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Dossier

O 25 de Abril do Chega e do Ergue-te

Le 25 avril de Chega et Ergue-te
The 25 April of Chega and Ergue-te
Afonso Silva

Résumés

Cet article étudie les représentations narratives de la révolution portugaise du 25 avril 1974 construites par les partis Chega et Ergue-te, en prenant comme point de départ l’application du concept d’événement d’Alain Badiou et en établissant une articulation entre leurs interventions interprétatives sur l’événement du 25 avril et l’objectif politique de remplacer la démocratie qui résulte de la révolution portugaise par ce que les deux partis appellent la « IV República ».

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Texte intégral

O acontecimento do 25 de Abril

1Neste artigo pretende-se investigar a interpretação da Revolução portuguesa de 1974 por parte dos partidos Chega e Ergue-te tendo em conta sobretudo as fontes organicamente validadas por estes partidos, mas também entrevistas concedidas a órgãos de comunicação social, entre o ano em que o Ergue-te se apresentou a eleições legislativas em todos os círculos eleitorais pela primeira vez em 2011, que representa também o aniversário dos 50 anos do início da Guerra Colonial, e 2021, o 60º aniversário do início desta guerra cujo final incide diretamente no acontecimento em estudo neste artigo. Mais do que a perspetiva puramente histórica da revolução portuguesa, este artigo foca-se na interpretação do 25 de Abril destes partidos considerando a informação nestas fontes, a qual “embora possa não oferecer uma descrição fiável de um acontecimento ou de um processo, pode ser de confiança como expressão dos pontos de vista do seu autor” (Bell 2010: 115), tendo justamente em atenção o que estes, como diria Hobsbawm: “recordam de grandes acontecimentos ao invés do que os historiadores conseguem estabelecer como tendo acontecido” (1997: 206-207).

2Atentando concretamente na revolução portuguesa, aplica-se o conceito de Badiou (2007: xii) de “event”, traduzido para acontecimento, entendido como uma transformação política sob a forma de uma “rutura” (ibid), reconhecendo que “o acontecimento assinala na situação – no que existe – tanto um antes como um depois” (Badiou 2005: 61). Perante a transformação da situação política até então existente, interrompendo a continuidade, o 25 de Abril constitui-se como um acontecimento que é sujeito, como consequência do seu final, a uma reactualização que pode traduzir-se numa reconfiguração do seu significado e numa anulação do acontecimento. Neste âmbito, é preciso ter em conta que o acontecimento é constituído, não só pelo momento revolucionário, mas também pela, como esclarece Rancière (2016), “interpretação do acontecimento” sob a forma de uma “intervenção afirmando a existência de um acontecimento” (ibid.), sendo relevante conhecer como se configura a intervenção interpretativa sobre o acontecimento da democratização portuguesa no objetivo político partilhado pelo Chega e pelo Ergue-te de fundar uma IV República. Acerca destes partidos, a criação do Ergue-te data de 2000 através da conversão estatutária do Partido Renovador Democrático, o qual tinha sido fundado em 1985, reorganizando-o em 2000 inicialmente com o nome de Partido Nacional Renovador. Por sua vez, o Chega foi fundado em 2019, ocupando este espaço político de radicalismo de direita que revela uma ideologia que, no âmbito deste artigo, deve ser enquadrada no “espaço discursivo ocupado pela direita radical no contínuo da ideologia contrarrevolucionária” (Woodley 2013: 18), intervindo na agenda política portuguesa de modo particular no respeitante à Revolução de 25 de abril de 1974.

A descolonização

3Partindo do reconhecimento de que “o facto de o 25 de Abril se ter dado em ligação direta com a guerra colonial condicionou a forma como este último episódio foi rememorado” (Cardina 2020: 376), começar-se-á por assinalar o entendimento particular destes partidos que, ao discutir o 25 de Abril, procuram exaltar a figura do combatente da Guerra Colonial, o qual é descrito pelo Ergue-te (2021a) como “traído […] com a entrega vergonhosa do nosso Ultramar em 1975”. É relevante ter em atenção esta ligação entre a descolonização e o 25 de Abril na crítica ao que o Ergue-te (2012) entende ser um “abandono irresponsável do Ultramar”, sendo que, no respeitante à “revolução de Abril e aos seus resultados” (Ergue-te 2015a), este partido destaca que, enquanto “a nível interno, esses resultados são hoje evidentes” (ibid.), devem também realçar-se os “lamentáveis legados, a nível externo, da referida revolução” (ibid.). Neste âmbito, o líder deste partido, ao abordar precisamente o 25 de Abril, argumenta que “o seu legado cifra-se em centenas de milhares de mortos, no genocídio de Timor, nas matanças e guerras civis em Angola e Moçambique e nas centenas [de] milhares de ‘retornados’, esses sim, verdadeiros refugiados do drama de uma vida de trabalho totalmente despedaçada e perdido o presente, o futuro e os sonhos” (Pinto-Coelho 2019a). Destacando o tema das consequências negativas da descolonização para os portugueses em África, descrita como uma “descolonização abrupta ditada pelo 25 de Abril” (Ergue-te 2019a), Pinto-Coelho (2019a) procura assinalar que “com o PNR [atual Ergue-te], todos os espoliados e ex-combatentes do Ultramar teriam, por fim, um pouco de atenção e alguma justiça por parte do governo”, concluindo que, assim, “seria feita justiça histórica!” (ibid.).

4Também no Chega, é assinalada a defesa do combatente da Guerra Colonial ao discutir-se o 25 de Abril, sendo que, no aniversário desta data, o seu líder André Ventura (2021a) afirma que “devíamos também hoje, por vergonha, recordar os milhares de ex-combatentes que continuam a ser destratados por um Estado que os trata como bandidos que esqueceram a sua história”. Constatando-se que este tema é ativado politicamente em relação com o acontecimento do 25 de Abril, é relevante enquadrar tal ativação política na ideologia nacionalista do radicalismo de direita português já que, depois do 25 de Abril, como afirma o historiador Bruno Madeira (2020: 530), “o primeiro passo para a «renacionalização» do país, ou, noutros termos, para a sua moralização, passaria, para a Direita radical, pela reabilitação do passado histórico nacional, inclusive da bravura e da justiça com que as Forças Armadas Portuguesas se bateram em África pela defesa do império colonial”.

5Articulando-se a memória do 25 de Abril e os objetivos políticos do radicalismo de direita português, é pertinente assinalar o argumento de Gabriel Mithá Ribeiro (2020a) – ideólogo do Chega e coordenador do Gabinete de Estudos do Chega à data do final do espaço temporal considerado neste artigo, removido desde então dessa posição, mas permanecendo no partido tendo sido eleito como deputado em 2022 – de que “nas fundações dos pilares morais, cívicos e políticos da III República Portuguesa ficaram soterrados sem dignidade, até hoje, cadáveres, sangue, sofrimento, miséria, abandono e expropriações violentas de meio milhão de compatriotas portugueses, incluindo os nascidos em África. Se o regresso inevitável dessa verdade à consciência coletiva portuguesa não deslegitimar para todo o sempre o atual regime, mesmo o mais sanguinário regime da história passará a ser legítimo”. Procurando deslegitimar a democracia portuguesa resultante da Revolução, descrita por estes partidos como o regime da III República Portuguesa, precisamente a partir da memória do 25 de Abril, neste caso concreto, da descolonização, afirma no mesmo texto que “em nome das vítimas cuja dignidade foi abandonada ou mesmo achincalhada ao longo de mais de quarenta anos […] André Ventura e o CHEGA possuem toda a legitimidade para exigirem a refundação de um regime” (ibid.), destacando-se que “não é possível esconder, desvalorizar ou desculpar o que aconteceu a meio milhão de portugueses expulsos abrupta e violentamente de África em 1974,1975” (Ribeiro 2021a).

6Neste âmbito, realçam-se, tal como no Ergue-te, as consequências negativas da descolonização tanto para os portugueses em África como para os africanos já que, além deste “martírio [que] seria improvável se os ideólogos fundadores da III República, ainda hoje influentes, não o tivessem instigado” (Ribeiro 2020b), assinala-se também o que se descreve como as “pesadas responsabilidades morais do atual regime português nos milhões de mortos causados por guerras civis em Moçambique, Angola ou Guiné-Bissau que se sucederam à descolonização desastrosa, eufemisticamente rotulada de descolonização exemplar, com a consequente destruição social e económica daqueles países por muitas e muitas gerações que se sucederão” (ibid.). Incidindo justamente na afirmação do historiador Manuel Loff (2015: 55) de que “o discurso que enuncia a condenação da descolonização é […] descrito a partir da perda […] para os colonos, até mesmo para os africanos”, é a partir deste discurso relativo ao passado da descolonização que neste partido se procura também argumentar que “a defesa da IV República tem toda a legitimidade” (Ribeiro 2020b), revelando assim a dimensão prática da memória aqui considerada.

7Estabelecendo-se uma articulação entre o objetivo político de erguer a IV República e uma representação particular da descolonização, é a partir desta memória que se argumenta que o que descrevem como a III República estaria deslegitimada, sendo que “os pilares da III República Portuguesa foram instituídos, em 1974-1975, em fundações que escondem cadáveres, sangue, sofrimento, miséria de meio milhão de portugueses dissimulando as sequelas trágicas da destruição abrupta e violenta de um império colonial que, por meio milénio, tinha dado sentido à identidade nacional portuguesa” (ibid.). Perante esta narrativa, é relevante ter em atenção o que Ribeiro (2020c) descreve como “uma associação entre os mortos, os vivos e os ainda por nascer”, a partir da qual se argumenta que “os portugueses têm legitimidade para rejeitar a III República porque nasceu, em 1974, matando os mortos, ao humilhar a história secular de Portugal” (ibid.). Indo de encontro à visão de uma nação constituída, nas palavras de Santiago Abascal (2015: 100) do Vox, “pelos mortos, pelos vivos (o povo) e pelos que irão nascer”, este pensamento presente no radicalismo de direita configura-se especificamente no caso português na relação com o passado respeitante ao acontecimento do 25 de Abril que coincide com o final de uma guerra que teria afetado a própria identidade nacional, a partir do qual a visão do radicalismo de direita português se articula também com uma dimensão prática de rejeição do que descrevem como a III República e com a defesa do combatente da Guerra Colonial ao discutir o próprio 25 de Abril.

A democratização

8O tema da rutura da continuidade histórica da nação portuguesa é realçado por ambos os partidos nas suas abordagens ao acontecimento do 25 de Abril, descrito pelo Ergue-te (2014) como uma “abrupta viragem na História de Portugal”. Neste âmbito, no Chega critica-se também o que é descrito como a “tradição revolucionária da III República Portuguesa” (Ribeiro 2020d) cujas origens num acontecimento revolucionário resultariam ainda na apresentação de “sintomas de tentações revolucionárias destruidoras do ideal cívico” (Ribeiro 2020e). Em relação com o poder disruptivo do acontecimento do 25 de Abril, surge, então, o argumento de que “derrubar o lugar simbólico do 25 de Abril de 1974 é um dever moral e civilizacional. Bani-lo é banir a glorificação da revolução da tradição portuguesa” (ibid.), sendo que “essa pandemia identitária pode, deve e tem de ser corrigida a partir do ensino, do pré-escolar à universidade, e contra o 25 de Abril […] pela que ela [a data de 25 de abril] representa de aversão à continuidade histórica” (ibid.). Revelando-se uma intervenção desenvolvida no presente que procura incidir numa anulação do acontecimento, critica-se também a nova situação resultante deste em articulação com as suas origens revolucionárias, surgindo o apelo ao “combate à divinização e propagação de ideais revolucionários” (ibid.) através de um “caminho inverso ao revolucionário, o dever da defesa cívica da continuidade histórica” (ibid.) indo de encontro à visão contrarrevolucionária da “revolução como uma disrupção brutal da vida nacional, ou seja, da harmonia que liga passado e presente, história e futuro” (Molnar 1969: 108), segundo a qual se entende que “o ritmo da genuíno das sociedades era contrário à febre revolucionária” (ibid.).

9Aplicando tal visão ao acontecimento do 25 de Abril, também o líder do Ergue-te refere que “dando de barato que houve algumas liberdades conquistadas e algumas coisas positivas no novo Regime, importa, contudo, ter em conta que elas viriam naturalmente com o tempo, não pela mudança de regime, mas por evolução social natural” (Pinto-Coelho 2015). Assim, o Ergue-te (2021b) traça a narrativa de que “a golpada traiçoeira de Abril foi preparada e levada a cabo por um pequeno grupo de militares despeitados de ideologia marxista-leninista, que entregou instantaneamente o poder à rua e a toda a sorte de ruidosas – e ruinosas! – ideologias comunistas […], cujo frenesim revolucionário foi só refreado no 25 de Novembro de 1975”, sendo que no Chega se descreve uma “loucura revolucionária” (Ribeiro 2020f). Destacando-se igualmente na narrativa de Diogo Pacheco de Amorim (2021), importante ideólogo do Chega, que “a revolução foi feita por meia dúzia de pessoas com o apoio de outra meia dúzia”, relata-se que, entretanto, “a revolução tinha caído nas mãos da esquerda e do Partido Comunista” (ibid.), o que viria a culminar num cenário em que “o Partido Comunista Português e a extrema-esquerda ficam praticamente com o país nas mãos, com o general Costa Gomes sempre na sombra” (ibid.), sendo que “Portugal, um mês depois do 11 de março, estava sob uma ditadura comunista” (ibid.).

10Perante descrições como a de “um clima de terror […] em 1974” (Ergue-te 2015b) com “ocupações selvagens e cobardes, no tempo do PREC […], [das] hordas de comunistas terroristas” (Ergue-te 2018), o vice-presidente do Ergue-te, João Pais do Amaral (2019), destaca então que “o 25 de Novembro serviu para travar o comunismo”. Aqui é relevante esclarecer que “o 25 de Novembro continua a ser um dos episódios mais polémicos e, em alguns aspetos, nublosos do Processo Revolucionário Português. Existe um relativo consenso em torno da ideia de ter sido a «saída» dos paras a determinar o desencadeamento das movimentações militares. Historiadores e protagonistas parecem também de acordo quanto ao facto de o 25 de Novembro não se resumir a uma simples reivindicação, mais ou menos corporativa, dos paras” (Rezola 2016: 43) (itálico no original), existindo “vários processos simultâneos, cujos contornos se confundem e dificilmente se destrinçam na complexidade do momento” (Rezola 2016: 58), num “contexto […] marcado pela psicose golpista mas também pelas sucessivas provocações e braços de ferro, na tentativa de inverter a correlação de forças existente” (ibid.). No âmbito desta data, da qual são os moderados e a direita militar que saem vitoriosos, enfraquecendo a esquerda militar, João Pais do Amaral (2019) realça que “vendo objetivamente as reais consequências do sacrifício daqueles bravos comandos, ele serviu tanto para bloquear uma ditadura vermelha, mas também foi instrumentalizado para impor outra ditadura, que serve tanto aos comunistas, como aos corruptos, traidores, desertores, oportunistas e todos aqueles que são responsáveis por esta triste e vergonhosa III República”, criticando a situação resultante da revolução portuguesa.

11No caso do Chega, o seu líder associa “Álvaro Cunhal ao pior que nos podia ter acontecido, à ditadura comunista, ao PREC e às nacionalizações” (Ventura 2021b) e entende que “foi o 25 de Novembro que nos salvou e deu a democracia” (Ventura 2019a), sendo que este partido celebra publicamente esta data ao contrário do Ergue-te. Procurando-se diluir o poder disruptivo do acontecimento do 25 de Abril inscrito na génese da democracia portuguesa através da reconfiguração do seu significado e, concretamente, da rejeição de uma democratização produzida por um acontecimento revolucionário, Diogo Pacheco de Amorim (2021) esclarece adicionalmente que “nós festejamos o 25 de Novembro sempre […] mas o 25 de Novembro foi apenas uma pausa no avanço da esquerda marxista em Portugal”, criticando também a situação que resulta da revolução portuguesa a partir do entendimento de que “o 25 de Novembro […] foi aparentemente só uma reposição da normalidade democrática porque, de facto, na base da sociedade, na base das instituições, continuou a esquerda a controlar e a dominar” (ibid.).

12A partir deste relato no qual se entende que “durante aqueles dois anos, aquilo foi de facto uma revolução nas próprias estruturas e infraestruturas da sociedade, ou seja, na banca, nas universidades, nos jornais, em todo o lado, tudo o que podia ser vagamente de direita foi expulso, saneado e substituído pela esquerda” (ibid.), culminando hoje na “extrema-esquerda no papel dominante em Portugal” (ibid.), surge o apelo a “combater o Marxismo Cultural” (ibid.), um tema típico do radicalismo de direita que é, no caso português, articulado com a herança do 25 de Abril que revelaria também “uma mentalidade adversa aos ideais nacionalistas que resultou da revolução de 74” (Amaral 2014). Articulando a sua missão política com a situação resultante da revolução portuguesa, o Ergue-te (2014) afirma-se como “uma voz contra a farsa ‘abrilista’”, sendo que José Pinto-Coelho (2020) relata que “a data sectária do 25 de abril […] inaugurou o atual regime nauseabundo”, declarando-se que o Ergue-te (2014) protesta “contra este regime e reclama por um novo, com uma nova Constituição”. Neste âmbito, Pinto-Coelho (2016) realça que, perante a “a atual Constituição, marxista e maçónica”, o Ergue-te “defende uma nova Constituição (ibid.), articulando-se a defesa de um novo regime com a crítica à Constituição resultante da revolução portuguesa, sendo que este partido “defende a instauração de um novo regime político através, desde logo, da revogação imediata da atual Constituição da República (vincadamente marxista e socialista)” (Ergue-te 2019b). Estabelece-se, assim, também uma articulação deste objetivo político com o passado revolucionário da democratização portuguesa materializado na Constituição a partir do entendimento de que o “atual regime da III República está consagrado numa Constituição que, no essencial, é aquela que foi aprovada em 1976, altamente ideológica e mais preocupada em albergar todas as ideologias de esquerda do pós-25 de Abril, do que no futuro de Portugal e dos portugueses” (Ergue-te 2010).

13No âmbito desta descrição da situação resultante da Revolução, Amaral (2018) acrescenta que “a realidade é que em Portugal nunca existiu um só partido verdadeiramente de Direita na Assembleia da República: desde a extrema-Esquerda ao Centro – vá lá… centro-Direita –, todos estão lá representados. Cabe, pois, ao PNR preencher esse vazio ideológico”, cujo objetivo procura partir de “perspetivas […] libertas da ‘Ideologia de Abril’” (Pinto-Coelho 2019b). Nesta dimensão prática da anulação do acontecimento do 25 de Abril, também no Chega se afirma que “é tempo de libertar Portugal de um presente revolucionário” (Ribeiro 2020d), destacando-se a herança do acontecimento do 25 de Abril num presente ainda revolucionário, a partir do qual surgiria o imperativo de diluir o poder disruptivo de tal acontecimento que revelará consequências negativas mesmo após o seu final, algo que, por sua vez, incide também na reivindicação discursiva de que “finalmente existe uma direita predisposta a combater o feudo da esquerda” (Ribeiro 2021b) que teria sido instituído em 1974 igualmente segundo o relato de Diogo Pacheco de Amorim.

14A partir do tema da inexistência de uma verdadeira direita numa democracia que estaria deslocada à esquerda como consequência da revolução portuguesa e da sua herança, surge a afirmação de que “pela primeira vez desde 1974, o coração político da democracia portuguesa desloca-se para a direita” (Ribeiro 2021c) graças ao partido Chega que iria “quebrando as barreiras de um regime político moldado, desde 1974, para interditar a direita” (Ribeiro 2021d) num país que estará “amordaçado e aprisionado por teias marxistas” (Matias 2021) segundo Rita Matias, eleita deputada por este partido em 2022 e vogal da direção à data do último congresso do partido em 2021 no qual Tiago Sousa Dias, então secretário-geral do Chega, procurou também destacar que “nós somos a direita, não temos medo de ser a direita” (Dias 2021). Neste âmbito, o Chega (2021) procura também afirmar-se como a verdadeira representação de direita, adotando a designação de “direita de direita”, reproduzindo a visão da Nouvelle Droite, o nome atribuído ao grupo de intelectuais de direita associados ao GRECE liderado por Alain de Benoist influente na renovação do radicalismo de direita, de que “today’s so-called Right might be characterized as a ‘center’, constituting the Left’s Right” (O’Meara 2013: 19). Tendo em conta que esta afirmação como a única representação verdadeiramente de direita não é exclusivamente adotada pelo radicalismo de direita português, é relevante assinalar que esta adquire a sua especificidade na articulação desta visão com a herança do acontecimento do 25 de Abril.

15Reconhecendo também que, para o radicalismo de direita português após o 25 de Abril, “redescobrir Portugal passava pela eliminação dos efeitos nefastos da influência marxista” (Madeira 2020: 544), é também pertinente ter em consideração o apelo a “que aquelas parangonas de ‘fascismo nunca mais’ e ‘direita nunca mais’ sejam em Portugal substituídas pelo que interessa que é ‘socialismo nunca mais’” (Ventura 2021c), referindo-se também que “não podemos ter este endeusamento de um país que terá nascido no 25 de Abril de 74” (Ventura 2021d). Neste âmbito, o líder do Chega, além de esclarecer que “a revolução de 25 de Abril não seria a que eu gostaria que tivesse ocorrido” (Ventura 2021e), argumenta que os militares que a levaram a cabo “não conseguiram libertar Portugal inteiro porque essa ainda vai ser a nossa missão de o concretizar” (Ventura 2020), afirmando a 25 de abril de 2020 que “queremos outra democracia, queremos outra República, queremos a IV República Portuguesa” (ibid.). Considerando, nas comemorações do 25 de Abril, que “hoje os cravos vermelhos deviam ser substituídos por cravos pretos porque é o luto da nossa democracia que hoje devíamos estar a celebrar” (Ventura 2021a), procura também desvalorizar de forma sarcástica a revolução portuguesa ao dizer: “Grande Abril. Grande revolução que nos transmitiram ao fim de 47 anos de um país que já não acredita e de um país que já quer muito mais do que aquela manhã de Abril” (ibid.). Perante a reivindicação de uma IV República ao discursar sobre o 25 de Abril, o qual estaria desacreditado, é importante assinalar que desde a fundação do Chega em 2019 que o seu líder argumenta que “apenas a fundação da IV República poderá remediar os nossos males” (Ventura 2019b), realçando que “passaram mais de 40 anos do 25 de Abril” (ibid.) e que “precisamos de um novo paradigma constitucional e político” (ibid.), sendo que “o CHEGA tem como grande objetivo político reconfigurar a atual democracia portuguesa” (ibid.). Este é um tema partilhado pelo radicalismo de direita que procura agora afirmar discursivamente uma “regeneration of democracy” (Guibernau 2010: 10) que se reflete aqui em articulação com uma desacreditação do acontecimento da democratização portuguesa e, assim, com o objetivo de fundar uma IV República que resultaria também numa nova Constituição.

16Ao procurar destacar assim a relação estabelecida com o passado por parte dos partidos que ocupam este espaço político, deve ter-se em consideração a afirmação de que “o CHEGA não é o colete de salvação da III República. Pelo contrário o CHEGA traz, consigo, a IV República, tutelando uma Nação assente numa Constituição ideologicamente neutra” (Chega 2019), tal como o procurou afirmar o Ergue-te. Neste âmbito, é relevante assinalar que Diogo Pacheco de Amorim (2021) destaca, como “razão pela qual o Chega considera que devíamos passar de uma III República para uma IV República”, o entendimento de que “a nossa Constituição é uma Constituição que sofre ainda do peso dos restos do Verão Quente, do poder do Partido Comunista desse Verão Quente” (ibid.), estabelecendo-se também através desta referência ao passado da democratização a argumentação que incide no objetivo político de substituir a democracia resultante do acontecimento do 25 de Abril por uma IV República.

Considerações finais

17Além de se concluir que ambos os partidos procuram diluir o poder disruptivo do acontecimento do 25 de Abril – o qual está inscrito na génese da democracia portuguesa – rejeitando uma democratização produzida por um acontecimento revolucionário nas suas intervenções interpretativas do 25 de Abril, revela-se também importante realçar a articulação entre o objetivo político de fundar uma IV República e a anulação do acontecimento do 25 de Abril na reactualização deste – ou seja, não como um retorno a uma situação histórica prévia, mas sim como parte de uma argumentação desenvolvida no presente para a instituição de um novo regime –, incidindo-se também na herança da revolução portuguesa. Atentando não só nesta intervenção interpretativa, mas também na sua materialização no objetivo político de instituir uma IV República, é relevante reconhecer que estas duas dimensões se interligam, sendo importante ter em consideração a relação que estes partidos estabelecem com o acontecimento do 25 de Abril, assinalando particularmente o interesse, perante as comemorações do 50º aniversário da revolução portuguesa, do estudo, em articulação com a ideologia e objetivos políticos destes partidos, das narrativas desde a Guerra Colonial e a descolonização até à democratização e a Constituição que dela resulta.

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Référence électronique

Afonso Silva, « O 25 de Abril do Chega e do Ergue-te »Lusotopie [En ligne], XXI(2) | 2022, mis en ligne le 20 mars 2023, consulté le 20 mars 2025. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lusotopie/6355 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lusotopie.6355

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Auteur

Afonso Silva

Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Portugal
afonso1999s[at]gmail.com

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