1Durante mais de um século, o Brasil foi o principal destino da emigração portuguesa, a outrora denominada “constante estrutural” desta sociedade (Godinho 1978). Tal, per se, indica a importância da ex-colónia não apenas para o fenómeno emigratório, como, consequentemente, para o imaginário social estabelecido em Portugal acerca deste. Como indicam diversos autores (Alves 1999a, Santos 2000, Machado 2003), a importância da emigração para o Brasil, associada à representação literária e jornalística de retornados durante o séc. XIX, foi responsável por estabelecer no senso comum a ideia de Brasil como terra de oportunidades para os portugueses.
2Isso porque, apesar de os bem abastados “brasileiros” – ou “brasileiros de torna-viagem”, como também eram designados – corresponderem a uma minoria (em geral, os retornados eram remediados), sua representação literária e jornalística os caracterizou, a partir sobretudo de caricaturas mordazes, como homens muito ricos, mas também estúpidos, gananciosos e de hábitos exóticos adquiridos no além-mar. Apesar do tom de sátira implícito, tal representação acabou por estabelecer-se socialmente de forma hegemónica, dando inclusive azo, já em finais do séc. XIX, a uma emigração mais depauperada que veio suprir postos de trabalho no Brasil deixados vagos com o fim da escravatura.
3Esse imaginário social esteve adormecido por volta de meio século quando a emigração portuguesa direcionou-se para os países da Europa Ocidental, a partir dos anos 1950, em conjugação com o incremento da imigração em Portugal após a descolonização, a partir de 1974. No entanto, quando, em meados dos anos 2000, com a agudização da crise económica, o movimento de emigração voltou a adquirir vitalidade na sociedade portuguesa, identificamos a presença dessas representações sociais estabelecidas durante o primeiro movimento para o Brasil, em diálogo com ideologias de índole imperial e colonial a promoverem uma certa leitura da identidade portuguesa, a insinuarem-se no discurso jornalístico acerca da recente movimentação para o Brasil.
4Para analisarmos como o jornalismo português procurou retratar esta recente emigração, debruçámo-nos sobre todos os exemplares dos jornais Público e Expresso publicados entre os anos de 2010 e 2015 e presentes na Biblioteca Nacional de Portugal. Nesta seleção, foram coligidas todas as peças, independentemente do seu género jornalístico, que contivessem alguma referência à emigração portuguesa para o Brasil ou aos imigrantes portugueses neste país. Escolhemos o período de 2010 a 2015, pois, além de corresponder ao momento mais intenso da crise e ao consequente incremento do movimento de emigração, também diz respeito aos anos em que a comunidade estrangeira esteve em decréscimo em Portugal, fazendo com que os olhos da opinião pública se voltassem, quase que exclusivamente, para a movimentação de saída (Peixoto et al. 2016).
5Dada a impossibilidade de abrangermos toda a produção jornalística acerca da emigração para o Brasil, optámos por cingir o nosso estudo aos dois periódicos por serem veículos de referência. Este tipo de veículo, como explica Elisabeth Noelle-Neuman (1991), é comumente citado por outros media, além de ter acesso mais amplo a fontes proeminentes, influenciando, dessa forma, não apenas o campo mediático, mas também a própria expressão da opinião pública sobre diferentes temas.
6Para a análise das peças, inspirámo-nos nos métodos de análise crítica do discurso (van Dijk 2002, 2005) e análise de enquadramento (Pan & Kosicki 1993; Entman 1993) ao esmiuçar nas suas estruturas, entre o dito e o não dito, as ideologias e as suas respetivas representações sociais, que subjazem a certas opções retóricas, estilísticas e afins. Isso significa que, ao debruçarmo-nos sobre cada peça, tivemos em atenção a sua estrutura esquemática (a forma como as diferentes proposições textuais foram organizadas), o encadeamento coerente dessas distintas proposições e as implicações interpretativas que tal organização poderia sugerir, e a saliência dada a certas unidades do discurso por meio da sua repetição ou posicionamento privilegiado nos espaços do título, subtítulo, chamada e afins – tais ações de saliência visam enquadrar uma notícia sob determinada leitura.
7Justifica-se esta orientação metodológica, pois pensamos que apenas uma análise mais detida sobre as estruturas do discurso, e não somente uma análise semântica, consegue revelar de forma abrangente como a representação de um fenómeno emerge dos textos. Neste sentido também, antes de empreendermos a análise das peças, iremos discorrer sobre os aspetos mais relevantes acerca da emigração portuguesa para o Brasil e sobre as imagens mais populares acerca deste movimento e de seu país de destino.
8A considerar-se a perenidade do imaginário acerca dos emigrantes portugueses para o Brasil, em que determinadas representações emergem do discurso jornalístico mais recente e mostram-se similares a representações correntes no passado, empregamos a teoria das representações sociais, de Serge Moscovici (1988), como base teórica a perpassar todo este trabalho. O autor, ao debruçar-se sobre o processo cognitivo de apreensão da realidade, compreende que a partir de processos comunicacionais (de cariz interlocutório e mediático, mas tanto mais forte no segundo caso), pensamentos e ideias individuais adquirem uma natureza social, ascendendo por vezes a um estatuto hegemónico durante largo período, identificando-se com o que é denominado de senso comum. Todavia, as representações socias aquando do seu surgimento não seriam de todo originais, pois uma das formas pela qual uma representação social se estabelece é a partir de um processo denominado de ancoragem, em que um fenómeno novo é compreendido em associação a alguma representação social mais antiga, porém similar a si.
9Portanto, identifica-se nas sociedades um padrão coletivo de pensamento que, de forma subjacente e em interação com conjunturas específicas, produz novas representações sociais, porém sempre em diálogo com representações anteriores. É neste sentido que compreendemos a presença de um imaginário, cujas origens remontam ao séc. XIX e mesmo antes, a insinuar-se no discurso jornalístico para caracterizar um fenómeno recente. Tem-se também em atenção que essas representações sociais que terminam por estabelecer-se hegemonicamente, constituindo-se como ideias taken-for-granted de uma sociedade, aproxima a teoria das representações sociais do conceito de ideologia, como imaginário social passível de ser manipulado por grupos dominantes, a partir de diferentes meios, com forte labor sobre a carga representacional do “Nós” (Baczko 1991; van Dijk 2002). É assim que compreendemos também a perenidade sub-reptícia de ideologias de cariz imperial e colonial no discurso jornalístico recente, a enfatizarem uma identidade portuguesa destinada desde sempre a distribuir-se pelo Brasil e o mundo.
10Ao longo do período moderno e contemporâneo, a emigração estabeleceu-se como uma marca indelével da sociedade portuguesa (Santos 2000). Conforme Paulo Miguel Madeira et al. (2016) explicam, esse movimento para o Brasil, como corrente histórica, foi impulsionada na segunda metade do séc. XIX pelas sucessivas crises económicas em Portugal. Especificamente, é apontada a crise de 1889-1892 como o disparador de saídas do país, com o Brasil mantendo-se como o principal destino para os portugueses até finais da década de 1950. Jorge Fernandes Alves (1999a) identifica nesta tradicional emigração para o Brasil um elemento determinante para a sobrevivência económica de Portugal. Com foco de saídas na região Noroeste do país, concelhos como Vila Nova de Famalicão viram partir todos os anos largas dezenas de emigrantes.
11De uma perspetiva mais abrangente, observa-se que a saída de setores populacionais empobrecidos para trabalhar em segmentos menos privilegiados do mercado de trabalho dos países de destino foi uma constante em Portugal a partir de finais do séc. XIX, atingindo o seu pico no final dos anos 1960 e início da década seguinte (Peixoto et al. 2016). Todavia, se a princípio estes fluxos direcionavam-se fundamentalmente para o Brasil, a partir dos anos 1950 e até à década de 1970 viraram-se para a Europa Ocidental, com claro predomínio da França.
12Joel Serrão (1985) contextualiza este redirecionamento emigratório ao explicar como a crise económica de 1929 e a Segunda Guerra Mundial, sucessivamente, fecharam os tradicionais portos de abrigo brasileiros. Por sua vez, a emergência da CEE (Comunidade Económica Europeia), alguns anos mais tarde, criou um amplo mercado de trabalho desejoso por trabalhadores de perfil proletário. Nesse contexto, a mutação social de emigrante “brasileiro” para emigrante “francês” acentuou o caráter proletário deste, apesar de a movimentação para o Brasil, já em finais do séc. XIX, também ser composta, em sua maioria, por extratos depauperados da sociedade portuguesa.
13Porém, na década de 1970 houve uma mudança, pois, como indica o Relatório de Imigração, Fronteiras e Asilo de 2010 do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras),1 se até à década de 1960 Portugal fora um país de caráter predominantemente emigratório, com a independência das antigas colónias africanas, este perfil alterou-se. No início da década de 1980 verifica-se um grande aumento no número de estrangeiros residentes em Portugal e, na década seguinte, este crescimento consolida-se, com destaque para as comunidades dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) e do Brasil. Também a assinalar as centenas de milhares de portugueses que retornaram de Angola e Moçambique após 1974, com a desintegração do império português, e cuja emigração para as antigas colónias fora concomitante à movimentação para o Brasil e, depois, para a Europa (Serrão 1985).
14No entanto, a partir de 2010, o contexto português referente às migrações altera-se novamente: a agudização da crise económica mundial, que afetou principalmente os países do sul da Europa, fez com que a comunidade estrangeira em Portugal voltasse a diminuir após três décadas de crescimento ininterrupto e os portugueses retomassem o movimento de emigração. Esta nova emigração possui características distintas às dos movimentos emigratórios portugueses tradicionais, pois nos anos recentes observa-se o aumento da saída de pessoas altamente qualificadas e uma maior diversidade de países de destino e de tipos de migração (de curto e longo prazo, sazonal e afins).
- 2 Ibidem – todos os valores apresentados pelos autores têm por base, sobretudo, dados do Observatório (...)
15Algumas destas mudanças estão relacionadas com o desenvolvimento da União Europeia e do espaço de livre circulação no continente, enquanto outras ainda refletem o passado colonial do país, ao continuarem a marcar presença como destino da atual emigração os países de expressão portuguesa (Peixoto et al. 2016). Aí claramente inclui-se o Brasil, que presenciou, a partir de 2010, um aumento gradual no número de portugueses; porém, a quantidade máxima anual nunca ultrapassou as 3 mil pessoas (valor obtido em 2013), enquanto que em outros destinos de emigração mais tradicionais, como a França e o Reino Unido, o valor ultrapassou a dezena de milhar (30 mil pessoas no Reino Unido em 2013 e quase 20 mil em França em 2012).2
16Se a relação entre os dois países se inicia no séc. XV com a chegada dos portugueses ao Brasil, e com a Carta do Achamento, de Pero Vaz de Caminha, onde se encontra a primeira representação lusitana da terra recém-encontrada e da sua gente, é, no entanto, o séc. XIX o período crucial para a formação do que Igor Machado (2003) denomina de representações cruzadas. Compreende-se tal situação, pois data deste século a independência do Brasil (proclamação em 1822), o que, do lado da ex-colónia, engendrou conflitos antilusitanos que tiveram como ensejo a construção de uma identidade nacional em oposição a Portugal. Do lado metropolitano, como dito, a emigração para o Brasil atingiu o seu ápice.
17Contudo, para o desenvolvimento de um imaginário social sobre o Brasil, mais intimamente relacionado ao fenómeno migratório, foi fundamental o facto de que dentre os que emigravam, não a maioria, mas vários acabavam por voltar, dedicando-se novamente a atividades comerciais, industriais ou agrícolas, renovando, porém, as suas unidades de trabalho e participando de forma mais intensa da vida social e política. Nesse sentido, ainda no séc. XIX, estabeleceu-se o imaginário dos brasileiros de torna-viagem, ou simplesmente brasileiros, de facto, emigrantes portugueses cuja representação literária, sobretudo pela pena de Camilo Castelo Branco, foi a de regressados ricos, porém estúpidos, gananciosos e com costumes, roupas e sotaque considerados exóticos (Machado 2003).
18Imaginário esse cuja generalização a todos os regressados do Brasil Jorge Alves (1999a) considera excessiva, pois se se notava uma maior presença no espaço público desses retornados, ela era assumida, no entanto, de forma discreta, com apenas uns poucos alcançando maior projeção, devido aos títulos nobiliárquicos obtidos e mais elevados estatutos sociais. Apesar dessa sobrevalorização quantitativa, o autor não nega, no entanto, que mesmo os retornados remediados (correspondentes à maioria dos “brasileiros”) tiveram impacte no ambiente social do Noroeste português, ao modificarem a paisagem com novas habitações e utilizarem materiais pouco conhecidos por ali.
- 3 Presenciamos ainda hoje o uso do adjetivo “brasileiros” para emigrantes oriundos do Brasil e natura (...)
19O que explica, portanto, a força do universo simbólico criado à volta desses brasileiros, com ecos até aos dias de hoje.3 Conforme se lê num relato do jornalista Ribeiro Sá, publicado em O Comércio do Porto, em 28 de setembro de 1864: “Há doze anos conheci Famalicão uma aldeola, e hoje vejo-a tão próspera e povoada que sei de muitas cidades do Reino que não são menos ostentosas do que ela e que não têm a sua povoação e riqueza. É tudo obra das estradas e de muitos dos chamados brazileiros […]” (citado por Alves 1999a: 14).
20Apesar deste relato jornalístico mais laudatório em relação aos brasileiros, a imagem que se estabeleceu, a partir de caricaturas mordazes, foi a do emigrante pavoneante e alardeador, rico mas também selvagem e bruto. Destas, a que atingiu maior projeção foi a de Camilo Castelo Branco, com o tema a assumir grande importância na sua obra. Como explica Aníbal Pinto de Castro, o “brasileiro”, espécie de personagem-tipo da ficção camiliana, corresponde ao emigrante português para o Brasil que, depois de regressado a Portugal, emerge na cena social local “[…] quase sempre mais rico de cabedais que de cultura ou de simples educação” (1999: 198).
21Esta presença na sua obra justifica-se, por sua vez, pelo contexto cultural em que a ficção narrativa se virava progressivamente para o denominado romance de atualidade. Como vimos, a presença desses emigrantes era muito notória na realidade da época para passar despercebida a autores que cultivavam este género literário, a exemplo não só de Camilo, mas também de Júlio Dinis, Eça de Queiroz e Fialho de Almeida, entre outros – também estes responsáveis por representações ácidas dos brasileiros de torna-viagem.
22No entanto, tal representação de tamanha acidez não se justificaria apenas a partir de uma arguta observação da realidade da época, revelando-se nesta generalização algo exagerada – os “brasileiros” bem abastados eram uma minoria – um ressentimento subjacente. Especificamente no caso de Camilo, havia a revolta com o “brasileiro” Manuel Pinheiro Alves, com quem tinha entrado em conflito numa disputa amorosa. Se ampliarmos a discussão, observamos, conforme indica Boaventura de Sousa Santos (2001) em referência aos trabalhos de Homi Bhabha, que a hibridação e ambiguidade características dos regimes identitários de colonizador e colonizado encontram a sua mais forte expressão no estereótipo, pois, ao evidenciarem a presença em simultâneo de elementos de fobia, medo e desejo na sua construção, indicam ser o reverso dos seus elementos negativos, justamente os seus elementos constitutivos.
- 4 Mais de um século após o fenómeno dos “brasileiros de torna-viagem”, Albertino Gonçalves (1996) obs (...)
23Ainda que a construção da representação do brasileiro de torna-viagem tenha ocorrido numa temporalidade em que o Brasil já era nação independente, nota-se na sua ênfase ao aspeto selvagem desses emigrantes, a reapropriação de uma imagem corrente sobre o país desde o séc. XVII. Nesse sentido, a ambiguidade desse estereótipo evidencia-se – à semelhança da imagem do Brasil na metrópole – no facto de, ao mesmo tempo em que o brasileiro de torna-viagem é representado como um selvagem, ele também emerge como o emigrante rico que investe recursos próprios no desenvolvimento da sua terra; vítima de deboche, mas também de inveja subjacente.4
24O facto é que esses brasileiros bem abastados, cujo imaginário se disseminou pela pena literária, apesar de não corresponderem à enorme quantidade de emigrantes que se dirigiam para o Brasil na época, ao retornarem e ostentarem grandes fortunas e títulos nobiliárquicos, produziram profundas alterações na paisagem rústica e urbana; além de, ao voltarem, apresentarem hábitos distintos ao que era comum em Portugal, o que não poderia deixar de impressionar um autor como Camilo. Portanto, a emigração para o Brasil, como dado económico e social determinante para a realidade portuguesa de então, em conjunto com o contraste cultural proporcionado pelo retorno dos torna-viagem ricos, tornou o Brasil um espaço fértil para o imaginário português de finais do séc. XIX e início do XX.
25Assinala-se também que nesse mesmo período e como consequência do processo de independência brasileira, havia o temor generalizado de que Portugal só seria viável como nação independente se mantivesse territórios no ultramar, o que fez com que “[…] já por esta altura [eram] fossem frequentes, tanto na imprensa como nos documentos oficiais, as referências às potencialidades das colónias de África, nas quais se via o gérmen de ‘novos Brasis’” (Alexandre 2000: 234). Compreende-se tal contexto, pois, durante a vigência do sistema luso-brasileiro, as possessões africanas serviram quase que exclusivamente para a concessão de mão-de-obra escravizada para o Brasil, verdadeiro centro produtivo do império. Portanto, com a independência, Portugal necessariamente teve que voltar sua atenção para os territórios africanos, desenvolvendo projetos de cariz recolonizador. Vemos, pois, como o Brasil, nação recém-independente, se estabeleceu no imaginário português do séc. XIX como o exemplo que deveria ser seguido em África. Tal promoção da exemplaridade também robusteceu a ideia de Brasil como terra de oportunidades para os portugueses, o que estimulou uma emigração mais depauperada que se seguiu ao movimento dos torna-viagem.
26Como refere Jorge Alves (1999b) ao conduzir a discussão para o campo mais alargado da emigração em geral, desde cedo Portugal se interrogou sobre se seria positiva ou negativa a saída de pessoas do território, algo documentado desde o século XV, quando se iniciou a expansão marítima. Todavia, com o incremento deste fluxo a partir do séc. XIX, com destino sobretudo para o Brasil, o questionamento adquiriu maior expressão. “Mas se não era um bem, porque persistia a emigração como forma de resolver tantos problemas individuais e dessa forma também resolver ou criar problemas colectivos? Só uma resposta positiva sobre os seus efeitos ao nível das representações do senso comum poderia alimentar uma emigração continuada, como era a portuguesa […]” (Alves 1999b: 234).
- 5 O primeiro movimento para o Brasil alicerçava-se numa rede de conhecimentos estabelecida no âmbito (...)
27Essas representações positivas ao nível do senso comum parecem-nos indissociáveis de um certo imaginário criado à volta do brasileiro de torna-viagem rico. Ainda que correspondessem a uma minoria, as ações comerciais, filantrópicas e as intervenções arquitetónicas realizadas por estes a partir do elevado capital obtido no Brasil, e as representações literárias e jornalísticas que deles se fizeram criaram no senso comum a ideia de Brasil como espaço a ser apropriado e cheio de oportunidades. Se nas primeiras décadas do séc. XIX, tal imagem não fora suficiente para suscitar a emigração de extratos mais empobrecidos da sociedade portuguesa, pois até então o projeto de emigração era algo que exigia certo dispêndio financeiro, a partir dos anos 1880 esta situação alterou-se, com a necessidade de o Brasil empregar mão-de-obra barata perante o declínio da escravatura.5
28Observamos também que esta imagem de Brasil como terra prenhe de oportunidades para portugueses desbravadores, promovida tanto pelo imaginário social à volta dos torna-viagem, quanto pelo facto inquestionável de o país, durante todo o segundo império, ter sido a grande fonte de divisas da coroa, se ligava a uma específica leitura da identidade portuguesa. Bela Feldman-Bianco (1995) contextualiza historicamente o estabelecimento desta identidade nacional ao observar que, ante a posição semiperiférica ocupada por Portugal já no séc. XVI, o que o restringia de competir igualmente no comércio global, porém o colocava numa posição intermediária entre as possessões ultramarinas e os centros do poder económico e político, o país direcionou, a partir de então, a sua atenção e energia para além das suas fronteiras, para um “Projeto Atlântico”.
29Primeiramente orientado à colonização do Brasil, após a independência do mesmo, como vimos, esse “Projeto Atlântico” direcionou-se aos territórios em África. Tal posicionamento do país, de alongamento das fronteiras, foi ainda robustecido em meados do séc. XIX pelo enorme movimento emigratório de portugueses. Portanto, na singular história de Portugal tem sido o mundo, em vez do Estado-Nação, a unidade espacial dos portugueses. “Começando como descobridores do Novo Mundo, engajando-se mais tarde num secular projeto ‘atlântico’ de colonização dos domínios ultramarinos e apresentando-se (desde o século XIX) como emigrantes trabalhadores, o movimento de pessoas ao redor do mundo tem sido constitutivo das imagens e experiências dos portugueses.” (Feldman-Bianco 1995: 5).
30Observamos, assim, como a emigração associou-se a uma dimensão imperial e colonial que, conjugadas, apresentam-se como inerentes à identidade portuguesa, no sentido de sempre projetar-se para além das fronteiras geográficas do país. Este constructo social emergirá anos mais tarde daquilo que J. M. Brandão de Brito e Fernando Rosas (1996) identificam como a ideologia imperial do Estado Novo, expressa no artigo 2° do Acto Colonial, outorgado em 1930: “É de essência orgânica da Nação Portuguesa desempenhar a função histórica de possuir e colonizar domínios ultramarinos e de civilizar as populações indígenas que neles se compreendam […]” (citado por Brito & Rosas 1996: 432).
- 6 Um dos ideólogos do Estado Novo, Armindo Monteiro, Ministro das Colónias de 1931 a 1935, escrevia e (...)
31O objetivo de tal ideologia, instrumentalizada pelos poderes de então, era afirmar o tema do império como projeto nacional por meio da ideia de missão, cuja necessidade estaria assente na essência portuguesa em “colonizar domínios”. Segundo os autores, para além do interesse de aplacar o sentimento de ameaça externa às colónias – algo presente desde o séc. XIX –, o projeto colonial e a ideologia ligada a este também desempenharam um papel no âmbito da política interna, que foi a de servir de mito coletivo, congregador de vontades e energias nacionais.6 No entanto, este esforço ideológico do Estado Novo não correspondeu a algo totalmente novo, pois, como vimos, as ideias por ele mobilizadas já eram correntes na sociedade portuguesa desde o séc. XIX.
32Porém, ao serem constantemente promovidas pela máquina propagandística do Estado totalitário, ligaram a representação de uma identidade portuguesa irrevogavelmente ao ultramar e à presença noutros territórios. A adoção do lusotropicalismo como doutrina oficial do Estado Novo a partir dos anos 1950 não alterou no essencial esta imagética ao, em sua leitura da teoria desenvolvida pelo antropólogo brasileiro Gilberto Freyre, pôr em relevo a especificidade da colonização portuguesa devida à predisposição dos portugueses para a “aventura ultramarina”, a miscigenação e a interpenetração de valores e costumes (Castelo 1998).
- 7 Exemplos dessas ações foram a associação da imagem de Luís de Camões a um “Portugal imigrante” (Lou (...)
33Portanto, com o fim do regime totalitário em 1974 e a consequente descolonização, emergiu como um imperativo a necessidade de se reinventar o passado mítico e criar espaços (compensatórios) para a manutenção do caráter transnacional do período colonial (Feldman-Bianco 1995). Nesse contexto, os emigrantes ascenderam à posição simbólica de garantidores do caráter transnacional da identidade portuguesa, o que demonstra a proeminência adquirida pela figura destes na política nacionalista pós-revolução. Como indicam Eduardo Caetano da Silva e Irène dos Santos (2009), as ações empreendidas pelo Estado para valorizar a figura do emigrante7 não objetivaram apenas a inclusão destes que historicamente eram vistos como vítimas das desigualdades sociais, da penúria económica e da ditadura, mas sobretudo, reinventar a presença de Portugal no mundo. Ou seja, tais ações procuraram sustentar a crença na grandeza do país que não mais possuía colónias, porém demarcava sua presença no mundo justamente por meio dos seus emigrantes, herdeiros diretos de uma suposta vocação universalista expressa desde os descobrimentos.
- 8 Além das peças analisadas nesta secção, identificámos no Público: “Brasil travou acordos para recon (...)
34Ao debruçarmo-nos sobre as edições do Público e do Expresso publicadas entre 2010 e 2015, selecionámos as peças que referenciassem a emigração portuguesa para o Brasil ou os imigrantes portugueses no país, coligindo assim um total de 14 peças.8 Ressalvamos, todavia, que por ter sido uma coleta efetuada de forma individual e manualmente, algumas peças podem nos ter escapado; no entanto, o material aqui reunido fornece um panorama fiável do que foi a cobertura dos referidos jornais sobre a recente emigração para o Brasil.
35Nesse sentido, as peças escolhidas para serem objeto de uma análise mais apurada, a partir dos contributos da análise crítica do discurso e análise de enquadramento, foram aquelas em que a emigração portuguesa para o Brasil emergiu do discurso jornalístico como tema, ocupando um espaço considerável da edição (ao longo de várias páginas) e, nalguns casos, apresentando também chamada de primeira página. Debruçamo-nos ainda sobre reportagens acerca da emigração portuguesa em que esta é abordada de forma lata e o Brasil é apenas citado, ao lado de outros países, como um dos principais destinos da recente emigração portuguesa. Neste caso, o interesse reside em analisar como a emigração para o Brasil foi contraposta no discurso à emigração para outros destinos, qual espaço dedicou-se àquela e etc.
36A primeira peça identificada acerca da questão emigratória, em que esta é abordada de forma genérica e o Brasil é apenas citado ao lado de outros países, é a “Candidatos à emigração procuram novos mercados” (p. 8-9), presente na edição do Público de 20 de dezembro de 2011. Neste texto, o Brasil é mencionado como alternativa para várias categorias profissionais (professores, engenheiros, arquitetos), na sequência da polémica suscitada pela declaração do então primeiro-ministro, Passos Coelho, de que os professores deveriam ter em atenção o espaço lusófono como alternativa de emprego. A seguir, iremos analizar os textos em que a emigração portuguesa para o país emerge com maior relevo.
- 9 Uma ou duas palavras inseridas sobre o título de uma peça jornalística, de forma a indicar o seu te (...)
37A edição de 24 de dezembro de 2011 do Público apresentou, sob o chapéu9 “Destaque”, nas páginas 2 e 3 a reportagem “O Natal dos emigrantes fica mais próximo com o Skype”. É numa caixa localizada ao lado da reportagem – “Os novos destinos da emigração portuguesa” (p. 3) – que a emigração para o Brasil é destrinçada; no entanto, identificamos aqui uma certa ambiguidade no que diz respeito a fontes, pois no subtítulo diz-se que os “Dados do Observatório da Emigração assinalam um aumento de entradas de cidadãos nacionais em Angola, Suíça ou no Brasil”. Mas, para validar esse aumento de entradas especificamente para o Brasil, a fonte indicada no texto é “a imprensa brasileira”: “Nos últimos anos, despontou um novo fluxo migratório de Portugal para o Brasil. Este ano, com o agudizar da crise na Europa, parece ter havido uma explosão. De acordo com a imprensa brasileira, a quantidade de estrangeiros a viver em situação regular no país passou de 960 mil para 1,5 milhões entre Janeiro e Junho; os portugueses subiram de 277 mil para 329 mil”.
38Como se observa, tanto na reportagem como na caixa, ante a falta de dados comprovativos do crescimento do movimento emigratório português e daquele especificamente destinado ao Brasil, o discurso procura não se comprometer com afirmações explícitas, recorrendo ao verbo “parece”. O aspeto hipotético-dedutivo da caixa não é abandonado, ficando a sua sustentação, todavia, entregue a informações vagas: apesar do tom categórico utilizado, não são apresentadas personalidades como fontes da informação, nem há a presença de citações explícitas.
- 10 As outras peças identificadas no Público foram: “Chegou o tio da França!” (16/12/13), “França é uma (...)
39Compreendemos esta dificuldade pelo facto de, entre os anos de 2010 e 2011, não terem sido ainda coligidos dados que representassem de modo satisfatório o fenómeno. Surpreende, no entanto, o interesse demonstrado pelos jornais acerca da emigração destinada ao Brasil, visto que este fluxo nunca ultrapassou, entre os anos de 2008 e 2014, o valor de três mil pessoas/ ano. Para compararmos, averiguámos nos sites dos respetivos jornais qual foi o espaço concedido à emigração para a França durante o período em apreço, a partir da pesquisa pelos termos “emigração” e “França”. Salienta-se que a França, ao lado do Reino Unido e da Suíça, constituiu-se como um dos três principais destinos da recente emigração portuguesa. Todavia, apesar de se manter como um destino hegemónico, a emigração para a França no Público foi referenciada em apenas quatro peças, em que numa destas – “Ser português em França não era glamour. E agora é?” (9/6/13) – discorre-se, de facto, sobre o filme “A Gaiola Dourada”, acerca de uma família de emigrantes portugueses em Paris; e noutra – “Vem de férias a Portugal e pedem-lhe para lhes arranjar trabalho em França” (26/8/12) – a personagem já havia emigrado então há 40 anos. No Expresso, encontrámos uma quantidade muito maior de peças, 12, porém, três rementem ao filme citado – “Lá por ser dourada não deixa de ser uma gaiola” (8/8/13), “Cinema: Douro é cenário de filme sobre emigração em França” (18/7/12) e “‘A Gaiola Dourada’ nomeada para os César” (31/1/14) – e duas aos prejudicados pela falência do BES (Banco Espírito Santo): “BES. Lesados e desesperados, emigrantes manifestam-se em Paris” (22/5/15) e “Lesados do BES manifestam-se em Paris. Desesperados, anunciam marcha até à Embaixada” (31/5/15).10
- 11 As demais peças identificadas no Público foram: “Emigração para Angola: o outro lado do El Dorado” (...)
40Angola e Moçambique, por sua vez, também se afiguraram como destinos privilegiados na nova emigração portuguesa, apesar de, similarmente ao Brasil, até 2014 os fluxos nunca ultrapassaram as cinco mil pessoas/ ano. Outras similaridades residem no facto de os imigrantes portugueses em Angola, Moçambique e Brasil apresentarem os maiores níveis de escolaridade (a partir de 10 anos de estudo) e auferirem os maiores rendimentos dentre os recentes emigrantes portugueses (Peixoto et al. 2016). Apesar da timidez dos fluxos, todavia, um razoável espaço foi fornecido pelos periódicos à emigração para os países africanos, ainda que de forma desigual: no Público foram nove peças com referência à emigração para Angola e no Expresso uma; referentemente à emigração para Moçambique, foram sete peças no diário e três no semanário. No Público, o jornal que mais se dedicou à temática, a cobertura da emigração para Angola privilegiou o enquadramento das experiências dos portugueses, conforme se observa pelos títulos das peças: “Há portugueses que retornaram a Angola e vêem chegar outros” (22/3/15), “Tiago emigrou para Angola e diz que já saiu tarde” (25/11/12) e “Angola, os mitos e a realidade em discurso directo pelos emigrantes portugueses” (5/2/12); enquanto a cobertura acerca de Moçambique privilegiou as ocorrências de violência urbana: “Cidadão português assassinado em Maputo” (7/5/14), “A sombra dos raptos ainda escurece Maputo” (5/7/14) e “A volta de Moçambique” (23/10/13).11
41Já em agosto de 2011, anteriormente, portanto, a essas reportagens de dezembro em que a emigração é abordada genericamente e o Brasil é apenas citado ao lado de outros destinos, o Público havia apresentado a seguinte reportagem: “O Brasil é a fuga ao fado da crise para cada vez mais portugueses” (7/8, p. 14-15). Em consonância com a narrativa da “emigração qualificada” que ganhava corpo naquele período, se afirma o seguinte em seu subtítulo: “A língua, as afinidades culturais e a rede de contactos da comunidade migratória são factores que estão a atrair uma emigração qualificada”. Na chamada de primeira página à peça, a ocupar quase a sua totalidade, vê-se a imagem de um dos então futuros emigrantes a segurar um globo terrestre focalizando o território do Brasil, e lê-se o seguinte: “Brasil – O sonho dos portugueses”.
- 12 Em jornalismo, o lead corresponde ao primeiro parágrafo de um texto, em que se fornece ao leitor a (...)
42A reportagem inicia-se pela introdução dos personagens João Afonso Coutinho, 39 anos, publicitário, e Tatiana Moura, 34 anos, investigadora académica, ambos de partida iminente para o Brasil. O lead12 descreve a sua formação profissional e as razões da mudança (de ordem laboral, ambos tinham já emprego garantido à sua chegada ao país), além de caracterizar a recente emigração para o Brasil como jovem e qualificada. Como naquele momento, no entanto, as estatísticas não haviam ainda captado o fenómeno, o texto apresenta como experts sobre o assunto Pedro Góis, do Centro de Estudos Sociais de Coimbra, e José Sacchetta Mendes, autor de um livro sobre imigrantes portugueses no Brasil.
- 13 O chamado “olho da notícia”: pequeno trecho destacado do texto.
43Além dos dois personagens, são estes especialistas que, à falta de números oficiais, fazem a caracterização desta nova emigração como sendo constituída, sobretudo, por pessoas de classe média e com um alto nível de instrução. Uma declaração do investigador brasileiro José S. Mendes chama a atenção ao considerar as afinidades culturais entre os dois países como uma razão para a emigração: “‘Não são brasileiros, mas também não são estrangeiros. São assim uma espécie de terceira categoria: há o nacional, o estrangeiro e o português’”. Esta afirmação é destacada pela reportagem num pequeno resumo13 e, antes mesmo de aparecer no texto, faz-se a sua introdução a partir da comparação entre a experiência dos portugueses no Brasil e a dos helenos na Grécia Antiga: “os portugueses estão para o Brasil como os helenos para a antiga Grécia”.
44Julgamos, pois, interessante debruçarmo-nos com mais atenção sobre esta adjetivação: de acordo com Jonathan Mark Hall (2001), “helenos” era o nome que os gregos antigos utilizavam para designarem a si mesmos, assim como denominavam a terra que habitavam de Helas. O autor, ao discorrer sobre a cristalização da identidade grega, assinala que o seu período áureo foi o séc. VI a.C, cujo poema desta época, Catálogo de Mulheres, estabeleceu o mito de que o herói Heleno tivera três filhos, Doro, Xuto e Éolo, e que Xuto teve como descendência Aqueu e Íon; todos eles representando a relação entre os principais grupos populacionais da Grécia. “Juntos, eólios, dórios, jônios, e aqueus podiam ser vistos como helenos […]” (Hall 2001: 218).
45Como se nota, pois, de modo diferente do que o investigador quis dizer ao afirmar que os portugueses representavam uma espécie de terceira categoria no Brasil, a reportagem, ao estabelecer a relação de comparação com os helenos da Grécia Antiga, mais do que sugerir que português era sinónimo de brasileiro, posiciona implicitamente o primeiro num nível hierárquico superior (relativo a paternidade). Ao comparar os portugueses aos helenos, está implicitamente a estabelecer-se a sua relação com a figura mitológica de Heleno, o patriarca do povo grego.
46Identifica-se aqui uma vaga evocação imperial e colonial no estabelecimento deste tipo de comparação, ainda que tenha passado despercebida, provavelmente, à maioria dos leitores. Porém, com a sugestiva frase de João Coutinho ao justificar a sua mudança para o Brasil, “Este é daqueles comboios que não passam duas vezes”, e a imagem do publicitário a segurar o globo terrestre com o país posicionado ao centro, a reportagem revela a perceção existente em Portugal sobre o Brasil de então: um país que vivia um excelente momento económico e que, neste contexto, emergia como uma boa oportunidade para os portugueses desejosos de fugir “ao fado da crise”.
47Nos anos de 2013 e 2014, a revista do Expresso publicou duas longas reportagens em que se debruça sobre a vida de jovens e recém-chegados imigrantes portugueses no Brasil. Sob o chapéu “portugueses no Brasil”, a reportagem “A minha arte é a minha pátria” (Revista, 20/12/14, p. 44-50) parte de um enfoque inusitado para representar a nova imigração portuguesa no país: o quotidiano de quatro jovens artistas plásticos que se tinham mudado há alguns anos para o Brasil. Aqui iremos analisar mais detidamente a reportagem “No topo do morro” (Revista, 19/1/13, p. 24-33), cuja chamada ocupa a totalidade da primeira página do suplemento em formato de revista do Expresso. Nesse trabalho, o enquadramento sobre a imigração no Brasil privilegiou as representações acerca da identidade portuguesa, ao debruçar-se sobre a experiência de jovens imigrantes portugueses há pouco tempo no Brasil, que escolheram viver na favela do Vidigal (Rio de Janeiro) por razões económicas, mas não só.
- 14 O script do discurso jornalístico geralmente corresponde às respostas dadas às seguintes perguntas (...)
48Convém clarificar que o enquadramento de um discurso difere do seu tema, ou tópico, por dizer respeito não ao resumo, geralmente condensado em poucos palavras, do domínio das experiências sociais abrangidas por ele, mas a uma ideia que conecta os diferente elementos semânticos da história sobre a qual discorre num todo coerente (Pan & Kosicki 1993). Portanto, numa peça jornalística sobre a emigração portuguesa para o Brasil, podemos dizer que este é o seu tema ou tópico. Porém, a identificação do enquadramento adotado para discorrer-se sobre esse tema dependerá da análise das seguintes dimensões estruturais do discurso: sintática, retórica, temática e scriptual.14
49Na reportagem em apreço, o enquadramento escolhido para representar estes novos imigrantes foi o da experiência “extrema e destemida”, que caracteriza a emigração para um país a milhares de quilómetros de distância, com uma geografia distinta (tão bem representada pelo Rio de Janeiro) e a residência numa favela (com todo o imaginário de violência associado, seja por meio de peças jornalísticas, seja por obras de ficção). Logo o início do texto marca a construção desse enquadramento, com a narração da tentativa de um casal português recém-chegado conseguir um táxi com destino ao Vidigal e os intertítulos “Do Leblon para a favela” e “Como indígenas”. Tal enquadramento possibilita que do texto emerjam imaginários sobre o Brasil, assim como a evocação subtil de um certo espírito da era dos descobrimentos, na forma como na reportagem é retratada a experiência e o quotidiano dos imigrantes.
50Por exemplo, após a explicação da recente vaga de emigração de portugueses para o Brasil, impulsionada por uma “crise do bolso e da alma”, a narrativa prossegue da seguinte forma: “Não é apenas uma fuga, é um recomeço, a aprendizagem de viver noutro país a milhares de quilómetros de casa”. Também no final da reportagem, a decisão de emigrar do casal citado anteriormente é explicada desta forma: “Quando questionados sobre a razão que os levou para o Brasil, Aníbal responde, brincando: ‘Por causa dela.’ E ainda que, mais sérios, apontem outros motivos – mudar de vida, falta de trabalho em Lisboa –, qualquer romântico preferiria concentrar-se nas palavras de Aníbal, porque uma mudança tão extrema e destemida não pode ser apenas resultado de uma crise económica”. Como se observa nestes dois trechos, a partir das palavras selecionadas (recomeço, alma, extrema, destemida …), há similitudes entre a forma como eram evocadas e celebradas as grandes figuras da era dos descobrimentos durante o Estado Novo e o modo como a reportagem representou a experiência dos novos imigrantes.
51Como explica José Arruda (1999), as comemorações salazaristas, dentre as quais se destacam as comemorações do quinto centenário da morte do Infante D. Henrique, em 1960, cristalizaram determinadas expressões, que se enraizaram na sociedade portuguesa ao compor o universo simbólico à volta dos descobrimentos. Dentre estas, o autor menciona: civilização ocidental, civilizar, missão, catequese, epopéia, saga, conquista, heroísmo, descobrimento e império. Um glossário, portanto, que ecoa as palavras utilizadas para descrever a experiências dos imigrantes portugueses no Vidigal. A considerar-se a dimensão simbólica atribuída à emigração, a par das ações imperiais e coloniais, na expressão da identidade portuguesa, como espécie de alma sem fronteiras, tal escolha de palavras, de caráter estilístico, sugere-nos a sua aplicação no discurso como dispositivo retórico para evocação de certas imagens, no caso, a gesta dos descobrimentos.
- 15 Na tradição do colonialismo português, a palavra “indígena” foi também aplicada como conceito de ca (...)
52Também encontramos ecos de uma certa mentalidade lusotropicalista a partir do intertítulo “Como indígenas”, sob o qual é assim caracterizada a adaptação dos portugueses à favela: “Mas todos se movem pelas ruas do Vidigal com uma fluidez de indígena”. Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea, da Academia das Ciências de Lisboa, esta palavra, de origem latina, pode ser empregada como um adjetivo ou um substantivo e remete àquele que é originário de um determinado local (autóctone), indicando o seguinte exemplo de sua utilização: “[…] Aos olhos dos conquistadores, os indígenas eram selvagens” (p. 2080). No contexto da reportagem, parece-nos que o termo também foi utilizado em subtil referência ao período da chegada dos europeus às Américas, ainda mais se considerarmos não ser “indígena” uma palavra comumente utilizado na atualidade para referir os naturais de uma localidade. Tal utilização, por sua vez, relaciona-se com um dos principais temas do lusotropicalismo, “O modo português de estar no mundo”, em que se caracteriza o português como não racista, com predisposição para o convívio com outros povos e de vocação universalista (Castelo 1998).15
53Em 2013, o caderno de economia do Expresso deu destaque, em duas reportagens, ao investimento de médio porte no Brasil. Em “Rio de oportunidades” (Expresso, 8/6/13, p. E16-E17), sob o chapéu “Caminho da Internacionalização” – referente a uma iniciativa do semanário e da Caixa Geral de Depósitos para estimular o investimento português no Brasil, México, Angola e Moçambique a partir de reportagens e eventos promovidos por ambos –, este texto tem como subtítulo: “O Brasil é um caminho para negócios”; tese que procura justificar no lead: “Um mercado com quase 197 milhões de habitantes é sempre apetecível e o apetite ainda é maior quando o seu PIB está em crescimento há vários anos e as importações não param de aumentar. […]”. Como é possível perceber ao analisar o título, subtítulo e lead da peça, sua estrutura temática (no sentido de Pan & Kosicki 1993) apresenta certas características hipotético-dedutivas, pois no subtítulo é formulada a hipótese de o Brasil ser um caminho para negócios, tendo por base de sustentação as qualidades económicas do país elencadas no primeiro parágrafo. Essa estrutura temática de caráter hipotético explica-se pelo facto de o texto não repousar num evento ou facto, mas procurar convencer o leitor de que o país é um bom local para investir.
54Elementos de suporte da hipótese são indicados, também, no antetítulo, a partir de exemplos de “investimentos” portugueses (posteriormente detalhados em duas caixas, “Benfica brinca na areia” e “Doces portugueses no Complexo do Alemão”, incluídas na reportagem). Porém, o exemplo de investimento destacado em “Benfica brinca na areia”, referente à ação de dois jovens emigrantes que resolveram trazer bandeiras da equipa de futebol para uma barraca de praia em Ipanema, no Rio de Janeiro, soa forçado, pois, já para além da metade do texto da caixa, lê-se: “Diogo e João não são sócios de Chico [proprietário], mas compraram as bandeiras, as novas lonas da barraca, trouxeram clientes e contribuíram para o menu”.
55Se para caracterizar estas ações como um “investimento”, a reportagem vale-se de um contorcionismo interpretativo, já para expor o caráter qualificado dos dois emigrantes, é bem explícita: “Por sua vez, Diogo também dirige as padarias da família, e ainda que um português padeiro seja aqui um lugar comum, nenhum deles encaixa na imagem datada, e agora em mudança, que os brasileiros têm dos portugueses. Com pouco mais de 30 anos e MBA no currículo, Diogo e João estão entre os estrangeiros que procuram as oportunidades que surgem com as mudanças na cidade”.
56O apelo às similaridades culturais entre Portugal e Brasil é evidenciada pela imagem de Carmen Miranda que ilustra a reportagem e, conforme sugere a sua legenda – “O que é que esta luso-carioca tem” –, que emerge do discurso como a objetificação (conforme indica a teoria das representações sociais, como processo de materialização de ideias abstratas) da comunidade luso-brasileira. Trata-se, afinal, da figura que encarnou um dos maiores símbolos da brasilidade, mas nascida em Portugal…
57Uma semana após a publicação desse trabalho, o mesmo caderno de economia continuou a destacar o investimento português no Brasil ao noticiar um evento promovido no Rio de Janeiro pela iniciativa “Caminho da Internacionalização”. Em “Destino prioritário para os portugueses” (Expresso, 15/6/13, p. E24-E25) noticia-se a sessão informativa promovida pelo semanário e pela Caixa Geral de Depósitos para estimular o investimento português na cidade. Porém, como se nota pelo título, o que se caracterizou como um evento de promoção do investimento foi apresentado no discurso como algo já dado e também como um imperativo, justificado pelo seguinte subtítulo: “Rio de Janeiro – É responsável por 80% da extração do petróleo e terá, até 2016, investimentos de 1,9 mil milhões de reais em vários sectores. Portugal oferece bons gestores e a porta de entrada na Europa”.
58O apelo neste texto à proximidade cultural com o Brasil fica por conta da descrição, logo no início, do local onde ocorrera o evento: o Palácio de São Clemente, erguido pela comunidade portuguesa em 1961 e que, naquela época, servia de sede para o consulado. As páginas seguintes (E26-E27), compostas por várias pequenas reportagens e caixas acerca do investimento recente e da histórica presença portuguesa no Rio de Janeiro, dão continuidade à linha narrativa. São estes os títulos das caixas: “Mónica levantou Poeira na rua mais luxuosa na cidade”, “Unicer e Porto Bay na onda da Copa e dos Jogos”, “Biblioteca maravilhosa” e “Brasil vai ser ‘maná’ de investigação para engenharia nacional”. Sobre a primeira e mais extensa destas unidades textuais, “Mónica levantou Poeira […]”, assinala-se a estratégia de, implicitamente, contrapor esta nova geração de emigrantes empreendedores à tradicional vaga portuguesa para o Brasil, composta sobretudo por padeiros: “A Poeira, fundada por Mónica […] podia representar o Leblon mais recente, mais internacional e requintado, mas também o Leblon mais antigo, porque a proprietária – tal como os donos das padarias e dos botecos do bairro – é portuguesa”.
- 16 E que, nalguns casos, retornaram a Portugal, sendo identificados a partir de então como “brasileiro (...)
59Destacamos também a caixa “Biblioteca maravilhosa”, que procura assinalar a história do Real Gabinete Português de Leitura fundado em 1887 por um grupo de emigrantes portugueses, “[…] preocupados com o nível de instrução dos conterrâneos”. O tema sugere o interesse de relacionar esta vaga mais ilustrada de emigrantes que tinham chegado ao Brasil para trabalhar no comércio16 (antes de se iniciar, em finais do séc. XIX, o fluxo mais empobrecido) com a mais recente vaga de emigrantes de perfil empreendedor e com elevado background educacional.
- 17 Esse especial reuniu uma série de peças não circunscritas à emigração portuguesa para o Brasil, mas (...)
60Relativamente ao diário, é a reportagem “‘O dinheiro rege o mundo e o dinheiro está aqui’” (Público, 17/3/14, p. 12-13) que caracteriza a conjugação estabelecida entre emigração para o Brasil e investimentos de médio porte realizados pelos novos residentes. Primeiramente, convém referir que, neste ano de 2014, o Público, num registo bastante sugestivo de interesse da comunicação social portuguesa pelo Brasil no contexto da crise, criou uma série especial intitulada “Ano grande do Brasil”,17 da qual a reportagem em questão faz parte. Ao juntar para uma conversa seis portugueses, quase todos recém-chegados ao Brasil, a reportagem revela que o interesse dessa nova emigração não repousaria apenas na vontade de se inserir no mercado de trabalho brasileiro, mas também de se estabelecer comercialmente, como referido pelos personagens Rui, dono de um gabinete de advocacia, e Nuno, emigrado em 2009 e dono de uma construtora. No entanto, como também observado no texto “No topo do morro”, nota-se a presença de uma certa mentalidade imperial neste trabalho, sobretudo através das falas dos entrevistados.
61Por exemplo, ao comentar a situação em Portugal da empresa que o transferira anos antes para a filial do Brasil, o entrevistado Jorge afirma: “‘Agora falamos directamente com a matriz na Bélgica devido ao volume do facturamento ter superado o de Portugal. O filho tornou-se maior que o pai.’”. Esta última frase faz referência ao facto de, apesar de a empresa ter origem na Bélgica, a filial do Brasil se encontrar, antes, subordinada à filial de Portugal, no entanto, conjeturamos que Jorge, provavelmente de forma inconsciente, também se referia de modo indireto à situação atual de Portugal (antiga metrópole) e do Brasil (ex-colónia). Ou seja, em contraposição à retórica hegemónica de países irmãos, esta frase explicita o que, de facto, conforme Eduardo Lourenço (2015) afirma ao dizer que em Portugal se caracterizam as relações com o Brasil como fraternas por não se ousar denominá-las de filiais, é o imaginário que subjaz acerca do país: de que se trata de uma “criação” portuguesa, no entanto, tornada maior que o pai.
- 18 Em finais dos anos 1990, com o objetivo de internacionalizar sua economia e obter vantagens a parti (...)
62A este imaginário, a reportagem acrescenta um outro, o de Portugal como uma “Terra pequena” – algo assinalado num intertítulo e também desta forma por um dos entrevistados: “Tudo correu mal. A construção não dá mais. […] Terra pequena não faz homem grande. […] É aquela velha história dos portugueses de 500 anos atrás. Eu sempre disse aos meus amigos que o futuro dos portugueses estava em Angola e no Brasil”. Como se observa neste excerto, ao fazer referência aos portugueses de 500 anos atrás – não por acaso a era dos descobrimentos –, o entrevistado está a relacionar a sua trajetória recente e a dos seus colegas com a mitologia dos “heróis do mar”. Nesse sentido, identifica-se a ancoragem entre gerações passadas de emigrantes de sucesso e a representação social dos “heróis do mar” dos descobrimentos, uma estratégia, por sua vez, já empreendida outrora pelo Estado português para incentivar investimentos e empreendimentos no Brasil.18
- 19 Concebido por Henrique Galvão para integrar a Exposição Colonial de 1934, esse mapa, que contou tam (...)
63A caracterização de Portugal como uma “terra pequena”, paradoxalmente, remete a uma propaganda bastante popular durante o período mais acirrado do salazarismo: o slogan “Portugal não é um país pequeno”, acompanhado do respetivo mapa.19 Apesar de sugerir o contrário do famoso slogan, a caracterização apresentada pelo entrevistado não deixa, indiretamente, de fazer referência à propaganda salazarista, pois alude, sub-repticiamente, à centralidade do antigo espaço imperial face à atual realidade portuguesa, com as antigas colónias agora aparecendo como boia de salvação para um Portugal deprimido e em crise.
64O nosso interesse pela análise dos materiais jornalísticos acerca da recente emigração portuguesa para o Brasil deve-se não apenas ao facto de este ter sido um tema bastante presente nos media nos anos da crise, mas também por este fluxo migratório ter sido intenso durante mais de um século, o que proporcionou uma vasta gama de imagens que ainda hoje permeiam as representações sociais não só sobre a emigração para a ex-colónia, como também sobre o Brasil. Nesse sentido, o acesso aos dados coligidos por João Peixoto et al. (2016) foi de suma importância para a análise, pois permitiu-nos concluir que, de facto, as representações sociais desenvolvidas aquando do período de prestígio social (e também de sátira) dos brasileiros de torna-viagem ainda hoje orientam não só a estruturação do discurso acerca do fenómeno da emigração para o Brasil, mas também os critérios de noticiabilidade mobilizados por esta cobertura. Pois, como dissemos, a movimentação para o Brasil esteve muito aquém daquela que se dirigiu, por exemplo, à França ou ao Reino Unido, tendo merecido, no entanto, amplo destaque dos jornais selecionados.
65Apesar de o pico da emigração portuguesa ter ocorrido na década de 1960, quando esta se direcionava para a Europa Ocidental, conjecturamos que a presença de representações sociais sobre o Brasil forjadas no séc. XIX, a orientar o discurso jornalístico acerca da emigração, relaciona-se ao seguinte facto: enquanto a popularização da figura do torna-viagem sedimentou no senso comum a ideia de Brasil como terra de oportunidades, o emigrante para a Europa, comumente o “francês”, caracterizou-se fundamentalmente como um proletário. Sabe-se que há um fosso entre representações hegemónicas no senso comum e a realidade, pois os brasileiros de torna-viagem ricos correspondiam a uma minoria e, já em finais do séc. XIX, o movimento para o Brasil compunha-se dos extratos mais empobrecidos da sociedade portuguesa, cujas ocupações no país dificilmente os possibilitava de enriquecer. No entanto, relembramos que a emergência da CEE, no pós-Segunda Guerra, proporcionou “[…] um largo mercado de trabalho em busca de proletários pouco qualificados e pouco exigentes, dispostos a aceitarem qualquer tarefa disponível” (Serrão 1985: 999). Esses imigrantes portugueses na Europa dificilmente enriqueciam e/ou retornavam cheios de posses às suas terras, “ao invés do que era típico dos ‘brasileiros’” (idem), conforme imagem cristalizada. Portanto, num contexto recente em que a emigração portuguesa se apresentava (e queria ser representada) como mais qualificada, compreende-se esta associação recorrente ao Brasil como destino da nova emigração, ainda que se tenha caracterizado como um movimento tímido em comparação a outros destinos.
- 20 Cuja alteração do princípio de jus soli para jus sanguini para concessão da nacionalidade portugues (...)
66Nesse sentido, foi também notória nos trabalhos jornalísticos analisados a ênfase na qualificação apresentada pelos novos emigrantes, consequentemente silenciando-se sobre emigrantes de origens socioeconómicas diversas. Relativamente a este segundo ponto, também identificamos a consonância do discurso com a orientação política assumida pelo Estado português após o fim do império, em que os emigrantes foram estimulados a representar a cultura portuguesa no mundo. Como explica Feldman-Bianco (2001), ao procurar afirmar-se como uma moderna nação pós-colonial e também atenta a virtuais vantagens económicas e diplomáticas dessa situação, Portugal, ao longo da década de 1980 e até ao início do séc. XXI, redefiniu suas relações com os emigrantes e o status destes.20 Nesse contexto, os emigrantes brasileiros reconhecidos como “gerações de emigrantes de sucesso” (de que os brasileiros de torna-viagem são exemplo) tiveram a sua imagem reabilitada, passando a ser associados a representações sociais glorificadoras, como a de “heróis do mar”.
67Como vimos, especificamente nas peças sobre investimento de médio porte no Brasil, essa associação foi realçada por um discurso que, mais do que expressar o interesse recente de investidores e empreendedores portugueses pelo Brasil, exortava os leitores a verem o país como uma alternativa para os negócios: a descrição de casos de sucesso, em que os emigrantes surgiam no texto como heroicos desbravadores do país, foi uma estratégia discursiva comum. Concluímos, portanto, que o imaginário social à volta do Brasil e de seus imigrantes portugueses, estabelecido sobretudo no séc. XIX, permanece orientando o discurso acerca dos fluxos mais recentes para a ex-colónia. Tal indica a perenidade das representações sociais sobre o êxito do projeto migratório para o país e a consequente ideia de Brasil como terra de oportunidades para os portugueses.
68Paradoxalmente, essa imagem de Brasil como terra prenhe de oportunidades não emergiu do discurso acerca da evasão da comunidade brasileira que, também em decorrência da crise económica, ensaiava um movimento de retorno. Ao contrário, uma espécie de lamento, de contornos coloniais e eurocêntricos, emanava de peças e artigos de opinião ao recorrerem a estereótipos e lugares-comuns para caracterizar os imigrantes brasileiros como alegres, bem-dispostos e cortêses, características estas que fariam falta ao país “sério” e “sisudo” (Minga 2019). Portanto, ao contrário do que num primeiro momento podia ser avaliado como positivo (pelos problemas de desemprego), o regresso dos imigrantes não foi assim percecionado pelos jornais Público e Expresso e os seus articulistas, que refletiam um tom pessimista ao debruçarem-se sobre a partida da principal comunidade estrangeira. Tal ocorrência assinalava com mais ênfase o fracasso recente de Portugal.
69As representações sobre o Brasil e a emigração para a ex-colónia, a partir de processos de ancoragem e objetificação, mantiveram-se presentes na sociedade portuguesa de forma latente, conforme a análise dos jornais demonstrou, ao irromperem no período de crise. Como foi representada pelos jornais, mais do que dizer respeito a um movimento intenso (o que não era o caso), a recente emigração portuguesa para o Brasil dialogou com o imenso caudal de imagens, representações sociais e afins que, de tempos em tempos, consoante a conjuntura, reposiciona o Brasil como um farol de oportunidades para os portugueses.