agudizado em Portugal pelas leis jacobinas, assim como o seu eco na cúria de Roma, tem também de ser entendido à luz da grave crise da Igreja, nomeadamente nos conflitos entre os partidários da autoridade do papa sobre o concílio e os conciliaristas, crise bem viva no concílio de Pavia-Sena, encerrado pelo papa na primavera de 1424. O assunto está pouco estudado e não é aqui o local para o fazer. Bastará lembrar dois factos: o primeiro, é que neste concílio os conciliaristas afirmavam o seu direito à deposição do papa sempre que ele consentisse na alienação dos bens eclesiásticos; o segundo, que João Gonçalves era conciliarista declarado, assim como, muito provavelmente, João de Mela. Deste modo os violentos comentários que produzem têm de ser entendidos nas mais amplas concepções sobre a Igreja e o modo de realizar a respectiva reforma. Por outro lado, a montante das propostas para essa reforma estava sempre uma determinada concepção dos objectivos fundamentais (e fundacionais...) da Igreja e, consequentemente, das suas reivindicações jurisdicionais.
- 28 De referir ainda uma resposta papal a uma súplica do clero bracarense relativa as opressões sofrida (...)
- 29 Publicada por António Domingues de Sousa Costa, o c., Doc. II.
37Quaisquer que tenham sido as movimentações de João Vasques e dos outros portugueses residentes na cúria, das quais se conhecem resultados esparsos28, assim como as dos referidos ouvidores apostólicos, o facto é que Martinho V, a 28 de Abril de 1426, escreve as letras apostólicas Non sine magna admiratione29 dirigidas aos arcebispos de Braga e de Lisboa e seus sufragâneos e a D. João I. Depois de lembrar que o rei metia foice em seara alheia (ponere falcem suam in messem Ecclesie) quando se intrometia nas coisas da igreja, aponta a intervenção das justiças seculares sobre os clérigos e no controle das letras apostólicas através do beneplácito régio. O papa exorta os prelados a reunirem-se com os respectivos cabidos de forma a defender a liberdade da Igreja.
38Obedecendo ao mandato papal, logo o bispo do Porto, D. Antão Martins, congregou no paço episcopal, a 23 de Setembro desse ano, vários abades e quase todos os párocos da sua diocese. Foi lida a bula papal, assim como um carta do arcebispo de Braga. Nesta carta D. Fernando da Guerra convocava o bispo do Porto para uma reunião que iria ter lugar em Coimbra ou em Braga a 30 de Novembro. Foram então eleitos os procuradores para esse encontro, que acabou por se realizar em Braga entre os dias 15 e 23 de Dezembro.
- 30 Actas enviadas à cúria pontifícia, cujo original está na Biblioteca Pública de Évora existindo pelo (...)
- 31 MARQUES, José, A Arquidiocese…, p. 80.
39Nesta reunião, também conhecida por sínodo de D. Fernando da Guerra, os prelados irão debater todos as questões de que já se tinham queixado ao papa, as leis jacobinas e outros agravos entretanto constatados. Conhecem-se as actas da reunião, que inclui também registo de casos particulares ocorridos nas dioceses de Braga, Porto, Guarda, Lamego e Viseu30. Os compromissos assumidos prometiam firme luta pelo que entendiam ser a liberdade da Igreja, com previsão de longo pleito na cúria romana31.
- 32 A carta-súplica dos bispos portugueses a Martinho V (Santarém, 27 de Agosto de 1427), publ. por COS (...)
40Mas, se os prelados eram fiéis às liberdades da Igreja, eram também “criaturas” do rei, seus amigos e por vezes seus parentes. É bem possível que o próprio arcebispo de Braga tenha diligenciado no sentido da concórdia. O facto é que a 27 de Agosto de 1427 já os prelados haviam escrito a Martinho V, após conversações com o monarca. Nessa carta pedem dispensa para não tratar judicialmente dos agravos contra as liberdades eclesiásticas, pois o rei havia-lhes prometido emendar alguns agravos, embora estes fossem já praticados pelos seus antecessores e, escrevem, o procedimento do rei ser defensável em algumas ocasiões: tudo para o “bem de sua patria e Reinos”, segundo palavras de D. João I32.
- 33 Ordenações Afonsinas, Liv. 2, Tít. 7. Segundo SOUSA, Armindo de (As Cortes Medievais...., Vol. I, p (...)
41O acordo era necessário e estava eminente, sendo conseguido na concórdia assinada em Santarém, a 30 de Agosto33. Os artigos que serão objecto da concórdia são os que saíram da reunião bracarense, embora tivessem sido retiradas algumas reivindicações, queixas e linguagem mais acintosa. Os clérigos apresentaram-nos assim a D. João I: “Estes som os agravos que aa vosa mercee praz veer que som feitos em vosa terra aa Igreja e pesoas ecclesiasticas per vos e vosas justiças e pesoas seculares de voso senhorio os quaees prellados e clerezia vosos oradores som theudos de vo-los dizer e mostrar por bem de vosa alma e conciencia cujo carrego teem e das suas dellas”. D. Duarte esteve presente em todo o processo, quer nas conversações prévias, quer nas respostas dadas a cada um dos artigos.
42Como dissemos, os temas de conflito são recorrentes e continuam após a concórdia de 1427, surgindo em inúmeros processos registados nos Livros de Chancelaria. E, logo no reinado de D. Duarte, se renovam as queixas ao papa. Voltemos, porém, aos tempos mais próximos das leis jacobinas.
- 34 António Domingues de Sousa Costa, o c., pp. 562s.
- 35 Álvaro Pais em Speculum Regum e Status et Planctus Ecclesiae afirma que o cumprimento da lei injust (...)
43Os comentários dos ouvidores apostólicos João de Mela e João Gonçalves eram conhecidos em Portugal antes da referida carta de Agosto-Setembro de 1425, e por certo que tiveram o seu peso na concórdia de 1427, a qual, em alguns pontos, consigna também um recuo relativamente às posições extremadas das leis jacobinas. É certo que o relacionamento entre o rei e o clero é feito mais de “amigáveis composições” do que de querelas, ou talvez de ajustamentos após situações de potencial conflito. Por isso, não é de somenos, em termos de consequência, o que escreveu João de Mela no prólogo ao seu comentário34. Recorrendo à autoridade de Justiniano, lembra que as leis iníquas devem ser rejeitadas pelos súbditos e pela Igreja, pois não têm força de lei natural, que deve ser honesta, justa e possível, útil e conveniente, conforme aos costumes, lugares e tempos. Portanto, os súbditos não devem obediência às leis injustas35. E continua, dizendo que as leis contra as liberdades eclesiásticas não poderão ser acatadas. Era conhecida em Portugal a fundamentação da desobediência às leis injustas e tal apelo vindo da cúria romana não poderia deixar de ser perturbador. Enfim, João de Mela afirmava ainda que o rei tinha incorrido em excomunhão por ter publicado tais leis.
- 36 Como se sabe, o Leal Conselheiro é constituído por textos que vão sendo escritos ao longo de uma vi (...)
44Depois de tudo isto cabe perguntar qual seria a posição de D. Duarte a respeito do pomo da discórdia que eram as liberdades eclesiásticas. Podemos adiantar que ele as considerava como coisa a acreditar e a respeitar... mas punha em causa a sua formulação concreta. No capítulo 35 do seu Leal Conselheiro36., D. Duarte enumera cinco “cousas da nossa crença” nas quais a Igreja nos manda acreditar. A primeira é os dois Credos (o dos Apóstolos e o chamado de Santo Atanásio), a segunda é os sete sacramentos; a terceira é as virtudes; a quarta é o conhecimento dos pecados; a quinta é as liberdades e jurisdição da Igreja. Veja-se como este tema está colocado entre aquilo em que os fiéis devem acreditar para alcançarem a salvação eterna, o que não é dizer pouco. Vejamos o texto: “A quynta maneira he dos dereitos sobre as liberdades e jurdiçom da Igreja. E porquanto algũus destes som scriptos per letrados, que sobr’ello secreverom forom clerigos, e quyserom largamente favorezar a ssua parte, posto que o fezessem com boa teençom. Porem, esto nom embargando, todollos senhores em esta parte teem certas ordenanças em suas terras por conservaçom de seus estados e bem de sseus subdictos per antigo custume aprovadas que parecem contrairas a openyom delles, as quaaes entendo que cada hũu pryncipe deve guardar por serviço de nosso senhor deos como fezerom seus antecessors, segundo el com seu consselho por melhor acordar. Ca sam Paulo dyz hũa autoridade que os prellados, clerigos e religiosos muyto bem devem consiirar, ainda que a todos pertença. Manda em sua epistola que sejamos assy como lyvres, e nom que ajamos veeo de liberdade de mallicia. E com tal cubertura os senhores nom se devem estender pera britar o pryvylegio clerical mais que seus antecessores, nem dar lugar a eles que vyvam em desenfreado atrevymento, como algũus qur boos nom som fariam, se per os senhores nom fossem temperados, o que sempre se deve fazer com tento e boo conselho, com reguardo do serviço de deos”. D. Duarte habitou-nos a verificar como ele passa de formulações inicialmente de índole teórica ou mesmo teológica para comentários saídos das suas preocupações na governança do reino. Está tudo neste pequeno excerto: diz que a enumeração das liberdades foi feita por letrados clérigos os quais, ainda que com boa intenção, favorecem o seu status; que sempre os reis promulgaram leis que parecem contrárias à opinião desses clérigos, mas que são para o bem do estado real e para o bem dos súbditos; que essas leis devem ser guardadas por serviço de Deus como o fizeram os reis que o antecederam, de acordo com a sua vontade e consultados os seus conselheiros. Finalmente, recorre a São Paulo para expor como deve ser o equilíbrio entre a intervenção dos reis e o laxismo que permite aos maus clérigos comportarem-se sem qualquer castigo.
45De facto, a todos os argumentos do fortalecimento do poder régio em todas as frentes e por todos os meios aduzidos pelos romanistas ao serviço do rei, a todos os argumentos que lhe eram conferidos pela origem divina do seu poder e pelo inegável favorecimento divino a D. João I (as vitórias sobre castelhanos e mouros faziam prova), se acrescenta a desconfiança de D. Duarte em relação a alguns clérigos e, consequentemente, a urgência de vigilância e de coacção com vista ao serviço de Deus e bem dos súbditos.
- 37 Leal Conselheiro..., Cap. IV, pp. 44-45.
46Veja-se como D. Duarte coloca em sequência a questão do conteúdo das liberdades eclesiásticas e esta proclamação do seu dever de correcção sobre os maus clérigos. Esses clérigos são aqueles que se deixam vencer pela tibieza e que aspiram a “riquezas, honras, reverências, liberdades”, isenção da justiça secular ou do serviço na guerra – a parte agradável do seu estado – mas fogem da oração, dos serviços divinos, do ensino e do cuidado pelos outros, da administração dos sacramentos, dando mau exemplo com o escândalo da sua má vida. E. Duarte continua: “contra os quais diz Santo Agostinho que se querem alegrar com os santos, e as tribulações não querem suportar com eles”37.
- 38 Citemos o caso próximo de Castela, estudado por NIETO SORIA, José Manuel, Iglesia…
47Dissemos que as relações entre o rei e o clero no Portugal medieval não foram isentas de conflitos, e é certo, como, aliás, sucedeu por toda a cristandade38. Todavia, daquilo que ficou escrito não podem também outros incautos deduzir constantes conflitos. As leis jacobinas são um entre muitos episódios de um tema tão caro aos estudiosos do pensamento político: a tensão e o ajuste entre a autoridade espiritual e o poder temporal. Desse processo sairá a possível definição de fronteiras entre ambos, característica dos estados modernos do ocidente.
Notas de edição
48Como acima ficou dito, transcreve-se aqui a carta testemunhável contendo as leis jacobinas, recolhida no Livro I de Cortes existente no Arquivo Histórico Municipal de Lisboa. Este documento constitui um caderno com autonomia dentro do Livro, composto por seis fólios em pergaminho medindo 385x285mm. O pergaminho é de boa qualidade, como convinha para tão importante conteúdo. Todo o documento está em muito bom estado, não apresentando lacunas de suporte ou qualquer mancha relevante.
- 39 HOMEM, Armando Luís de Carvalho, O Desembargo Régio..., p. 386.
- 40 NUNES, Eduardo, Album de Paleografia Portuguesa, Vol. I, 1969, p. 12. O A. coloca a hipótese de est (...)
49Da responsabilidade de Vasco Esteves, bacharel em leis e chanceler-mor39, a carta testemunhável foi executada pelo escrivão em caligrafia cursiva bem regular, aparentada aos cursivos franceses (“lettre bâtarde”) e à qual Eduardo Borges Nunes chama “letra joanina”40. A caligrafia, se não solene, é bem cuidada, com recurso a capitulares destacadas com aditamentos cursivos. A mancha do texto está bem distribuída na página e os capítulos encontram-se bem destacados.
50São devidos alguns esclarecimentos sobre os critérios de transcrição adoptados. Usamos as regras enunciadas por Eduardo Borges Nunes na sua edição das Ordenações del-Rei Dom Duarte, com algumas excepções de modo a conferir maior clareza ao texto, destinado prioritariamente aos alunos: modernização da pontuação e do uso das maiúsculas e minúsculas, actualização das funções dos “u” e “v” e dos “i” e “j”, assim como do uso da cedilha, eliminação das consoantes duplas iniciais, introdução de apóstrofos para substituir as elisões de grafemas, eliminação de repetições, correcção de pequenos erros de escrita e introdução, entre parêntesis rectos, do número de ordem dos parágrafos.
- 41 No treslado de Lisboa é a seguinte a sequência das leis: no fl. 93, da 5ª à 8ª (parte); no fl. 93v, (...)
- 42 COSTA, António Domingues de Sousa, o c., p. 526.
51A sequência da numeração dos fólios do treslado em presença não corresponde à sequência da numeração das leis41, pelo que aplicamos a ordem pela qual surgem nos códices da Biblioteca Apostólica Vaticana. De notar que este treslado não contém as 1ª, 2ª, 3ª e 4ª leis. Recorremos, por isso, ao respectivo resumo feito por Sousa Costa42.
[O A. escreve segundo o anterior acordo ortográfico]