Navegação – Mapa do site

InícioNúmeros31Apresentações de TesesModos à mesa e maneiras de vestir...

Apresentações de Teses

Modos à mesa e maneiras de vestir em Castela e Portugal (séculos XIV e XV). Tese de doutorado em História, apresentada à Universidade Estadual Paulista, em Abril de 2021. Orientação da Professora Doutora Susani Silveira Lemos França

Thiago Henrique Alvarado

Notas da redacção

Data recepção do artigo / Received for publication: 20 de Junho de 2021

Texto integral

1Ao longo dos séculos XIV e XV, muitas foram as autoridades eclesiásticas e seculares dos reinos de Castela e Portugal que estabeleceram ou propuseram leis e regras a respeito do comer e do vestir. A postura desses letrados pautava-se na consideração amplamente difundida de que havia modos convenientes e proveitosos de os humanos, sobretudo os cristãos, comerem e vestirem-se, e de que não observar os preceitos cristãos ou da comunidade representava, a um só tempo, pecado e delito. Para a compreensão desses modos, era necessário inquirir sobre o surgimento das duas necessidades – o comer e o vestir –, observando a relevância delas para a manutenção da vida humana na terra e os valores que deveriam servir de parâmetro para sua adequada satisfação. Além disso, era preciso que houvesse estreita correspondência entre os modos de comer e de vestir, os estados e as condições de vida das pessoas. Nesse sentido, ordenar o comer e o vestir passava impreterivelmente pela própria disposição dos estados, bem como pelo cumprimento de constituições, de leis e de regras que visavam salvaguardar o corpo, a alma e a comunidade.

2Com o objetivo de compreender a historicidade dessas leis e regras e a relação entre ordenar a alimentação, o vestuário e o estado das pessoas na Castela e no Portugal dos séculos XIV e XV, utilizamos, na tese intitulada Modos à mesa e maneiras de vestir em Castela e Portugal (séculos XIV e XV), um conjunto vasto de fontes documentais, como capítulos de cortes, cerimoniais, constituições sinodais, crônicas, leis, regras monásticas, relatos de embaixadas e de viagens e tratados médicos e morais. Desse modo, a pesquisa não se pautou por distinções de gênero textual, nem por oposição entre prescrição e prática, tampouco pela concepção de imposição das leis. Antes, a condução da tese levou em consideração a pertinência e as razões válidas para os homens do período acreditarem e seguirem os valores propostos por eclesiásticos e seculares. Entre as razões e crenças que pautavam as ações dos homens daqueles séculos e reinos, vale destacar as concepções de que o exterior traduzia o interior da pessoa e de que os bons modos no comer e no vestir – e os valores que sustentavam essas práticas – eram proveitosos e salutares.

3Embora a ênfase desses escritos sobre o comer e o vestir tenha sido maior ou menor em um ou outro gênero, e não tenham tais aspectos recebido a mesma atenção em Portugal e Castela, foi possível perceber a circulação e a afirmação de determinados modelos de conduta comuns aos dois reinos entre os séculos XIV e XV. Foram, pois, esses elementos comuns que estruturaram a tese.

4Para a compreensão dos valores e regras que pautavam os modos de comer e vestir, a tese foi dividida em duas partes. Na primeira parte, denominada “A ordem à mesa”, o objetivo foi explorar as ordenanças e regras do comer ao longo de três capítulos. O primeiro capítulo, intitulado “Juntar-se à mesa”, foi dedicado à importância do comer para estabelecer e consolidar as comunidades humanas, o que implicava distinguir umas das outras a partir de costumes e critérios religiosos. O ponto de partida foram as discussões levadas a cabo, sobretudo por tratadistas, a respeito do surgimento da necessidade de comer após o pecado de Adão e Eva. Os debates sobre a alimentação dos primeiros homens, e mesmo dos animais nos primórdios da história, não eram questões banais para os letrados cristãos, pois traduziam a vontade divina e definiam modelos mais ou menos ascéticos, conforme se aproximavam ou se distanciavam dessa dieta primeva. Abster-se de carne, por exemplo, era um modo de vida de privação, próprio dos religiosos, e que se associava à alimentação anterior ao Dilúvio, responsável por danificar as ervas e os frutos consumidos pelos homens e pelos animais com suas águas salgadas. Somente após o Dilúvio, os humanos passaram a alimentar-se de carne e de vinho. Alguns dos desdobramentos dessa interrogação sobre o passado da humanidade foi a diferenciação dos dias de carne e de pescado, que visava intercalar momentos de abstenção e mortificação e de maior permissibilidade ao corpo, e o debate entre necessidade e superfluidade, expresso na escolha ou na recusa de alimentos frugais, bem como no tratamento dos alimentos de modo a torná-los aptos à compleição humana. Além disso, um dos pontos referentes à carne, que mereceu atenção na tese, foi a importância conferida à escolha dos animais a serem consumidos e as formas de abatê-los, aspectos que ganhavam relevância para distinguir os costumes cristãos dos cerimoniais islâmico e judaico. Nesse ponto e na separação dos alimentos dos membros das três religiões, as relações com os alimentos traduziam diferenças teológicas e sociais.

5Se no primeiro capítulo foi chamada a atenção para a distinção entre cristãos, judeus e muçulmanos, o que incluía não partilhar a mesa e os alimentos, a ênfase do segundo capítulo, “Partilhar a mesa”, recaiu sobre as circunstâncias em que os cristãos comiam em comunidade. Banquetes, bodas, festividades diversas e tributos pagos em alimentos foram algumas das circunstâncias analisadas. Entre os aspectos abordados, foram destacados a progressiva valorização dos banquetes – denominados no período como “convites” –; a correlação entre quantidade e qualidade dos pratos do anfitrião e do convidado; o dever moral de alimentar os subordinados e os problemas acarretados pela alimentação da corte e dos senhores.

6Compreendida a importância conferida ao ato de comer em comunidade e à valorização da partilha da mesa, coube, no terceiro capítulo, “Dispor a mesa”. Nesse capítulo, procurou-se esmiuçar como o costume dos cristãos de comerem sentados à mesa, usando mantéis e seguindo diversos preceitos religiosos e corteses foi significativo para distingui-los, sobretudo, de judeus e muçulmanos. Além disso, em especial no âmbito das cortes e grandes casas, a ornamentação da mesa acompanhou-se de cerimoniais que se tornaram cada vez mais complexos ao longo dos séculos XV e XVI. Esses cerimoniais estabeleceram, entre outros aspectos, a ordem e o lugar de cada pessoa à mesa e a ordem de servir os pratos. Seguindo a noção da mesa como espaço de engrandecimento e de instrução, foram analisadas diversas regras sustentadas sobre a premissa de que era possível aos homens extrair proveitos corporais e espirituais por meio do comer, tais como a postura adequada à mesa, a ordem dos alimentos a serem consumidos, a limpeza, a cortesia, a moderação e a sobriedade.

7A segunda parte da tese, denominada “A ordem à vista”, foi dedicada às regras referentes ao vestir, sendo estruturada a partir de eixos similares aos da primeira parte. Assim, o quarto capítulo, intitulado “Vestir com fé”, partiu da discussão sobre o surgimento das vestimentas, procurando compreender as funções atribuídas ao cobrimento dos corpos. Ocultação das partes vergonhosas, proteção corporal contra os rigores do clima, diferenciação entre eclesiásticos e leigos e entre cristãos, judeus e muçulmanos, foram, pois, alguns dos aspectos abordados e que, de uma forma ou de outra, traziam elementos de uma ordem criada por Deus.

8O quinto capítulo, “Partilhar os panos”, deteve a atenção na capacidade dos trajes de estabelecerem os mais diversos laços, como os de amizade, de subordinação e de familiaridade. A doação de panos e vestes, realizada nas mais diversas circunstâncias – bodas, embaixadas, festas e investiduras, por exemplo – e direcionada a iguais, inferiores ou superiores, tinha o intuito de estreitar laços, de mostrar a grandeza do doador e de garantir o mínimo de cobertura, no caso dos pobres desnudos, ou de sinais exteriores, no caso dos nobres empobrecidos. Nessas relações sociais confirmadas pela partilha dos panos, as bodas constituíram-se como uma das principais, pois celebrava a união de duas famílias e a introdução da esposa no seio de uma nova família; tudo isso acompanhado de banquetes, da doação de panos e vestidos à noiva e de doações aos convidados. A importância do matrimônio era verificável, ainda, pelas restrições às mulheres de vida moralmente reprováveis, como as barregãs de clérigos e as prostitutas. Certas vestes só eram permitidas às mulheres honradas e casadas. Em todos os aspectos da partilha dos panos, a noção de ordem não era perdida, de modo a evitar prodigalidades e confusões entre pessoas de estados diferentes.

9Os têxteis, em suas mais diversas formas e funções, contribuíam igualmente para reforçar a solenidade das mais variadas circunstâncias. Assim, no capítulo “Adequar as vestes”, foram abordadas as regras sobre as escolhas dos tecidos e panos para conferirem solenidade aos lutos, às festividades régias – aclamação e coroação, bodas e entradas –, às cortes, aos batismos, entre outras circunstâncias. Por sempre haver correspondência entre a pessoa e o seu entorno, não foram apenas os trajes que mereceram atenção: tapetes e toalhas de mesa, por exemplo, deveriam ter qualidade semelhante à das roupas da pessoa que realizava o festejo ou da que se pretendia homenagear.

10Ao longo da tese foram abordadas, portanto, situações diversas nas quais, em Castela e Portugal dos séculos XIV e XV, comer e vestir, em um complexo jogo entre interior e exterior, definiam as relações humanas e exteriorizavam valores mais amplos, relacionados à criação, ao lugar de cada um no mundo e às diferenças entre os estados e os seus membros. Daí as duas necessidades terem recebido atenção tanto de letrados seculares quanto de eclesiásticos, preocupados com a manutenção da ordem da sociedade cristã e com a difusão de modos corteses de comer e vestir.

  • 1 Processos FAPESP 2017/01502-0 e 2017/26286-9.
  • 2 Processo FAPESP 2013/14786-6. Informações mais detalhadas sobre o grupo podem ser encontradas em ht (...)

11A tese foi desenvolvida na Universidade Estadual Paulista (UNESP), campus de Franca, sob orientação da Professora Doutora Susani Silveira Lemos França – com período de estágio na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (2018), sob a supervisão do Professor Doutor José Manuel Henriques Varandas –, e contou com financiamento da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).1 Para a elaboração da versão final da tese, cabe mencionar também os diversos apontamentos feitos nas bancas de qualificação e de defesa pelos Professores Doutores Margarida Garcez Ventura (Universidade de Lisboa); Dulce Oliveira Amarante dos Santos (Universidade Federal de Goiás); Adelaide Millán da Costa (Universidade Aberta) e Leandro Alves Teodoro (UNESP e Universidade Estadual de Campinas). Ademais, é imprescindível salientar que a pesquisa foi desenvolvida no âmbito do Projeto Temático Escritos sobre os Novos Mundos, cuja preocupação tem sido a realização de uma história da construção de valores morais em língua portuguesa.2 Nesse sentido, o objetivo da tese foi contribuir com uma história da construção dos valores sobre o comer e o vestir nos dois reinos cristãos ibéricos.

Topo da página

Notas

1 Processos FAPESP 2017/01502-0 e 2017/26286-9.

2 Processo FAPESP 2013/14786-6. Informações mais detalhadas sobre o grupo podem ser encontradas em https://www.grupoescritos.com/.

Topo da página

Para citar este artigo

Referência eletrónica

Thiago Henrique Alvarado, «Modos à mesa e maneiras de vestir em Castela e Portugal (séculos XIV e XV). Tese de doutorado em História, apresentada à Universidade Estadual Paulista, em Abril de 2021. Orientação da Professora Doutora Susani Silveira Lemos França»Medievalista [Online], 31 | 2022, posto online no dia 01 janeiro 2022, consultado o 24 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/medievalista/5192; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/medievalista.5192

Topo da página

Autor

Thiago Henrique Alvarado

Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Ciências Humanas e Sociais. Avenida Eufrásia Monteiro Petráglia, 900, 14409-160 Franca/SP, Brasil. thiagoalvarado@gmail.com. https://orcid.org/0000-0001-5728-2617

Topo da página

Direitos de autor

CC-BY-NC-4.0

Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY-NC 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.

Topo da página
Pesquisar OpenEdition Search

Você sera redirecionado para OpenEdition Search