Editorial
Texto integral
1Vem esta Medievalista a público numa fase de aparente recuperação do atribulado período de pandemia, e, embora com incertezas, de lento regresso a algumas das rotinas e hábitos do quotidiano. Tempo de reabertura, mesmo condicionada, das instituições culturais e dos espaços de lazer e de uma esperada, mas lenta, retoma da vida económica e do ultrapassar dos níveis complicados de desemprego e dos difíceis problemas sociais daí decorrentes. O rastro deixado pela experiência de uma enfermidade que rapidamente atingiu uma escala global e que pôs a nu o melhor e o pior deste mundo na sua capacidade de humanidade, mas também nas suas idiossincrasias e desigualdades, tem que ser aprofundado e compreendido em todo o seu alcance. No âmbito da investigação científica e do ensino, exigiram-se profundas alterações, a procura de novas soluções, a criatividade para prosseguir projectos iniciados, sustentar os percursos de aprendizagem e alimentar a partilha e a discussão de ideias.
2O presente número expressa todas estas dimensões. Começa ele, na verdade, por testemunhar os efeitos mais dolorosos desta conjuntura, ao evocar o desaparecimento precoce de três medievalistas. Três perdas em diferentes estádios de vida, que sinalizam entre nós a vitalidade e a diversidade dos estudos medievais, mas também vidas e memórias prenhes de humanidade e afectos. José Marques, Filomena Barros e Helena Avelar: três nomes que deixam um legado muito significativo em âmbitos diversos, da história da Igreja e das instituições eclesiásticas às minorias étnico-religiosas e ao estudo complexo das suas relações com a maioria cristã, ou ainda à astrologia e ao seu papel importante no quadro da mundivisão e do saber científico medievais.
3Segue-se um dossier temático, coordenado por Luís Filipe Oliveira e Gregory Leighton, sobre o mundo das ordens militares. O carácter internacional de parte significativa das ordens estudadas, do Templo ao Hospital, passando pela sua congénere de Calatrava, permite também uma grande diversidade de contributos e perspectivas. Assim se sublinharam os estreitos e multifacetados laços que uniam o Oriente aos diversos reinos da Hispânia, mas também a outras regiões, como a Provença, a Boémia e a Áustria. Revisitaram-se aí as origens e os mecanismos de implantação destas ordens, estudou-se a mobilidade dos seus membros, assim como as redes de influência e de poder que em torno deles se construíram. Através do mundo da assistência religiosa e da paroquialidade que lhes está associada, abordaram-se ainda as práticas religiosas e devocionais dos públicos femininos em tempos medievais, um universo que tem sido menos trabalhado.
4Para além do dossier temático, publicamos outros dois artigos, que espelham a vocação multidisciplinar da Medievalista, sempre aberta à diversidade dos saberes que se interessam pelos temas medievais. Um deles é o estudo de Manuel Negri sobre os milagres eucarísticos nas Cantigas de Santa Maria, o outro a síntese proposta pelo Grupo CIGA sobre a cerâmica de tradição islâmica em contexto português (século XII-XIV). No primeiro, propõem-se novas hipóteses para as fontes subjacentes a duas cantigas do cancioneiro afonsino (nº 128 e 208), revelando uma circulação literária mais complexa de textos e motivos de cariz hagiográfico e religioso, ligados ao florescimento e ao fortalecimento da devoção eucarística e à apologia deste sacramento perante as contestações oriundas de ambientes heréticos, ou dissidentes. Por seu lado, o estudo da cerâmica de tradição islâmica em Portugal ao longo dos séculos XII a XIV, mesmo se ainda preliminar, constitui um contributo inegável para a problematização das lógicas de ruptura e de continuidade, entre os tempos da ocupação islâmica do território, sobretudo a Sul, e a fase posterior de ocupação cristã. Por acréscimo, traz dados importantes sobre a manutenção de poderosas relações culturais entre aqueles dois mundos, bem patentes no universo da cultura material aqui tratado.
5As restantes secções dão continuidade a esta pluralidade e diversidade de temas e disciplinas, acolhendo textos das mais diversificadas proveniências. Assim, Leandro Vilar, da Universidade Federal de Paraíba, leva-nos ao mundo do simbolismo religioso presente em monumentos da era Viking, a partir do motivo concreto da serpente e das suas múltiplas significações, enquanto Elsa Cardoso apresenta o seu estudo sobre o cerimonial do Califado Omíada no al-Andalus dos séculos X-XI, defendido em 2020 na Universidade de Lisboa. Melisa Marti, da Universidade de Buenos Aires, dá a conhecer a sua edição de La fazienda de Ultramar, um dos primeiros textos em castelhano não notarial, que integra a tradução de uma quantidade significativa de livros bíblicos, que lhe servem de pretexto para questionar também o modo como se constrói por meio desta obra uma geografia e um imaginário bíblicos por meados do século XIII. Por último, Sara Carreño, da Universidade de Santiago de Compostela, conduz-nos na sua tese sobre os tipos, usos e significados da imagem escultórica do Crucificado na Galiza do século XIV.
6Nas recensões, comenta-se a recente edição do catálogo da Coleção de Manuscritos Iluminados Europeus que integra a Coleção Calouste Gulbenkian e apresentam-se duas obras agora vindas a lume. Uma dedicada às estratégias de justificação ideológica da Reconquista, num conjunto de textos resultantes de um colóquio internacional realizado em Palmela, em 2018, a outra consagrada à construção da sociedade política de Jerez de la Frontera em finais da Idade Média. Esta última corresponde à investigação doutoral levada a cabo por Enrique José Ruiz Pillares.
7Por fim, na Varia, sinaliza-se a realização de três colóquios internacionais e de duas exposições, patenteando a resiliência de instituições e de investigadores perante os constrangimentos impostos pelo contexto pandémico e pelas renovadas fases de confinamento. Aí se dá conta do III Congresso Internacional de Jovens Investigadores em Idade Média, numa edição dedicada ao tema da morte; doutro colóquio remoto que ligou investigadores portugueses e espanhóis em torno das relações entre as monarquias ibéricas e as ordens Jerónima e da Cartuxa; e, por fim, da iniciativa Using the Past. The Middle Ages in the Spotlight, sobre os novos usos do passado medieval e das distintas apreensões a que ele é sujeito nos mais diversos domínios e linguagens. Fecham o número as notícias sobre a exposição “Guerreiros e Mártires: a Cristandade e o Islão na formação de Portugal”, patente no Museu Nacional de Arte Antiga, e que propôs novos olhares sobre a relação entre os dois mundos culturais e religiosos no contexto das comemorações do 8º centenário sobre o martírio dos primeiros frades franciscanos em Marrocos. Um conjunto doutros eventos assinalou a passagem dos 800 anos sobre as primeiras Inquirições Gerais promovidas pelos monarcas portugueses, e que incluiu um colóquio internacional, uma exposição documental na Torre do Tombo e uma emissão filatélica comemorativa.
8Em suma, textos e iniciativas que, em circunstâncias mais tempestuosas, significam a capacidade de resistir e reinventar, de continuar a promover o debate e o encontro, a partilha de percursos de investigação e de interrogações. Mesmo as perdas que nos tornaram a todos mais pobres são testemunhos de paixão pela vida. Fazer memória delas, aqui e agora, é um dever pleno de justiça e um voltar a dizer que vale a pena…
9A Medievalista
Para citar este artigo
Referência eletrónica
«Editorial», Medievalista [Online], 30 | 2021, posto online no dia 01 julho 2021, consultado o 14 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/medievalista/4434; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/medievalista.4434
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