A Guerra cristã na formação de Portugal, 1128-1249. Tese de doutoramento em História, especialidade de História Medieval, apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, em Julho de 2021. Orientação da Professora Doutora Amélia Aguiar Andrade e Professor Doutor Miguel Gomes Martins
Notas da redacção
Data recepção do artigo / Received for publication: 24 de Setembro de 2021
Texto integral
1No panorama português, se por um lado, existem já muitos estudos setoriais de vulto sobre temas relacionados com a guerra no tempo da Reconquista, por outro lado, os que observam o objeto de um modo panorâmico ou, se quisermos, multifacetado, são ainda escassos e incidem, sobretudo, em cronologias posteriores. Interessava, por isso, perceber o comportamento dos fatores militares na cronologia que estudámos. Um outro ponto de ancoragem do presente trabalho, que estamos em crer que lhe empresta caráter inovador, é a aplicação de novos métodos de estudo, ou pelo menos métodos pouco usuais, que resultaram quer na obtenção de dados novos, quer na confirmação de dados conhecidos, embora por outras vias.
2O objeto de estudo, definido desde o primeiro momento, foram as operações militares terrestres conduzidas pelo poder régio ou em apoio direto desse poder. Seguidamente, interessava proceder à definição do âmbito do trabalho, tendo-se escolhido, como delimitação temporal, a cronologia simbólica de 1128-1249, entre o início do governo de D. Afonso Henriques e o final da Reconquista portuguesa, com a tomada de Faro por D. Afonso III, admitindo, naturalmente, o recuo a cronologias anteriores ou o avanço a posteriores, sempre que tal se revelasse útil para a caraterização do objeto. Espacialmente, considerou-se o alcance do braço militar régio, que compreendeu, de um modo geral no período escolhido, toda a faixa do terço ocidental da Península Ibérica.
- 1 Onde a visão de conjunto se obtém por um processo em que os aspetos estritamente militares são anal (...)
3O objetivo, convertido em questão central, foi explicar o significado e extensão da organização militar da sociedade cristã no ocidente ibérico nos séculos XII e XIII, algo que – sabíamos à partida – só seria compatível com uma tese panorâmica1. Por conseguinte, seccionámos o problema, direcionando-nos para a procura de respostas a um conjunto de questões derivadas, cujas principais se apresentam. Em que medida o meio físico interferia na prática da guerra? Quais eram e qual o papel militar dos diferentes contingentes guerreiros? Qual o valor estratégico das fortificações? Que formas de guerra eram as predominantes e porquê? Como se gerava, organizava, sustentava e motivava a força militar?
4Para estas e para outras questões que se foram colocando, nem sempre foi possível encontrar respostas objetivas, permanecendo muitas no campo das hipóteses. Apesar disso, o resultado de conjunto permitiu perceber as principais dinâmicas marciais no período estudado.
5Um trabalho desta natureza requereu a atenção a dois cuidados permanentes. O primeiro derivou da necessidade de colocar em sistema os principais fatores caraterizadores do objeto. Para isso, foi essencial identificá-los e assegurar que a informação sobre eles fosse suficiente e com um grau de profundidade equivalente, para que se pudessem reconhecer as relações mútuas. Neste âmbito, se por um lado, em relação a uns assuntos, beneficiámos dos atuais avanços historiográficos, por outro lado vimo-nos na necessidade de desenvolver algumas dimensões menos estudadas, como a relação do homem-guerreiro com o território ou as diferentes cavalarias não-nobres que, tradicionalmente, vêm sendo agrupadas sob a designação de cavalaria-vilã, mas que parecem ter sido mais diversas.
6O segundo cuidado foi a atenção constante à diacronia, uma vez que o estudo incide sobre um período longo de dinamismo acelerado, com mudanças significativas na dimensão militar. Por conseguinte, só percebendo a sequência dos acontecimentos foi possível identificar relações causa-efeito que resultaram em alterações no panorama militar. Por exemplo, ao longo do tempo observado pudemos constatar um progressivo aumento do protagonismo da cavalaria-vilã na guerra contra o Islão, até finais do século XII, seguido de um declínio muito rápido, em favor de uma centralidade das ordens militares e do reaparecimento da nobreza. Esta perda de importância da cavalaria não-nobre na guerra deverá ter uma relação direta com a diminuição do espaço controlado pelo Islão, o afastamento da fronteira, o encerramento da nobreza em si mesma e a redução acentuada da mobilidade social.
7Para além destes dois aspetos centrais, as nossas circunstâncias pessoais e profissionais impuseram limitações à investigação, que tivemos de assumir, ab initio. Sabíamos que não iríamos dispor de tempo para efetuar trabalho de arquivo, pelo que recorremos exclusivamente, embora com uma ou outra exceção, a fontes impressas. Felizmente pudemos beneficiar de um volume considerável de fontes publicadas, quer narrativas, quer diplomáticas, que nos permitiu obter informação através da aplicação de uma grelha de análise muito fina, norteada pela busca de resposta a novas questões. Uma outra limitação residiu na incapacidade de ler textos árabes nas versões originais, pelo que o recurso às fontes islâmicas consistiu nas publicadas e traduzidas e, sobretudo, na assunção, a priori, de que a análise da guerra seria sob a perspetiva cristã.
- 2 GARCÍA FITZ, Francisco – Castilla y León frente al Islam: estrategias de expansión e tácticas milit (...)
- 3 MONTEIRO, João Gouveia – A guerra em Portugal nos finais da Idade Média.
- 4 MARTINS, Miguel Gomes – A arte da guerra em Portugal: 1245 a 1367. Coimbra: Imprensa da Universidad (...)
8Os objetivos traçados levaram-nos a procurar um modelo multidimensional que representasse o compromisso entre o que pretendíamos saber e a informação disponível. Neste campo não estávamos isolados, pois beneficiámos de modelos de análise de outras teses de doutoramento panorâmicas, especialmente de Francisco García Fitz2, João Gouveia Monteiro3 e Miguel Gomes Martins4, que constituíram as principais referências metodológicas e teóricas do trabalho. Em concreto, no nosso caso partimos de um articulado inicial, desenvolvendo progressivamente uma estrutura que teve expressão direta no índice da tese.
9Foi com esta preocupação em mente que entendemos que o ponto de partida devia ser o que sabemos sobre as sociedades e poderes com expressão militar e essa razão conduziu-nos a um primeiro capítulo fundamentalmente assente em estudos historiográficos e no atual estado da arte sobre o assunto. Num segundo capítulo, dedicámo-nos a estudar o ambiente operacional, procurando perceber em que medida os espaços conferiam possibilidades e representavam limitações à prática da guerra. Seguidamente analisámos as condições e os recursos para a atividade guerreira, quer do ponto de vista dos contingentes disponíveis, quer das possibilidades de obtenção e manutenção do potencial militar. Observámos, depois, a fortificação, efetuando uma incursão pela sua dimensão técnica, embora a principal inovação tenha consistido na dimensão estratégica analisada, depois de identificados sete sistemas cronológica e espacialmente coerentes. No quinto capítulo, estudámos o modo de execução da guerra, examinando em primeiro lugar a relação entre as técnicas guerreiras individuais e o combate coletivo, para posteriormente analisar as formas de guerra que, em conjunto, circunscrevem toda a conflitualidade. Observámos, num último capítulo, dimensões que pela sua especificidade e complementaridade, nos pareceram merecer um tratamento destacado: o treino militar, as isenções e fugas ao serviço, a sustentação logística, a dimensão psicológica e o tratamento dos vencidos.
10A diversidade e heterogeneidade do corpus de fontes levou a que ponderássemos permanentemente os riscos inerentes à sua utilização. Entre eles, a abundância de certos dados militares nas fontes leonesas e castelhanas, destacando-se os foros de Ribacoa e o conjunto jurídico das Partidas, acerca dos quais não é possível perceber profundamente o reflexo em Portugal. Por outro lado, o uso das Inquirições, conjunto especialmente rico no panorama português, também implicou riscos quanto à generalização dos dados obtidos, uma vez que estas incidiram somente sobre uma parte específica do território. Foi igualmente importante manter presente que os textos normativos contemplam quadros e casuísticas que partem da realidade, mas não o são comprovadamente, pelo que o facto de estarmos frequentemente perante preceitos normativos não significa que o preconizado se materializasse realmente. Além disto, tivemos sempre presente o contexto de produção dos textos, na consciência de que omitem boa parte da atividade bélica, conduzida por outros intervenientes que, de um modo geral, não beneficiavam de estatuto social suficiente para nelas figurarem. Foi-nos, portanto, difícil encontrar a guerra dos pequenos efetivos de expressão local, que estamos em crer, era – pelo menos em alguns períodos e em determinadas geografias – a mais frequente. As fontes também são silenciosas sobre realidades que, para o homem medieval, eram banais, mas que seriam absolutamente fundamentais para caraterizar a guerra. São, certamente, razões desta ordem que contribuem para que muito raramente mencionem, por exemplo, o local de reunião de forças militares ou detalhem os equipamentos envergados e utilizados pelos guerreiros.
11A obtenção de conhecimento novo dependeu em larga medida da aplicação de métodos de análise e instrumentos auxiliares pouco usuais no estudo da história. Entre os que consideramos inovadores destacamos os estudos no âmbito da climatologia, que conduziram à identificação de correlações entre condições climatéricas e atmosféricas e a atividade militar. A estes adicionamos os recursos topográficos, que nos possibilitaram estudar a adequação do território às atividades militares. Um outro campo de estudo, a botânica, permitiu-nos deduzir aspetos do coberto vegetal com implicação no movimento das hostes e na defesa de determinadas áreas, bem como nos conduziu a conclusões sobre os ciclos agrícolas e as possibilidades de alimentação de equídeos. Foi igualmente central a área científica da estratégia que, com as devidas distâncias e cuidados em relação à cronologia estudada, nos ajudou a interpretar as opções militares dos protagonistas medievais. Finalmente, o nosso conhecimento prático do universo castrense contemporâneo também foi relevante para determinadas interpretações, importando ressalvar que este recurso foi objeto de um cuidado redobrado na sua utilização, para não incorrer em erros de anacronismo, de leituras forçadas ou de ilusão sincrónica.
12Dos resultados obtidos, salientam-se, de imediato, dois contributos genéricos: um primeiro diz respeito a acreditarmos ter acrescentado algo à compreensão do fenómeno da guerra, enquanto atividade humana, de um ponto de vista intemporal. O outro reside na constatação de que, através da interpretação de determinados assuntos bélicos na cronologia estudada, podemos ter facilitado o trabalho a historiadores de outras temáticas que, inevitavelmente, se tenham de cruzar com a guerra. Em todo o caso, o principal contributo é, sem dúvida, a visão panorâmica obtida.
13Nesse âmbito, verificámos que quer as estratégias de expansão promovidas pela Coroa, quer as operações militares conduzidas por outros poderes, consideravam as variáveis do ambiente operacional e das conjunturas de cada momento, aproveitando bem as oportunidades que estas proporcionavam. Foi possível demonstrar as razões que favoreciam a execução de campanhas militares em maio, altura do ano em que a água e o pasto eram abundantes, os trabalhos agrícolas abrandavam de ritmo antes da ceifa do cereal e o caudal dos cursos de água já tinha reduzido o suficiente para proporcionar locais de travessia. Apesar disso, no ocidente peninsular, as operações tinham lugar durante todo o ano, embora nos períodos menos favoráveis os efetivos utilizados fossem menores. Foi ainda possível compreender e explicar o modo como o terreno foi condicionador dos movimentos militares e, por isso, alvo de muita atenção e de uma apreensão cuidada.
14Em Portugal, o rei era o poder com maior capacidade de mobilização, tendo-se verificado efetivos máximos perfeitamente equivalentes às hostes leonesa e castelhana coevas. Identificámos aspetos particulares da composição da guarda régia e da dinâmica entre este grupo e as mesnadas senhoriais. Verificámos o papel das ordens militares e que em Portugal a relação destas com a Coroa parece ter sido mais profunda do que uma coexistência cooperante, já que reconhecemos populações que tinham a obrigação, estipulada pelo próprio monarca, de acompanhar os freires nos assuntos da guerra. Pudemos demonstrar o papel central dos contingentes municipais e que o fossado régio deve ser entendido não como a expedição anual do rei, mas uma atividade de expressão local, que fazia com que, em maio, inúmeras incursões se multiplicassem em simultâneo, convocadas e comandadas pelos representantes régios nas diferentes comunidades. Caraterizámos os mecanismos de preservação e manutenção dos recursos militares em níveis estáveis, apesar da erosão causada por um ambiente de conflitualidade recorrente.
15No âmbito da fortificação, foi-nos possível circunscrever sete regiões distintas em que os conjuntos edificados funcionaram, pelo menos durante algum tempo, no âmbito de uma lógica de sistema. Observámos que em regiões de orografia acentuada, os sistemas lineares se desenvolveram numa perspetiva de defesa em profundidade, ou seja, ao longo dos principais eixos de penetração, e não no intuito de materializar uma “linha de defesa”, como é frequentemente veiculado por alguma historiografia. Observámos, adicionalmente, que nas regiões em que o estabelecimento de uma linha defensiva teve significado, as fortificações mais importantes não se encontravam na frente avançada, mas mais recuadas, como foram os casos de Trancoso em relação à defesa do Côa ou de Tomar em relação à defesa do Tejo. Foi ainda possível identificar algumas fortalezas-chave, cuja posse era fundamental para possibilitar a progressão numa dada região. A título de exemplo, verificou-se que Algoso era central para o controlo da região de Bragança; Lanhoso para a defesa de Braga; e Tomar para o domínio da passagem do Tejo.
16A forma de guerra largamente predominante face às restantes era irregular e de baixa intensidade, mais tarde designada por “guerra guerreada”. Única tipologia ao alcance de todos os poderes, os indícios de que era comum e extensiva a toda a sociedade são múltiplos: o registo nas fontes narrativas de saques de vulto obtidos nas expedições conduzidas pela Coroa; a recorrência de normas relacionadas com a obtenção de proventos de guerra nos documentos outorgados a concelhos e a outras comunidades; os testemunhos obtidos no âmbito das inquirições régias; enfim, o léxico coevo, que recorria a termos como fossado, cavalgada ou algara.
17As outras formas de guerra: de apropriação territorial e as batalhas campais, estavam somente ao alcance de grandes poderes, como o régio, alguns senhoriais, ordens militares e, ocasionalmente, outros grupos, como milícias concelhias mais numerosas e bandos como o de Geraldo. Se, no entanto, era possível a estes intervenientes a obtenção de vitórias militares, em Portugal, a consolidação dos ganhos territoriais ficou sempre a cargo do rei, situação que se comprova pela confirmação régia de conquistas efetuadas, independentemente dos atores a quem couberam as ações bélicas.
18No que respeita à preparação dos combatentes, o elevado grau de militarização da sociedade pressupõe que o treino militar, ainda que rudimentar, não fosse um exclusivo da nobreza ou da cavalaria num sentido funcional. Esta militarização tinha expressão nas obrigações militares específicas de cada homem, cuja falta era punida de acordo com uma escala de prioridades.
19Uma outra dimensão fundamental, a sustentação logística, era assegurada por diferentes processos, entre os quais a aposentadoria, o transporte individual e trens de apoio. Os cavalos eram alimentados com pasto e água nos locais escolhidos para estabelecimento do arraial, cuja dimensão dependia da quantidade de erva que conseguissem fornecer, podendo ser de um mínimo de um hectare para 50 cavalos em maio, a cinco ou mais hectares nos outros meses.
20A dimensão psicológica era igualmente bem explorada pelos guerreiros medievais. Antes do combate dirigiam-se arengas motivadoras às tropas e, durante os confrontos, os chefes procuravam instilar terror no adversário, através da exposição de mutilações, da tortura e morte violenta de prisioneiros. Tudo isto decorria sobre um pano de fundo propagandístico, veiculado nas fontes narrativas, onde o “outro” era diabolizado e a guerra contra ele movida era justa. O inimigo vencido que sobrevivesse podia ser capturado e posteriormente trocado por um resgate ou convertido em escravo. Em ambos os casos, a guerra estava na origem de uma atividade económica paralela, com epicentro na fronteira e concretização no interland de cada um dos lados em confronto.
21O nosso estudo permitiu confirmar que o modelo cristão de descentralização da condução da guerra nas mais pequenas comunidades, tendo como principais contrapartidas a possibilidade de obtenção de proventos de guerra e de ascensão social, gerou um modo de ocupação do território capaz de absorver as incursões muçulmanas, causando-lhes atrição e desgaste sem necessidade de as enfrentar em batalha campal. No plano ofensivo, o rei conseguia reunir contingentes de dimensão ajustada ao objetivo e finalidade das operações, graças a um sistema de mobilização socialmente abrangente. Dado o modelo muçulmano de ocupação e administração do território, associado ao seu modo centralizado de condução da guerra, as populações rurais islâmicas eram especialmente vulneráveis a ações de saque e os principais centros urbanos, uma vez conquistados, precipitavam a queda das fortalezas suas subsidiárias, algo que o lado cristão compreendeu e incorporou na sua estratégia de expansão.
22Apesar de existirem muito mais similitudes do que diferenças no modo de guerrear das sociedades cristãs ocidentais ibéricas, foi possível descortinar alguns aspetos que nos parecem constituir especificidades portuguesas. Entre estes contam-se a maior incidência, relativamente a Leão e Castela, de apoios cruzados do Norte da Europa nas operações de conquista, o elevado grau de cooperação e interdependência entre a Coroa e a ordens militares ou o grande relevo dos besteiros enquanto categoria sócio-militar. Todavia, a generalidade dos resultados obtidos aponta para uma grande semelhança no modo como os outros dois reinos cristãos peninsulares ocidentais, Leão e Castela, encararam e praticaram a guerra, reveladora de transferência de conhecimento militar, devida, entre outros fatores, à circulação da nobreza e à interpenetração dos modelos de ocupação territorial, com paradigmas normativos comuns.
23Observámos que as opções de resposta militar da monarquia portuguesa foram, de um modo geral, ajustadas aos desafios colocados ao reino e mesmo nas campanhas em que não houve intervenção régia direta, a ação militar fez-se sentir pela mão dos municípios, das ordens militares, de mesnadas senhoriais e mesmo da hoste régia, ainda que não comandada pelo rei em pessoa. Verificámos, ainda, que na cronologia estudada as influências militares transpirenaicas se mesclaram com os costumes ibéricos e geraram um modo de guerrear subordinado a regras diferentes das da Europa franca e germânica: os cavalos e o modo de montar eram diferentes, a batalha decisiva menos relevante, as estratégias de aproximação indireta sobrepunham-se à ação direta e a guerra contra o Islão decorria no contexto de uma dinâmica económica, de transação de proventos de guerra, incluindo cativos, que lhe emprestou caraterísticas distintivas.
24O presente trabalho permitiu-nos chegar uma espécie de lugar intermédio, com muitos percursos em aberto, que temos o ensejo de percorrer em futuros próximos. Por exemplo, a análise das fontes permitiu perceber que é possível esboçar uma cartografia bastante precisa de algumas áreas do reino, com as caraterísticas que esses territórios apresentavam entre o final do século XII e início da centúria seguinte. Estamos convencidos que o desenvolvimento dessa cartografia não só abriria horizontes ao estudo da guerra, como também a muitos outros campos de investigação. Neste âmbito assumem destaque as possibilidades de análise das vias de comunicação numa perspetiva medieval, permitindo ultrapassar a sujeição dos estudos à continuidade exclusiva ou quase exclusiva da rede viária romana.
25Uma vez que a maior fatia da atividade bélica no período coube às pequenas comunidades, seria interessante uma reconstrução do modo de guerrear dessas gentes, assunto para o qual dispomos de documentação excecional de produção leonesa, para a região de Ribacoa, mas que seria importante reconstituir para outros espaços de Portugal.
26Também interessaria perceber melhor as dinâmicas inerentes à cavalaria não nobre, porque nos parece que, do ponto de vista militar, o termo “cavaleiro-vilão” encerra insuficiências, bem como aprofundar o estudo de guerreiros com funções específicas, como os adaís ou os almocadéns.
27No plano da técnica guerreira, importa aprofundar o debate sobre o modo e o tempo em que teve lugar, em Portugal, a transição da lança brandida para a lance couchée e explorar a temática do fabrico de utensílios e armamento militar.
28Alguns aspetos “micro” podem-nos ter escapado como, por exemplo, a transmissão hereditária de material militar, a extensão da apropriação territorial por presúria (que só encontrámos ocasionalmente nas fontes, mas que admitimos ser possível encontrar dados adicionais em fontes não publicadas) ou a relação das ordens militares com as populações delas dependentes face à guerra. Por conseguinte, pensamos que uma pesquisa de arquivo direcionada aos pequenos indícios militares contribuiria decisivamente para confirmar – ou infirmar – hipóteses por nós levantadas e para esclarecer questões ainda em aberto.
29Finalmente, a relação da componente aquática do território com a guerra – o mar e os cursos de água navegáveis – que não abordámos, e que merece certamente estudos detalhados por várias razões: porque o eixo central do reino se orientou pela linha costeira Lisboa-Porto-Braga; porque estavam previstos fossados de mar (veja-se o foral da Ericeira); porque a maioria das grandes expedições militares em território português teve apoio naval, mormente por parte dos cruzados; porque temos notícias de várias ações conjuntas mar-terra: Lisboa (1147), Silves (1189), Alcácer (1217), Mértola/Castro Marim (possivelmente em 1232); ou até porque o rei designou alcaides de mar, o que sugere o reconhecimento do espaço naval como área de jurisdição.
30A sociedade cristã organizada para a guerra no período estudado devia-se a um substrato guerreiro germânico presente desde o domínio visigodo, do qual subsistiam ainda bastantes evidências, umas certamente herdadas, outras deliberadamente emuladas, tudo isto subordinado a dois conceitos posteriores, o de Reconquista e o de Cruzada. “Bellum” e “guerra” eram duas faces da conflitualidade que se relacionavam, respetivamente, com a Extrematura e com a Frontaria, diferenciando, claramente, para os contemporâneos, o confronto militar contra o Islão do confronto contra outros poderes cristãos. Podemos afirmar que existiu grande sentido estratégico por parte dos protagonistas e que, a este nível, se mesclavam objetivos de diferentes poderes – do rei, de nobres, de eclesiásticos, de ordens militares “transnacionais”, ou de sociedades de fronteira, estas, sobretudo, na sua vertente concelhia. A nossa leitura, confirma, através de uma via de estudo própria, focada na guerra, que a conquista do Algarve, formalmente concluída em 1249, constituiu um sinal do triunfo da estratégia régia sobre as estratégias dos seus competidores, internos e externos.
Notas
1 Onde a visão de conjunto se obtém por um processo em que os aspetos estritamente militares são analisados em íntima conexão com os contextos económico, social, técnico, cultural e mental (MONTEIRO, João Gouveia – A guerra em Portugal nos finais da Idade Média. Lisboa: Editorial Notícias, 1998, p. 20).
2 GARCÍA FITZ, Francisco – Castilla y León frente al Islam: estrategias de expansión e tácticas militares (siglos XI-XIII). Sevilla: Universidad de Sevilla, 1998.
3 MONTEIRO, João Gouveia – A guerra em Portugal nos finais da Idade Média.
4 MARTINS, Miguel Gomes – A arte da guerra em Portugal: 1245 a 1367. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2014.
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Referência eletrónica
Carlos Filipe Afonso, «A Guerra cristã na formação de Portugal, 1128-1249. Tese de doutoramento em História, especialidade de História Medieval, apresentada à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, em Julho de 2021. Orientação da Professora Doutora Amélia Aguiar Andrade e Professor Doutor Miguel Gomes Martins», Medievalista [Online], 31 | 2022, posto online no dia 01 janeiro 2022, consultado o 22 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/medievalista/5182; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/medievalista.5182
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