Eu tenho 29 anos emigrada. Quando fui para Roma eu tinha 19 anos. Hoje vivo bem, encontrei meu marido lá e, diferente da maioria das mulheres da Boa Vista que vivem na Itália, eu criei os meus filhos lá comigo, um vive em Roma e a outra foi buscar a vida em Portugal. Então, Roma é minha casa também, até porque lá eu tenho muita gente da família, muita gente de Cabo Verde…, mas casa mesmo é essa aqui, essa é a minha casa… foi aqui que cresci e é aqui que quero morrer, na minha casa, na minha terra! Por mais que esteja bem, lá é terra de gente, não é meu… aqui é meu! Eu já estava aperreada para vir, já fazia três anos que não vinha, é muito tempo sem comer da comida da mamã, é muito tempo sem dormir no quarto que eu dormia quando era pequena… e essa comida? Ah, essa não tem igual em nenhum lugar do mundo… eu vivo lá e estou bem, mas não vejo a hora da minha reforma (aposentadoria), para vir sentar aqui na nos casa e, com fé, vou ter minha casa de pé!
(Guida, agosto de 2005, Vila de Sal-Rei, Ilha da Boa Vista)
1O objetivo deste artigo é refletir sobre alguns aspectos centrais para a compreensão do valor da mobilidade na sociedade cabo-verdiana, os processos de produção de familiaridade e suas relações com os valores da casa e do viver junto. Tendo em vista que tratamos de um contexto em que os deslocamentos são estruturantes e que estamos diante de famílias engajadas em circulações em diversos níveis, meu interesse é analisar tais universos a partir de dois eixos: as trajetórias de mobilidade e a construção de proximidade nesse universo marcado por uma importante circulação de pessoas, coisas, valores e dinheiro. Meu argumento vai no sentido de dissolver o aparente paradoxo existente entre a noção de casa como âncora da organização social, símbolo central da permanência e do pertencimento duradouro e as trajetórias familiares marcadas pela mobilidade e distanciamentos prolongados que marcam os contextos de emigração.
2No lugar de ambiguidade, observo um entrelaçamento entre esses fenômenos por meio do valor que se atribui às casas nos projetos migratórios: tal como expresso por Guida, a casa é o locus das lembranças e das saudades, é um elo de pertencimento, um lugar de retorno e, por fim, um objetivo; afinal, emigra-se para construir uma casa. A casa surge, portanto, como um valor nas trajetórias de mobilidade marcando pertencimentos, solidariedades e desejos. Nesse sentido, a noção de casa aparece enquanto um valor moral, para além de um desejo material.
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- 2 Para a construção do conhecimento antropológico, estudamos com e entre pessoas. Como salientam Lobo (...)
3A casa tem sido um lugar e uma categoria central em minha pesquisa no arquipélago de Cabo Verde.1 Primeiramente, as casas constituem os espaços nos quais realizo minhas interações sobretudo com mulheres, jovens e crianças que por lá circulam. Foi a partir de observações e conversas nas casas dessas pessoas que pude apreender como ela é um elemento constituidor do parentesco e como a partir dela as relações sociais são organizadas. Além disso, foi vivenciando o cotidiano das casas que pude perceber movimentos e circulações que por lá se materializam não somente em sua arquitetura, mas nos objetos, fotografias, alimentos e num infindável ir e vir de pessoas que chegam, partem, ficam e vão e que caracterizam as formas de habitar nessa localidade. Na Vila de Sal-Rei, as casas, os quintais e a vizinhança foram meu principal lugar do trabalho etnográfico2 e fundamentam as reflexões trazidas ao longo do texto.
- 3 Sal-Rei é a principal vila da Ilha que possui mais sete povoações. Segundo o Censo 2010, a populaçã (...)
- 4 Acrescento que minha análise vai além desse contexto específico da Vila de Sal-Rei, sendo resultado (...)
4O cenário deste artigo será a casa e a família de Nha Maria na Vila de Sal-Rei, a primeira casa em que vivi ainda no início dos anos 2000 quando começava a pesquisa sobre dinâmicas familiares, gênero e migrações na ilha da Boa Vista (Lobo 2014).3 Meus interlocutores incluem aqueles que habitam a casa de forma mais ou menos permanente, os que passam períodos nela e, também, os seus frequentadores, ou seja, aquelas pessoas que por lá passam para comer, beber, brincar, comprar, conversar etc. De forma mais ampla, minha perspectiva inclui tanto aqueles que ficaram nas ilhas e vivenciam as dinâmicas migratórias a partir do local quanto os emigrantes que retornam à terra e à casa, seja periódica ou definitivamente. É, portanto, nesse universo entre o ir, o voltar e o ficar que se assentam minhas reflexões.4
- 5 No final dos anos 70, tardiamente em sua obra, Lévi-Strauss elabora o conceito de casa. Nos anos se (...)
5Ao perceber a centralidade da casa no contexto etnográfico de minha pesquisa, meu primeiro esforço foi buscar na proposta de Lévi-Strauss de societés à maison uma possibilidade de explicação deste fenômeno. Para o autor, a casa é uma pessoa moral detentora de um domínio composto tanto por bens materiais quanto imateriais e que se perpetua pela transmissão da fortuna, do nome e dos títulos em linha real ou fictícia. Sua legitimidade depende desta continuidade, que é expressa na linguagem do parentesco ou da aliança (Lévi-Strauss 1970).5
6Na coletânea intitulada About the House. Lévi-Strauss and beyond, Carsten e Hugh-Jones (1995) recuperam os argumentos sobre as “sociedades de casas” no sentido de ampliá-los tanto geográfica quanto analiticamente. Para os autores, o interesse não recai sobre a casa como pessoa moral, mas enquanto um universo privilegiado de construção das relações mais fundamentais para a constituição das pessoas. A proposta deles é analisar as dimensões do vivido na casa, o universo das relações construídas por meio da moradia comum, além de recuperar dimensões negligenciadas por outros estudiosos, por exemplo, a arquitetura das casas e o que ela expressa em termos de hierarquia, relações de poder, gênero.
7Avançando na literatura sobre casas e vida doméstica, há abordagens que se destacam. Segundo Leinaweaver (2009), alguns estudos focam no simbolismo da casa, percebendo-o como algo personificado, quase como um membro da família e um participante ativo de rituais (Keane 1995 in Leinaweaver 2009). Mais recentemente, a casa vem sendo considerada como um bem de consumo.
8Tais análises concentram-se nas decisões sociais e econômicas tomadas pelos habitantes com relação aos estilos arquitetônicos e os materiais habitacionais (Holston 1991). Por sua vez, Daniel Miller considera que uma abordagem de cultura material sobre a casa tem sido tão influente nos dias de hoje porque torna visível a participação dos espaços materiais e dos objetos nas relações, desafiando o tratamento destes como mera representação ou contexto passivo (Miller 2001, 2007).
9Outro ângulo de análise que considero particularmente produtivo surge das pesquisas sobre parentesco (Bourdieu 1977) e gênero (Blackwood 2000). Tais pesquisadores percebem a casa como um locus importante para as práticas de moradia e ações cotidianas que criam uma paisagem social. Como afirma Leinaweaver,
a estrutura de parentesco e moradia nos permite ver ‘casas e seus habitantes como parte de um processo de vida’ mantendo ‘a casa e seus ocupantes dentro da mesma estrutura analítica’ (Carsten & Hugh-Jones 1995: 37). É uma abordagem que situa a casa como um local que é realmente significativo em termos de consumo e simbolismo, mas também é mais do que isso: é um fundamento sobre o qual as relações sociais são promulgadas e sustentadas. Atos e práticas de moradia e co-residência são parte integrante da constituição de relatedness, ou parentesco, dentre os ocupantes de uma casa.
(Leinaweaver 2009: 778, tradução minha)
10A proposta de analisar a interconexão entre as pessoas e os lugares onde vivem, entre casa e grupo doméstico e entre processos domésticos e processos sociais mais amplos se apresenta como fio condutor deste artigo. Tal enfoque teórico parece dar conta das categorias locais de casa e família que desafiam a tendência de pensar as pessoas como móveis e as casas como estacionárias. Como veremos, ao adentrar na etnografia, casas, famílias e pessoas se constituem processualmente numa relação marcada pela mobilidade e pelo fazer-se. O movimento contínuo de bens e pessoas dentro, fora e entre as casas e as qualidades materiais destas atestam as qualidades processuais dos espaços em Cabo Verde.
11Carsten & Hugh-Jones (1995) lembram que a análise das casas não deve ter como foco a estrutura física, mas as inter-relações entre construções, pessoas e ideias. Assim, estudos etnográficos podem revelar os valores diferenciados das casas nos grupos sociais e como estas compõem o mundo em torno deles. Analisando criticamente as percepções de Lévi-Strauss sobre as sociétés à maison, os autores salientam o potencial teórico do significado de casa e chamam atenção para as categorias nativas (Carsten & Hugh-Jones 1995). É me aproximando dessa perspectiva que apresento a etnografia que segue ressaltando que o caso de Cabo Verde tem o potencial de agregar ao debate mais amplo sobre mobilidade e pertencimentos por novas vias.
- 6 Os termos e expressões em crioulo de Cabo Verde serão apresentados em itálico e devidamente explica (...)
12Era de tarde, eu e Isabela conversávamos na praça quando ela me disse, nu bai nos casa (vamos para a nossa casa)? Após minha concordância, ela se levantou e seguiu por um caminho que não era o de sua casa. Sem muito entender, segui seus passos que nos levaram à casa de Nha Maria, mãe de Isabela. Essa foi a primeira vez que percebi o sentido de nos casa, a casa da família, a casa que agrega uma dada quantidade de pessoas com ela relacionada. Isabela tem sua própria casa, que denomina de nha casa (minha casa), aonde mora com o companheiro e suas duas filhas (a primeira de um relacionamento anterior), mas não passa um dia sequer sem ir à casa de sua mãe. Além disso, entre as duas casas (que se localizam a menos de 1 km de distância) circulam não só pessoas, mas também alimentos, objetos e cuidados.
13Ao perguntar à Isabela sobre o sentido da expressão nos casa, ela explica: “é porque é a casa dos nossos pais, é o lugar aonde fomos criados, aonde crescemos, vai ser sempre a nossa casa. É assim aqui, é a casa que nos dá o nome, como uma referência, entende? Eu, por exemplo, sou a Isabela da casa de Nha Maria (risos)! Aqui na Boa Vista é assim…” (Isabela 2004). Como bem salienta Isabela, as pessoas na Boa Vista são fortemente identificadas com o espaço físico onde nasceram ou residem. A forma comum de se referir a um terceiro é pela expressão, Fulano de cá nha Cicrana (Fulano da casa de dona Cicrana), sendo a casa uma unidade fundamental para o pertencimento social de um indivíduo (Lobo 2014).
14A nos casa é descrita como um lugar movimentado, agradável e alegre. Geralmente é a casa dos pais, avós ou parentes mais velhos. Um dos signos dessa casa é o portão; as casas que têm portão são aquelas em que parentes e amigos podem entrar sem pedir licença, está sempre aberta e movimentada. As casas mais antigas são as que apresentam essa característica: um pequeno quintal com um portão que só se encontra fechado à noite, pois, ao longo do dia está apenas encostado e por ele os parentes e amigos podem entrar sem bater, anunciando a presença por um cumprimento.
- 7 Cachupa é um prato típico da gastronomia de Cabo Verde. Distingue-se entre cachupa rica (elaborada (...)
15O quintal é o lugar no qual as mulheres e crianças passam a maior parte do dia cumprindo suas tarefas, cozinhando, pilando o milho para a cachupa,7 comendo ou simplesmente conversando. As pessoas “de fora” são recebidas na sala enquanto os familiares, vizinhos e amigos entram pelo portão e se juntam para uma conversa ou para ajudar nos afazeres domésticos. Geralmente, improvisa-se uma espécie de pia de lavar louças e um fogão à lenha. Nesses casos, o quintal substitui a cozinha, que é pouco utilizada no dia a dia.
16O croqui abaixo apresenta o térreo da casa de Nha Maria, havendo ainda a parte superior. Com acesso pela escada (portanto, com entrada independente ao interior da casa), chegamos a três cômodos que abrigam os filhos homens e um terraço usado para lavar e secar roupas. Diferentemente da parte térrea, esse andar está inacabado, com partes sem reboco e outras só no tijolo.
Figura 1. Casa de Nha Maria
17A impressão é de que a casa está em processo, em um constante fazer-se. Voltaremos a esse assunto adiante.
- 8 A expressão “casa antiga” guarda em si tanto a materialidade de uma edificação que está ali há muit (...)
18Por agora saliento que esta é uma construção representativa das demais na Vila: uma casa antiga8 que guarda em si um tipo de sociabilidade típica das habitações que agregam um conjunto de pessoas e que é marcada por diversas camadas de mobilidade e circulação. Raquel Wiggers (2019), para o caso de Caieira/SC, afirma que a categoria chave para analisar o pertencimento nesta localidade é a casa que aglutina família conjugal, família extensa, gerações diferentes e parentela (2019:10). Nessa casa que aglutina, reside o que ela denomina de “sujeito aglutinador”, ou seja, aquele que garante a unidade da casa e em torno do qual estão os demais moradores.
- 9 Apesar dessa centralidade feminina, a propriedade formal é, em geral, do homem. O sociólogo cabo-ve (...)
19Ainda que considerando as diferenças entre os casos etnográficos, creio que a noção de casa e “sujeito” aglutinadores traduzem bem o que acontece na ilha da Boa Vista, no qual a nos casa reúne família, parentela, vizinhos e amigos, além de dar nome aos que a ela são diretamente associados. A pessoa que aglutina é a mulher-avó, é ela quem dá nome à casa, quem a gerencia distribuindo funções e mediando conflitos, finalmente, a ela todos devem respeito.9 O convívio com os netos, bem como a presença constante destes na nos casa, é um elemento central para que filhos/as, genros e noras organizem sua vida social em torno desta unidade.
Figura 2. Lateral casa de Nha Maria
Na lateral está o “portão”.
Foto da autora.
20As construções mais modernas não têm nem o quintal e nem o portão. Nesses casos, a cozinha é o lugar onde as mulheres passam a maior parte do dia. Assim como as antigas, as casas mais modernas são construídas de forma a poderem crescer no sentido vertical, ou seja, os projetos são concebidos na expectativa de que ganhem mais um ou dois andares, caso haja necessidade futura. A diferença é que no passado, esse sistema era utilizado para que os filhos construíssem quartos ou pequenos apartamentos com acesso independente (como no caso da casa de Nha Maria). Atualmente, a expectativa é de que novas moradias sejam construídas para aluguel, sendo revertidas em renda para a família. Eugenia Motta, em seu estudo sobre favelas no Rio de Janeiro, denomina de “mutabilidade das casas” essa possibilidade de transformar espaços construídos – multiplicar as casas, transformar espaços em negócios (Motta 2016). Seguindo a autora, chamo atenção para o fato de que, além de compreender as casas como marcadores emocionais e temporais na memória e na perspectiva de futuro, é importante estarmos atentos à sua materialidade, pois esta conforma os planos e as estratégias das pessoas que a ela pertencem.
21Os cômodos são, em geral, pequenos e com pouco mobiliário. Na sala, o sofá é um artigo de luxo; o mais comum é encontrarmos cadeiras ou poltronas dispostas em frente da televisão e uma estante aberta onde são expostos enfeites, porta-retratos (em grande quantidade) e os conjuntos de louças que devem ser usadas em momentos especiais. As paredes são cobertas por fotografias da família, em destaque aqueles que se encontram na emigração. Os quartos não possuem mobiliário especial e o do “sujeito aglutinador” (mulher e/ou homem) está posicionado imediatamente ao lado da sala; não é muito amplo e possui cama de casal, armário e um conjunto de malas e caixas onde são guardados objetos pessoais, roupas e os presentes que recebem dos emigrantes.
- 10 Quando Guida, cujo relato abre este artigo, chegou para dois meses de férias na casa de Nha Maria, (...)
22É bastante comum que malas e caixas de papelão façam as vezes do guarda-roupa. Dentre as pessoas com quem convivi, eram poucas que tinham um lugar específico para guardar suas roupas e pertences. Inicialmente, não entendia esse padrão, pois não tem equivalência direta com a situação econômica. Logo percebi que faz parte do valor dado à mobilidade, ou seja, à ideia de “estar de passagem” ou “pronto a partir” (Defrayne 2016). Especialmente os mais jovens circulam tanto interna quanto externamente às casas,10 pois sempre se espera um cômodo melhor para o qual o membro da família possa se mudar. Os quartos independentes são os mais cobiçados. Além disso, é comum que uma criança ou jovem passe períodos em casa de parentes, prática que faz parte do cotidiano como um fator importante para a manutenção da reciprocidade e solidariedade entre as casas.
23Nas casas mais antigas, os chamados quartos independentes, cujo acesso se dá pelo quintal, geralmente são os quartos dos filhos homens que podem circular livremente sem ter que entrar na casa principal. Nas situações que acompanhei, esses quartos foram construídos quando os filhos já estavam adultos, numa espécie de expansão da casa principal. A existência desses quartos e a possibilidade de ampliação permitem uma variedade de arranjos residenciais, ou seja, o pertencimento à casa pode se dar de diferentes formas, havendo momentos em que a casa pode ser composta até por 20 membros.
24O núcleo da casa é um grupo de parentesco próximo (nha família), geralmente próximo à mulher. Mas a nos casa pode incluir afins, parentes distantes, crianças de outros, amigos ou gente do interior ou de outra ilha que precisem de pouso ou moradia. É importante observar que o número de moradores de uma casa não é estático. Pelo contrário, a rotatividade é um fator comum e esperado entre seus membros. Dos 67 grupos domésticos com os quais trabalhei de forma sistemática, 47 apresentavam as seguintes características: famílias extensas em que, ao redor do grupo central (pai e mãe – ou somente a mãe – e irmãos mais novos), iam se formando outras famílias nucleares, sendo a rotatividade de membros que lá habitam um fator central.
25Estas outras células familiares possuem formas variadas, podendo mudar com o desenvolvimento do ciclo doméstico. É preciso observar também que, quando falo de nos casa, estou tratando de grupos domésticos cujo núcleo é composto por pais – ou somente a mãe – com idade já avançada, com filhos adultos e, em todos os casos estudados, com netos que são criados com a ajuda dos avós (Lobo 2010). O relato de Nha Maria exemplifica essa situação:
- 11 Em crioulo a palavra mariado pode significar tanto estar com mal-estar quanto se referir a uma pess (...)
Todos os meus filhos têm filhos. Três dos filhos homens moram aqui e todo mundo ajuda. Bom, agora Mirna já tem sua casa que conseguiu com o trabalho no estrangeiro, mas os filhos dela foram criados aqui, agora como já estão grandes e podem assumir suas responsabilidades eles já podem viver fora. Irene também tem sua casa aqui pegado (casa ao lado – ver croqui) mas quando ela foi para o estrangeiro os dois filhos ficaram aqui comigo. Depois, quando ela orientou a vida, continuou a ir para o estrangeiro e agora estão todos criados e vivem lá fora. Guida ainda não tem casa, paga aluguel em Roma, coitada…, mas com fé em Deus ela vai terminar de levantar sua casa que já está começada. Dy também ainda não tem casa, mas já abriu um quarto lá em cima para ficar com sua mãe-de-filho e seu menino. Denise (neta) teve também um filho com um homem mariado11 e vive aqui comigo, ela e o menino. Esse aqui (aponta para o menino que brinca no chão do quintal) também a mãe deles está em Portugal e deixou aqui comigo, ela deixou com um ano e tal. O pai está aqui na Boa Vista, mas é comigo que eles moram. Isabela, vive aqui perto, ela é meu apoio, apesar de Carlos viver parede com parede (é o filho que divide o terreno com a casa de Nha Maria – ver croqui). Pois é minha filha, todos esses netos se criaram aqui dentro, vivendo ao meu redor. Filhos, criei até os filhos das minhas rivais, pois Euclides quando era jovem era ter-rível (risos), são meus filhos, não faço diferença, veja a Guida, é minha filha. Eu já tenho até bisnetos, essa aqui deita é aqui comigo, bem atrás de mim. De vez em quando ela diz “vou ver minha mãe”, e eu respondo “vai menina, vai e me deixa aqui em paz no meu sossego”, mas daqui a pouco ela volta de novo, pois não sabe estar longe de sua mamã (risos).
26O relato acima salienta as características da formação desses grupos domésticos tão comuns em Sal-Rei. A tendência dos filhos é de se manterem conectados à nos casa, inclusive os que já não vivem na ilha. O fato é que, nessa fase de desenvolvimento do grupo doméstico, é raro vermos um casal de idade avançada vivendo sem a presença de filhos, netos ou algum parente próximo. Apesar disso, há situações em que os filhos e netos já cresceram, alguns já foram viver em suas casas, outros saíram para suas atividades de trabalho e a mãe fica sozinha. Nesses casos, há um sentimento de abandono expresso pelas mulheres-avós e uma memória de que o tempo bom era o tempo em que a casa estava cheia. Como me disse uma delas: o trabalho era maior, mas é melhor do que estar sozinha.
- 12 “Colocar a linha para fora do portão” permite que ele fique fechado, mas quando a linha é puxada pe (...)
- 13 Sandra vive na Cidade da Praia, estando na casa da mãe apenas por um período.
- 14 Aproveito para comentar sobre a centralidade feminina, que não só gerencia e usa a casa, mas lhe dá (...)
Hoje acordei às 3hs30 da manhã, pois queria acompanhar Nha Maria na feitura do pão. Ela não me deixou fazer muita coisa, fiquei praticamente olhando a maestria com que executa seu ofício naquele pequeno espaço que abriga o forno à lenha, uma bancada e a matéria prima usada para fazer pães e bolachas. “Aqui na Vila há umas 10 casas que fazem pão, eu estou nessa lida há mais de 20 anos e com essa venda ajudei a criar os filhos e hoje os netos, é uma vida cansada, só não levanto essa hora no domingo, mas tenho que botar coragem, pois as pessoas já vêm certas buscar o pão e a bolacha. Cada dia chamo algum deles (filhos ou netos) para ajudar, pois já sou mulher grande e já não tenho a mesma energia, às vezes não gostam, mas tem que ser! Isabela quer que eu pare de fazer pão, mas enquanto eu tiver vida e saúde, eu faço meu pão para dar de comer aos meus e os outros que vêm comprar, até os turistas já sabem que aqui tem pão! Você está toda suada (risos), é quente aqui, né?” Rimos as duas e seguimos dando formato ao pão para colocar no forno, é impressionante vê-la pegando as cinzas com a mão! Por volta das 6hs da manhã ela coloca a linha para fora do portão12 e as pessoas começam a chegar para comprar o pão, a maioria são crianças que chegam com suas moedas e um saquinho de pano para colocar o pão. Até por volta das 10hs da manhã a movimentação da venda de pães e bolachas segue agitando o quintal. A venda se mistura com o amanhecer dos moradores da casa, que tomam seu café, entram e saem para escola e trabalho. As moças começam a cuidar do almoço e demais afazeres. Eu e Laura debulhamos o feijão… Ariel cuida da louça… Sandra13 da limpeza. Isabela chega com peixe frito, ajuda Nha Maria com a bolachas e depois vai embora. Hoje é dia de Cachupa, Nha Maria começa a trabalhar no preparo, todas ajudamos. O entra e sai de vizinhos e parentes segue por toda a manhã. Chega Zuza do interior, traz batata doce e feijão. Senta, conversa, conta e ouve as novidades. Pousa sua bolsa e vai cumprir as tarefas que veio realizar na Vila, volta para comer cachupa, por volta das 15hs reúne as bolachas, pães e um pouco de cachupa e vai embora, Nha Maria alerta que é para a sua comadre. No meio da tarde a casa acalma. Por volta das 17hs, Nha Maria e Nho Euclides14 vão para a varanda, passa um, passa outro e conversam um pouco, os filhos e netos chegam, ficam, saem. Rosana telefona de Portugal, todos falam com ela… saudades e novidades são trocadas. A noite cai, é hora do telejornal e depois da novela, vamos todos para a sala, nós e quem mais chegar pode entrar, sentar, comentar ou debater … após a novela brasileira a casa adormece… amanhã tudo se repetirá, mas certamente não com as mesmas pessoas….
(Diário de campo, julho de 2000)
27Reproduzo o trecho de meu diário de campo para que bem observemos o ciclo de um dia na casa de Nha Maria. O primeiro ponto a chamar atenção é para os três espaços de convivência coletiva, o quintal, a varanda e a sala com TV, e como são utilizados enquanto espaços de sociabilidade que incorporam não somente os moradores da casa, mas aqueles que com ela têm uma relação de proximidade. A observação do cotidiano nos permite perceber a intensa circulação de pessoas entre casas em um circuito que as mantém em relação.
28As trocas cotidianas de objetos, mas especialmente de alimentos e comida são um segundo aspecto que nos permite compreender como práticas econômicas e práticas familiares – aquelas por meio das quais os laços concebidos como familiares são construídos – estão entrelaçadas e conformam a configuração de casas. Como bem nos mostra o trecho acima, a confecção e venda dos pães e bolachas se integra ao cotidiano da casa fazendo circular dinheiro, pessoas, informações e afeto, o que torna a casa de Nha Maria um local central de pouso, descanso e reciprocidade.
29A comida e os objetos relacionados a ela são os principais elementos das trocas cotidianas. As mulheres são as protagonistas na manutenção dos laços que unem as casas e as pessoas e o quintal é o espaço primordial em que elas acontecem. Tanto o que é trocado quanto a forma como se troca, se devolve ou se retribui são aspectos importantes nas relações entre as casas, atualizando os laços de confiança, afeto e amizade ou de conflitos e de desconfianças, pois as trocas operam em uma reciprocidade marcada por assimetrias, obrigações e moralidades específicas.
Figura 3. A casa de pão de Nha Maria
Foto da autora, 2000.
30Como expresso no trecho acima, diversas pessoas frequentam a casa ao longo do dia, algumas chegam ao portão, se anunciam e aguardam autorização para entrar; outras (filhos, netos, afins e parentes) entram na casa apenas anunciando sua presença com a voz. Os que pertencem à casa não precisam de autorização nem para entrar nem para comer e nem para ajudar nas tarefas que estão sendo executadas. As crianças têm passagem livre, entram, saem e ficam livremente. Já Nha Maria sai muito pouco e quando o faz, percebemos as prioridades de suas relações, pois se todos vão à sua casa, ela frequenta a casa de poucas pessoas, só aquelas das pessoas que define como mais próximas, suas pessoas de grandeza – sua filha Isabela, algumas vizinhas e sua prima Djana.
31Até o momento observamos como as casas podem ser múltiplas e mutáveis – pois há sempre uma possibilidade de melhoramento, multiplicação e sua conjugação com um negócio ou comércio.
32Como Ingold apontou, building é um processo que segue continuamente, “a forma final é apenas um momento fugaz na vida de qualquer elemento, quando é compatível com um propósito humano, da mesma forma que o fluxo da atividade intencional” (2000: 188). Leinaweaver (2009) também chama atenção para o fato de que as casas flexíveis e metamorfoseadas podem ser explicadas pelo constante desejo de melhorias. A autora afirma, para o caso do Peru, que essa impermanência da casa pode ser vista, em parte, em termos da ética de um desejo de melhoria, mas pode ainda ser entendida através de uma economia política local da insegurança. É verdade, também, que casas em constante mudança podem refletir uma incapacidade econômica de produzir uma casa percebida como “concluída” em apenas um estágio de construção. Finalmente, a noção de “melhoria” se reflete nas mudanças simbólicas e sociais sugeridas pela transformação nos próprios materiais da habitação (Leinaweaver 2009: 785).
- 15 Os três filhos homens mais novos que lá habitavam, hoje estão emigrados na Europa, por ordem de nas (...)
33No caso de Nha Maria a noção de casa mutável cabe muito bem. Durante os meus anos de trabalho de campo havia a casa central e, no mesmo terreno, a casa de Carlos e Irene, ambas conectadas com a casa de Nha Maria pelo quintal (na casa do filho Carlos há uma pequena janela que abre para o quintal; já a casa de Irene pode ser acessada por uma porta, também a partir do quintal). O primeiro andar foi construído aos poucos e por cada um dos filhos adultos, cada um com seu quarto, havendo espaço, ainda, para mais construções.15 Observamos como a casa também incorpora o negócio de Nha Maria, com o qual toda a família colabora e participa. A confecção e venda dos pães e bolachas se integra com as demais tarefas domésticas, alimentando e sendo alimentada pelo circuito de trocas.
34Agora quero explorar mais uma dimensão das circularidades, pois além das trocas de coisas, comidas, dinheiro e alimentos, tal circuito incorpora também pessoas. Tal como sinalizado por Flavia Dalmaso (2016) para o caso do Haiti, às vezes perguntas que imaginamos serem simples, como por exemplo, “com quem você mora?”, podem oferecer respostas que evidenciam situações ricas e complexas, próprias de um mundo em constante movimento (Dalmaso 2016: 03). Ao longo de todo esse tempo que acompanho a trajetória da família de Nha Maria, sempre foi um desafio definir quem mora naquela casa e isso devido a alguns fatores. O primeiro, já mencionado aqui, tem a ver com pertencimento e memória, pois, independentemente do local de moradia, determinadas pessoas serão vinculadas a uma casa que lhes dá nome, a Isabela da casa de Nha Maria, por exemplo. Além disso, a resposta pode variar durante o ciclo de um ano, no qual filhos e netos emigrados retornam para períodos de férias. Estes podem ainda ser “contados” como moradores mesmo estando fora; enquanto moradores “efetivos” podem ser “esquecidos” em uma primeira contagem – tudo depende de como as proximidades são construídas, o que independe da presença física (Lobo 2014).
- 16 O exemplo de Silas nos fornece mais um elemento da alta mobilidade, os conflitos. O jovem é conside (...)
- 17 Silas hoje está vivendo na casa de Nha Maria, mas planeja voltar à Portugal.
35Um terceiro aspecto tem relação com a alta circularidade de pessoas entre casas, em especial jovens e crianças. Crianças circulam pelas casas durante o dia levando e trazendo coisas, sendo cuidadas ou, para o caso das mais velhas, cuidando dos mais novos. Se moram com a mãe ou com os pais, as crianças podem frequentar, passar o dia ou mesmo períodos com as avós (materna ou paterna). Podem ainda viver nas casas de parentes por motivos diversos (oportunidades de estudo, situação financeira, para fazer companhia ou, simplesmente, porque assim desejam), sendo múltiplos os arranjos e as motivações para se abrigar uma criança durante um dia, por períodos curtos ou longos (Lobo 2011, 2013). Não há, necessariamente, uma fixidez em tais arranjos, pelo contrário, o que marca tal cenário é a mobilidade. Tomo o exemplo de Silas, neto de Nha Maria, que, no período de um ano, passou por quatro moradias distintas: casa da avó Maria, casa da Tia Isabela, casa do pai na cidade da Praia e, finalmente, foi se juntar com a mãe em Portugal.16 Até seguir para Portugal, mesmo morando em outras casas, com frequência voltava por períodos para a casa da avó materna.17
36No caso dos jovens adultos, homens e mulheres, a mobilidade também é a marca, além de ser um projeto. Observando a dinâmica dos casais, até que se firmem em uma moradia nova, como casal, a relação conjugal é permeada pelo ir e vir. Uma jovem pode passar o dia em sua casa de origem e dormir com o companheiro em seu quarto; o casal pode viver em casas separadas e, por períodos, um se juntar ao outro na casa de familiares, por fim, um casal com filhos pode ter sua prole vivendo em casas ou localidades diversas, podendo ainda pai e mãe viverem também em locais distintos. No caso dos homens adultos, estes podem ter mais de uma casa e de uma família, vivendo por períodos em cada uma delas (Lobo 2016).
37Portanto, a questão sobre quem mora em determinada casa quantas vezes repetida terá respostas que desafiam o entendimento do que significa morar em uma casa. Pois, para além dos fatores de mobilidade já descritos até aqui, pessoas que estão ausentes fisicamente podem ser contadas como residentes, enquanto outras podem não ser contabilizadas de imediato, apesar de estarem lá, sendo o pertencimento à casa vinculado às qualidades das relações (Lobo 2014). Sendo assim, viver, morar, ficar, passar, dormir, partir são verbos que compõem a semântica das casas, a qualidade das relações e a mobilidade inerente a essa sociedade.
38Uma das saídas analíticas para compreender esse universo está na proposta de Trajano Filho, que argumenta pela necessidade de recuperarmos o nexo entre lugares, pessoas e grupos, tão explorado pela tradição antropológica, compreendendo que a espacialidade dos lugares não deve ser confundida com a sua territorialidade física (Trajano Filho 2012: 16). Se internalizamos que “mais do que pontos fixos no espaço, lugares são redes imaginadas sob a forma de campos comunicativos cujo alcance é limitado pelas tecnologias de comunicação disponíveis, pelos valores da cultura e por constrangimentos da estrutura social (…), podemos nos livrar da ideia de que os grupos estudados pelos antropólogos estão necessariamente ligados a localidades circunscritas” (Trajano Filho 2012: 20).
39Voltando ao caso de Cabo Verde, percebo as casas como lugares compostos por redes imaginadas que conformam pertencimentos. Sendo assim, uma casa não é apenas uma única casa. Ao contrário, ela participa de um conjunto de outras casas pelas quais as pessoas circulam. Enquanto lugar, a casa não é uma unidade autônoma ou circunscrita a espaços delimitados, sendo inseparável das redes de pessoas e casas na qual ela se define – a nos casa é, portanto, o lugar de reprodução familiar e dos sentimentos de pertencimento, pois ela é memória e reciprocidade.
40Nesse contexto, além de viver junto e ser criado na mesma casa, partilhar experiências e coisas são as principais fontes de identificação pessoal de um indivíduo. Sua posição na sociedade está marcada não só pelos laços de família, mas pela relação com as pessoas que acompanharam seu processo de socialização. Dada a importância da mobilidade – entre casas, povoados, ilhas e países – que acaba por gerar o que denomino de “famílias espalhadas”, as formas de criar “proximidade à distância” são as estratégias às quais os indivíduos recorrem na tentativa de lidar com as inseguranças resultantes da mobilidade que caracteriza essa sociedade.
41Partilhar é uma categoria fundamental para se entender as relações familiares em Cabo Verde. Pela análise das práticas de partilha, ajuda mútua e solidariedade entre pessoas e grupos domésticos, percebe-se o conceito fundamental de “fazer família”, ou seja, fortalecer laços entre parentes e criar parentesco onde este não existe (Lobo 2014). Conforme os conceitos locais, a família é resultado de uma produção em torno das experiências de coabitação e cooperação doméstica entre pessoas, isto é, o universo familiar é percebido enquanto um processo construído cotidianamente e no qual as pessoas próximas tornam-se mutuamente implicadas.
42Ocorre que além de serem umas das outras, as pessoas também são dos lugares de onde provêm suas relações primordiais (Dalmaso 2016), dos lugares que lhes dão nome, bem como as características atribuídas à sua personalidade e ao seu caráter moral: tal lugar é o seu “centro dos afetos” (Pina Cabral 2013). Assim, ser pessoa de algum lugar (fulano da casa de Nha sicrana), remete a uma historicidade familiar na qual se encontram as relações fundamentais de uma pessoa não só com outras pessoas, mas com sua casa, sua terra, seus afetos. E tal pertencimento viaja com a pessoa, situando-a no mundo e conectando casa e diáspora.
Figura 4. Família de Nha Maria e Nho Euclides
Diagrama desenhado pela autora.
- 18 Tenho alguma resistência em usar diagramas de parentesco para meu caso etnográfico, pois eles não t (...)
43Apresento no diagrama acima a família de Nha Maria. Utilizo cores indicando os lugares de moradia com o objetivo de demonstrar, de maneira visual, o que denomino “famílias espalhadas”, noção que melhor define esse universo de mobilidade em distintos níveis.18 Cientistas sociais que estudam a sociedade cabo-verdiana têm analisado as dinâmicas familiares nesse contexto em que o movimento é estruturante e um valor (Carreira 1983, Akesson 2004, Braz Dias 2000, Carling 2001, Braz Dias & Lobo 2012, Lobo 2014, Defrayne 2016, Fortes 2013, Vasconcelos 2012, Lobo & Dias 2016, Veiga 2013). A plasticidade e o relativo sucesso nas estratégias de manter proximidade em situações de distância espacial e temporal é o que revelam tais pesquisas em diferentes ilhas do arquipélago, nos levando a afirmar que a emigração e a mobilidade são traços estruturais e estruturantes desta sociedade insular, onde a mobilidade é vivenciada de forma histórica, intensa e cotidiana.
- 19 Em Cabo Verde, a expressão em crioulo Djunta Mon tem grande importância social e cultural. Signific (...)
44Aqui estou interessada em compreender como se constrói a relação entre os familiares que vivem em outras localidades e aqueles que ficaram na ilha por meio dos seus pertencimentos às casas. A noção de djunta mon (juntar as mãos) alude à importância da cooperação entre as pessoas diante de situações adversas ou em prol de uma causa comum.19 Nu djunta mon nos remete a um universo de solidariedade que marca as relações familiares e de vizinhança em Cabo Verde diante da concepção local de que a vida nas ilhas não é fácil em um país marcado pela pobreza e por inúmeras dificuldades (inclusive dadas pela natureza: insularidade, aridez etc). Nesse contexto, sair, partir, buscar a vida no estrangeiro são caminhos que marcam as trajetórias individuais e familiares desde o início dessa formação social. Entretanto, o sentimento de djunta mon tece a rede dos vínculos familiares que, com base na convivência diária das casas entre aqueles que são próximos, mantém e atualiza as relações de afeto, de proximidade e de mutualidade.
45É na capacidade de manter a chama da reciprocidade acesa que se assentam o sucesso ou o fracasso na atualização da cooperação em uma família como a de Nha Maria, em que os membros estão espalhados pelo mundo. Como já mencionado aqui, pessoas consideradas família são aquelas que mantém entre si relações de afeto (e de conflitos e rivalidades) e de proximidade que são propiciadas tanto pela consanguinidade quanto pelo viver junto, comer junto ou ter uma origem comum. Nesse sentido, a memória de “ter vivido juntos” em uma casa é acionada como fator central de relacionalidade e pertencimento, conectando os que partiram não somente às pessoas, mas às localidades nas quais cresceram – a casa, a ilha, a nação. Tais espaços de convivência familiar guardam as histórias das pessoas, das famílias, da terra e dos ancestrais; neles são guardadas as lembranças e a memória que mantêm as pessoas relacionadas.
46Após tais considerações, podemos retornar ao relato que abre este artigo e melhor compreender que Guida aciona a memória de um passado na casa quando diz que “é muito tempo sem comer da comida da mamã, é muito tempo sem dormir no quarto que eu dormia quando era pequena… e essa comida? Ah, essa não tem igual em nenhum lugar do mundo”. Seu pertencimento é acionado pela memória de emoções e de um sentimento de convivência, sendo a casa a unidade doméstica de referência ao falar do sentimento de pertencer a um local e as pessoas. Na sequência de nossa conversa, Guida nos dá elementos que ajudam a avançar na compreensão da construção da proximidade à distância.
Eu posso passar todos os anos do mundo fora daqui, mas quando volto, eu sei que estou na minha terra, não tem lugar nenhum no mundo igual a isso aqui! É o melhor lugar do mundo! Agora, quando eu voltar para Itália, pelo menos durante um ano eu sei que tenho força para suportar tudo, porque já abasteci aqui nesses meses que eu passo com minha gente, na minha casa. No ano seguinte, é para preparar para voltar para cá de novo. Não dá para vir todos os anos porque tem que juntar dinheiro para trazer, mas se pudesse vinha mais vezes, porque não tem vida melhor do que na sua terra, na sua casa e com a sua gente, mesmo com todas as dificuldades. Infelizmente é preciso sair, mas também lá tentamos ficar perto (…) eu mando coisas sempre, mamã sempre que tem chance me mandam uma coisinha da terra, nem que seja um pacote de bolacha! Minha casa em Roma é um pedacinho de Cabo Verde, pois sempre tenho coisas da terra. Agora também é mais fácil saber das notícias, com o telemóvel estamos sempre falando, sempre tentando diminuir as saudades e ajudar nas dificuldades, (…) eu mando sempre o que posso, um dinheirinho, um medicamento, o que for preciso, pois nós que saímos temos que ajudar a família! É difícil lá, mas aqui a vida é difícil também, não tem nada (…) às vezes é complicado porque as pessoas acham que lá a vida é fácil, que temos muito dinheiro e que somos ingratas porque não mandamos sempre e tudo o querem, é complicado!
(Guida, agosto de 2005, Vila de Sal-Rei, Ilha da Boa Vista)
- 20 Sobre o complexo cenário de envio de encomendas e sua centralidade para o “fazer família”, ver Lobo (...)
- 21 As encomendas de terras são compostas por coisas da terra: pães, bolachas, peixe seco, lata de atum (...)
47A manutenção de um convívio à distância atualiza o parentesco e também as obrigações de ajuda que caracterizam o djunta mon e que mantêm casas e pessoas unidas, nem que seja pelos conflitos e dificuldades. Como salienta Guida, os retornos periódicos em férias são fundamentais para renovar os laços e para que os emigrantes “suportem” mais uma temporada longe de sua gente. Porém, nos períodos de distanciamento, a circulação de coisas, recursos e informações atualiza as relações. Além das remessas financeiras enviadas pelos migrantes, há uma série de objetos que são enviados20 (roupas novas e usadas, medicamentos, aparelhos eletrônicos, fotografias, alimentos não perecíveis, artigos de higiene e limpeza) tanto para consumo quanto para venda. Tal circuito não é de mão única; as pessoas que ficaram nas ilhas enviam as chamadas encomendas de terra21 para aqueles que estão fora. O percurso Cabo Verde – estrangeiro é tão ativo quanto o inverso e tem a importância de fazer com que, nas palavras de Guida, “minha casa em Roma seja um pedacinho de Cabo Verde”.
48O ambiente de trocas recíprocas observado a partir da casa de Nha Maria engloba, portanto, os que vivem ou frequentam a casa, as casas vizinhas, a Vila de Sal-Rei e o interior da ilha, as demais ilhas que compõem o arquipélago e os lugares de emigração. A casa integra um circuito de circulação de pessoas e coisas que reflete e é refletido pelo diagrama de parentesco que abre esta seção, pois, por onde circulam os membros dessa família, circulam também os recursos materiais e imateriais que as mantém relacionadas. Como já salientado aqui, esse entretecer das redes de trocas vai para além dos laços de sangue ou de afinidade, incorporando diversos outros que podem pertencer à família ou ter tratamento de família.
49Há ainda outra dimensão em que a casa se faz central na manutenção e atualização do “fazer família à distância”: a construção ou aprimoramento de uma casa. Apresento um breve relato que envolve uma das filhas de Nha Maria, Sandra, que reside na Praia, capital do país.
Amanhã vamos cobrir a casa de Sandra, você quer ir com a gente? Enquanto os homens trabalham no beton (na construção da laje) nós vamos fazer a comida, vamos fazer uma cachupa rica! Vamos com a gente, a festa vai ser boa e você vai rever um monte de gente da Boa Vista, chegaram de barco ontem, a mamã vai estar lá e vai ficar feliz em te ver.
(Aline, Cidade da Praia, 2018)
50Eu estava na Cidade da Praia há alguns dias e, ao saber de minha chegada, Aline, neta de Nha Maria, me telefonou convidando para participar de um evento tradicional em Cabo Verde, a cobertura da casa, ou seja, a construção da laje. No passado, esse era um momento de djunta mon no qual familiares e amigos se reuniam para o trabalho e a posterior comemoração; hoje em dia, nas áreas urbanas, é um momento de reunião das pessoas conjugado com a contratação de trabalhadores responsáveis pela obra e uso de maquinário. Esse foi o formato utilizado por Sandra, a filha mais nova de Nha Maria, que vive na Praia com o companheiro e três filhos. No caso dela, a família se reuniu não somente para a festa daquele dia, pois foi graças à substancial ajuda financeira de Guida e outros irmãos emigrados que Sandra conseguiu cumprir essa importante etapa da construção de sua casa. Aline filmou o trabalho dos homens, a confecção dos alimentos pelas mulheres, o momento do brinde e o baile que entrou noite adentro. Em dado momento, ela me disse: “estamos filmando para mandar para os que estão fora, é uma forma de participarem”.
51O evento de cobertura da casa é um ótimo exemplo de que a casa em si, como estrutura física, é incorporada na vida social das famílias em seu fazer-se. Como afirma Leinaweaver, cuja análise de evento similar em sua pesquisa no Peru me inspirou a reviver a história de Sandra, a questão sobre se a migração diminui a participação em responsabilidades familiares é claramente respondida em casos como o descrito aqui (2009: 788). O fluxo de dinheiro do exterior foi fundamental para a realização do evento, e o uso da tecnologia moderna dos smartphones permitiu que Aline o compartilhasse com aqueles que estavam fora, possibilitando que os mesmos dele participassem em tempo online.
52Ter uma casa é um valor importante, é o coroamento da idade adulta e de uma trajetória bem-sucedida. No caso de jovens como Sandra e seu companheiro, construir a casa é a realização de um projeto que marca a transição para a fase de maturidade social plena. Tal processo durou muitos anos, dadas as limitações financeiras do jovem casal. Foi, portanto, graças à ajuda de familiares que pudemos comemorar um importante marco naquele dia.
53Ser proprietário de uma casa é algo valioso, pois a casa própria dá segurança econômica e reduz a preocupação com os gastos da vida cotidiana. A casa também é fator central na reprodução social do sistema de solidariedade recíproca que mantém o conceito amplo de família fazendo sentido local e transnacionalmente, pois, com o tempo, aquela casa pode ser um polo agregador. No caso de Sandra, por exemplo, sua casa tem o potencial de agregar familiares que precisam de pouso na Capital.
54Com relação às casas de emigrantes, lembro do relato que abre este artigo, quando Guida lamenta ainda não ter tido condições de construir sua casa e afirma seguir com fé de que o fará. E quando assim o for, poderá se aposentar, voltar para a sua terra e descansar. A casa é a materialização final de uma trajetória bem-sucedida na emigração, podendo ser entendida como um fim, um objetivo. Estando longe, a construção das denominadas “casa de emigrante” implica em relacionalidade, pois são os familiares que ficaram que serão os responsáveis pela construção. Tal processo intensifica relações para o bem e para o mal, pois muitos conflitos podem advir dessa circulação de recursos financeiros e bens materiais.
Figura 5. Casa de Deolinda
Foto da autora.
55Esse é o caso de Deolinda, emigrante na Itália, que até 2005 não havia concluído a construção de sua casa e pequeno comércio graças aos inúmeros conflitos com um dos irmãos, responsável pela construção. Nas palavras de Deolinda: “eu nem sei quantos mil euros eu enviei para essa casa, eu acho que teria construído dez casas com todo esse dinheiro, mas ela está aí, sem acabar, só a carcaça… aquele infeliz bebeu tudo e eu agora não sei o que fazer… a casa que sonhei tanto, acabou virando pesadelo, acabou com nossa família”.
56Ao olhar para os dados, uma coisa parece estar ocorrendo. A arquitetura está atuando como um meio de comunicação, pois através da habitação, os moradores negociam suas localizações na organização espacial, na estrutura social e (des)constroem seus pertencimentos. Nesse sentido, a casa é um texto ao mesmo tempo escrito e lido por seus habitantes através da participação (Leinaweaver 2009: 788). Como Tim Ingold explica, é através de ser habitado que o mundo se torna um ambiente significativo para as pessoas, ou seja, o mundo ganha significado à medida que as pessoas vivem e interpretam suas próprias experiências (Ingold 2000).
57Sendo assim, a casa apoia o parentesco e este se faz pela casa. Em um contexto de alta mobilidade, torna-se importante descobrir como as pessoas estão fazendo e mantendo conexões umas com as outras – e é particularmente interessante descobrir que elas estão fazendo isso por meio de um meio ostensivamente sólido, imóvel e quadrado (Leinawaver 2009). Voltar periodicamente ao país de origem, ser incluído em papéis-chave no seio da família, participar do circuito de trocas e informações, promover conflitos, tudo isso reflete o status de parentesco, mas também o status social de emigrante. Portanto, todos esses são atos sociais que a casa ancora dentro de um campo social que vai muito além da territorialidade. No contexto de tantos fluxos, a casa oferece algum tipo de continuidade.
58O objetivo deste artigo foi demonstrar a centralidade das casas como mediadoras das relações pessoais e sua importância na manutenção de laços sociais e de parentesco, apesar e por causa da distância. A contribuição original que espero trazer ao debate sobre cenários migratórios se dá pela intersecção entre dispersões e pertencimentos por meio da centralidade das casas em uma sociedade marcada estruturalmente por movimentos. Em um primeiro olhar, a intensa mobilidade – rural-urbana, entre as ilhas e transnacional – pode ser entendida como um prenúncio de desintegração desse sistema familiar. Porém, tal como observado aqui, mesmo com tamanha dispersão, as pessoas encontram maneiras criativas de se manter relacionadas, sendo a casa um espaço primordial para continuar criando e recapitulando fortes laços de parentesco. Observando atentamente a casa, podemos ver como as pessoas transformam e acomodam suas relações de parentesco em um contexto de intensa mobilidade.
59O que este artigo buscou demonstrar é não só como a reprodução social se efetiva apesar da mobilidade, mas por causa dela. Pelas casas e seu cotidiano, o que saliento é como as relações sociais são alteradas, mas também alimentadas, pelos fluxos e circulações. Ou seja, ao participar da vida da casa – nas férias, telefonemas, brigas, envio e recebimento de encomendas, eventos e rituais familiares –, Guida, Sandra e os outros mencionados aqui são vistos como morando, vivendo no mundo e, assim, tornando-o significativo e comunicativo.
60Tal como Trajano Filho (2012), defendo que lugares, pessoas e grupos conectam-se por laços indissociáveis. A identidade do eu e o sentimento ou certeza de fazer parte de um grupo estão sempre entrelaçados aos lugares e às paisagens (físicas ou imaginadas), de modo que a localidade está sempre subsumida ao pertencimento. Por outro lado, o pertencimento pode ser predicado pelo lugar – pela experiência presente das pessoas que nele vivem ou pela sua memória, ou ainda pela imaginação acerca de uma vida futura nele. “Por serem mutuamente constituídos, a separação entre localidade e pertencimento ou entre lugar e identidade só pode ter valor heurístico, pois, conforme Basso ressaltou, ‘os lugares são tão parte de nós quanto nós somos parte deles’” (Trajano Filho 2012: 18).
61Ora, ao fim desta narrativa o/a leitor/a pode estar se perguntando o que difere o cenário cabo-verdiano de tantos outros contextos sociais marcados por circulações e movimentos diversos. Eu mesma me fiz essa pergunta por algumas vezes, e talvez tenha encontrado um indício de resposta nas diversas casas que me foram abertas por ocasião da pesquisa. Nelas presenciei não só indivíduos indo, vindo, morando e “desmorando”, mas pude observar a forma como meus interlocutores guardavam seus pertences, roupas e demais acessórios de valor, raramente encontrados em guarda-roupas ou armários, mas em malas, caixas ou “bidões”. Quando me dei conta de que os cabo-verdianos vivem de “malas prontas”, comecei a entender o que para eles significa circular. E nesse mundo de circulação, as nos casas são como âncoras que traçam pertencimentos, nem que seja pela memória do tempo em que “vivemos juntos”.