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Apresentações de Teses

Aristocracia, parentesco e reprodução social em Portugal no final da Idade Média. Tese de doutoramento em História apresenta em regime de cotutela entre a Universidade do Porto e a Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne, em 25 de junho de 2021. Orientação do Professor Doutor José Augusto de Sottomayor-Pizarro e do Professor Doutor Joseph Morsel

Miguel Aguiar

Notas da redacção

Data recepção do artigo / Received for publication: 28 de Julho de 2021

Notas do autor

Esta investigação foi financiada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia com uma bolsa de doutoramento, com a referência SFRH/BD/124781/2016.

Texto integral

  • 1 As linhagens selecionadas foram as seguintes: Albuquerque, Almeida, Ataíde, Castro, Lima, Pereira, (...)

1O trabalho que aqui se apresenta teve como intuito perceber a articulação entre parentesco e reprodução social de um grupo dominante. Selecionámos um grupo constituído por sete linhagens aristocráticas de perfil curial e senhorial, caraterizadas pela presença na corte régia, pela detenção de títulos e de poder senhorial próprio e emanado da coroa1. Seguimos os seus percursos entre o final do século XIV e as primeiras décadas do século XVI, procurando compreender de que modo as práticas e representações de parentesco permitiram a perpetuação do grupo numa posição social dominante. A tese dividiu-se em três blocos. No primeiro, estabeleceram-se os fundamentos teóricos, conceptuais e metodológicos do trabalho; no segundo, inquiriram-se as práticas de transmissão, entre a sucessão e a herança; no terceiro analisaram-se as práticas de aliança, designadamente as negociações matrimoniais a partir de um extenso corpus de contratos de casamento, e a formação de sólidas redes de parentesco através das trocas matrimoniais. A investigação recorreu a documentação proveniente de fundos régios, monástico-conventuais, e de arquivos de casas senhoriais. Para além da tese, disponibilizam-se igualmente dois volumes de anexos: o primeiro apresenta a transcrição de 54 documentos inéditos, assim como fontes heráldicas e tabelas que sintetizam os dados que suportam as nossas observações; o segundo volume reúne todo o corpus genealógico, designadamente os esquemas que permitiram inquirir as relações de consanguinidade e afinidade do grupo. Nesta apresentação, privilegiaremos a enunciação das principais hipóteses e conclusões da investigação.

  • 2 MATTOSO, José (ed.) – Livro de Linhagens do Conde D. Pedro. In Portugaliae Monumenta Historica. Lis (...)

2Confrontando-nos com uma sociedade que, pese embora as aparências de semelhança, se estruturava de um modo muito distinto do mundo em que vivemos, norteámos a nossa perspetiva de investigação pelos princípios da antropologia histórica. Tratava-se, desde logo, de reconhecer a alteridade, de reconstituir a lógica inerente ao sistema social medieval, e de tentar construir uma interpretação abstrata sobre esse funcionamento, necessariamente fundada na observação dos fenómenos sociais que lhe dão corpo. Pese embora todas as discussões específicas dos antropólogos, partimos com o postulado segundo o qual os sistemas de parentesco de todas as sociedades, apesar de condicionados por uma base biológica, são sobretudo socialmente construídos. A perceção sobre o que é o parentesco, sobre o que é um pai ou uma mãe, variaram significativamente em função das crenças que estruturaram as várias sociedades que existiram no mundo. No ocidente medieval, as conceções sobre o parentesco encaixam numa mundividência mais lata; dito de outro modo, as perceções que se constroem sobre as relações parentais dos indivíduos são tributárias de um modo de percecionar o mundo e as relações entre os homens inseparáveis de um conjunto de “mitos fundadores” de origem cristã, numa sociedade que se pensava como ecclesia e que não conhecia outro fundamento de verdade senão aquele que emanava de Deus e das Escrituras. Resumidamente, a proximidade de parentesco significava a tendência para uma forte união entre as pessoas, geradora de amor e concórdia, os grandes ideais da sociedade medieval, por oposição à discórdia e à desagregação, consequências do Pecado Original. Como afirmava o conde D. Pedro de Barcelos, “nem ũa amizade nom pode ser tam pura segundo natura come daqueles que descendem de ũu sangue, porque estes movem-se mais de ligeiro aas cousas per que a amizade se mantem”2.

3Para a aristocracia, associados ao parentesco estavam, também, o acesso a posições sociais relevantes, a inserção em redes de poder, e a transmissão da fortuna. Concretamente, associam-se-lhe por um lado uma valorização implícita de unidade, indissociável do amor que era a dádiva divina que deveria unir os homens a Deus e entre eles; e, por outro lado, o acesso às bases materiais que contribuíam para a reprodução de uma ordem social que, apesar de inspirada numa matriz cristã em que todos os homens eram iguais perante Deus, aceitava como um dado adquirido e natural a existência de desigualdades na cidade terrestre.

4A nossa tese global é que o parentesco desempenhou um papel fulcral na reprodução social da aristocracia. Entendemos o conceito de reprodução social como um processo observável em todos os sistemas sociais, e que consiste na manutenção de uma dada ordem, com as suas hierarquias e relações. Trata-se de um processo dinâmico, estruturado simultaneamente por aspetos materiais e ideológicos que lhe fornecem sentido, e que contribui, numa gradação específica a cada sociedade, para um certo equilíbrio homeostático, gerador de inércia das estruturas. No ocidente medieval – que, como todas as sociedades, estava sujeito à mudança e transformação – essa inércia era, de resto, percecionada positivamente, porque fundada na tradição e imaginada organicamente como uma pretensa vontade divina.

5Como se articulam, então, estas variáveis? Os efeitos globais da transmissão e aliança estão imbricados, mas convirá decompô-los nesta breve apresentação por razões analíticas, embora necessariamente esquemáticas. O estudo das práticas de transmissão permitiu destacar várias ideias. Em primeiro lugar, é fulcral ter presente que a natureza dos bens à disposição da aristocracia impunha formas distintas de transmissão. Agrupamo-las sob dois domínios, defendendo que ambos desempenham funções diferentes, mas complementares, integradas num processo mais amplo de reprodução social. Temos, por um lado, a sucessão. Ela aplica-se essencialmente aos bens indivisíveis, transmitidos a apenas um dos herdeiros, sob critérios que hierarquizam os membros das parentelas. Critérios inscritos nos senhorios doados pela coroa, mas também nos vínculos fundados pelos aristocratas. A sucessão aplica-se assim aos bens socialmente mais valorizados, isto é, consubstanciavam o domínio da terra e dos homens, numa relação percecionada organicamente como uma composição de deveres e direitos entre os senhores e os homens e mulheres que lhes estavam sujeitos. É neste domínio que surge a figura idealizada do filho primogénito, corporizando a continuidade do domínio social. Paulatinamente, a premência dos esquemas sucessórios contribuiu para a formação de um sistema de casas, fundadas na manutenção estável de um conjunto de terras, associadas a símbolos como apelidos e dispositivos heráldicos. A cronologia deste trabalho pôde assim constituir-se num observatório para a formação da estrutura do domínio aristocrático que, nos seus traços gerais, se manteria em Portugal até ao fim do Antigo Regime.

6Se os bens de sucessão se apresentam como estáveis, integralmente preservados, com uma existência pensada até ao fim dos tempos – como não deixam de sublinhar os instrumentos de fundação de morgados e capelas que procuravam manter vivos os fundadores, no quadro de uma sociedade enformada pela escatologia cristã –, por outro lado, os bens de herança caraterizavam-se pela sua dispersão e circulação. Se os bens de sucessão impõem às parentelas formas de hierarquização no seu interior, pois os seus donatários e administradores não têm sobre eles direitos ilimitados, já os bens de herança, considerados próprios dos indivíduos, têm necessariamente de ser partilhados. As dinâmicas de partilha, de dispersão e circulação da fortuna, estudadas através de testamentos e cartas de partilha preservados em fundos documentais fora do âmbito das instituições régias, cumprem desideratos fundamentais na organização interna do grupo aristocrático. O terço dos bens de que os indivíduos poderiam dispor para os seus testamentos serviram sobretudo para «espiritualizar» a riqueza, fosse através de institutos formais como as capelas às quais se alocavam rendimentos para contratar orações e outras obras pias de modo a contribuir para a salvação das almas, fosse através das dádivas a próximos, parentes consanguíneos, criados ou pobres anónimos. Os outros dois terços das fortunas, sujeitos a partilhas entre os herdeiros – prioritariamente os filhos e filhas legítimos e, caso não os houvesse, os ascendentes ou colaterais –, permitiam dotar os filhos, fornecer-lhes um destino socialmente relevante, e, entre outras coisas, negociar alianças matrimoniais, um dos veículos primordiais para a circulação das fortunas entre as parentelas aristocráticas.

7Em síntese, se a sucessão enquadra cada vez mais a continuidade das formas mais completas do poder senhorial à disposição da aristocracia, a herança, por seu turno, alimenta as relações sociais e espirituais, expressas a vários níveis. Permitimo-nos por isso destacar desde já aquele que entendemos ser um conceito-chave para compreender os problemas que tivemos em mãos nesta investigação: para além da sucessão, a reprodução estável da aristocracia passou, em grande medida, por uma coesão interna que era fabricada pela densidade das suas relações sociais. Essas relações são parcialmente alimentadas pela circulação da fortuna, numa sociedade onde a dádiva formalmente desinteressada se reveste de um sentido positivo porque enformado pela caritas, pelo dom divino que devia unir os homens.

  • 3 SANTO AGOSTINHO – A Cidade de Deus. Vol. IX. Ed. J. Dias Pereira. 5.ª edição. Lisboa: Fundação Calo (...)

8E é também por essa razão que atribuímos uma importância fulcral às relações matrimoniais. Desde os escritos patrísticos, passando pela teologia e pelo direito canónico, o matrimónio é encarado como um instrumento de difusão do amor: o amor que, recordemo-lo, se pensava enquanto vínculo social global, emanado de Deus, e não como um sentimento da esfera privada tal como hoje o entendemos. O casamento permitia assim unir a cidade dos homens, e enquadrar a reprodução da humanidade. Integradas pelo batismo, as pessoas nascidas da união sexual entre o homem e a mulher responderiam ao mandamento divino de reproduzir a Igreja fundada pela Nova Aliança entre Deus e a humanidade. Por conseguinte, o casamento não se podia pensar fora de um sistema de representações que sobrepõe em lógicas homológicas Deus, os homens e a ordem divina que devia estruturar o mundo. Como numa esfera de relações consanguíneas próximas há a tendência para haver maior união entre os homens, eles deveriam então casar com aqueles que não eram os seus próximos para, segundo a fórmula de Santo Agostinho, “deter [o parentesco] na sua fuga”3. Segundo a perspetiva que atribui ao casamento o potencial de gerar união do corpo social, e que pensa o incesto não como uma questão “fisiológica”, mas sim de articulação dos registos carnal e espiritual, as autoridades eclesiásticas construíram um vasto sistema de interditos que proibiam relações com um espetro de parentes consanguíneos, por afinidade e por parentesco batismal. Na época em que situámos a nossa investigação, estes vastos interditos, longe de minar a coesão de um grupo social minoritário e caraterizado por uniões matrimoniais com pessoas socialmente semelhantes, contribuíram, na verdade, para a sua coesão.

9Os vários capítulos que consagrámos ao estudo das práticas de aliança permitiram destacar, desde logo, que ela foi um veículo primordial para a circulação das fortunas. Os contratos de casamento, abundantes nos fundos régios, monástico-conventuais e de casas aristocráticas, testemunham dos enormes investimentos das parentelas na dotação das suas filhas – e também por vezes dos filhos – com o intuito de lhes dar casa. Num plano global, estas transferências de fortuna encastravam-se no laço matrimonial e permitiam densificar as relações no seio do grupo. Os sentidos de tais transferências adquirem maior consistência se compaginados com as caraterísticas das redes matrimoniais, enformadas que estavam por lógicas sociais mais profundas.

10A análise da consanguinidade, da afinidade, e da sua articulação com redes e interesses sociais, fez surgir um padrão caraterizado pela exiguidade de casamentos com parentes próximos. Maioritariamente, o grupo considerado neste estudo contraiu alianças matrimoniais com indivíduos com quem partilhavam um antepassado longínquo, entre o 4.º e o 7.º graus canónicos, uma inevitabilidade no quadro de um grupo restrito e socialmente endogâmico, mas que, segundo os preceitos agostinianos, cumpria o desiderato fundamental: tratava-se de deter o parentesco na sua fuga gerando novas relações de unidade. Se do ponto de vista consanguíneo as uniões são sobretudo exogâmicas, do ponto de vista social, como referíamos, eram essencialmente endogâmicas. Fruto do seu perfil curial, a média e alta aristocracia de corte que considerámos nesta investigação organizou as suas relações matrimoniais principalmente através do recrutamento de cônjuges pertencentes à mesma esfera social, partilhando a inscrição no espaço dominado pelos monarcas e seus parentes próximos; recrutaram primordialmente cônjuges do mesmo estatuto social, mas absorveram simultaneamente novos grupos através de ligações com parentelas em ascensão. Relacionando estes vários pontos, podemos com propriedade afirmar que esta aristocracia curial, simultaneamente detentora de significativos poderes senhoriais exercidos através da coroa, dependeu grandemente da densidade de relações parentais que teceu em torno do espaço social da corte régia. As trocas matrimoniais caraterizam-se, portanto, por uma articulação entre exogamia consanguínea e endogamia social que permitia multiplicar relações, encadeá-las sucessivamente, gerando assim uma coesão assente em relações dinâmicas.

11Defendemos que esta foi a condição primordial que permitiu a coesão do grupo e a sua duradoura inscrição nos espaços sociais decisivos, tecendo redes de apoio e solidariedade, pelas quais, aliás, eram transmitidas as bases de poder. As próprias dinâmicas de transmissão que estudámos, estruturadas entre a sucessão e a herança, adquirem maior eficácia através das densas redes que são constantemente fabricadas e recriadas através das relações matrimoniais. Estas inscrevem-se, de resto, num conceito mais vasto e estruturante, que é o da densificação das relações sociais em que, de forma análoga, também se podem inserir outro conjunto de relações essenciais e formadoras das estruturas de poder: a vassalagem, a criação, as clientelas. Quanto mais relações, maior abrangência, maior coesão, e maior condição para a dominação social; nessa lógica, a dispersão da fortuna, respondendo às pulsões caritativas que deveriam nortear a vida dos fiéis, servia igualmente – e de forma fundamental – para consolidar essas relações. Em suma, as relações de parentesco, pensadas dentro de uma mundividência filtrada por mitos fundadores de origem cristã, apresentam-se como uma estrutura essencial de suporte à condição dominante da aristocracia e à sua reprodução estável ao longo do tempo.

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Notas

1 As linhagens selecionadas foram as seguintes: Albuquerque, Almeida, Ataíde, Castro, Lima, Pereira, Vasconcelos.

2 MATTOSO, José (ed.) – Livro de Linhagens do Conde D. Pedro. In Portugaliae Monumenta Historica. Lisboa: Academia das Ciências, 1980, vol. 1, pp. 56-57.

3 SANTO AGOSTINHO – A Cidade de Deus. Vol. IX. Ed. J. Dias Pereira. 5.ª edição. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2017, p. 16.

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Miguel Aguiar, «Aristocracia, parentesco e reprodução social em Portugal no final da Idade Média. Tese de doutoramento em História apresenta em regime de cotutela entre a Universidade do Porto e a Université Paris 1 Panthéon-Sorbonne, em 25 de junho de 2021. Orientação do Professor Doutor José Augusto de Sottomayor-Pizarro e do Professor Doutor Joseph Morsel »Medievalista [Online], 31 | 2022, posto online no dia 01 janeiro 2022, consultado o 20 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/medievalista/5189; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/medievalista.5189

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Autor

Miguel Aguiar

Universidade Nova de Lisboa, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Instituto de Estudos Medievais, 1070-312 Lisboa, Portugal. miguelaguiar@fch.unl.pt. https://orcid.org/0000-0002-1930-1845

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