Pierre-Joseph Laurent, A crioulização: A Invenção de Cabo Verde
Pierre-Joseph Laurent, A crioulização: A Invenção de Cabo Verde, Praia, Pedro Cardoso Edições / Edições Uni-CV, 2024, ISBN:978-986-9186-08-8.
Texte intégral
1Apreciar uma obra constitui a exercitação de (re)leituras e (re)interpretações de assuntos que a encerram nos interstícios dos conhecimentos prévios sobre esses assuntos, mormente quando estes encontram-se (in)conscientemente secundarizados, silenciados e às vezes ocultados por atores sociais e académicos nacionais, com pretensões (in)compreensíveis. A presente obra aborda temáticas de relevância cimeira para o aprofundamento do conhecimento da trajetória social, antropológica e histórico-cultural de Cabo Verde. O seu autor tem longas e profundas lides com o estudo de vários assuntos sobre a sociedade e a cultura cabo-verdianas. Por ser um antropólogo de primeira linha, Pierre-Joseph Laurent utiliza os instrumentos do seu métier para urdir (ou será inventar?), a partir de fontes primárias e secundárias relevantes, uma sólida interpretação sobre a crioulização em Cabo Verde, propondo-nos um campo argumentativo sólido sobre os porquês da sua tese: “A Invenção de Cabo Verde”.
2Trata-se de uma obra extensa, com 433 páginas. Para além do prefácio escrito pelo conhecido académico cabo-verdiano Cláudio Furtado, a obra abarca, ainda, na parte inicial, a introdução e os agradecimentos, com importantes elementos para se compreender o processo de sua tessitura. Entrando no corpo da obra, o trabalho é constituído por três partes perfazendo um total de sete capítulos mais a conclusão e uma rica e implicada referência bibliográfica.
3Nos dois capítulos da Primeira Parte (p. 37-120) intitulada “Medo e proteção nos dias de hoje”, o autor, utilizando a estratégia de etnografia de vida quotidiana através da apresentação de narrativas individuais e coletivas que justificam o insucesso económico, os problemas de saúde e os percalços das famílias, demonstra a relevância de utilização desta metodologia para, mediante um exercício de estratigrafia, qual arqueólogo na sua lavoura, “identificar as crenças coletivas com base na diversidade de relatos singulares complementares, por vezes contraditórios, e tentar compreender as suas origens e influências sobre os processos sociais de integração” (p. 38). Trata-se de um importante exercício para recuperar categorias de pensamento ligadas à vivência quotidiana de Cabo Verde (p. 37) de matriz africana, silenciadas pelos arquivos coloniais. Nesta linha de pensamento, o autor propõe, “passo a passo, remover cuidadosamente as camadas mais recentes de crenças […], a fim de encontrar as mais antigas que prevaleciam na altura do confronto entre os escravizados de várias origens, luso-africanos (os Lançados) e colonos portugueses” (p. 38). Orientado pelo princípio de que “os sistemas de pensamento não fossilizam, transformam-se e evoluem, e a crioulização é um processo contínuo com consequências imprevisíveis” (p. 38), o autor perscruta “os elementos salientes do sistema de pensamento popular” (p. 70) a partir das crenças, medos e religiosidade de hoje, apresentando-o como um processo resultante de encontros de imaginários sociais originários de realidades geográficas profundamente diferentes.
4A Segunda Parte da obra (p. 121-290) intitula-se “As componentes da sociedade esclavagista: roturas e encontros desiguais”. Nos três capítulos que a compõem, o autor sugere-nos uma tessitura inovadora sobre temáticas tradicionais da história de Cabo Verde quais sejam, as origens dos Luso-Africanos (chamados de lançados e às vezes de tamgomãos), a África na edificação de Cabo Verde e a plantação esclavagista: fixação e inovação. Cada um desses tópicos é companhado de vários subtópicos, encerrando debates penetrantes a partir do olhar de um antropólogo que, logo na parte inicial do livro, questionara sobre o porquê de estar a estudar uma questão histórica a priori (p. 21). Nesta parte da obra debate-se temáticas que têm merecido atenção de renomados investigadores cabo-verdianos cujos trabalhos foram habilmente recenseados pelo autor. No nosso humilde ponto de vista, o bom nível de urdimento conseguido pelo autor, particularmente nesta parte da obra, deve-se aos aprimorados atributos e experiências do seu métier, onde o exercício de categorização, sistematização, interpretação e atribuição de sentido aos fatos, mesmo que seja pela convocação da própria imaginação fundamentada, portanto racional, são superiormente utilizados como instrumentos de trabalho. Guiado pelas permanentes preocupações de aclaração básica e/ou aprofundada do conceito de crioulização, os debates sobre a escravização, os tipos de escravizados, as plantações, as crenças, o catolicismo, o morgadio, a capela promovem um profundo diálogo de argumentos e posições de vários estudiosos e contextualizam a formação do imaginário social de Cabo Verde num campo mais abrangente da Costa Ocidental Africana, elemento que, a bem da verdade, tem faltado nos estudos sobre Cabo Verde, muito por culpa da atribuição de um valor cimeiro às fontes coloniais europeias e pelas limitações de acesso às fontes dos arquivos não europeus, até bem pouco tempo. Por exemplo, de um assunto marginalmente debatido na historiografia nacional, o papel dos Luso-Africanos, enquanto corretores comerciais na Costa Ocidental da África, é apresentado pelo autor como elemento primordial do processo de crioulização de Cabo Verde (p. 148), sem secundarizar a importância dos escravizados e do cosmopolitismo global constituído na ilha de Santiago, detalhando os processos que unificou os três grupos para desembocar na sociedade cabo-verdiana de hoje, graças a uma “intervenção progressiva de um imaginário comum” (p. 176). O debate sobre “A África na edificação de Cabo Verde” constitui um exercício polido de sistematização de categorias das crenças e do pensamento africano que, mediante estudo comparativo, no caso, a comunidade dos camponeses mossi, podem ser relevantes para compreender as dimensões do imaginário social cabo-verdiano, calibrado pelo longo processo de crioulização. O autor sistematiza importantes contribuições teóricas sobre a crioulização, destacando o papel das plantações como “barriga do mundo” e da fazenda enquanto “espaço mental”. Das várias assunções sobre a crioulização patentes na obra, endorsamos as seguintes de forma a invitar a leitura da obra. Assim, defende o autor que “crioulização é processo que permite, nomeadamente, a integração de deferentes componentes da sociedade. É resultado de uma longa história de invenção social que emana de interações de grupos sociais improváveis […]” (p. 72). Trata-se de um processo complexo que nas ilhas envolveu a sociedade cosmopolita emergente em Ribeira Grande, os escravizados, os colonos, os lançados, os senhores, os armadores mercadores, a administração colonial portuguesa, o clero e os indigentes (p. 158). Segundo o autor, por ser um processo profundo, novo e imprevisível, ele só é entendido a “posteriori, por inferência, reconstituindo o fio da história, para se reconectar com as fontes da diversidade de memórias vindas de África” (p. 180). Em síntese, a crioulização é um processo histórico involuntário (p. 223); um processo de criação de nós, de relações imbuídas de obrigações recíprocas entre pessoas de estatutos diferentes (p. 281).
5Na Terceira Parte da obra (p. 291-405) sob o título “A crioulização: Expansão teórica e empírica”, o autor discute assuntos como as teorias do encontro de culturas, o surgimento da fazenda e esgrime os argumentos que fundamentam a expansão teórica e empírica do debate realizado em toda obra sobre a crioulização. Tal processo, sugere o autor, deve ser envarado de “forma equidistante de cada componente da sociedade quando não há registos nos arquivos” (p. 357). Incidindo no surgimento da fazenda enquanto instituição emblemática de Cabo Verde na produção de imaginários sociais e na promoção de relações sociais pois “retira os escravizados de estritas relações de poder e de mercado para os inserir em redes sociais” (p. 357), o autor sistematiza os papeis e funções de cada sujeito da fazenda. Questiona as causas da efémera sociedade esclavagista em Cabo Verde e demonstra como este processo acelerou a crioulização da sociedade cabo-verdiana a partir do século XVII (p. 363). A conveniente reflexão à volta da crioulização e de consequente “Invenção de Cabo Verde” deve ter em consideração os medos, as crenças e a religiosidade debatidos na parte inicial da obra, sublinhando que “[…] é através destes medos que afetam e fragilizam remotamente, […] os grupos dominados conseguirão incluir os dominantes no seu universo cultural […]. É através da partilha dos mesmos medos, e, portanto, do mesmo imaginário, que a crioulização se amplifica com os seus princípios de integração através do esbatimento da fronteira que antes era clara […]” (p. 363). Em síntese, para o autor, “A invenção de Cabo Verde”, alinha-se com uma sociedade crioulizada, que mistura dogmas católicos com outras conceções de crenças espalhadas pela feitiçaria (p. 378), cujos respaldos podem ser exumados, hoje, a partir do tal trabalho de estratigrafia proposto na parte inicial da obra.
6Como referido na parte inicial da presente recensão, o escrutínio de uma nova contribuição bibliográfica faz-se, em grande medida, pelo impacto da sua contribuição nas (re)leituras e (re)interpretações dos assuntos que debate. Por este país fora, esbarramos, vezes sem conta, nessas narrativas: nas festas, nas cerimónias fúnebres, nos trabalhos de campo, no funcionalismo público, na vizinhança, entre outras circunstâncias. A leitura do presente trabalho alerta-nos para posicionamentos sobre as narrativas do nosso quotidiano que envolvem medos, crenças, amuletos, isto é, a dimensão africana do imaginário social cabo-verdiano sistematicamente desvalorizado, como realça o autor. Trabalhos complementares de recolha, sistematização e interpretação retrospetiva das práticas quotidianas do nosso arquipélago precisam ser feitos para aprofundar o desafio de exumação e analogia estratigráfica proposto pelo autor, tendo sempre em retina os princípios de continuidade e de sobreposição.
Pour citer cet article
Référence électronique
Francisco Osvaldino Nascimento Monteiro, « Pierre-Joseph Laurent, A crioulização: A Invenção de Cabo Verde », Lusotopie [En ligne], XXII(2) | 2023, mis en ligne le 31 décembre 2023, consulté le 05 décembre 2024. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lusotopie/7880 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/12j46
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