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La recherche : Indiens des cinq colonisations d'Afrique orientale. Mobilités et identités en diaspora de 1870 à nos jours
Les Indiens du Mozambique, de la colonisation à l'indépendance

A diáspora ismaelita

Preparação e « partida », vivências da migração dos anos 1970
António Melo
p. 97-102

Résumés

Fondé sur un travail d’archives, l’article montre que la diaspora ismaili originaire du Mozambique, s’est établie au Portugal non simplement en raison de l’impact de la Révolution d’avril 1974 et du processus de décolonisation, mais surtout à partir d’une action soigneusement préparée, coordonnée bien que diversement vécue. D’un côté, il s’agit d’évaluer les conditions et les moyens du départ ainsi que la perception qu’en ont eue les autorités coloniales portugaises. D’un autre, il s’agit d’analyser le vécu « traumatique » du départ des membres ismailis à la forte cohésion communautaire. Ce vécu recouvre une variété d’expériences individuelles qui connaîtront une certaine reconfiguration après leur installation au Portugal.

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Texte intégral

1Na distância de quase de trinta anos « a memória e o esquecimento são solidários », ambos fazem parte de um processo em que a experiência vivida se fundiu em histórias, comentários, lamentos, silêncios ; em suma, vidas que retomaram curso, ampliaram horizontes e, no balanço, se autonomizaram desse momento forte, quando em meados dos anos 1970 foi necessário trocar os trópicos pela Europa. Desfazer e reorganizar a vida, construindo uma identidade reforçada, deixa traço nos testemunhos, faz-nos interrogar o sentido e a verosimilhança de narrações que inintencionalmente rectificam eventos e retocam o clima de que são vestígio.

2Quando ocorre em Lisboa a queda do regime, a 25 de Abril de 1974, a quase totalidade dos europeus e das minorias de origem asiática de Moçambique são colhidas de surpresa. Por incapacidade de previsão política, por inércia social, por uma hesitação inicial que não vislumbra de imediato a amplitude das modificações que se avizinham.

3Quanto à comunidade ismaelita, se a aceleração dos acontecimentos surpreende, há algum tempo que a decisão de abandonar o território estava tomada, e o processo de partida começara já. Mesmo assim, há uma informação assimétrica. Aquilo que era um processo cuidadosamente preparado, decidido e em curso de execução para os líderes da comunidade, não constituia preocupação para muitos dos seus membros, sobretudo os mais novos e em situação de dependência familiar.

  • 1  Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Lisboa, Arquivo Polícia Internacional e de Defesa do Es (...)

4A percepção que havia uma agitação na comunidade ismaelita é porém anterior e objecto das atenções das autoridades coloniais. O problema é levantado por um ofício do Chefe de Gabinete do Comando Chefe das Forças Armadas de Moçambique dirigido ao Chefe de Gabinete do Governo Geral da Província datado de 6 de Julho de 19731, em que é transcrito um relatório do Comando do Sector C. Aí se afirma que « Ali Khan (príncipe Ismaelita, localizado no Estrangeiro) » [sic] enviara meses antes uma directiva aos dirigentes da Comunidade para tomarem algumas precauções, na certeza de uma invasão da Província, em apoio da Frelimo, por um exército organizado pela China a norte de Moçambique, que teria lugar dentro de 3 anos (isto é, em meados de 1976). Assinala a vantagem da saída dos ismaelitas de Moçambique até essa data, venda dos seus bens e transferências dos capitais para o exterior. Considera como locais mais favoráveis para a nova fixação da Comunidade : a Inglaterra, a Venezuela, e a « Metrópole », com preferência para esta última. O relatório continua, dando conta de que sob a cobertura de reuniões espirituais uma comissão de ismaelitas de Lourenço Marques terá efectuado reuniões em Nampula, Ilha de Moçambique e Porto Amélia em Março de 1973. Nos comentários, falava-se ainda na venda de comércios, viagens a Lisboa e trocas de moeda com fortes desvalorizações.

  • 2  Ibid.

5Recebido este ofício pelo Gabinete do Governador Geral, solicitou S. Exa. uma informação à Direcção Geral de Segurança, que, diligentemente, volvidos menos de quinze dias, respondia sob o título : « Estado de Espírito das Populações. Comunidade Ismaelita de Moçambique »2.

  • 3  Ibid.

6Num estilo sóbrio e preciso, informa não estar em condições de precisar ou desmentir a existência de qualquer directiva do Príncipe Aga Khan « na previsão de um agravamento da situação político-militar ». E passam a uma síntese daquilo que até ao momento tinha sido apurado. Em Lourenço Marques, figuras notáveis da Comunidade procuravam compradores para os seus bens. Rumores de que alguns estavam « a procurar remeter clandestinamente, para o exterior, largas somas de dinheiro, ficando apenas a trabalhar com base em créditos bancários ». Em Nampula, eram constatados comportamentos semelhantes. Assinalavam, igualmente, que em 1972 o Presidente Provincial da Comunidade Ismaelita se tinha deslocado à Europa onde teria conferenciado com altas individualidades. O relatório da polícia terminava, como começava, por reafirmar que « a DGS, através do seu esforço de pesquisa, não conseguiu reunir dados concretos pelos quais possa confirmar ou desmentir o envio de quaisquer instruções ou directivas emanadas de altos dignatários ismaelitas residentes no estrangeiro »3.

  • 4  Pela natureza dos testemunhos as fontes orais (rec. 1994-2002) não podem ser identificadas. Garant (...)

7Ora, o facto é, que no quadro deste clima geral, podemos recolocar hoje um certo número de testemunhos de ismaelitas que viveram os acontecimentos da época. Quase todos aqueles que pudemos inquirir, a duas ou três excepções, consideram as medidas activas tomadas pela liderança da Comunidade, sobretudo nos meses que seguiram ao 25 de Abril, como resultado de uma atenta e pronta reacção à situação política que então se vivia. Não referindo, por sua iniciativa, a existência de uma qualquer directiva ou planificação anterior dos responsáveis da Comunidade. Os testemunhos sobre o período que precede imediatamente a independência são quase sempre vagos e feitos a contragosto4. Mais facilmente recordam as situações da infância e adolescência, da vida quotidiana e familiar, que aquelas ligadas ao período que precede a partida de África. Embora seja claro que a agitação e violência dos tempos causou um grande abalo, é visível, nos testemunhos recolhidos, que os acontecimentos e posicionamento de então são hoje lidos com uma grelha conceptual e valores bem distintos daqueles com que em 1974-1976 foram vivenciados.

  • 5  ANTT, Lisboa, Arquivo Salazar, AOS/CP-147 : 435.

8Porém, o mais antigo traço da preocupação directa do Imam, então o Sultão Muhammad Shāh, Aga Khan III, em relação à Comunidade moçambicana data de bem antes, de meados de 1951. Começavam-se então a levantar os problemas entre Portugal e a União Indiana sobre os territórios de Goa, Damão e Diu. O Imam dirige uma carta a Salazar (5 de Junho de 1951) solicitando que este receba o « Presidente do Conselho da Comunidade Ismaelita da Colónia Portuguesa da África Oriental » no sentido de que a todos seja concedida a nacionalidade portuguesa e fossem ultrapassadas dificuldades formais colocadas pela imprecisão da documentação proveniente da Índia5. Simultaneamente, assegura que os ismaelitas moçambicanos são em tudo alheios às divergências entre Portugal e o governo indiano, em cujas posições a « muito pequena minoria » de ismaelitas na Índia não tinha qualquer influência. Reafirma ainda a fidelidade e satisfação dos ismaelitas moçambicanos, rematando que « un des principes de notre religion est d`être loyal et fidèle au gouvernement qui assure sécurité et justice ».

  • 6  Cf. Ofício da Direcção Geral de Segurança de Moçambique de 20 de Julho de 1973, no citado Procº. 7 (...)

9Vinte anos depois, a transformação da situação política, e o ponto de vista dos dirigentes da Comunidade, fizeram os seus caminhos. Na hierarquia das instituições ismaelitas, Moçambique possui um Territorial Council e dois Provincial Council, estando o primeiro representado no Supreme Council for África. É a uma reunião, em Nairobi, do Supreme Council for Est Africa que está presente em 1972 o Presidente do Conselho Territorial, em busca de « uma orientação » para a condução da Comunidade. Tudo indica, que a hipótese de ser necessário encontrar um novo destino para o ismaelitas moçambicanos era colocada deste há alguns anos. Previsivelmente deste 1968. Tal facto não é de estranhar, e constitui a sequência natural da instabilidade que acompanhou a questão de Goa, Damão e Diu, mas sobretudo o período de africanização dos novos Estados independentes da África Oriental, que culmina com a crise do Uganda. Este último facto coincide, no início dos anos 1970, com o agravamento da situação político-militar em Moçambique. A reunião de Nairobi não foi conclusiva e o líder da Comunidade moçambicana, insatisfeito com os resultados obtidos, consegue meses depois, mais exactamente em Dezembro de 19726, uma reunião com o Aga Khan, em St. Moritz, na Suíça. Vários países tinham sido aflorados como destino possível para a Comunidade moçambicana : Inglaterra, Canadá, Brasil, Portugal. É então que o Imam toma a decisão de fazer « partir » para Lisboa a Comunidade ismaelita de Moçambique. Tem a preocupação de se assegurar que a liderança moçambicana tem capacidade para dirigir no terreno esta operação delicada e complexa. Da reunião de St. Moritz sai, assim, a decisão de que, disfarçadamente, toda a Comunidade emigrará para Lisboa, no mais curto espaço de tempo. As diligências começam de imediato, mas a comunicação e os contactos com as famílias ismaelitas são feitos com extrema cautela. Em cada família o contacto é feito com uma ou duas pessoas. Há que justificar, persuadir. No norte, na região de Nampula, a Comunidade está mais dispersa e os problemas são maiores. Estes movimentos não escapam, como vimos, inteiramente à polícia política, mas pelo menos até Julho de 1973, não tinham despertado desconfianças incontroversas. Há contactos entre elementos da polícia e responsáveis da Comunidade, relações pessoais, senão de confiança, pelo menos de mútua conveniência, mas seguramente a capacidade dissimuladora triunfa sobre a argúcia policial. A DGS não identifica com rigor que as movimentações pressentidas são o início da execução de um plano irreversível de « partir ».

10Decidida que está a partida, convencidas que vão sendo as famílias, a pouco e pouco vão sendo vendidos bens e os valores assim realizados passam ao exterior por diferentes canais. Uns mais clandestinos, outros mais seguros, quase todos comportando algum risco. É de supor que alguns destes tiveram o apoio de instituições financeiras internacionais. Assiste-se a um vai e vem entre Lourenço Marques e Lisboa de ismaelitas, que passam valores, prospectam condições de instalação, retornam. A alienação de bens em Moçambique é feita com crescente prejuízo, a troca de moeda local por escudos portugueses ou divisas também. A desvalorização foi progressiva, os escudos portugueses, inicialmente cambiados com valorização de 5 a 20 %, chegaram a ser trocados na proporção de 1 para 10. Em sentido contrário, importantes quantidades de moeda de prata moçambicana foram transportadas para Lisboa e vendidas nos ourives da capital com uma vantagem que atingiu 14 vezes o valor facial.

11De qualquer forma, o ano e meio de avanço que medeia entre Dezembro de 1972 e Abril de 1974, constitui uma vantagem espantosa, não apenas na preparação e início do movimento migratório, como no momento em que a convulsão política e social tornou irreversível a necessidade de emigrar. Outras comunidades colhidas de surpresa tiveram de abandonar os territórios africanos sob administração portuguesa em debandada. Com a reserva que este levantamento pode suscitar, uma vez que assenta em fontes orais, impossíveis de verificar com rigor, pode-se estimar a seguinte cadência migratória : até 11 de Julho de 1973 : 110 pessoas ; até 25 de Abril de 1974 : 200 pessoas ; até 25 de Junho de 1975 : 500 pessoas ; até 31 de Dezembro 1975 : 1 000 pessoas ; até 31 de Dezembro de 1976 : mais de 2 000 pessoas. Até esta última data continuavam a existir cerca de duas centenas que iam e vinham, finalizando a transferência de haveres.

12Os meios logísticos e organizativos necessários ao transporte de valores, bens, pessoas, e a sua reinstalação, não foram simples, como facilmente se pode compreender. Assentaram numa boa organização local, apoiada num núcleo duro não muito numeroso, mas de grande confiança, no envio inicial de testas-de-ponte a Lisboa, que desenvolveram grande actividade, alugando casas, propiciando fianças, resolvendo problemas de assistência e apoio. Porém, é necessário não negligenciar o papel do Imam e das suas estruturas de apoio, um sólido e centralizado conjunto de instituições com ramificações internacionais, que acompanhou, aconselhou e facilitou contactos.

13Nenhuma outra diáspora ou comunidade retornada da África portuguesa mostrou tal capacidade de decidir, planear e executar. Nenhuma possuía idêntica cultura de organização e de disciplina. O momento da decisão e preparação da partida constituiu um factor decisivo no êxito obtido. É claro, que o percurso de cada família, as condições concretas de instalação, as situações singulares de inserção, foram variadas, como variadas foram as vivências individuais e a apreensão do clima social, que depois de Abril de 1974, tinha a convulsão própria de uma sociedade em transformação. Estes embates são, no entanto, amortecidos por uma rede de solidariedade e entreajuda que tem a solidez e o peso de uma religiosidade vivida intensamente e desenvolve valores firmes, em que o da obediência é seguramente o mais estruturante.

14Dispersa em Moçambique, em núcleos separados por grandes distâncias, a concentração da diáspora na Grande Lisboa constituiu um importante factor de fortalecimento da comunidade e da sua capacidade de afirmação. O facto de terem conseguido salvaguardar uma parte significativa dos seus patrimónios e terem podido beneficiar de alguns incentivos, com que foram apoiados os deslocados de África, potenciaram a histórica apetência dos ismaelitas para a actividade comercial. Implantando pequenas unidades económicas de estrutura familiar em rede, com custos de mão de obra baixos, que comporta um “seguro social” de custo zero, conseguiram, mesmo num quadro geral adverso, afirmar-se como uma comunidade coesa e com grande capacidade de adaptação.

  • 7  Sobre os ismaelitas em Portugal, veja-se: Jorge Macaista Malheiros, « Circulação migratória e estr (...)

15Os ismaelitas constituem uma comunidade semi-fechada em que o religioso, o económico e o social são indissociáveis. Com o curso dos anos, globalmente, prosperaram e adquiriram na sociedade portuguesa uma visibilidade económica, social e religiosa, i.e. cultural, muito maior que a do seu peso demográfico7. Estes desenvolvimentos positivos tiveram sobre a memória dos anos traumáticos da partida e da chegada um efeito evidente para o observador distanciado. Tornaram o momento instável da partida e a convulsão da chegada recordações incómodas que não constituem alicerces da sua afirmação identitária. Esquecimento, mas também reserva. Porque nem tudo se deve dizer. Desconhecimento, em outros casos, por marginalidade familiar ou etária. Esquecimento, reserva, desconhecimento, nuances, numa cultura que, numa palavra, resiste à história, à sua história.

16A memória tem necessidade do esquecimento, como lembra Marc Augé, sobretudo a futura memória do presente, que para se valorizar não carece de recorrer a « configurações desfocadas do tempo ».

Novembro 2004

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Notes

1  Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Lisboa, Arquivo Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE)/Direcção geral Segurança (DGS), « Ismaelitas em Moçambique », Procº. 749/73, CI (2), Cx. 7864.

2  Ibid.

3  Ibid.

4  Pela natureza dos testemunhos as fontes orais (rec. 1994-2002) não podem ser identificadas. Garantimos o rigor da recolha, controlámos a fiabilidade, só tomámos como factos eventos narrados em primeira mão.

5  ANTT, Lisboa, Arquivo Salazar, AOS/CP-147 : 435.

6  Cf. Ofício da Direcção Geral de Segurança de Moçambique de 20 de Julho de 1973, no citado Procº. 749/73, ANTT, Lisboa.

7  Sobre os ismaelitas em Portugal, veja-se: Jorge Macaista Malheiros, « Circulação migratória e estratégias de inserção local das comunidades católica goesa e ismaelita. Uma interpretação a partir de Lisboa », Lusotopie (Paris, Karthala), VII, 2000 : 377-398. Sobre os ismaelitas, a sua história e doutrinas, é importante ter presente : F. Daftary, The Isma´ilis : Their history and doctrines, Cambridge, Cambridge University Press, 1990 ; F. Daftary, A Short History of the Ismailis. Tradition of a Muslin Community, Edimburgo, Edinburgh University Press, 1998 (trad. port. Breve História dos Ismaelitas, Lisboa, Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, 2003).

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Pour citer cet article

Référence papier

António Melo, « A diáspora ismaelita »Lusotopie, XV(1) | 2008, 97-102.

Référence électronique

António Melo, « A diáspora ismaelita »Lusotopie [En ligne], XV(1) | 2008, mis en ligne le 08 mars 2016, consulté le 21 janvier 2025. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lusotopie/788 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.1163/17683084-01501007

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Auteur

António Melo

Instituto superior de Psicologia aplicada, Lisboa

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Droits d’auteur

Le texte et les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés), sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.

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