1Sem qualquer pretensão de analisar o fenómeno da fronteira no contexto da Idade Média peninsular, tópico da maior complexidade e de há muito dissecado pelas historiografias ibéricas, torna-se fundamental, para o nosso propósito, equacionar a importância dessas construções políticas para os grupos senhoriais, sejam laicos ou sejam eclesiásticos.
2Como facilmente se compreenderá, a abundância de dados relativa à circulação transfronteiriça por parte dos membros do grupo aristocrático e das instituições eclesiásticas, seculares como regulares, nomeadamente das Ordens Religioso-Militares, é de tal forma abrangente que nos obriga a fazer uma selecção, tanto ao nível das tipologias como dos seus intervenientes concretos, tendo em vista a sistematização dos casos mais ilustrativos.
- 1 Um extenso elenco bibliográfico sobre esta temática em SOTTOMAYOR-PIZARRO, José Augusto de – “De e (...)
- 2 COSTA, Paula Pinto – “De la frontière a la consolidation du territoire: la contribution des Ordres (...)
3Tema de há muito trabalhado através de inúmeros estudos de caso1, no quadro das diferentes monarquias peninsulares, a facilidade de circulação de nobres entre elas era uma das práticas mais comuns, em virtude de circunstâncias familiares e patrimoniais, para além das mais evidentes de natureza política. Do mesmo modo, também os freires das ordens militares encontravam uma variedade ampla de circunstâncias que, da mesma forma, estimulavam a sua mobilidade no quadro da Península. Se, em algumas situações, a sua origem aristocrática pode ter sido a circunstância determinante para explicar a sua mobilidade, noutros casos foi a própria natureza e dimensão da instituição em que professaram que deu origem à necessidade de frequentes viagens, ou mesmo à fixação em reinos distintos do da sua origem, para garantir práticas de gestão no âmbito de instituições de grande dimensão e abrangência geográfica transfronteiriça. Mas, como bem se sabe, estas milícias foram ao mesmo tempo as instituições que mais colaboraram na definição da linha da fronteira, desenvolvida com o patrocínio régio2.
- 3 ROSAS, Lúcia – “A Lição dos Mosteiros nas Margens do Rio Minho. A perspectiva portuguesa”. In FONSE (...)
4Todavia, estas práticas estavam muito longe de se confinarem a grupos específicos, podendo também ser identificados noutros âmbitos, sociais como “profissionais”. Para o efeito, bastaria recordar a circulação dos trovadores, tão significativos no contexto peninsular como verdadeiros agentes da difusão das tradições culturais e literárias de distintas proveniências europeias, ou ainda a dos mestres responsáveis pela concepção arquitectónica e artística de inúmeros edifícios religiosos e monásticos espalhados pelos dois lados das diferentes fronteiras peninsulares. Neste último caso, recordem-se os templos românicos que bordejam as duas margens do rio Minho3.
- 4 FERREIRA, João Paulo Martins – “Organização Diocesana. A Influência Transfronteiriça das Dioceses d (...)
- 5 FONSECA, Luís Adão; et al. – “Bragança na Idade Média”. In SOUSA, Fernando de (coord.) – Bragança. (...)
5De resto, e sem abandonar a região minhota, ali se vai encontrar um dos exemplos mais notáveis, se não mesmo o mais representativo a nível Hispânico, de uma realidade eclesiástica completamente alheia à existência de uma fronteira política, materializada pela diocese de Tuy, que se estendeu para dentro do território português até ao final do século XIV, sem que nenhum dos monarcas a vissem como um obstáculo para a afirmação dos respectivos poderes régios português ou castelhano4. Numa outra perspectiva, e agora no interior transmontano, permeabilidades semelhantes são detectadas na zona de Bragança, onde o mosteiro de Castro de Avelãs mimetiza uma linguagem arquitectónica e artística claramente inspirada pelo mosteiro cisterciense de Moreruela, um e outro situados na área de influência primordial dos Braganções5.
- 6 SOTTOMAYOR-PIZARRO, José Augusto – “«Pela Morte se Conhece um Pouco da Vida». A propósito do testam (...)
6Não se pense, porém, que é a proximidade à linha da fronteira que suscita este tipo de relações e de influências, uma vez que em espaços bem afastados dela se encontram fenómenos com algumas semelhanças. Recorde-se, a título de exemplo, a transferência de monjas clarissas de Zamora para o recentemente fundado convento de Santa Clara de Entre-os-Rios, por iniciativa de Dona Châmoa Gomes de Tougues e do seu marido D. Rodrigo Forjaz de Leão, em meados do século XIII6.
- 7 VENTURA, Leontina; OLIVEIRA, António Resende de (eds.) – Chancelaria de D. Afonso III. Livro I. Vol (...)
7Finalmente, e agora no âmbito régio, o último testamento de Afonso X é surpreendente pela forma como aliena alguns territórios de tradicional soberania castelhana, em benefício dos responsáveis máximos das ordens do Hospital e do Templo em Portugal. Isto mesmo se deduz pelo facto de a sua filha Dona Beatriz, poucos meses depois da morte do Rei Sábio, ter doado o castelo de Moura, tal como o tinham tido os Hospitalários, a D. Vasco Martins Serrão, filho do Mestre de Calatrava, D. Martim Rodrigues, e irmão do Mestre de Santiago, D. Pedro Martins, pelos muitos serviços que dele recebera7. Cedência ainda mais notável, se pensarmos que este foi o mesmo monarca que cerca de vinte anos antes tinha negociado um tratado fronteiriço com Portugal, o Tratado de Badajoz (1267), com condições bem restrictivas quanto à integração plena do reino do Algarve na coroa portuguesa.
- 8 MOREIRA, Filipe Alves – “O Papel da Língua e do Bilinguismo”. In FONSECA, Luís Adão da (coord.) – E (...)
8Em boa verdade, todas estas circunstâncias, sejam as de natureza política ou sejam as de perfil social e institucional, decorrem muitas vezes em espaços que sempre ficaram unidos, independentemente do maior ou menor vigor da separação político-diplomática, por factores muito mais profundos e antigos, como sejam a língua ou as tradições culturais, partilhadas de forma natural até à actualidade pelas populações que vivem de um e do outro lado dessa linha artificial. A dimensão simbólica do galego-português, ou do leonês na zona transmontana e da de Riba-Côa, é por demais evidente dessas pervivências8.
9Definidas, assim, as linhas principais do enquadramento da variedade das realidades transfronteiriças, vamos analisar de forma mais concreta uma série de casos, que do nosso ponto de vista ilustram a diversidade e a riqueza de matizes com que a fronteira era vivida por parte da aristocracia e pelos freires-cavaleiros das ordens militares, situando-nos entre os séculos XII e XIV, desde a criação do reino português até às convulsões políticas que afectaram as duas coroas na segunda metade de Trezentos.
- 9 Para um enquadramento geral, cfr. SOTTOMAYOR-PIZARRO, José Augusto de – “De e Para Portugal. A Circ (...)
10O fenómeno da circulação de nobres através das fronteiras entre os distintos reinos peninsulares, como por certo entre as diferentes monarquias da Cristandade medieval, assenta numa série de circunstâncias as quais, conjugadas ou não, favoreciam a deslocação dos indivíduos por períodos muito variados de tempo, desde um par de meses ou mesmo de anos, até ao afastamento definitivo do reino de origem, em moldes que nem sempre configuravam um exílio, ruptura que aqui apenas se tomará no quadro das relações políticas9.
11Por outro lado, e como já tivemos a ocasião de sublinhar anteriormente, este fenómeno era transversal a toda a hierarquia do grupo nobiliárquico, muito embora, e como sempre acontece, sejam os membros da corte ou das principais linhagens que deixaram memória mais visível dessas movimentações.
12Por último, deve-se sublinhar de forma muito expressiva o facto de as saídas dos reinos, pelo menos no que toca a Portugal e ao nível das causas de natureza política, terem consequências que vão evoluir ao longo da cronologia enunciada, como já tivemos a oportunidade de sublinhar num outro estudo:
“A facilidade com que os nobres dos dois reinos circulam de um lado para o outro da fronteira mantém-se sem grandes alterações praticamente até ao final do século XIV, se bem que a partir dos meados desta centúria, e pela coincidência de dois monarcas particularmente violentos no trono de Castela e de Portugal, os exílios não garantam a segurança.
- 10 SOTTOMAYOR-PIZARRO, José Augusto de – “De e Para Portugal. A Circulação de Nobres na Hispânia Medie (...)
A alteração mais evidente, porém, e directamente articulada com a questão anterior, prende-se sobretudo com a confiscação de bens. Com efeito, e até esta altura, um rico-homem servia um monarca durante uma série de anos, como tenente de uma terra e mesmo como alferes ou mordomo, e depois, por desavenças ou outros motivos, partia para o reino vizinho, onde era recebido com as honras devidas ao seu estatuto, não raro com as mesmas funções áulicas. Meses ou poucos anos depois voltava ao reino de origem, e repetia-se a mesma situação sem que os seus bens fossem alvo de qualquer confiscação. Os casos durante os séculos XII a XIV são suficientemente abundantes para se perceber a sua aceitação pela sociedade cortesã e, sobretudo, pelos monarcas, sendo exemplar a esse título o comportamento dos Bragançãos, dos Limas ou dos Teles. A partir de agora, as represálias pelo desserviço e a quebra da fidelidade ao senhor natural pagavam-se com a vida, no pior dos casos, ou com o confisco do património; o que gerava situações complicadas em caso de retorno à graça régia”10.
13Vejamos então alguns casos, muitos deles bem conhecidos, que nos permitam tipificar as situações que mais frequentemente levaram a fidalguia portuguesa a cruzar a fronteira leonesa-castelhana em busca de refúgio e protecção, de desagravo ou a fortuna, ou simplesmente para viver o apelo da aventura e do desconhecido, que infelizmente, do nosso ponto de vista, nos marca o destino desde há séculos.
14O primeiro grupo integra alguns membros da Família Real, que configuram situações diversificadas, desde as saídas naturais por casamento até aos exílios prolongados ou mesmo definitivos por motivação política. Nem todos, porém, tiveram uma repercussão semelhante. No século XIII destaca-se a figura do Infante D. Pedro, filho de D. Sancho I e de Dulce de Aragão. Desavindo com o seu irmão D. Afonso II, logo desde o início do reinado deste, em 1211, saiu do reino pondo-se ao serviço do seu cunhado e primo, Afonso IX de Leão, de quem foi mordomo-mor; ainda passou por Marrocos, ao serviço do Miramolim, de onde enviou para Portugal as relíquias dos Cinco Mártires franciscanos que ali tinham pregado e sofrido o martírio. Depois de outra temporada em Leão acabou por ir para a corte de Aragão, onde o seu primo Jaime I o casou com a condessa de Urgel. Após a morte desta, em 1231, colaborou com o monarca aragonês na consolidação da conquista das Baleares. Conquistador de Ibiza e grande beneficiário no repartimiento de Maiorca, acabou por trocar aquele condado pelo senhorio das Ilhas Baleares, que deteve até à sua morte em 1258.
- 11 SOTTOMAYOR-PIZARRO, José Augusto de – Linhagens Medievais Portuguesas. Genealogias e Estratégias (1 (...)
15Pelo final de Duzentos ganha relevo a figura do Infante D. Afonso, filho de D. Afonso III e de Beatriz de Castela. Também em conflito constante com o seu irmão, o rei D. Dinis, acabou por se refugiar na corte do avô de ambos, Afonso X, o Sábio, que o casou com a sua sobrinha Isabel, filha do Infante D. Manuel. Detentor de importantes senhorios, quer junto da fronteira com Aragão por via matrimonial, quer em Portugal, por doação paterna, junto da fronteira com Castela, fez guerra a seu irmão a partir destes, tal como ali deu guarida a inimigos de Sancho IV. As suas filhas, casadas com Molinas, Haros, Laras e Castros exprimem bem a influência política deste Infante, que por várias temporadas viveu exilado em Castela11.
16O caso de duas Infantas portuguesas, que por razões diversas foram viver para Castela, é um bom exemplo do diferente impacto que a trajectória de duas pessoas com a mesma origem poderia ter depois de abandonar o reino de origem; e, todavia, poderia pensar-se que uma, sendo rainha, se sobreporia à outra, apenas senhora de um mosteiro. Dona Constança, filha do rei D. Dinis de Portugal e mulher de Fernando IV de Castela, porém, foi porventura uma das figuras de rainha mais apagada e triste, subjugada pelos interesses e protagonismo político do pai e da sogra, a rainha Maria Molina. Pelo contrário, a sua tia Dona Branca, irmã do seu pai, foi uma das mulheres mais poderosas de Castela:
- 12 SOTTOMAYOR-PIZARRO, José Augusto de – Linhagens Medievais Portuguesas, vol. I, p. 171.
“(…) nascida a 28 de Fevereiro de 1259, foi senhora das vilas de Montemor-o-Velho, de Campo Maior e de Montalvão (por troca com a anterior), e ainda do mosteiro de Lorvão. É, porém, no património e no prestígio que alcançou no reino castelhano que reside a principal singularidade biográfica desta Infanta. Com efeito, tendo acompanhado a sua mãe até Sevilha, para junto de Afonso X, este deixou-lhe, em testamento, 100.000 marcos para casamento. Provavelmente, com essa quantia adquiriu a Sancho IV o senhorio do mosteiro das Huelgas de Burgos, à frente do qual a encontraremos a partir de 15 de Abril de 1295 até à sua morte, ocorrida em Abril de 1321. Ao longo desses dezasseis anos são inúmeros os documentos que permitem acompanhar a sua actuação, quer a nível individual quer como senhora do mosteiro, e ainda a sua intervenção directa na política entre os dois reinos. Destacando-se, também, as doações feitas à Infanta por Sancho IV e por Fernando IV e, mais do que outro qualquer, o seu testamento, onde se torna evidente a sua fortuna. Está sepultada nas Huelgas, num belíssimo túmulo armoriado”12.
17Por fim, e já para o termo do período escolhido, o caso de dois bastardos régios é bem exemplificativo da importância e impacto que algumas trajectórias tiveram além-fronteiras. Afonso Sanches, bastardo do rei D. Dinis, foi um dos mais poderosos senhores da corte paterna, quer pelo património quer pelo cargo de mordomo-mor que ocupou entre 1312 e 1323. Sendo uma das causas principais do enfrentamento entre o seu pai e o Infante herdeiro do trono, depois D. Afonso IV, acabou por ter que se exilar em Castela, onde foi vassalo do sobrinho, Afonso XI. Senhor de Albuquerque, por herança e por casamento, atacou Portugal desde esse domínio fronteiriço, quando os seus bens foram confiscados pelo meio-irmão. Foi pai do célebre D. João Afonso, o do Ataúde, alferes-mor de Afonso XI e mordomo-mor de Pedro I de Castela, e senhor de Meneses pelo casamento.
- 13 Uma biografia mais alargada destes dois bastardos régios, em SOTTOMAYOR-PIZARRO, José Augusto de – (...)
18Mas foi o seu irmão, o célebre D. Pedro Afonso, que melhor personificou a componente cultural das relações transfronteiriças: 3º Conde de Barcelos e Alferes-mor desde 1314, viveu exilado em Castela na corte do seu sobrinho Afonso XI, entre 1317 e 1322, também arrastado pela guerra que opôs o seu pai ao seu meio-irmão; foi por certo nesse período que frequentou os principais arquivos régios castelhanos, aí recolhendo os materiais com que depois, para além da sua produção poética, elaborou a Crónica Geral de Espanha de 1344 e o célebre Livro de Linhagens, obras que para sempre o perpetuaram como uma das figuras cimeiras da cultura medieval peninsular13.
19Um outro tipo de indivíduos, ainda dos níveis superiores da hierarquia nobiliárquica e também muito característicos, tiveram trajectórias bastante dinâmicas entre vários reinos, regressando embora a Portugal. O que torna interessantes estes casos é a facilidade com que mudam de Corte e de senhor Rei, nada parecendo afectar a sua posição prévia, como acima referimos.
- 14 CALDERÓN MEDINA, Inés - Cum magnatibus regni mei. La nobleza y la monarquía leonesas durante los re (...)
20Poderíamos citar vários exemplos – muitos deles, de resto, analisados com toda a profundidade por Inés Calderón Medina e João Paulo Martins Ferreira, quer individualmente quer em conjunto14 –, protagonizados por membros de várias famílias de ricos-homens, como os da Maia, de Soverosa ou de Lima, mas o exemplo dos Braganções parece-nos a todos os títulos ilustrativo. Senhores de um vasto território que assentava em Trás-os-Montes e Zamora, ocuparam cargos da primeira ordem desde o tempo do Imperador Afonso VI de Leão e Castela:
“D. Fernão Mendes de Bragança I, documentado como tenente de Chaves entre 1072 e 1109, terá acompanhado o monarca na conquista de Toledo em 1085, servindo depois o conde D. Henrique até à morte deste em 1112, e depois a rainha Dona Urraca até 1118 como tenente de Zamora e de Toro. Casado com uma filha dos Condes de Carrión, o seu filho mais velho, D. Mem Fernandes, confirmou alguns documentos do Imperador entre 1097 e 1103, deteve a tenência de Bragança em nome do pai e viria a falecer em vida deste, mas foi através da sua descendência que os Braganções se afirmaram definitivamente no território que depois integraria Portugal. Quanto ao mais novo, D. Fernão Fernandes, foi o segundo marido da Infanta Dona Elvira, desde 1117, irmã inteira da nossa Rainha Dona Teresa, servindo do mesmo modo que o pai ao conde D. Henrique (1108 e 1112) e depois à Rainha Dona Urraca até ao ano da morte de ambos, em 1126.
Mas a figura que verdadeiramente se destaca nesta geração é a de D. Fernão Mendes de Bragança II, o Braganção, primogénito de D. Mendo Fernandes, e que poderá ter tido, juntamente com os seus irmãos, um papel destacado para a agregação dos territórios que dominavam ao projecto de independência de Portugal, pois de há muito se aceita o seu papel decisivo para a integração de toda a região que os Bragançãos senhoreavam no território português, e que do ponto de vista eclesiástico também levantou problemas e rivalidades entre as dioceses de Braga e de Astorga. Casado primeiro com uma senhora dos da Maia, casou em segundas núpcias com uma irmã de D. Afonso Henriques, o que sublinha bem a proximidade desta estirpe às famílias reais leonesa e portuguesa.
O seu filho mais velho, D. Pedro Fernandes de Bragança I, casado com uma filha dos Condes de Celanova, foi mordomo-mor entre 1169 e 1175 e tenente de Bragança entre 1165 e 1192, mas em 1190 e entre 1192 e 1194 foi tenente da Estremadura ao serviço de Afonso IX de Leão.
- 15 Uma análise recente e aprofundada desta linhagem, em SOTTOMAYOR-PIZARRO, José Augusto de – “A Arist (...)
Deste ponto de vista, porém, ninguém melhor do que o seu neto e sucessor, D. Fernando Fernandes de Bragança II, rico-homem na corte portuguesa entre 1191 e 1232, mordomo-mor de D. Afonso II (1219-1222), tenente de Bragança (1191-1204 e 1218-1232), e de outras terras (Baião, 1197, Penaguião, 1197-1202 e, Panóias, 1195-1202, 1218 e 1226-1229); todavia, desde 1204, Fernão Fernandes desaparece da corte portuguesa, surgindo a partir de então junto de Afonso IX de Leão, quer como tenente (1204-1205 e 1206-1222), quer como alferes-mor, em 1211, quer mesmo como mordomo-mor, entre 1219 e 1222. Acompanhou o monarca leonês em diversas ocasiões, sendo de destacar a sua participação na campanha conjunta castelhana-leonesa de 1213 contra os almóadas, no rescaldo da fulgurante vitória cristã do ano anterior, nas Navas de Tolosa, por cujos serviços foi recompensado por Afonso IX, que em Janeiro de 1214 lhe fez uma importante doação, pro bono et grato servicio quod mihi fecistis in terra serracenorum et aliis multis locis. A partida para o Reino de Leão, porém, nunca significou um exílio definitivo de Fernão Fernandes. Com efeito, o que se passou foi uma permanente entrada e saída do Reino, servindo ora o monarca leonês ora o monarca português, obtendo assim vantagens de um e do outro lado da fronteira. Tendo regressado a Portugal em 1218, já com D. Afonso II, foi alferes-mor de D. Sancho II, conservando o governo das terras de Bragança até à sua morte, que terá ocorrido depois de 1232”15.
- 16 Nesta perspectiva, cfr. SOTTOMAYOR-PIZARRO, José Augusto de – “De e Para Portugal. A Circulação de (...)
21Como é evidente, exemplos semelhantes poderiam ser referidos no sentido oposto, ou seja, o de fidalgos leoneses e castelhanos que por temporadas serviram os reis portugueses, como aconteceu com os Nóvoa, os Teles ou os Castro16.
22Um último grupo, finalmente, o das linhagens que em determinados momentos se deslocaram para o reino vizinho, dando origem a ramos bem sedimentados em diferentes partes de Leão ou de Castela. A transposição da fronteira pode ter tido razões de natureza política, e a mais das vezes assim foi, mas as circunstâncias podem ter sido outras. Foi o caso dos de Portocarreiro:
- 17 SOTTOMAYOR-PIZARRO, José Augusto de – “De e Para Portugal. A Circulação de Nobres na Hispânia Medie (...)
“Em linhas muito gerais, o primeiro membro da linhagem referenciado em Castela é D. Fernão Anes, deão de Braga, e cujo nome está associado à fundação, por Fernando III, do estudo geral de Salamanca, em 1243. Capelão do Papa, conselheiro de D. Afonso III e privado de Afonso X, o Sábio, deve ter influenciado a passagem a Castela de um seu sobrinho, Martim Pires de Portocarreiro, privado de Sancho IV, e pai e avô de privados e vassalos de Fernando IV e de Afonso XI, com bens em San Felices de los Gallegos, junto da fronteira portuguesa. Um sobrinho-neto de Fernão Anes, Martim Fernandes de Portocarreiro, foi o fundador da linha mais afortunada. Radicado em Castela desde 1300, foi adiantado-mor de Leão e Astúrias e privado de Fernando IV. O seu filho homónimo recebeu de Afonso XI o senhorio de Villanueva del Fresno e casou com a herdeira do senhorio de Moguer (Huelva), senhorios mantidos na sua descendência, Marqueses de Villanueva del Fresno, Condes de Puebla e Condes de Medellín. Durante a crise dinástica do final do século XIV, mais um de Portocarreiro passou a Castela, agora um descendente de outro sobrinho do deão de Braga, João Rodrigues de Portocarreiro, mordomo-mor de Dona Beatriz, que acompanhou a Rainha de Portugal e Castela no seu longo exílio de Toro, cidade onde fundou um novo ramo desta linhagem, verdadeiramente peninsular”17.
23Um outro caso singular de emigração, mas cuja saída radica em questões políticas, é protagonizado por um conhecido trovador, Pero Gomes Barroso:
- 18 SOTTOMAYOR-PIZARRO, José Augusto de – “De e Para Portugal. A Circulação de Nobres na Hispânia Medie (...)
“Presente nas campanhas de Múrcia e de Sevilha, e beneficiado pelo repartimiento de Orihuela, acabou por se fixar em Toledo, onde casou com a filha de um anterior emigrado, Fernão Pires de Azevedo. Ali deu origem a uma ilustre linhagem toledana, muito ligada a um ramo dos de Sotomayor, sendo os ascendentes maternos do célebre cronista Pedro López de Ayala, sobrinho-neto materno do arcebispo de Cartagena e cardeal D. Pero Gomes Barroso, em tempos de Afonso XI de Castela. É curioso sublinhar que, num texto genealógico da autoria do pai do cronista, é altamente valorizada a prosápia dos Azevedo-Barroso”18.
24Nenhum emigrado português, porém, terá ficado tão conhecido nos anais peninsulares de Duzentos como o célebre Mestre de Santiago, D. Paio Pires Correia. A sua trajectória a partir de 1243 é bem conhecida, tanto pelo seu papel em várias campanhas de reconquista, como Múrcia ou Sevilha, como pela sua incondicional lealdade para com Afonso X de Castela. Mas também, e este aspecto é relevante, porque terá sido um elemento aglutinador de muitos dos seus familiares, directos ou colaterais, que se exilaram em Castela com D. Sancho II, nos finais de 1247:
- 19 SOTTOMAYOR-PIZARRO, José Augusto de – “De e Para Portugal. A Circulação de Nobres na Hispânia Medie (...)
“Entre eles destacam-se os seus primos co-irmãos Gonçalo Anes e Martim Anes do Vinhal, presentes na conquista de Múrcia e de Sevilha. Enquanto o segundo acabou por regressar a Portugal, sendo rico-homem de D. Afonso III e ainda de D. Dinis, o primeiro, conhecido trovador, ficou em Castela, onde recebeu várias doações régias, entre as quais a vila e castelo de Polei; alterando o topónimo para Aguiar – o seu apelido materno – é a origem da actual Aguilar de la Frontera. Sepultado na capela real de San Clemente, que Afonso X lhe deu na Mesquita-Catedral de Córdova, foi o fundador da Casa de Aguilar, uma das mais importantes do entorno cordovês”19.
25A saída de nobres portugueses para Castela sofrerá um acentuado incremento no final do século XIV e durante o século XV, envolvendo famílias que ali tiveram o maior protagonismo, como aconteceu com os Pimentéis, os da Cunha, os Pachecos ou os da Fonseca, num tempo que em muito ultrapassa os limites deste trabalho.
26Mas, pelos meados de Trezentos, é inevitável a referência aos petristas exilados em Portugal, depois do regicídio e fratricídio de Montiel. Quase todos galegos, seguiram D. Fernando Rodrigues de Castro, toda la lealtad de España, mordomo, alferes e adiantado-mor de Pedro I de Castela, e o último dos seus partidários. Note-se, contudo, que a grande maioria foi obrigada a sair de Portugal em 1373, no quadro do Tratado de Santarém, assinado entre D. Fernando I e Henrique II. Dos que ficaram, muitos eram membros da pequena nobreza, como Liras, Camões, Queiroz, Pinheiros ou Seabras, mas outros representavam linhagens bem mais antigas. Foi o caso de D. Nuno Freire de Andrade, Mestre da Ordem de Cristo e progenitor da maioria dos membros desta família, que ao longo do século XV manteve um estatuto prestigiado. Com este exemplo abre-se o caminho para a segunda vertente desta análise, ou seja, a realidade transfronteiriça vivida pelos freires das ordens militares.
27De uma maneira geral, os freires das Ordens Religioso-Militares, designados de um modo simplista como freires-cavaleiros, decalcavam as tendências já identificadas para a fidalguia por razões compreensíveis. Se, por um lado, eram freires professos de instituições multinacionais, nas palavras de hoje em dia, que não se compaginavam com as delimitações fronteiriças de natureza político-diplomática, por outro lado, alguns deles eram, em simultâneo, membros de famílias imbuídas de comportamentos a-fronteiriços, como ficou demonstrado no ponto anterior deste texto.
- 20 MATTOSO, José – D. Afonso Henriques. Lisboa: Círculo de Leitores, 2006, pp. 58-66, onde o autor se (...)
- 21 COSTA, Paula Pinto – “História da Comenda. Comenda e território. A dimensão imaterial da comenda de (...)
28As primeiras Ordens Militares presentes no Portugal medieval foram o Hospital e o Templo, ambas disseminadas pelo espaço europeu na sequência da origem que tiveram na distante Terra Santa. Esta imagem de marca, sempre bastante valorizada no plano simbólico, foi ao longo do tempo interpretada como um elemento de prestígio e uma mais-valia no processo de afirmação de Portugal20. A projeção deste horizonte em Portugal foi constante ao longo do tempo. Homens como D. Paio, dado como procurador do Hospital de Jerusalém, ou como D. Raimundo, apontado como procurador dos Santos Pobres da Santa Cidade de Jerusalém, deixam transparecer a relevância deste tipo de enquadramentos na década de 1140. Outro modo interessantíssimo de expressar esta realidade deteta-se ao nível da toponímia, domínio em que não faltam exemplos que nos remetem para espaços tão simbólicos como a Terra Santa21.
29Ao lado destas duas Ordens, em solo ibérico, foram instituídas as Ordens de Calatrava e de Santiago. Fruto de um movimento de expansão que ambas fizeram, em parte estimulado pelas próprias monarquias peninsulares, acabaram por se instalar em Portugal já na década de 1170, com o estatuto de ramos não autónomos dessas casas religiosas sediadas no reino castelhano-leonês (em Calatrava e em Uclés, respetivamente). Esta circunstância marcaria uma boa parte do seu percurso histórico em Portugal e constituiu uma variável que condicionou a sua relação com a coroa. Ou seja, se, por um lado, eram fundamentais ao nível da execução de ações centrais na política régia, muito focada na guerra e na ocupação de novos territórios, por outro, eram braços de instituições dependentes de outros monarcas. O paradoxo é inquestionável.
30O modelo organizativo das Ordens Militares, como é natural, previa na hierarquia governativa a existência de alguns cargos transfronteiriços, para dar resposta ao necessário desempenho de funções relacionadas com territórios amplos. Se o mestre era a figura máxima e tutelava a instituição no seu todo a partir do convento central, havia outros oficiais que tinham jurisdição sobre o conjunto das terras peninsulares ou sobre uma parte delas, como era o caso do grão-comendador, um cargo claramente ibérico. Não raras vezes, a Península parece emergir com uma unidade bastante acentuada nas lógicas administrativas das diversas Ordens Militares.
- 22 Lisboa, Torre do Tombo, Gaveta VI, mç. único, nº 29; Lisboa, Torre do Tombo, L.N., Guadiana, lv. 1, (...)
- 23 MARQUES, José – Liber Fidei Sanctae Bracarensis Ecclesiae. Reedição melhorada e ampliada. Tomo II. (...)
31A demonstração do que acabamos de afirmar leva-nos a evocar alguns exemplos paradigmáticos. Com efeito, o Hospitalário D. Aires era apontado como prior de Portugal e da Galiza, no ano de 114022. Uma associação que não é totalmente surpreendente, na medida em que, nessa cronologia, Portugal não existia enquanto tal e que a matriz do noroeste peninsular continuava presente e a justificar a agregação das duas referidas células que tinham em Santiago de Compostela um dos mais notáveis polos aglutinadores. A influência exercida por este centro religioso deteta-se também no território portucalense, onde, em Aboim (Braga), viria a ficar documentada a atuação precoce de um comendador no ano de 114523. O fluxo de peregrinos em direção a Santiago de Compostela foi, quase de certeza, o pretexto para que a Ordem do Hospital criasse em Aboim um centro de gestão e de apoio.
- 24 SOTTOMAYOR-PIZARRO, José Augusto de – Linhagens Medievais Portuguesas, vol. 2, pp. 293-296.
- 25 Lisboa, Torre do Tombo, L.N., Extras, fols. 194 e segs.
32Como dissemos há pouco, o grão-comendador expressava no quadro da Ordem um poder que não se compatibilizava com as fronteiras políticas. Gonçalo Pires Pereira, homem da prestigiada família dos Pereira, na sua génese oriunda de Vermoim (Famalicão) e com ascendente nos de Trastâmara, foi um deles24. Foi também, pelo menos em outubro de 1280, comendador de Limia, Toroño (ambas na Galiza), Távora (Tabuaço) e Faia (Cabeceiras de Basto), o que o fez assumir a gestão de propriedades de um e do outro lado do rio Minho em prol da instituição em que tinha professado25. Como ele, outros freires-cavaleiros foram grão-comendadores nos cinco reinos de Espanha, como ficou plasmado em vários documentos escritos por essa altura.
- 26 Lisboa, Torre do Tombo, Gaveta XII, m. 1, nº 4.
- 27 Lisboa, Torre do Tombo, Mosteiro de Santa Maria de Almoster, cx. 7, mç. 2, nº 40 (doc. de 1305).
- 28 AZEVEDO, Pedro A. de; FREIRE, A. Braamcamp – Livro de D. João de Portel, edição fac-simile. Lisboa: (...)
33Fr. Garcia Martins foi, igualmente, comendador nos cinco reinos de Espanha da Ordem do Hospital, como ficou gravado na sua epígrafe tumular que se encontra na igreja de Leça do Balio. Tudo indica que começou a ser envolvido em assuntos transfronteiriços ainda no final do século XIII, altura em que era procurador de Fr. Fernão Pires, dito Mosego, grão-comendador nos cinco reinos de Espanha, para tratar de uma contenda com o rei D. Dinis sobre diversas aldeias. Depois de ter sido prior do Hospital em Portugal, em 18 de agosto de 1305, ficaria documentado efetivamente na qualidade de grão-comendador dessa mesma Ordem em Espanha26. Com certeza que o prestígio que foi alcançando, a par da sua experiência de gestão, foram determinantes para que ocupasse um cargo de expressão ibérica, tornando-se um interlocutor junto da corte régia. A sua intervenção em assuntos desta envergadura estendia-se a outras pessoas escolhidas para o efeito sempre que se justificasse. Martim Rodrigues é um exemplo do que acabamos de referir, sendo representante do grão-comendador em questão, função que acumulou com o cargo que à data desempenhava, isto é, o de comendador de Santa Marta27. Por vezes, a distância física entre todos os territórios onde a Ordem exercia jurisdição impunha a escolha de alguns freires para assumirem este tipo de representação externa, como demonstra o exemplo de Fr. Martim Fagundes, comendador de Leça e que foi lugar-tenente no reino de Portugal do grão-comendador nos cinco reinos de Espanha28.
- 29 Ano de 1245, fac-simile. COSTA, Avelino de Jesus da – Álbum de Paleografia e Diplomática. 4ª ed.. (...)
- 30 1198.12.09 – COSTA, Avelino de Jesus da; MARQUES, Maria Alegria Fernandes – Bulário português de In (...)
- 31 COSTA, Paula Pinto – “Álvaro Gonçalves Pereira: um homem entre a oração e a construção patrimonial (...)
34A par dos altos oficiais a que fizemos referência, havia outros homens seus dependentes na escala administrativa da Ordem, cuja atuação não era limitada pela existência de uma fronteira política. Alguns comendadores estrangeiros tiveram intervenção, direta ou por interpostas pessoas, no território português. Afonso Raimundo, comendador de Leão em meados de Duzentos, ombreou com João Garcia, comendador de Portugal, no ato de confirmação de um escambo entre a Ordem e o mosteiro de S. João de Pendorada29. O inverso também ficou registado, ou seja, comendadores portugueses com intervenção externa e que, não raras vezes, desempenhavam papéis do foro diplomático. Assim aconteceu com Fr. Egas Pires e com Fr. João “Ovezi” que, em nome do rei de Portugal, entregaram na Santa Sé o valor de 504 morabitinos por conta do censo anual de quatro onças de ouro que a bula Manisfestis probatum havia estipulado30. Outro exemplo, completamente distinto, é protagonizado por Fr. Álvaro Gonçalves Pereira, o homem carismático que liderou as forças militares portuguesas que se deslocaram a território castelhano para travar a batalha do Salado em 134031.
- 32 COSTA, Paula Pinto – Templários em Portugal. Homens de Religião e de Guerra. Lisboa: Manuscrito, 20 (...)
35A situação, já de si bastante significativa, que acabamos de traçar para a Ordem do Hospital não esgota, de modo algum, as trajetórias sem fronteiras que alguns freires-cavaleiros faziam no âmbito da Hispânia Medieval. Pela semelhança do seu perfil e dimensão territorial, a Ordem do Templo também oferece provas de desempenhos muito sobreponíveis aos identificados em relação à de S. João de Jerusalém. Desde logo, são conhecidos não só alguns mestres Templários estrangeiros que exerceram atividade em Portugal, como também certos mestres que tiveram jurisdição conjunta em Portugal, Leão e Castela. Entre os estrangeiros que governaram a província portuguesa estiveram aqueles que nos primórdios da instalação neste extremo ocidental da Península Ibérica vinham de paragens longínquas por representarem a instituição que se interpretava a si mesma como una, esbatendo o conjunto de frações de natureza nacional e delimitadas por fronteiras político-diplomáticas. Só a partir de Gualdim Pais, documentado como mestre dos Templários em Portugal entre 1156 e 1195, é que os freires que aqui exerceram esta alta dignidade passaram a ser originários do reino. Alguns desses Templários eram tão só mestres de Portugal, embora outros fossem, em simultâneo, mestres em Portugal, Leão e Castela, ou mestres das partes de Espanha ou, ainda, mestres nos três reinos de Espanha32. Entre os altos dignitários do Templo há um ou outro, português ou estrangeiro, que é apontado, ora como mestre, ora como representante da cúpula da Ordem, sendo comendador-mor, procurador e/ou lugar-tenente do mestre em Portugal, ora como representante do mestre do ultramar.
- 33 AYALA MARTÍNEZ, Carlos de – “Frontera Castellano-Portuguesa y Órdenes Militares. Problemas de juris (...)
- 34 COSTA, Paula Pinto – “De la frontiere a la consolidation du territoire: la contribution des Ordres (...)
36A localização dos grandes territórios de senhorio Templário é mais um dado útil para esta reflexão. A Ordem do Templo, e mais tarde a de Cristo, possuía uma larga extensão de terras junto à fronteira leste, nomeadamente, entre Longroiva, na margem esquerda do Douro, integrada no Templo em 1145, e Vila Velha de Rodão, sobre o Tejo. O senhorio da Ordem do Templo em Portugal, sobretudo na Beira Baixa, vizinhava com as propriedades Templárias da Alta Estremadura Leonesa, situadas na outra margem do rio Erges. No contexto destas permeabilidades fronteiriças é, pois, sintomático que, em 1271, Paio Gomes Barreto seja comendador em simultâneo de Jerez e de Castelo Branco33. A própria atividade agro-pastoril desenvolvida pelos freires de Avis acentuava a sua atuação transfronteiriça34.
- 35 CUNHA, Maria Cristina Almeida – A Ordem Militar de Avis (das origens a 1329), p. 118.
- 36 Há provas documentais da existência de visitas de Calatrava a Avis nos anos de 1215, 1221, 1223, 12 (...)
37Em Portugal houve outras duas Ordens Militares de inspiração beneditina – a de Avis e a de Cristo – que também contribuem para problematizar o papel de certas elites nos intercâmbios peninsulares. De resto, a Ordem de Avis é um ramo da de Calatrava e, nos primórdios da sua instalação em Portugal, os freires eram identificados exatamente por essa designação, que advinha da localização do convento central da instituição em Calatrava, ou pela localização da sua primeira casa em Évora. Só a partir do momento em que os freires de Calatrava ou de Évora receberam, em 1211, a localidade de Avis, situada a norte de Évora, é que a instituição assumiu a designação de Ordem de Avis35. Como é natural, o ramo português manteve sempre uma ligação, ou mesmo uma dependência institucional, ao convento calatravenho, consubstanciada na realização de visitas, mais ou menos regulares. A eleição do mestre era também um processo sensível nos equilíbrios ibéricos, nomeadamente pelo impacto que tinha ao nível da monarquia. O rei D. Dinis empenhou-se bastante na interrupção da ligação de Avis a Calatrava, criando as condições que possibilitariam, pela primeira vez, a confirmação de um Mestre por parte do Arcebispo de Braga, cuja autorização papal tem data de 10 de junho de 1330, e não por representantes castelhanos36.
- 37 SILVA, Luísa Morgado de Sousa e – “A Ordem de Cristo durante o mestrado de D. Lopo Dias de Sousa (1 (...)
38Ao contrário de todas as outras, a Ordem de Cristo foi instituída em 1319 já com um marcado perfil português37. Há, no entanto, duas nuances que não podem passar desapercebidas. O primeiro mestre que lhe foi atribuído foi D. Gil Martins, até à data, mestre da Ordem de Avis. O seu currículo enquanto homem de religião professo da Ordem de Avis, na sua essência ligada à espiritualidade cisterciense e a Calatrava, tal como a de Cristo, a par da confiança que o rei depositaria na sua pessoa, terão sido determinantes. A outra circunstância que não podemos deixar de valorizar, é a opção que o rei D. Pedro I faria ao entregar o infante João, futuro D. João I, à Ordem de Avis para ali ser criado. Como é sabido, a nova dinastia portuguesa, instituída em 1385, vai buscar a esta Ordem ibérica a designação com que se identifica. Ou seja, as ordens de Cristo e de Avis foram instrumentos fundamentais da estratégia de centralização política levada a cabo pelos monarcas portugueses desde meados do século XIII.
- 38 CUNHA, Mário Raul – A Ordem Militar de Santiago: das origens a 1327. Porto: Universidade do Porto, (...)
39Para o fim deixamos talvez o caso mais emblemático e que decorre em torno da Ordem de Santiago. Instalados em Portugal, os freires espatários estavam sob a tutela do convento central situado em Uclés. A análise do processo de independência face a Uclés revela muito bem a importância que este tipo de ligações que caraterizavam as Ordens Militares tinham no plano político. As ações tomadas por grande parte daqueles que protagonizaram a afirmação da separação dos Espatários portugueses em relação ao convento central são conhecidas38.
- 39 CUNHA, Mário Raul – A Ordem Militar de Santiago: das origens a 1327, pp. 69-107. LÓPEZ FERNÁNDEZ, M (...)
- 40 MARQUES, José – “Os Castelos Algarvios da Ordem de Santiago no Reinado de D. Afonso III”. Caminiana(...)
40Paio Peres Correia, na sequência do que já foi referido, foi um dos mais paradigmáticos. Basta recordar que foi comendador de Alcácer (1235-1241), comendador de Uclés (1241-1242) e mestre (1242-1275), e que em 1242, o infante Afonso (futuro Afonso X) entregou à sua Ordem o filho varão – Fernando de Lacerda – para educar39. Os compromissos institucionais deste homem faziam-no transpor a fronteira permanentemente e ser uma das figuras de proa da política ibérica, a ponto de a sua fidelidade para com o rei de Castela ameaçar a integridade do território português, nomeadamente aquando da conquista definitiva do Algarve40.
- 41 CUNHA, Mário Raul – A Ordem Militar de Santiago: das origens a 1327, pp. 136-148.
- 42 No exercício daqueles dois importantes cargos, é referido em 1298 e 1299 (cfr. Lisboa, Torre do Tom (...)
- 43 CUNHA, Mário Raul – A Ordem Militar de Santiago: das origens a 1327, pp. 163-169.
41A partir de 1290, o capítulo espatário português elegeu mestre provincial próprio, embora o processo de tutela jurisdicional por parte de Uclés se mantivesse em aberto. Entre estes mestres provinciais portugueses esteve D. João Osório (1293-1310)41, que muito se empenhou na causa, e que foi mordomo-mor de Fernando IV de Castela42. O culminar e a consolidação do processo de separação deveu-se à tenacidade de D. Pedro Escacho, que promulgou os Estabelecimentos no ano de 132743. Neste documento, pela primeira vez, foi estabelecida a lista de comendas em Portugal, o que traduz um grande esforço de reorganização e de gestão interna.
42Os fidalgos e freires-cavaleiros integraram as elites medievais que dinamizaram os intercâmbios peninsulares, desenvolvendo inúmeras trajetórias sem fronteiras na Hispânia medieval. Os exemplos documentados revelam, na perspetiva da aristocracia e das Ordens Militares e, em particular, das internacionais, uma concepção muito fluida da fronteira, à qual se sobrepõem os interesses familiares e institucionais.
43Como se viu no ponto segundo deste texto, os fidalgos portugueses, independentemente da sua posição na hierarquia nobiliárquica, encontraram na transposição fronteiriça um mecanismo perfeitamente natural para contornar problemas de natureza política, como quando entravam em conflito com os monarcas, ou simplesmente para materializar estratégias de poder de linhagens com patrimónios constituídos muito antes da criação do reino de Portugal. Também esta era uma das explicações para que a fronteira não tivesse uma expressão real nas suas concepções de um espaço que não conhecia barreiras.
44Ainda assim, convirá sublinhar que no conjunto das situações conhecidas se podem reconhecer algumas tipologias mais frequentes, como se apontou no início. O caso dos Infantes, pela sua própria natureza, é um dos exemplos mais significativos, devido ao protagonismo político que inevitavelmente assumiam em qualquer lado da fronteira em função dos fortíssimos laços de parentesco que uniam as famílias reais peninsulares. Mas a outros níveis esse protagonismo também foi relevante, sobretudo quando se tratava de linhagens implantadas junto das fronteiras políticas, como ficou bem patente com os Braganções. Finalmente, não se podem descartar as trajectórias individuais, que são totalmente concordantes com as tendências já apontadas, e que muitas vezes originaram a criação de um ramo familiar do outro lado da fronteira.
45Por sua vez, e no que respeita às Ordens Militares, a integração de Portugal numa estrutura internacional, a sua gradual autonomização em relação à mesma e a necessária vigilância exercida pelos órgãos de governo central, transparecem nos exemplos que foram aduzidos ao longo do texto.
46Reflexo destes enquadramentos é o conjunto de freires que tinham uma função administrativa mais transversal e aplicável a todo o território português. A existência de comendas da mesma Ordem de um e de outro lado da fronteira, constituía um elemento diluidor da divisão política entre reinos e estimulava contactos frequentes. Todavia, todas as Ordens Militares procuraram acentuar a autonomia dos seus ramos portugueses, mais forçadas pelos interesses centralizadores da Coroa do que por iniciativa própria. Cabe, então, questionar se os freires-cavaleiros eram um suporte diplomático da Coroa (ou mesmo do Papado?) ou uma ameaça da identidade portuguesa e da integridade da fronteira do reino? A contradição encerrada nesta questão terá sido, por diversas vezes, motivo de discussão acesa nos meandros do poder.
47Poder que, da parte dos monarcas, se pretendia claramente confinado no espaço. Desse ponto de vista, o reinado de D. Dinis assume-se como decisivo: por um lado, através da definição da linha de fronteira, o que conseguiu pelo Tratado de Alcañices (1297); e, por outro, controlando ao máximo as Ordens Militares dentro do âmbito geográfico do Reino: interferindo na eleição dos Mestres de Avis, transferindo os bens do Templo para uma nova ordem de criação régia, a Ordem de Cristo, promovendo a separação do controle sobre as comendas portuguesas da Ordem de Santiago, e fiscalizando a acção da Ordem do Hospital.
48Finalmente, convém sublinhar que este fenómeno da transposição das fronteiras não se esgota nesta cronologia mais antiga; antes pelo contrário, prolonga-se, se não mesmo intensifica-se, ao longo da Idade Média tardia, com bastante expressão, em grande medida como consequência das convulsões dinásticas que marcaram a realidade da Hispânia medieval.