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Comptes rendus

Angola: O processo que derrubou José Eduardo dos Santos

Sedrick de Carvalho, Prisão Política, Luanda e Lisboa, Elivulu, Perfil Criativo, 2021
Rui Verde
Référence(s) :

Sedrick de Carvalho, Prisão Política, Luanda e Lisboa, Elivulu, Perfil Criativo, 2021, ISBN: 9789895307937.

Texte intégral

1Prisão Política, livro de Sedrick de Carvalho, editado conjuntamente pela Elivulu em Angola e Perfil Criativo em Portugal em 2021, com uma segunda série em 2022, tem 208 páginas incluindo documentos. Além do Prefácio, Introdução, Agradecimentos e Anexos, conta com 10 capítulos.

2A obra trata da prisão e libertação de Sedrick de Carvalho, um jovem ativista angolano, e de outros companheiros que ficaram conhecidos para a história como os 15+2, em 2015 e 2016, pelo regime de José Eduardo dos Santos, então Presidente da República de Angola.

3Sedrick de Carvalho nasceu um ano antes de terminar a década de 1980. Foi professor do ensino de base e do ensino médio por pouco tempo, após o que se formou no Centro de Formação de Jornalistas (CEFOJOR) em paginação digital e designer. Votou pela primeira vez em 2008, nas eleições inaugurais, após o final da guerra civil. Tinha 19 anos. Tornou-se jornalista, primariamente no Folha 8 de William Tonet, mas também colaborou no MakaAngola de Rafael Marques e outros jornais angolanos e portugueses.

4Foi preso em Junho de 2015 e libertado no dia 29 de Julho de 2016. Conta-me que na altura da libertação estava completamente destroçado psico-emocionalmente. Os projetos profissionais estavam reduzidos a zero. A prisão, além da ausência de liberdade, é, sobretudo, uma pena psicológica vitalícia. Isso está bem patente nas emoções expressas por Sedrick no seu livro.

5Saiu de Angola em Abril de 2017 direto para França, mas lá não obteve sucesso e veio parar a Portugal. No fim desse ano, a família seguiu-o. Entretanto, terminou a licenciatura em Direito em Portugal e retornou variadas vezes a Angola, fundando e apoiando várias iniciativas na área da defesa da sociedade civil. Em 2019, criou a editora Elivulu que publica livros que outras editoras alinhadas ao poder político ou que temem represálias não aceitam publicar, como as “13 Teses em Minha Defesa” de Nito Alves.

6Este é o autor do livro que descreve o calvário que os 15+2 (um grupo de ativistas angolanos) passaram nas prisões e tribunais de José Eduardo dos Santos. É um texto que, simultaneamente, tem a objetividade de uma obra de Truman Capote e o intimismo duma Annie Ernaux. A escrita é escorreita e fácil, mas atinge-nos na profundidade do ser, levando à pergunta, típica nas ditaduras: como é possível tanta estupidez humana?

7A incompetência do regime de José Eduardo dos Santos é a marca que mais transparece no roteiro dos dias contados por Sedrick de Carvalho. As autoridades nunca conseguem que nada funcione como deve ser. Numa primeira análise, poder-se-ia pensar que era crueldade ou maldade, contudo, a repetição do absurdo leva-nos a concluir que estamos perante um sistema incompetente. Começa pela detenção em que os policiais pareciam perdidos, arrancavam sem sentido fios elétricos; continua pelas vicissitudes em arranjar uma lâmpada para a cela de Sedrick, pelas esperas para interrogatórios que não aconteciam, pela falta de carros para os transportar para a prisão de volta ou pela famosa cabeleira postiça da procuradora que representava a acusação no tribunal, que nunca quis mostrar a face, numa sublimação da farsa legal.

8E, no fundo, a incompetência reflete-se no processo em si mesmo. O regime de José Eduardo dos Santos escolhe jovens que se reuniam para discutir o livro de Gene Sharp Da Ditadura à Democracia e refletir sobre a necessidade de mudar a situação política sem armas, e transforma-os nuns perigosos conspiradores que pretendiam derrubar o Presidente da República. O ridículo depressa tomou conta das acusações e obrigou os seus mentores a recuar apressadamente. Mais do que a pressão da opinião pública nacional ou internacional, foi o ridículo e a incompetência de todo o esquema que defraudou as expetativas de José Eduardo dos Santos, que depressa percebeu que estava a criar mártires e a não obter qualquer resultado. Tudo acabou numa apressada lei da amnistia que devolveu à liberdade Sedrick e os seus companheiros.

9No entanto, pelo meio, a incompetência aliada à maldade humana pesou, e Sedrick conta com detalhe e sofrimento as sevícias físicas e psicológicas as que foi sujeito, desde a colocação em “solitária” sem se perceber o porquê, o não tratamento das doenças, as pequenas arbitrariedades de deixar ler livros, não deixar ler livros, não deixar ir ao pátio apanhar sol, deixar ir ao pátio apanhar sol. Um sistema prisional e judicial totalmente submetido às vontades do poder político, sem qualquer força própria.

10E esta é outra das lições que o livro de Sedrick nos dá e muitos autores e observadores insistem em não ver. A existência de uma constituição ou da lei não adianta nada em regimes autocráticos. São meras formas sem sentido e aplicação real. Isto vê-se claramente ao longo do relato. Nunca a lei é efetivamente aplicada, sendo as suas evocações afastadas com um “encolher de ombros”. Mesmo o julgamento é farsante, provas ilegais são admitidas, todo o procedimento é arbitrário.

11É muito importante não confundir a lei com a realidade. O grande combate que se pode fazer não é por leis novas, mas pela mera aplicação da lei. Todo o livro de Sedrick comprova este facto óbvio que parece esquecido.

  • 1 União Nacional para a Independência Total de Angola.

12Como se sabe, um ano após o vexame do julgamento, José Eduardo dos Santos abandonou o poder, entregando-o a João Lourenço que por uns tempos pareceu abrir o regime. Os 15+2 foram saudados como heróis pela sua resistência, e hoje cada um seguiu o seu caminho. Um é deputado pela UNITA1, o principal partido da oposição, outro continua um ativista predominante; outros desapareceram, alguns emigraram e estudam no estrangeiro. Já não são uma força única, mas ficou o seu testemunho de resistência ao absurdo. O juiz Januário que presidiu o julgamento, causticamente caracterizado por Sedrick, foi promovido e é hoje juiz do Tribunal da Relação, a um passo do Tribunal do Supremo.

13Alguns aspetos poderiam ter sido mais desenvolvidos no livro, entre eles a explicação das razões para as reuniões do grupo, como se conheceram, o que estavam a fazer; também algum enquadramento político-económico da crise que o regime de José Eduardo dos Santos se confrontava a partir de 2014 poderia ter ajudado e entender melhor o contexto, bem como o papel, se Sedrick notou ou não, dos Serviços de Inteligência Militar (SIM) e do seu director de então, general José Maria, que sempre foi apontado como responsável pela operação, mas nunca ficou clarificado o seu papel.

14Temos aqui um livro valioso com uma narrativa objetiva e sofrida de uma prisão política absurda, um sistema político caduco e um sistema judicial oco em Angola. Mas ainda fica a pergunta: quando é que as prisões políticas acabarão? Como é que no século XXI ainda são possíveis? Depois do exemplo de Nelson Mandela, não se aprendeu nada?

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Notes

1 União Nacional para a Independência Total de Angola.

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Pour citer cet article

Référence électronique

Rui Verde, « Angola: O processo que derrubou José Eduardo dos Santos »Lusotopie [En ligne], XXII(2) | 2023, mis en ligne le 31 décembre 2023, consulté le 06 décembre 2024. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lusotopie/7800 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/12j44

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Auteur

Rui Verde

African Studies Centre, University of Oxford

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Droits d’auteur

CC-BY-NC-4.0

Le texte seul est utilisable sous licence CC BY-NC 4.0. Les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés) sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.

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