- 1 Fonte: Arquivo do Conselho Mundial das Igrejas, Genebra, Documento de trabalho de Paulo Freire, “L’ (...)
O problema enfrentado por todos aqueles que, mesmo em diferentes níveis, se envolvem em um processo de libertação como educadores, dentro ou fora do sistema escolar, mas sempre dentro da sociedade (estrategicamente fora do sistema, mas taticamente dentro), é saber o que fazer, como, quando, com quem, porque, contra quem e a favor de quem. [...] O que me parece fundamental é a clareza sobre a opção política do educador ou da educadora, o que implica os princípios e valores que ele ou ela deve assumir, ou seja, a clareza sobre o “sonho possível” que deve ser realizado. O “sonho possível” deve estar sempre presente em nossas reflexões sobre métodos e técnicas. Há uma solidariedade indestrutível entre eles e esse “sonho possível”.
Paulo Freire s.d.1
1Voltar às fontes e tentar decifrar os escritos do educador brasileiro Paulo Freire (1921-1997) nos seus contextos; dar espaço à imaginação e à criatividade no âmbito da investigação acadêmica e em outras áreas de produção de conhecimentos, como a sala de aula e as práticas culturais ou associativas; pensar a diversidade das possibilidades pedagógicas emancipatórias inspiradas do pensamento freireano… tais são objetivos do dossiê “Circulações e ressignificações internacionais dos trabalhos, métodos e práticas de Paulo Freire” publicado pela revista Lusotopie.
2As ambições iniciais se construíram em torno de um convite: o desafio planteado era a construção de uma reflexão coletiva, em várias escalas temporais, geográficas e disciplinares, sobre as circulações, reapropriações e problemáticas dos trabalhos e métodos pedagógicos desenvolvidos por Paulo Freire entre a década de 1960 e o fim do século XX. Tratava-se também de considerar a transposição possível (ou não) de vínculos indissociáveis entre alfabetização, educação popular e conscientização, pilares das diversas experiências idealizadas e consolidadas pelo educador e os diferentes grupos de trabalho ao longo do seu longo percurso educativo, no Brasil e pelo mundo afora. Queríamos tentar situar Freire e os pensamentos freireanos, os projetos impulsionados, os métodos empregados, as dimensões internacionais e coletivas, como elementos catalisadores de mudanças e reinvenções, cujo alcance histórico e didático está ainda a ser amplamente estudado.
- 2 Durante o período em que foi diretor do programa de extensão universitária da Universidade do Recif (...)
3Este dossiê da Lusotopie convida a refletir de forma interdisciplinar e a partir de perspectivas diversas, as circulações e ressignificações do pensamento e das propostas desenvolvidos por Paulo Freire, desde os anos 1950, ou seja, antes da sua notoriedade mundial com a experiência de alfabetização de adultos em Angicos, em 19632. Como veremos a seguir, não poderia estar ausente o diálogo entre áreas de produção de conhecimento, entre campos de pensamento e métodos de investigação. Além de buscar situar historicamente Paulo Freire e seus trabalhos, metodologias e práticas, como também a ação e o alcance de grupos de parceiras/os e colaboradoras/es, em distintas escalas, considerámos essencial abrir portas para abordagens comparativas e visões cruzadas, tendo sempre em consideração as conexões possíveis entre os processos educativos, a educação popular dentro ou fora do sistema educativo oficial, e a conscientização.
4Nesta perspectiva, abrimos o dossier com o texto “Memories of (Un)Freire literacy policies in Southern Africa from the 1970s on: telling the (hi)story through life histories and photography of (dis)empowerment in Mozambique”, por Xénia Venusta de Carvalho. Baseado em fontes textuais, orais e fotográficas, o artigo analisa os mecanismos de elaboração de uma ideia de nação em Moçambique, a partir do estudo da Escola Bagamoyo desenvolvida pela Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) na Tanzânia entre 1970 e 1975. A história e as memórias do Centro de treinamento dos soldados em luta para a Independência durante a guerra anticolonial (1964-1974), que também foi um lugar chave de educação e alfabetização depois da visita de Paulo Freire em 1972, são contadas a partir das narrativas verbais e visuais dos primeiros professores e dos arquivos da FRELIMO sobre políticas de alfabetização. O artigo, em suma, diz também muito sobre a complexidade do momento político da Independência e dos primeiros anos após o fim do colonialismo em Moçambique, analisando dilemas políticos, linguísticos, pedagógicos e cristalizações em torno da escolarização e da educação popular, da conscientização da realidade vivida e da leitura do mundo.
5A seguir, Irène Pereira propõe, no artigo “La conscience opprimée. Une analyse philosophique à partir de la Pédagogie des opprimés de Paulo Freire”, uma releitura da obra emblemática do pedagogo brasileiro, desde a teorização filosófica da opressão da consciência. Especialista em pedagogias críticas, a autora mostra que o trabalho de Freire procurou dar uma resposta elaborada, original e complexa a um grande problema político e filosófico que atravessa a filosofia e as ciências humanas e sociais: o que impediria as pessoas ou os setores oprimidos de se revoltarem contra as fontes de opressão com mais frequência, de forma mais maciça ou espontânea? A autora pretende identificar e compreender as questões atuais da teoria da subjetividade, de modo a refletir sobre a sua aplicação em situações de violência e opressão contemporâneas. A partir da análise dos mecanismos de alienação presente na obra de Freire, o artigo sublinha as consequências desse pensamento para a produção e o desenvolvimento de projetos de educação popular com vocação emancipatória, nos quais a libertação permite à/ao oprimida/o constituir-se em sujeito, a partir de estudos de caso no âmbito do trabalho social feminista e da psicologia comunitária.
6A análise de uma carta, apresentada como elemento-chave para refutar ausências e demonstrar a ampliação de intercâmbios educativos num período anterior ao golpe de 1964, no Brasil, é o ponto de partida do artigo “Ressignificar: Paulo Freire e a Escolinha de Arte do Recife”. Fundada em 1953 pela educadora Noemia Varela (1917-2016) e outros artistas, educadores e intelectuais, a Escolinha, como ficou conhecida, mantém-se em funcionamento após 70 anos, num projeto que tem nos seus fundamentos a interação entre Arte e Educação. O artigo, escrito em co-autoria por Teresinha Maria de Castro Vilela e Aristóteles de Paula Berino, destaca uma correspondência de Noemia Varela endereçada ao multiartista e um dos fundadores da Escolinha de Arte do Brasil, Augusto Rodrigues (1913-1993). O artigo sustenta ser este “um dos poucos documentos de domínio público que confirmam o nome de Paulo Freire na história da Escolinha de Arte do Recife”. Se a análise da fonte contribui para uma melhor historicização das ideias de Freire no campo da Arte e da Educação, também integra uma trajetória maior na qual o próprio projeto também sofreu um corte brusco após o golpe militar e a repressão contra o educador.
7Em “Musicalidade Crítica: Ressignificando as teorias de Paulo Freire para o campo da Educação Musical”, Alan Caldas Simões desenvolve uma proposta empírico-teórica em que assume sua subjetividade crítica. Para realizar o estudo de caso em uma escola de Educação Básica e Profissional em Minas Gerais (Brasil), põe em diálogo a obra do educador brasileiro com as propostas da educadora musical inglesa Lucy Green. Durante sua docência em Música para adolescentes e jovens, o professor-autor mobiliza conceitos freireanos como “conscientização”, “educação bancária” e “educação problematizadora”, para testar processos e práticas desenvolvidos pela educadora em escolas inglesas. Compartilha da mesma questão proposta por Green: É possível aprender música na escola como os músicos populares aprendem, e utilizar esses princípios didáticos para ressignificar o papel de professores e alunos em aulas de música? A escrita em primeira pessoa para afirmar um percurso de experimentação e permanente reflexão não escamoteia os desafios, as dúvidas e os questionamentos brotados no terreno. Num convite à leitura e à continuidade teórico-prática em sala de aula, o autor destaca as tensões entre os propósitos individuais e os processos coletivos a se realizarem, com vistas às transformações na Educação.
- 3 Convidado desde o final dos anos 1960 para trabalhar como consultor especial no Departamento de Edu (...)
8Também fruto de uma reflexão, desta vez colectiva, sobre as possíveis reinvenções da pedagogia freireana nos campos artístico e educativo, o texto escrito pelo coletivo suíço de arte contemporânea microsillons é uma análise do projeto “Réinventer la pédagogie des opprimé·e·x·s pour favoriser la participation culturelle dans les institutions d’art contemporain suisses (janvier 2021-janvier 2023)” (RPO). O artigo “Réinventer la pédagogie des opprimé·e·x·s pour développer une approche dialogique de l’art contemporain” analisa as possibilidades atuais de reencontro com a pedagogia freireana e emancipação pelo viés da arte contemporânea, a partir de quatro experiências desenvolvidas dentro de instituições artísticas na Suíça, em parceria com coletivos e associações. Enraizado numa concepção dialógica das práticas artísticas, o trabalho do coletivo microsillons revela um compromisso assertivo com a investigação-ação e uma firme convicção na opção política de abrir um mundo de possibilidades a partir da arte. O texto, escrito a várias mãos, tem como objetivo analisar o legado contemporâneo da presença de Freire em Genebra, enquanto trabalhava para o Conselho Mundial de Igrejas3, ao mesmo tempo em que produz uma análise situada do trabalho de ressignificação realizado pelo coletivo com públicos variados e mediadoras/es culturais, voltado a propor alternativas ao modelo dominante na educação artística.
9A escrita coletiva é também constituinte para a reflexão proposta no artigo “Leitoras de Paulo Freire na França: as bonitezas das andarilhagens de mulheres migrantes e os desafios da reinvenção”. As autoras Ana Lúcia Souza de Freitas, Maria Luísa Souto Maior e Claudia Becerra Baudry remetem para as práticas do grupo de Leitoras de Paulo Freire, em Paris. O texto apresenta e analisa as diferentes experiências desenvolvidas a partir do primeiro ateliê de Cartas pedagógicas realizado em novembro de 2019, remetendo ao contexto da pandemia de Covid-19. A partir da experiência cotidiana vivida pelas membras do coletivo, e de uma releitura de conceitos-chave do pensamento freireano, como “boniteza” e “andarilhagens”, a proposta desenvolve pistas de reflexão em torno das diversas modalidades de ação empregadas. Enfatizam o contexto político brasileiro contemporâneo e as suas consequências nos mecanismos de migração muito recentes, assim como para a organização de entidades criadas no exterior em defesa da democracia no Brasil. As autoras voltam-se sobre suas práticas em coletivo para analisar os encontros, os desafios e as problemáticas que vem caracterizando o próprio grupo. Primeira tentativa de teorização dessas experiências em processo, o artigo sugere uma série de vias que podem ser exploradas para continuar e expandir os vários aspectos do trabalho conjunto.
10No contexto da pandemia de Covid-19, a experiência de releitura dos Círculos de Cultura, uma prática emblemática do educador Paulo Freire, é apresentada por André Gustavo Ferreira da Silva e Allan Diêgo Rodrigues Figueiredo. No artigo “Ressignificações em torno dos círculos de cultura freireanos no espaço-tempo on-line no (con)texto da Covid-19: reflexões para a formação política dos sujeitos sociais”, os autores discutem a experiência on-line desenvolvida no âmbito do curso “Paulo Freire, o educador do povo”, no assentamento de Normandia, no estado de Pernambuco. Frente às dificuldades ligadas à situação sanitária, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) optou por tentar ocupar espaços virtuais, imaginando novos contornos contemporâneos para a experiência pedagógica inicialmente desenvolvida em Angicos e nos Centros Populares de Cultura (CPC) no início dos anos 1960. Os autores analisam as vivências realizadas entre 2020 e 2021, a partir de uma observação participativa e de fontes produzidas pelas/os participantes e organizadoras/es.
11Este percurso encerra-se com o texto “A atualidade da práxis freireana, a dialética da crítica situada e os movimentos anti-Freire. Diálogo por escrito com Joana Salém Vasconcelos, por Débora Dias e Mélanie Toulhoat”. A historiadora brasileira Joana Salém Vasconcelos, intelectual pública, professora universitária, co-fundadora da Rede Emancipa de Educação Popular, aprofundou tópicos que se referem à atualidade da pedagogia de Freire – e que tem nos movimentos sociais os seus maiores impulsionadores. Desde Portugal, as coordenadoras do Dossiê enviaram questões em torno de quatro tópicos: “A recepção de Paulo Freire no Brasil”; “As detrações e os/as detratores/as de Paulo Freire à direita e à extrema-direita”; “A crítica marxista a Paulo Freire e os diálogos discordantes”; “A leitura contemporânea de Paulo Freire e sua efetiva capacidade transformadora”. Sublinhamos o por escrito para caracterizar o modo como foi construída a proposta e a sua forma final, assim como para sugerir uma aproximação às potencialidades da correspondência como instituição de encontro e produção de conhecimento. Em destaque está o protagonismo da escola pública para a pedagogia freireana, como campo estratégico de disputa. Nesse terreno, Joana Salém Vasconcelos reflete sobre as contradições e os desafios no campo educacional, além dos enfrentamentos em curso com o avanço mundial da extrema-direita. Numa perspectiva histórico-filosófica, a obra de Paulo Freire é posta em diálogo com autores como E.P. Thompson, Rosa Luxemburgo, Georg Lukács e Franz Fanon, por exemplo.
12Destacamos que, no conjunto dos artigos, encontram-se experiências que convidam à continuidade de interpretações, de críticas e de estarem em permanente atualização em função dos seus contextos: quer entre educadores em luta por libertação colonial em Moçambique nos anos 1970, mulheres leitoras imigrantes em França durante a pandemia de Covid-19, professores de arte em Recife nos anos 1950, ou de Música em Belo Horizonte nos anos 2000, como também mediadores culturais em Genebra, jovens de periferia por todo o Brasil que querem ingressar no ensino superior, num futuro próximo. Seguindo a perspectiva defendida pelo próprio Paulo Freire em Cartas à Guiné-Bissau, segundo a qual “as experiências não se transplantam, reinventam-se” (Freire 1977: 17), este dossiê da Lusotopie é consequentemente alimentado e articulado pela análise dessas múltiplas reinvenções, assim como pela imensa diversidade de projetos educacionais com vocação emancipatória, inspirados pela pedagogia freireana, que não estão aqui, mas que também são dialogantes para esta proposta.
- 4 Destacamos também, entre muitas outras, as seguintes entrevistas na imprensa: Freire, P. 1977, “Pau (...)
13A essência do diálogo é matéria de importância na construção teórica da obra de Paulo Freire. Como um alicerce destacado em Educação como Prática da Liberdade (Freire 1967), é desenvolvido nos seus elementos constitutivos em Pedagogia do Oprimido, ao tratar da correlação entre a educação problematizadora e a dialogicidade da educação (Freire 2010 [1972]: 89). Para Freire, o diálogo é encontro dos humanos, “mediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não se esgotando, portanto, na relação eu-tu” (ibidem: 91). Se na etimologia está a palavra (logos), o educador chama atenção para o “algo mais” desta como um meio para que o diálogo se faça. Defende a interação radical, na palavra, entre ação e reflexão: “Não há palavra verdadeira que não seja práxis” (ibid.: 89). O compromisso com a sua elaboração se reflete nas formas e títulos que o conjunto das suas edições também adota: cartas (Freire 1977, 1980, 1993, 1994), debates (Freire 1979a), entrevistas4 (Freire 1982a), conversas e textos em co-autoria (Freire & Illich 1975, Freire 1979b, Freire et al. 1980, Freire & Guimarães 1982 e 1984, Freire & Faundez 1985, Freire et al. 1985, Freire & Horton, 2002).
14Com atenção à conceitualização freireana de diálogo, buscamos destacar essa dimensão e exercitá-la como inspiração, processo e aprendizado. Visto como um todo, a proposta também inclui o diálogo entre compreensões disciplinares, quer seja da História, da Musicologia, da Educação, da Antropologia, da Pedagogia, da Arte, do Serviço Social, e das experiências em coletivo. O tema, que perpassa todo o Dossiê, apresenta-se em discussões que compõem este volume. Como no texto “Musicalidade Crítica: Ressignificando as teorias de Paulo Freire para o campo da Educação Musical”, que define o “diálogo” como “força propulsora do pensar crítico e problematizador, estabelecendo uma vinculação real aos sujeitos” (§ 32). O autor reflete sobre as dimensões existenciais, ético-políticas e metodológicas, e o uso do diálogo freireano no ensino da música com crianças em espaços escolares. As membras e os membros do coletivo suíço de arte contemporânea microsillons ancoram as suas práticas na herança teórica da “arte dialógica” (§ 1), enquanto as integrantes do Coletivo de Leitoras de Paulo Freire na França mostram em que medida a procura e o desenvolvimento de um espaço de diálogo coletivo foram cruciais na construção gradual das suas actividades educativas e ativistas (§ 33). De modo afirmativo, um dos textos assume este lugar de encontro e ato de criação, no que chamamos “Diálogo por escrito”, com a historiadora Joana Salém Vasconcelos.
- 5 As organizadoras do Dossiê assumem o termo “ditadura militar” para o período de 1964 a 1985 no Bras (...)
15Compreendendo o diálogo como um exercício, este Dossiê buscou se manter aberto à diversidade de expressões, interpretações e posicionamentos. Daí que não se tornou sequer uma questão definir uma variante linguística a ser exigida, por exemplo, ou a adoção de freireano ou freiriano, ambos em voga. Mantendo a clareza e a coerência de escolha, cada texto pressupõe o seu próprio referencial de língua adotado, quer no inglês, no francês ou no português. Isso se reflete também no uso de termos que, em determinado território, podem ser ou não aceitos por suas comunidades. É o caso da adoção de “povo preto” no Brasil, enquanto, em Portugal, a mesma expressão pode carregar conotações pejorativas. Fica então o convite à leitura dos textos e dos seus contextos. E, se a compreensão mútua, com vistas à reflexão e ao debate, é um dos interesses que guiam este Dossiê, sabemos e assumimos que esta não pressupõe a irrestrita concordância5.
- 6 Lei federal nº12.612 do 13 de abril de 2012, consultado no 25 de julho de 2023, http://www.planalto (...)
- 7 Em abril de 2021, o Brasil chegou a concentrar um terço das mortes diárias por Covid no mundo, mesm (...)
16Por ocasião do centenário de nascimento de Paulo Freire, o período em torno de 2021 foi caracterizado por um significativo número de eventos, publicações, seminários e debates sobre a contemporaneidade das práticas educativas emancipatórias desenvolvidas pelo pensador, patrono da Educação brasileira desde 20126. Em meio à pandemia de Covid-19 e à ascensão de uma extrema-direita mundial, com consequências especialmente drásticas no Brasil7, a efeméride ocorreu em um tempo de intensa necessidade e busca por “pronúncia do mundo”, cuja atualidade de se discutir os termos de transformação deste se tornou evidente.
17Na elaboração de Paulo Freire, o “mundo pronunciado, por sua vez, se volta problematizado aos sujeitos pronunciantes, a exigir deles novo pronunciar” (Freire 2010: 90). Com atenção ao que é base para o diálogo, chegamos a fase de avaliar e refletir sobre o momento seguinte. Na sequência dessa enxurrada de iniciativas, em parte renovadoras, impõe-se desafios, aprendizados, balanços e repensar de percursos.
- 8 Queremos lembrar aqui que em maio de 2019, um deputado federal filiado ao Partido Social Liberal (P (...)
18Nesse sentido, a expressada busca pelo diálogo também destacou os grandes desafios no enfrentamento ao antidiálogo, imposto e fomentado em vários âmbitos. Notavelmente, na área da Educação, o antidiálogo se associa a desafios históricos e constituintes, chegando aos extremos da detração e violência. Não por acaso, no Brasil, por exemplo, a ascensão e chegada ao poder da extrema-direita capilarizada em redes internacionais caminhou de mãos dadas com um movimento massivo de criminalização da Educação (Dantas 2022) que destacou Paulo Freire como um dos principais inimigos em permanente ataque8. Sobre conhecidas bases, emergiu com pujança o ódio de setores conservadores, que associaram amplamente Paulo Freire à “subversão ideológica”, ao “comunismo” e aos ataques à moral por parte do pensador que, supostamente, invadiu e dominou o sistema escolar e universitário público do país.
- 9 Ver o site da Rádio Paulo Freire: https://sites.ufpe.br/rpf/.
- 10 De acordo com o MST, no ano de 2021, foram realizadas ações baseadas no método Ler, Falar e Escreve (...)
19Em meio e, em alguns casos, como resposta às circunstâncias políticas ainda mais adversas na última quadra, sublinhamos a variedade de iniciativas de educação popular lançadas ou que continuaram a existir durante este período: quer seja a partir do sistema escolar, como projetos de extensão universitária ou realizadas autonomamente por movimentos sociais. Assinalamos aqui, entre muitos outros, o exemplo do trabalho realizado pela Rádio Paulo Freire, dinamizada por professoras/es de comunicação da Universidade Federal de Pernambuco, numa aposta de ligação entre a formação, a experimentação, a colaboração e a cidadania na área da comunicação pública9. Como também, as atividades da Jornada Nacional Viva Paulo Freire do Movimento dos Sem Terra (MST), que incluiu ações de solidariedade internacional com a Brigada Internacionalista do MST Samora Machel na Zâmbia10. É neste contexto marcado por enfrentamentos contemporâneos, que as múltiplas dimensões das obras de Freire adquirem uma ressonância peculiar.
20Conscientes de que as tarefas exigidas encontram dificuldades na precariedade do mundo académico e associativista, destacamos a relevância e a necessidade de um esforço comum para análises profundas e renovadas dos métodos e práticas desenvolvidos por Freire e por suas equipes em torno de demandas como educação dialógica e crítica, educação popular, pedagogia emancipatória, comunicação participativa, cooperação, desenvolvimento sustentável, alfabetização de adultos, trabalho comunitário, descolonização da educação, luta contra a opressão de classe, raça e gênero, entre outras. Nos meandros destes esforços que unem teoria e ação, parece-nos importante valorizar em uns e chamar em outros mais honestidade e abertura em relação aos limites, às dificuldades e aos obstáculos encontrados na concretização de projetos emancipatórios. A idealização ou o uso instrumental de conceitos descolados de seus contextos; a utilização acrítica de termos esvaziados de seus sentidos; o maniqueísmo que resvala na impostura teórica ou na redundância, são equívocos que, no fim, podem levar obras ou iniciativas pretensamente descritas ou assumidas como progressistas, a um acentuado conservadorismo ou mesmo reacionarismo.
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21Em 1980, pouco depois de retornar ao Brasil após 15 anos de exílio, Paulo Freire foi um dos convidados do III Encontro Nacional de Supervisores de Educação, em Goiânia, Brasil. Ao lado de outros educadores como Marilena Chauí, Rubem Alves, Miguel Arroyo, escolheu o título “Educação. O sonho possível”, para a conferência, depois transformada em artigo no livro O educador: vida e morte, organizado pelo amigo de sempre Carlos Rodrigues Brandão, falecido neste ano de 2023. Mantendo os ritmos da oralidade no artigo escrito, desenvolveu uma questão que disse já refletir há alguns anos, em torno de “um lugar na educação ou na prática educativa para os sonhos possíveis” (Freire 1982b: 99).
22Para Paulo Freire, o sonho possível, ou viável (termo que também adota), exige-nos pensar diariamente a nossa prática para a descoberta constante dos limites desta e dos espaços livres a serem preenchidos. O critério da possibilidade ou impossibilidade desses sonhos é histórico-social e não individual, bem como se relacionam com a educação libertadora, em oposição à educação domesticadora. Não por acaso, ao falar do tema, remeteu a um depoimento que ouviu de uma militante na Guiné Bissau, sobre Amílcar Cabral, entendido como profeta porque “viajava ao amanhã partindo do seu hoje” (ibid.: 101). Assim, Paulo Freire faz o chamado às educadoras e aos educadores presentes no encontro, transmutados em leitoras e leitores no livro: “visitar de vez em quando o amanhã, o futuro, pelo profundo engajamento com o hoje, com o aqui, com o agora”. Do contrário, estariam sob pena de se manter em um presente-passado “de exploração e de rotina”. O sonho possível, em Freire, é o que se faz na vivência da dinâmica entre “a denúncia e o anúncio”, por conter dimensão utópica.
23Desde a epígrafe dessas “palavras introdutórias”, que também fazemos num exercício de fraterno diálogo, buscamos valorizar, de forma consciente e assertiva, a multiplicidade interpretações do complexo pensamento freireano, que se processam em diferentes geografias, escalas e circulações, rejeitando uma epistemologia eurocentrada e verticalizada. Nesse processo em contínuo, destacamos a ligação intrínseca entre o “sonho possível” e os desafios da busca pelo “inédito viável”, conceitos do educador centrados nas possibilidades e perspectivas de construção de futuros emancipadores.