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Comptes rendus

António Tomás, In the skin of the city: spatial transformation in Luanda

Durham, Duke University Press, 2022
Isabel Raposo
Référence(s) :

António Tomás, In the Skin of the City. Spatial transformation in Luanda, Durham, Duke University Press, 2022, ISBN: 9781478018155 (paperback).

Texte intégral

1O recente livro de António Tomás sobre Luanda destaca-se pela qualidade literária da escrita, pela abordagem histórica não linear, de que o título do primeiro capítulo dá conta “Un-building History to Build the Present”, pelo revisitar iterativo entre o passado e o presente da história política e sociocultural, pelo diálogo entre o olhar antropológico e etnográfico tecendo pontes com a história urbana e arquitetónica. O texto é permeado de vivências pessoais, de excertos de histórias de vida de luandenses e das suas interações sociais, bem como de relatos de processos e de projetos. A escrita transporta-nos para os lugares e tempos convocados, como se viajássemos pela Luanda de várias épocas através dos passos do autor. A sua abordagem reflexiva, crítica e provocativa incita-nos a questionar a configuração da cidade desigual e da sociedade que a produziu e produz. A metáfora da pele da cidade, que dá o título ao livro In the skin of the city, inspira-se nas fotografias que o arquiteto António Ole realizou desde 1960 sobre as fachadas dos musseques e, especificamente, no título da exposição da sua obra fotográfica organizada em 2009. António Tomás convoca esta imagem da pele da cidade, ou da sua epiderme, na aceção de fronteira, “fronteira do asfalto”, de limite da cidade consolidada, ou de interface entre os dois lados da cidade dual.

2Para entender a formação da cidade de Luanda e a sua transformação ao longo da história colonial e do meio século de independência, António Tomás foca-se assim na sua pele, nos limites ou fronteiras, físicas e sociais, entre o(s) centro(s) e a(s) periferia(s), o formal e o informal ou o “musseque” (na terminologia local), mais do que nas malhas urbanas desiguais que as fronteiras separam. Em vez de sublinhar a dicotomia do processo urbano, interessa ao autor compreender como surgem estas categorias, como foi e é criada a divisão, como ela é percebida, negociada e transformada, como a fronteira se expande, se contrai ou se dilui. O autor interroga-se especificamente como as fronteiras que dividem os dois tipos de malhas urbanas, no último período colonial – dos colonos e dos colonizados –, são reforçadas ou ultrapassadas no Estado independente pós-colonial. Seguindo uma narrativa pessoal, o autor aborda a metamorfose destas fronteiras num ir e vir entre os séculos de domínio colonial e as últimas cinco décadas de independência. António Tomás centra o seu olhar na cidade consolidada – o centro urbano planeado e as novas malhas urbanizadas –, a partir da qual observa a cidade periférica e as fronteiras que as separam mas também relacionam. A estas fronteiras também chama de margens, não na perspetiva de área ou cidade marginal, mas de percurso linear, linha separadora percorrível, que permite descrever a cidade através de um olhar lateral sobre os seus limites. O autor caminha pelas margens para observar como os citadinos mudam o território e regista como a malha urbanizada se expandiu no tempo colonial e se expande ainda mais no novo milénio, com a remoção de musseques. Seguindo Bruno Latour (2005), o autor sublinha que também os limites ou delimitações espaciais têm agência: resultantes da legislação, podem constranger ou facilitar a ação humana. Para além de querer entender a transformação da cidade de Luanda, com foco na fronteira do asfalto, o objetivo do autor é contribuir para a produção de teoria urbana a partir do paradigma da singularidade urbana.

3Na introdução, a escrita densifica-se, num ensaio teórico-metodológico que cruza com a apresentação dos conteúdos empíricos dos seis capítulos. O autor revisita as teorias urbanas e sociais que suportam a sua reflexão sobre a formação, transformação e fragmentação da cidade de Luanda, articulando-as com as suas motivações pessoais para centrar o olhar na “pele” da cidade, instrumento da sua narrativa. António Tomás sublinha os limites da teoria urbana clássica para compreender as cidades do Sul Global, porque as reduz ao que não são, ao tomar como padrão as cidades do Norte, para as quais foi concebida. Aponta também limites ao uso, por Neil Brenner e Christian Schmid (2005), da noção de urbanização planetária, introduzida por Henri Lefebvre (1974), para designar processos urbanos não centrados na cidade, geradores de configurações desiguais, expressão do capitalismo mundial e neoliberal. Situando-se numa abordagem antropológica que toma em conta os conceitos dos nativos, o autor considera mais pertinente o paradigma centrado na cidade para a sua leitura de Luanda, já que os luandenses se referem a Luanda como cidade. António Tomás recorre ao pensamento dialético hegeliano como ferramenta metodológica, para criticar a abordagem redutora da dualidade das cidades africanas coloniais, centro/periferia, formal/informal, visando, em vez de as distinguir, articulá-las e compreender como surgem e se transformam estas categorias e como os citadinos as percebem. Contestando a visão do Norte sobre o urbanismo do Sul, o autor reconhece, nesta teoria emergente, um maior contributo para a leitura das cidades do Sul, por partir da leitura dos fenómenos urbanos aí produzidos; e, na linha de Garth Myers (2008), valoriza o contributo do olhar sobre as cidades do Sul para um novo olhar sobre o urbano global atento às margens. Considerando o direito à cidade como um direito vago e a noção de cidadania como metafísica, noções que mereceriam maior debate pelo autor, António Tomas preferiu aprofundar a questão fundiária que se concretizou nos diferentes momentos da história de Luanda analisados nos seis capítulos.

4Do ponto de vista metodológico sobre a pesquisa empírica, o autor seguiu uma abordagem eclética, visando identificar estruturas, contextualizar agenciamentos e suas historicidades, o que envolveu: trabalho de arquivo sobre a história da cidade (capítulos 1 e 2); pesquisa etnográfica baseada na experiência do autor, na sua intensa curiosidade e nas suas notas de trabalho de campo, incluindo observação participante, conversas, entrevistas e caminhadas mais ou menos à deriva (capítulos 3 e 4); a que adicionou recolha de informação diversa (nos capítulos 5 e 6). As caminhadas à deriva favoreceram o que autor chamou de “etnografia do rastreamento de associações” e a identificação de redes. Dois desafios lhe surgiram pela sua condição de antropólogo: ser nativo na cidade que pretendia compreender; e fazer parte das redes que pretendia descrever, tendo-as envolvido na sua investigação.

5Quanto à estrutura do livro, para além da introdução e da conclusão (coda), o autor concebeu três partes (Formation, Stasis and Fragmentation) que correspondem a três grandes períodos estruturantes da história de Luanda (colonial, primeiros vinte anos de independência e duas últimas décadas neoliberais). Cada parte inclui dois capítulos num total de seis que introduzem algumas das situações paradigmáticas da formação, transformação e fragmentação de Luanda com foco na sua fronteira, a pele da cidade.

6A Parte I, de formação, inclui o capítulo 1, “Desconstruindo a história para construir o presente” (Un-building History to Build the Present) que apresenta uma visão histórica não linear da cidade, centrada no edifício da Companhia de Teatro Elinga, ocupaçado por squatters, alvo de demolição, e na luta para a preservação do edifício. O autor discute aqui a fundação de Luanda e a sua urbanização ligada ao comércio dos escravos, forjando, desde a sua génese, forte dualidade social e espacial entre as terras e casas dos escravizadores e os quintais dos escravizados. O capítulo 2, “Ordenando a expansão urbana” (Ordering Urban Expansion), foca-se no desenvolvimento da colónia no século XX, assente na forte extração de recursos naturais, na chegada a Luanda de colonos, bem como de angolanos vindos do interior rural, no papel dos arquitetos modernistas na expansão e modernização de Luanda e de novo na segregação socioespacial: os colonizadores brancos instalavam-se maioritariamente no centro urbanizado; e a população colonizada e submetida ao Estatuto Indígena, habitava os musseques autoproduzidos. Estes iam sendo progressivamente demolidos para permitir a expansão da “cidade asfaltada”, e os habitantes dos musseques eram empurrados para cada vez mais longe do centro, em novos bairros autoproduzidos, ou nos bairros indígenas e populares. António Tomás mostra como a pele da cidade ou a “fronteira do asfalto” ganha neste período maior evidência material e simbólica.

7A Parte II, de estagnação, inclui o capítulo 3, “Um lugar para morar em tempos de mudança” (A Place to Dwell in Times of Change), o qual retrata o fim do império colonial português, e os primeiros anos de independência, observando-se dois movimentos: um centrífugo, de fuga para o exterior de cerca de 300 mil colonos residentes na capital e outro, centrípeto, de instalação ou ocupação dos edifícios vagos coloniais pela população da periferia ou vinda do interior rural. Tendo como base a sua experiência pessoal, António Tomás destaca o papel da ocupação na mobilidade social ascendente e na produção do urbano pós-colonial. O capítulo 4, “Uma cidade descentralizada” (A City Decentered), retrata o colapso físico e administrativo de Luanda, centrando-se na criação do mercado informal Roque Santeiro à margem da cidade urbanizada e no seu contributo para a economia e o sistema de transportes públicos em particular para serventia da população da periferia.

8A Parte III, de fragmentação, respeita à expansão e às transformações urbanas que ocorrem no novo milénio, resultantes das forças capitalistas neoliberais hegemónicas. Inclui o capítulo 5, “Invertendo a composição (urbana)” (Reversing [Urban] Composition) que analisa a fragmentação progressiva do tecido urbano de Luanda, resultante das novas políticas urbanas e habitacionais, como a privatização do parque habitacional, o direito de superfície e a propriedade da terra. O autor analisa em particular a transferência do palácio presidencial do Futungo de Belas para o centro da cidade Alta, a qual provoca a expansão da malha urbana para Luanda Sul, a emergência de condomínios fechados e a expansão de musseques. No capítulo 6, “O futuro urbano” (The Urban Yet to Come), após o fim da guerra civil em 2002 e correspondendo ao período de consolidação da economia de mercado neoliberal, o autor destaca o papel crescente do Presidente da República na transformação da cidade, sancionado pela aprovação da constituição de Angola em 2010. O autor aborda os vários empreendimentos construídos para diversos grupos sociais (como veteranos de guerra, funcionários públicos, residentes de musseques demolidos), as novas centralidades como Kilamba, a nova legislação fundiária e urbanística que facilita a demolição dos musseques (por vezes sem compensação), a deslocação dos residentes de musseques para projetos de habitação social periféricos como o Zango ou Panguila.

9Na Coda ou notas conclusivas, António Tomás remata o seu exercício reflexivo com considerações finais sobre três desafios alinhavados na introdução:

  1. Qual a pertinência do foco na pele ou na fronteira do asfalto para entender a formação, transformação e fragmentação da cidade de Luanda? O foco na pele, ou na linha de demarcação de uma cidade do Sul contribui, segundo o autor, para a compreensão da transformação da cidade porque é na pele ou nas margens da cidade de cimento que se situa o squatter, ou ocupante do espaço coletivo.

  2. Qual a pertinência da análise comparativa entre as cidades do Sul e do Norte, neste caso entre Luanda e Paris? E qual a diferença entre o flâneur e o squatter? Apesar da discussão na introdução do livro sobre a pertinência do quadro comparativo para os estudos urbanos, António Tomás distingue a comparação entre cidades do Norte e do Sul, da comparação entre cidades do Sul: a primeira é criticada pelos teóricos do urbanismo do Sul, por impor ao Sul uma visão baseada nos princípios e normativas das cidades do Norte; enquanto a segunda é valorizada, embora requeira que se afinem lógicas, unidades e categorias a comparar. Quanto à comparação apresentada na parte final do livro entre uma cidade específica do Norte (Paris, apresentada brevemente na Cota) e outra do Sul (Luanda, abordada ao longo dos seis capítulos empíricos do livro), ela ganha coerência, como refere o autor, dada a natureza de Paris e os atores dos momentos-chave da sua transformação urbana e arquitetónica que convidam à reflexão e têm servido de referência a múltiplas cidades. O confronto entre Paris e Luanda proposto por António Tomás traz à discussão a comparação das duas figuras simbólicas sugeridas, a do flâneur e a do squatter, que são paradigmáticas da distinta situação das duas cidades: em Paris, o flâneur reflete a noção de continuidade, permanência e urbanidade desta cidade rica do Norte; em Luanda, a figura do squatter revela a descontinuidade e fragmentação desta cidade desigual, bem como as formas de uso e os grupos de utentes dos citadinos oriundos das suas margens mais precárias.

  3. Qual a contribuição de António Tomás para a produção de teoria urbana a partir do paradigma da singularidade urbana de uma cidade do Sul e a partir da figura do squatter? António Tomás reescreve a teoria urbana a partir do squatter, ou seja, da perspetiva dos utentes, ocupantes e trabalhadores de rua, das margens urbanas do Sul Global, oferecendo uma leitura da cidade urbanizada a partir das lógicas de sobrevivência dos residentes das periferias. Embora a sua leitura neste livro se tenha centrado na cidade urbanizada de origem colonial, este olhar a partir da fronteira do asfalto e do squatter que a penetra e atravessa contribui para uma visão abrangente da periferia, embora partindo do asfalto.

10Como remate, fica o desafio de uma idêntica abordagem colocando o foco, do outro lado da fronteira ou da rua asfaltada, nos musseques, demolidos ou transfigurados pelo(s) centro(s), colonial ou independentes. Ou seja, refiro-me ao desafio de resgatar e atualizar o ponto de vista do Nosso musseque, do escritor angolano Luandino Vieira (2003 [1962]), que configura um novo olhar, uma “epistemologia periférica”, no dizer do sociólogo brasileiro Souza Silva et al. (2023).

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Bibliographie

Brenner, N. & Schmid, C. 2005, “Toward a New Epistemology of the Urban?”, City, 19(2-3): 151-182.

Latour, B. 2005, Reassembling the Social, Oxford, Oxford University Press.

Lefebvre, H. 1974, La production de l’espace, Paris, Anthropos.

Luandino Vieira, J. 2003 [1962], Nosso Musseque, Lisboa, Editorial Caminho.

Myers, G. 2008, “The Africa Problem of Global Urban Theory: Re-conceptualising Planetary Urbanisation”, International Development Policy, 10: 231-253.

Souza Silva, J. et al. 2023, “Epistemologia periférica”, in Melino, H. & Desrosiers, I. eds, Acesso à justiça. Reafirmando direitos para as populações haitianas no Brasil, Rio de Janeiro, Editora Periferias: 140-163.

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Pour citer cet article

Référence électronique

Isabel Raposo, « António Tomás, In the skin of the city: spatial transformation in Luanda »Lusotopie [En ligne], XXII(2) | 2023, mis en ligne le 31 décembre 2023, consulté le 05 décembre 2024. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lusotopie/7868 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/12j45

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Auteur

Isabel Raposo

Gestual-CIAUD (Grupo de Estudos Socio-Territoriais, Urbanos e de Ação Local do Centro de Investigação em Arquitetura, Urbanismo e Design), Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa

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