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Mobilités contemporaines : questionner les continuités (post)impériales

Paisagens islâmicas na Área Metropolitana de Lisboa: (pós)colonialismo e políticas de reconhecimento

Paysages islamiques dans la Région Métropolitaine de Lisbonne : (post)colonialisme et politiques de reconnaissance
Islamic Landscapes in Lisbon Metropolitan Area: (Post)colonialism and Politics of Recognition
José Mapril, Raquel Carvalheira et Pedro Soares
p. 157-180

Résumés

L’histoire de l’islam et des musulmans dans le Portugal contemporain est indéniablement marquée par les dynamiques coloniales, mais aussi par des processus post-coloniaux. Les propres configurations institutionnelles de “l’Islam public” dans la société portugaise montrent cette importance et créent, en même temps, les conditions d’une hiérarchisation des musulmans, de certains projets et de certaines voix.
Cet article est basé sur trois études fondées sur un travail de terrain ethnographique mené sur l’Association islamique et culturelle de la rive sud de Lisbonne, représentant la congrégation associée à la mosquée d’inspiration soufie de la municipalité d’Almada, sur Noor Fatima, projet caritatif dirigé par une femme musulmane, et sur le Centre islamique du Bangladesh (CIB) engagé dans le projet de construction de la nouvelle Place de Mouraria. Son objectif consiste à montrer, d’une part, que cette hiérarchie est soutenue par les discours dominants sur l’islam, soulignant l’existence d’un clivage entre “musulmans portugais” et “autres musulmans”, et, d’autre part, l’existence en marge de personnes qui contestent ces représentations, révélant d’intéressantes (dés)articulations entre les mobilités, les dynamiques coloniales et post-impériales, les politiques de reconnaissance et la production de l’altérité.

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Notes de la rédaction

Este artigo integra-se no projecto estratégico do Centro em Rede de Investigação em Antropologia, no quadro de financiamento UIDB/04038/2020 e UIDP/04038/2020. Tem por base pesquisas desenvolvidas nos projectos de doutoramento “Um Outro Islão: Dinâmicas Transnacionais Barelwi entre Lisboa e Nova Sofala” (Pedro Pestana Soares, SFRH/BD/131935/2017) e de pós-doutoramento “Islão e família em Portugal: conjugalidade, género e pluralidade de trajectórias” (Raquel Carvalheira SFRH/BPD/115511/2016), ambos financiados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior de Portugal. A pesquisa sobre a Praça da Mouraria realizada por José Mapril foi parcialmente financiada pelo projecto internacional Heriligion (GA 649307 - HERA.15.033)

Texte intégral

Introdução

  • 1 Utilizamos o conceito de “Islão público” tal como é proposto por Armando Salvatore e Dale Eickelman (...)

1A história do Islão e dos muçulmanos no Portugal contemporâneo está indelevelmente marcada pelas dinâmicas coloniais, mas também por processos pós-coloniais. As próprias configurações institucionais do “Islão público”1 na sociedade portuguesa revelam esta importância e, simultaneamente, criaram as condições para uma hierarquização de determinadas vozes e projectos entre os muçulmanos. Estes “legados coloniais”, para usar o conceito de Benoit De L’Etoile (2008), produziram algumas centralidades institucionais que continuam hoje a marcar a presença islâmica no país (ver, por exemplo, Mapril 2014a, Tiesler 2001, Vakil 2004), e cujos discursos contribuem para uma ideia sobre o que é ser “muçulmano português” e sobre a importância da ligação histórica/cultural com a sociedade portuguesa, via período colonial e a lusofonia.

  • 2 Ver o estudo de Macagno (2006) que analisa o lugar dos muçulmanos no luso-tropicalismo colonial.
  • 3 Uma recolha exaustiva sobre as representações dos muçulmanos em Portugal nos meios de comunicação a (...)
  • 4 Ver Araújo 2019 para uma análise da Islamofobia em Portugal.

2Estas ideias e processos representam um reconhecimento do Islão e dos muçulmanos enquanto parte integrante da sociedade portuguesa, o que contrasta com a forma como o Estado Novo olhava, com suspeita, para os muçulmanos, e com o modo como pretendeu governar estas populações no período tardo-colonial, num jogo de ambivalências analisado por Machaqueiro (2011) e discutido em Vakil, Monteiro & Machaqueiro (2011). Simultaneamente, e paradoxalmente, algumas destas formações discursivas parecem produzir alguns silêncios e margens. Silêncios, desde logo, sobre a existência de Islamofobia e de discriminação contra muçulmanos em Portugal. Neste caso, enfatiza-se uma ideia de excepcionalismo português, cuja genealogia parece inspirar-se em visões lusotropicais,2 e que parece persistir, de forma mais ou menos explícita, na contemporaneidade. Este excepcionalismo, reforçado recorrentemente pelos meios de comunicação, líderes políticos e alguns representantes institucionais,3 explicaria a não existência de diversas formas de racismo e Islamofobia, o que é, desde logo, contrariado por diversos exemplos.4

3Ao mesmo tempo, estes discursos sobre a excepcionalidade da situação dos muçulmanos em Portugal parecem produzir as suas margens, que são projectadas sobre outros segmentos de muçulmanos que chegaram a Portugal nas últimas décadas. Estes são frequentemente vistos como “estrangeiros” e “imigrantes”, categorizações que ocorrem independentemente da sua cidadania formal (muitos são cidadãos portugueses). Observa-se, portanto, uma hierarquia entre diferentes instituições de representação do Islão em Portugal e entre diversas subjectividades muçulmanas que operam através de uma distinção, mais ou menos implícita, entre “bons” e “maus” muçulmanos (Mamdani 2004).

  • 5 Usamos aqui politicas de reconhecimento no sentido proposto por Charles Taylor (1994), isto é, como (...)

4O objectivo deste artigo é demonstrar, por um lado, que esta hierarquia se sustenta em discursos dominantes sobre o Islão que sublinham uma clivagem entre “muçulmanos portugueses” e “outros muçulmanos”, e, por outro lado, que existem margens que contestam esses discursos, revelando interessantes (des)articulações entre mobilidades, dinâmicas coloniais e pós-imperiais, politicas de reconhecimento5 e a produção de alteridades. Dito de outra forma, queremos analisar de que forma estas políticas de reconhecimento implicam frequentemente a criação de hierarquias e margens.

  • 6 (AML): A Área Metropolitana de Lisboa é uma área metropolitana que engloba 18 municípios, dividindo (...)

5Partindo de três pesquisas sustentadas em trabalho de campo etnográfico centrado na Área Metropolitana de Lisboa (AML),6 sobre a Associação Islâmica e Cultural da Margem Sul, que representa a congregação afecta a uma mesquita de inspiração sufi no concelho de Almada, a Noor Fatima, um projecto caritativo encabeçado por uma mulher muçulmana de origem indo-moçambicana, e o Centro Islâmico do Bangladesh (CIB), envolvido no projecto da construção da nova praça da Mouraria (e realocação de uma mesquita previamente existente na zona), este artigo analisa como as redes coloniais se estendem e actualizam no período pós-colonial e revela, simultaneamente, a sua importância na formulação de uma cidadania ética e das políticas de reconhecimento.

6Nos três estudos de caso estamos perante um campo contemporâneo que expõe, ainda que diferentemente, as heranças socioculturais e imaginários associados à história do império colonial português. Se, nos casos da Associação Islâmica e Cultural da Margem Sul e da Noor Fatima, essa ligação é evidente, no caso da nova mesquita Baitul Mukarram e da sua futura localização na praça da Mouraria, revela outras histórias e percursos que, por contraste, tornam visível os discursos dominantes sobre o Islão e os muçulmanos portugueses e as dinâmicas de (des)legitimação que estes criam.

7Este artigo revela um campo no qual legados coloniais, cidadania ética e políticas de reconhecimento criam as condições para a emergência de determinadas subjectividades e actores, que são mais ou menos legitimados e hierarquizados de acordo com critérios políticos e morais. Para explorar este argumento, começaremos por fazer uma breve contextualização sobre o panorama do Islão em Portugal e as suas principais vozes e actores. Em seguida, exploraremos os três estudos de caso e, por fim, apresentaremos breves notas finais.

Pós-colonialidade, mobilidades e património(s)

  • 7 Na região da AML existem atualmente entre 30 a 40 mesquitas e lugares de culto islâmicos, sendo na (...)

8É difícil afirmar com precisão a demografia das populações muçulmanas em Portugal e mais concretamente na cidade de Lisboa. No censo de 2011, o último a ser realizado no país, 20 640 pessoas num total de 8 989 849 com 15 anos ou mais responderam professar a religião muçulmana. Outros números são apresentados pela Comunidade Islâmica de Lisboa, o organismo de representação oficial em Portugal, que refere entre os 48 000 e os 55 000 (ou seja, cerca de 0,5% da população total) (Mapril et al. 2019). Tiesler e Cairns (2007) indicam que 60% dos muçulmanos em Portugal são portugueses, muitos deles de origem sul-asiática e que adquiriram a nacionalidade portuguesa em Moçambique, ainda durante o período colonial.7

  • 8 Sobre os muçulmanos ismaelitas em Portugal e em contexto africano ver S. Bastos (2006) e Trovão e B (...)

9Existem, grosso modo, dois blocos de movimentações que caracterizam a chegada recente de populações muçulmanas a Portugal (Tiesler 2001, Mapril 2014a). Um primeiro, que pode ser descrito como pós-colonial, relaciona-se com o processo histórico da construção do império Português e da sua experiência colonial. Como noutros casos, parte das populações muçulmanas portuguesas enquadram-se naquilo que Hansen (2014) designa por formações pós-imperiais, isto é, nas ligações linguísticas, comerciais e culturais criadas pela experiência colonial portuguesa. Neste primeiro caso, estamos a falar sobretudo de famílias sunitas e ismaelitas8 de origem sul-asiática, oriundas de Moçambique que chegaram a Portugal a partir da década de 1970 e por populações oriundas da Guiné-Bissau, que se fixaram a partir da década de 1990 (Dias 2007, Johnson 2006). Há também um segundo momento, que se inicia no final da década de 1990 e princípios dos anos 2000, e que foi constituído por populações do Bangladesh, de Marrocos, do Paquistão e do Senegal. Esta segunda vaga insere-se em várias correntes migratórias para a Europa, que incluíram Portugal como destino (Tiesler 2001, Faria 2007, Mapril 2012), e que estão ligadas às transformações económicas e políticas que ocorreram nas últimas décadas nos países da Europa do Sul, que alteraram a sua posição relativa face às migrações globais (King et al. 2000).

10Após o 25 de Abril de 1974, que celebrou a transição de Portugal de uma ditadura para uma democracia, muitos muçulmanos sunitas indo-moçambicanos que viviam em Moçambique e que tinham nacionalidade portuguesa, fixaram-se em Portugal, tal como outros portugueses não-muçulmanos, conhecidos, no jargão popular, como “retornados” (Peralta 2019). Este grupo populacional, diversificado do ponto de vista social e económico, tinha como actividade principal nas colónias o comércio, o que se revelou fundamental para a sua integração económica e social no Portugal pós-colonial. Malheiros (1996) e Batoréu (2007) descrevem uma especialização profissional e económica sobretudo no comércio, em negócios como lares de idosos, hotéis, supermercados, comércio retalhista, ou ainda, nos serviços (como, por exemplo, no sector bancário e na administração pública).

11Por outro lado, embora muitos muçulmanos se incluam frequentemente na categoria dos “retornados”, por terem adquirido a nacionalidade portuguesa durante o período colonial e escolhido mantê-la após o 25 de Abril de 1974, esse enquadramento tem que ser entendido de uma forma fluida, sendo preferível situá-los, na melhor das hipóteses, numa fase tardia deste fluxo migratório. De facto, as estruturas comerciais que os muçulmanos de ascendência indiana tinham estabelecido em território moçambicano, muitas delas já transgeracionais e alcançando, ao longo das décadas, considerável prosperidade, foram em grande medida conservadas nos anos que se seguiram à independência. Para muitos muçulmanos de origem indo-moçambicana, a realocação em Portugal deu-se já no final dos anos 1970 e inícios de 1980, quando a instabilidade causada pela guerra civil e as políticas de centralismo económico impostas pela FRELIMO tornaram insustentável a prossecução da atividade comercial ou a sua gestão a partir de solo moçambicano. A chegada destes muçulmanos a Portugal, trazendo consigo recursos económicos consideráveis e até alguma influência na esfera política e económica, lançou os fundamentos para a constituição, poucos anos mais tarde, das primeiras mesquitas e associações islâmicas nos subúrbios da cidade de Lisboa, nomeadamente no Laranjeiro (1982) e em Odivelas (1983), que precederam mesmo a inauguração oficial da Mesquita Central (1985).

12A Mesquita Central de Lisboa, localizada numa zona central da cidade, é o lugar de culto por excelência, onde acorrem todos os crentes sunitas, independentemente da sua origem social, étnica ou nacional. Inaugurada em 1985, é um projeto que data da fundação da sua entidade gestora, a CIL-Comunidade Islâmica de Lisboa, constituída em 1968 por um grupo de estudantes oriundos de Moçambique e, entretanto, deslocados para a capital para frequentar o ensino universitário. A emergência da CIL nos últimos anos do império ultramarino português, a sua transição para o período democrático e permanência, até à atualidade, como a mais visível porta-voz dos muçulmanos em Portugal, ilustra um conjunto de continuidades entre o contexto colonial e o pós-colonial na relação do Islão com a sociedade maioritária não muçulmana. Neste contexto, a alegada representatividade da CIL relativamente à diversidade étnica e doutrinal do Islão em Portugal reflete, em larga medida, as reivindicações dos seus fundadores como representantes de uma comunidade islâmica que, sediada em Lisboa, abarcasse todo o espaço ultramarino (Machaqueiro 2011); da mesma forma, a presença exclusiva de muçulmanos de origem indo-moçambicana e guineense nos órgãos sociais da CIL – onde os imigrantes desligados das antigas lógicas imperiais não têm ainda lugar – pode ecoar retóricas coloniais sobre um Islão “local”, compatível com – ou assimilável às – estruturas associativas e políticas do Estado e um Islão “global”, eventualmente pan-islamista, alinhado com centros de autoridade localizados no exterior do território e, por isso, mais dificilmente controlável.

13A religiosidade das primeiras gerações de muçulmanos nascidos em Portugal, longe de configurar uma prática homogénea do Islão, reproduzia também “muçulmanidades” estruturadas segundo diferentes escolas doutrinais que já há várias décadas dividiam, com maior ou menor grau de crispação, os muçulmanos em Moçambique. De facto, se o Islão de inspiração sufi se disseminara pelo território desde a chegada dos primeiros líderes de confrarias em finais do séc. XIX, oriundos das Comores e Zanzibar, a partir da década de 1960 essa influência passou a ser asperamente contestada por movimentos escrituralistas como os deobandis e os wahhabis (Bonate 2007, 2015), produzindo uma paisagem islâmica polarizada que perdura até hoje (Morier-Genoud 2019). Assim, ao chegarem de Moçambique, os muçulmanos de ancestralidade indiana já reproduziam um conjunto de afiliações a formas mais carismáticas ou mais escrituralistas de Islão, a que procuraram dar continuidade em Portugal. Contudo, num país onde não existia uma única mesquita, estas diferenças foram, em grande medida, relativizadas até à inauguração dos primeiros locais de culto. Haveriam de emergir novamente na década de 1990, em grande parte fruto da crescente influência do movimento missionário Tablighi Jamaat (um movimento proselitista de renovação espiritual de inspiração deobandi), e acabando por conduzir a cismas nas mesquitas de Laranjeiro e Odivelas, onde passaram a existir locais de culto diferenciados para cada uma destas sensibilidades religiosas (Vakil 2004).

  • 9 Algumas famílias Portuguesas – Bangladeshis têm remigrado para vários países europeus (Reino Unido, (...)

14Nas últimas décadas, contudo, a presença islâmica foi sofrendo algumas alterações relacionadas com a transformação da posição de Portugal face aos fluxos migratórios globais. Desde logo importa salientar a chegada de populações oriundas de países de maioria Islâmica, tais como o Bangladesh, o Paquistão e o Senegal, mas também populações muçulmanas oriundas da Índia. Estas presenças implicaram a emergência de novas vozes e projectos para o “Islão público” (Salvatore e Eickelman 2004), vozes essas que têm vindo a adquirir uma crescente visibilidade. Veja-se o caso das populações oriundas do Bangladesh. Uma parte significativa da população do Bangladesh que está hoje em Portugal é oriunda de uma classe média com capitais educacionais e económicos no país de origem (Mapril 2014b). As suas trajectórias migratórias, que nem sempre terminam em Portugal,9 implicaram a sua fixação numa zona central, mas economicamente diminuída da cidade de Lisboa. A sua inserção laboral faz-se através de negócios de âmbito familiar, supermercados e restaurantes, hoje espalhados por vários pontos da cidade. Juntamente com os seus processos de inserção laboral e dinâmicas de reagrupamento familiar, os Bangladeshis em Lisboa criaram duas mesquitas: a “Baitul Mukarram” (cujo nome evoca a mesquita central de Dhaka, no Bangladesh) e a do “Martim Moniz”. A separação entre estas duas mesquitas, ambas geridas por Bangladeshis, está relacionada com tensões políticas transnacionais entre diversos segmentos.

15A primeira, que pertence ao Centro Islâmico do Bangladesh (CIB), associa-ção criada em 2004 por um grupo de empresários, é hoje a principal e a mais visível mesquita na zona, aguardando novas instalações na futura praça da Mouraria. Atendendo ao crescimento da congregação, a CIB tem sido muito vocal junto das autoridades locais na reivindicação por um novo espaço de culto e no seu reconhecimento enquanto mais um actor no “Islão público”. Como veremos, a sua deslocação para a praça da Mouraria é precisamente parte de uma negociação que tem mais de 10 anos.

16Simultaneamente, e para perceber estas várias posições de enunciação, importa reposicioná-las em face das várias formações discursivas que evocam o Islão e a muçulmanidade no espaço público. Os processos de patrimonialização da herança do Al-Andaluz (Macias 2005, Raposo 2013), o arabismo português (Cardeira da Silva 2005), os discursos sobre o passado colonial (Vakil, Monteiro & Machaqueiro 2011), o ecumenismo da Igreja Católica, e as influências da Islamofobia global (Sayid & Vakil 2011) são elementos que têm, de um ponto de vista discursivo, vindo a criar uma hierarquia moral que tende a distinguir, de forma por vezes implícita, entre “bons” e “maus” muçulmanos (Mamdani 2004). Os primeiros seriam aqueles que têm ligações mais longas com a sociedade portuguesa, via experiência tardo-colonial, enquanto os segundos seriam os representantes de um Islão “imigrante”, “estrangeiro”, “desconhecido” e, como tal, visto como “ameaçador”. Um olhar sobre o campo religioso em geral, e do Islão em particular, mostra precisamente como estes discursos são hoje manuseados na sociedade portuguesa, por diversos segmentos, para legitimar, dar voz ou visibilidade a determinadas instituições e invisibilizar outras. Emerge daqui um campo onde se disputa a legitimidade para falar em nome do Islão e quem são os actores institucionais mais adequados e merecedores.

Islão e carisma nos arredores de Lisboa

  • 10 O último recenseamento do INE (2011) indica apenas 568 muçulmanos no concelho de Almada. Em 2019, e (...)

17No concelho de Almada, onde desde finais da década de 1970 reside uma significativa10 população muçulmana de origem indo-moçambicana, a mesquita Al-Madinah é frequentemente apresentada como um exemplo de cooperação estreita entre a comunidade muçulmana e a restante população local, bem como da plena integração dos muçulmanos no tecido social da sociedade de acolhimento. Ao longo do ano, a mesquita realiza em conjunto com a autarquia, as igrejas paroquiais e diversas associações não governamentais várias atividades de cariz assistencialista, cultural e pedagógico, bem como cerimónias públicas (a celebração do id-ul-fitr no parque municipal, por exemplo) que reforçam a sua visibilidade na paisagem multiconfessional do concelho e da AML.

18Desde meados dos anos 1990 que, nas suas imediações, se ergue outro local de culto islâmico – a mesquita Al-Qadriyah – que apesar de frequentada por uma congregação demograficamente semelhante, habita um espaço público bastante distinto. Adotando uma postura discreta desde a sua fundação – e tendo por isso escapado ao escrutínio académico e mediático – ela resulta de uma cisão ocorrida na mesquita Al-Madinah que, até então, tinha albergado muçulmanos de sensibilidades doutrinais distintas num equilíbrio precário que, por essa altura, se tornou insustentável. Um fator essencial para a precipitação desse cisma foi o intenso trabalho de missionação realizado pela organização transnacional Tablighi Jamaat, estabelecida em Portugal no início dos anos 1980, e para a qual vários componentes doutrinais e rituais do Islão de inspiração sufi são considerados inovações condenáveis (bidah) face ao estabelecido nas escrituras sagradas (O Alcorão e os hádices). Nos primeiros anos da década de 1990, a crescente influência do Islão escrituralista nas mesquitas suburbanas da AML tinha-se estendido às lideranças religiosas dos locais de culto e a parte significativa das direções das associações que os geriam, levando grupos de muçulmanos menos identificados com esta posição doutrinal a sair desses locais de culto para fundar novas mesquitas.

19A mesquita Al-Qadriyah, fundada em 1996, passou então a albergar práticas que, na mesquita Al-Madinah, eram já percepcionadas como não normativas, como a realização conjunta do dhikr (a recordação do nome de Deus) a celebração do milad un-nabi (o aniversário do Profeta), sessões de mehfil (música devocional) e a celebração dos urs (aniversários da morte) de santos sufi. Estes componentes rituais refletem uma religiosidade que legitima o recurso à interseção de entidades espirituais (vivas ou mortas) como os santos, mestres sufis e principalmente o Profeta Muhammad, capazes de mediar a relação do homem com o divino. Nesta relação, frequentemente materializada em relações de mestre-discípulo no contexto de uma determinada tariqa (ordem sufi), os muçulmanos beneficiam do acesso a um poder espiritual (barakah) que emana de Deus e flui através de pessoas especialmente meritórias, que servem como canais de dispensação para essa presença divina.

  • 11 Um processo cismático equiparável ocorreu um ano depois no concelho de Odivelas, com um grupo de mu (...)

20A multiplicação de locais de culto islâmico no concelho de Almada passou assim a refletir, na própria cartografia religiosa do concelho, tensões doutrinais que estavam presentes no espaço colonial pelo menos desde os anos 1960 e que eram, elas próprias, reflexo de dinâmicas globais que estruturam o Islão de origem sul-asiática tanto no próprio subcontinente indiano como em toda a sua diáspora (Metcalf 1982, Tareen 2020).11

21No entanto, para esta nova mesquita de inspiração sufi, cuja prática religiosa depende do acesso a fontes de poder carismático, o caráter muito periférico de Portugal face aos centros de poder espiritual e institucional do sufismo levantou, desde logo, grandes problemas de sustentabilidade. Assim, a congregação e respetiva liderança criaram e reconfiguraram ligações a uma vasta rede global de recursos carismáticos – incluindo sheikh-s, líderes de ordens sufi e objetos sagrados portadores de barakah – que circulam regularmente pelo espaço transnacional islâmico de matriz sul-asiática. Este processo começou pelo estabelecimento de um vínculo institucional com a organização islâmica Spiritual Foundation, com sedes no Reino Unido e na Índia, entidade que representa uma das materializações institucionais da tariqa Ashrafiyah, e da qual a mesquita Al-Qadriyah passou a ser, formalmente, o ramo português.

22A mesquita Al-Qadriyah capitalizou também o novo afluxo de migração sul-asiática que, desde meados dos anos 1990, chegou a Portugal oriunda do Paquistão e de países europeus da diáspora paquistanesa. Esta nova vaga migratória, fundamentalmente relacionada com questões de acesso à cidadania europeia, trouxe a Portugal muitos cidadãos extracomunitários atraídos pelos períodos de legalização excepcionais promovidos pelas autoridades de imigração portuguesa ao longo das duas últimas décadas (Baganha, Marques & Góis 2009). Através de novos laços com as redes transnacionais paquistanesas, a mesquita começou a receber um crescente número de visitas de ulama, na’at khawan (recitadores de poesia devocional) e sheikh-s de ordens sufi diversas, que passaram a incluí-la nos roteiros das suas digressões pela diáspora paquistanesa na Europa; nesse contexto, desenvolveu uma colaboração regular com o Dawat-e-Islami, uma organização missionária oriunda do Paquistão e associada à tariqa Qadriyah, relação que, ao longo dos anos, se foi estreitando e conduziu, em 2019, ao estabelecimento formal de uma delegação portuguesa.

23As progressivas transformações na demografia desta congregação, com o envelhecimento das lideranças indo-moçambicanas acompanhado por um crescente número de muçulmanos oriundos do Paquistão, produziram dinâmicas que, por um lado, se podem considerar simbióticas: os líderes e “pioneiros” de ascendência indo-moçambicana asseguram uma continuidade pós-colonial que enquadra firmemente a mesquita no contexto de um Islão integrado e nativista, próximo da Comunidade Islâmica de Lisboa e dos habituais porta-vozes do Islão “português”, enquanto que os imigrantes paquistaneses rejuvenescem a congregação, vivificam o seu quotidiano ritual e mobilizam novas ligações a recursos carismáticos em trânsito nas redes transnacionais do Islão sufi. Por outro, esta bipolarização fez também emergir um conjunto de crispações relacionadas com a interação dos domínios religioso e político, com a vivência do Islão em contexto maioritário ou minoritário, e com a dicotomia entre um Islão nativo e um Islão imigrante.

24De facto, se o contributo dos paquistaneses é tido como indispensável para a orgânica da mesquita, a porosidade das fronteiras entre o poder religioso e político no Paquistão, onde a cúpula do Estado é regularmente disputada entre muçulmanos de orientação carismática, reunidos no movimento doutrinal barelwi, e de pendor escrituralista, associados à escola de pensamento deobandi (Hassan 1987, White 2012), é por vezes vista como pouco compatível com o discurso ostensivamente apolítico das lideranças indo-moçambicanas. Da mesma forma, as condições precárias – laborais e de cidadania, entre outras – implicam mobilidades frequentes mas com padrões pouco regulares, ditadas também por processos pouco previsíveis de reunificação familiar, o que contrasta com a mobilidade mais regular da componente indo-moçambicana da congregação, cuja circulação por Portugal, Moçambique e Inglaterra (principalmente a cidade de Leicester), obedece a padrões sazonais que acompanham dinâmicas familiares, laborais e religiosas.

25Em 2019, a congregação da mesquita Al-Qadriyah constituiu-se, por fim, enquanto associação, um projeto continuamente protelado durante os seus 23 anos de existência. A composição dos órgãos sociais da nova Associação Islâmica e Cultural da Margem Sul refletiu inequivocamente estas dinâmicas, sendo a Assembleia Geral constituída por alguns dos membros fundadores da mesquita – evocando o legado das raízes coloniais moçambicanas – e a Direção composta por dois jovens de nacionalidades portuguesa e moçambicana e um cidadão paquistanês – o que se encontra há mais tempo em Almada, para onde já trouxe a sua família e onde gere várias mercearias. Estas opções configuram, afinal, uma imagem idealizada, mais programática que efetiva, que as lideranças da mesquita Al-Qadriyah projetam para a sua congregação: um grupo de muçulmanos que preserva uma religiosidade de inspiração sufi com raízes na Índia, posteriormente moldada em Moçambique segundo a matriz “cultural” do Portugal Ultramarino, reformulada agora pelas novas gerações nascidas no período democrático, e onde os muçulmanos de outras origens – os que constroem o seu futuro em Portugal e delimitam claramente as esferas política e religiosa – estabelecem novas ligações a uma rede transnacional que conecta Almada com remotos centros de poder carismático islâmico.

Associação Voluntariado Noor Fatima

26Nos dias que sucederam à passagem do ciclone Idai por Moçambique, em 2019, deixando um rasto de destruição e caos, várias associações e ONG portuguesas iniciaram os preparativos para conduzir a ajuda humanitária que se tornava premente num país com tão poucas infraestruturas de base e recursos para resgatar populações isoladas e em desespero. Nos meios de comunicação portugueses, as imagens de cidades devastadas pelo vento e pela água, casas destruídas e telhados quase submersos onde se acantonavam pessoas à espera de um barco ou de um helicóptero que as salvasse, ecoavam as palavras de Didier Fassin (2010) sobre a razão humanitária, a rentabilização ideológica da desgraça alheia, tornando o acontecimento parte da nossa paisagem afectiva comum.

27Foi precisamente neste quadro que a associação Noor Fatima organizou uma recolha de donativos, mobilizada pela presidente, uma empresária de sucesso, muçulmana e portuguesa, que nasceu em Moçambique no período colonial. Para ela, que deixou a vida empresarial para se dedicar exclusivamente à associação, Moçambique “é a minha terra, tenho obrigação de ajudar, não posso não fazer nada”. A corrente de ajuda estendeu-se aos voluntários da associação através das mensagens num grupo de whatsapp, mobilizados a participar na doação de bens ou de donativos, que a presidente faria chegar localmente às mãos de pessoas concretas, e não a associações muito grandes onde, segundo nos disse, não se sabe onde o dinheiro vai parar ou se vai mesmo ajudar as pessoas “com necessidade”.

28Esta rede de ajudas, que neste caso é mobilizada para uma questão humanitária fora de Portugal mostra, por um lado, a profunda ligação que é mantida, através da memória, com um espaço geográfico específico da experiência colonial, mas também, a consolidação da Noor Fatima no espaço público português. Os argumentos que a presidente viabiliza para esta intervenção entrelaçam narrativas pessoais (a sua história de vida, a da sua família) e um dever e responsabilidade pelos outros (onde, as questões de classe social e de pertença à comunidade muçulmana estão presentes). Mas, o que é relevante para o argumento deste artigo é que a Noor Fatima emerge num campo amplo de instituições de solidariedade social que, em parte, não se distingue de outras associações que compõem a sociedade civil portuguesa.

29A Noor Fatima não é uma associação islâmica, ainda que muitos muçulmanos participem nas suas actividades. É uma organização sem fins lucrativos que intervém sobretudo junto das pessoas sem-abrigo, fornecendo, numa base diária, comida e bens de primeira necessidade (mas, como vimos, também com intervenções pontuais fora de Portugal). Ainda que a sua principal acção seja dirigida às pessoas sem-abrigo, existe um vasto leque de destinatários das suas acções, que surgem em função das redes nas quais a Noor Fatima se encontra inserida. Essas redes, fundamentais para o funcionamento de qualquer associação de solidariedade social na cidade de Lisboa, são constituídas por diversos intervenientes e actores, desde logo a administração local (a Câmara Municipal de Lisboa e as Juntas de Freguesia), outras associações (por exemplo, a Refood), restaurantes e empresas (que fornecem produtos alimentares ou refeições que são distribuídas pelos mais pobres), pessoas particulares (voluntários e beneméritos). Estas redes alargam o espectro de actuação da Noor Fatima, ao mesmo que tempo que asseguram uma constante movimentação de bens e de pessoas.

  • 12 Uma especialização profissional que foi identificada por Malheiros (1996), Batoréu (2007) e Bastos (...)

30Este projecto é garantido por um número variável de aproximadamente cem voluntários, entre os quais se encontram muçulmanos e não muçulmanos. A população muçulmana que participa nas actividades é de origem indo-moçambicana, ou seja, pertence ao grupo socialmente heterogéneo que se fixou em Portugal no período que se seguiu ao 25 de Abril de 1974. Alguns deles são jovens nascidos em Portugal depois desse período e partilham de um sentimento de pertença à sociedade portuguesa semelhante ao que foi identificado por Tiesler e Cairns (2007). Neste caso, manifesta-se pelo desejo de ser voluntário, de assumir uma responsabilidade em relação aos seus concidadãos. Vários líderes religiosos muçulmanos apoiam iniciativas da Noor Fatima e participam regularmente em eventos organizados pela mesma como, por exemplo, o Natal solidário, quando uma ceia é oferecida às pessoas sem-abrigo. Ainda que os voluntários muçulmanos sejam oriundos de estratos sociais e económicos diferentes, muitos deles são empresários e comerciantes,12 contribuindo financeiramente e com géneros (por vezes, com produtos vendidos pelas suas empresas) para as actividades da associação.

  • 13 O pagamento do zakat, por exemplo, só pode ter como destinatários muçulmanos. As outras formas de d (...)

31O ethos empresarial articula-se com uma concepção religiosa islâmica de caridade. A doutrina religiosa define que a riqueza pessoal não é proibida ou indesejável, mas uma dádiva divina. Consequentemente definiu mecanismos para assegurar uma certa redistribuição (Mittermaier 2013). O Islão preconiza vários modos de distribuição da riqueza, através da sadaqa, que é uma esmola voluntária, o lillah, que são donativos, o zakat, um imposto sobre a riqueza adquirida e que é um dos cinco pilares do islão, e o waqf, uma doação religiosa inalienável. Os destinatários, os modos de distribuição, as recompensas em termos religiosos, são variáveis e as mesquitas têm, frequentemente, comissões e sábios religiosos que aconselham as pessoas na prática da caridade e nas formas de canalizar o seu dinheiro e/ou bens.13

32A relação entre a economia, políticas neoliberais e a caridade em contextos maioritariamente muçulmanos tem sido analisada (Atia 2013, Kuran 2003, Mittermaier 2019), inclusivamente enquanto manutenção do status quo e como estratégia de aquisição de prestígio (Werbner 1985). A prática da caridade produz, no caso dos voluntários e dos beneméritos da Noor Fatima, um ethos empresarial islâmico, que se sustenta no sucesso e no estatuto social e económico pessoal e familiar, ao mesmo tempo que apela a alguma redistribuição. Curiosamente, em Portugal, esse ethos empresarial islâmico permite ainda o desenvolvimento de outra forma de estar, a do cidadão solidário e voluntário.

33A distribuição de comida às pessoas em situação de sem-abrigo e a outros beneficiários, muitas vezes através de centros paroquiais e mesquitas, por parte da Noor Fatima, é enquadrada por determinados argumentos éticos e morais, que podem sustentar-se em variadas tradições religiosas mas também em discursos humanistas que fundamentam o sujeito individual liberal, como o demonstra Kayikci (2020) para o caso das voluntárias muçulmanas na Bélgica ou Merriman (2018) para as ONG muçulmanas que actuam nos Estados Unidos. Em ambos os casos, as ONG e as voluntárias aproximam-se dos discursos mobilizados por diversos actores para legitimar a sua intervenção na esfera pública. Reforçam, assim, os valores dominantes que conduziram à existência da chamada sociedade civil nessas sociedades e, consequentemente, à expressão do “Islão público” em contextos onde é uma tradição religiosa minoritária.

  • 14 Ver, por exemplo Muehelebach (2012), que analisa estas transformações em Itália.

34Em Portugal, as acções de voluntariado podem ser pensadas num quadro mais amplo de transformação do Estado, que atribui uma parte considerável da intervenção social a associações e instituições privadas, muitas delas religiosas, e que têm a seu cargo a gestão de populações economicamente vulneráveis. Estas colaborações criam uma geografia do cuidar que responde, até certo ponto, às reconfigurações do Estado assentes numa diminuição das formas de protecção social e que seriam a fonte de uma cidadania ética, neoliberal e assente no voluntariado.14

35A Associação Noor Fatima emerge num espaço mais amplo de intervenção social, onde várias associações e instituições públicas e privadas actuam. É esse espaço que permite aos muçulmanos intervir independentemente da sua pertença religiosa, afirmando assim a sua plena inserção na sociedade portuguesa. As intervenções realizadas por voluntários e beneméritos de vários quadrantes sociais, económicos e religiosos, assim como a diversidade de beneficiários das suas acções, exemplificam o modo como os muçulmanos de origem indo-moçambicana conquistaram um lugar privilegiado no espaço público português, que é decorrente das negociações que foram encabeçadas pelos seus líderes no período colonial e pós-colonial. A recusa de uma situação de exterioridade ou de minoria (Vakil 2004) no contexto nacional contribuiu para que a Noor Fatima seja uma associação que não tem por objectivo encabeçar reivindicações identitárias (religiosas ou étnicas) mas sim intervenções como as que descrevemos.

36É precisamente por intermédio de uma associação da sociedade civil (e não, através de uma instituição religiosa, como seria a mesquita) e pelas acções dirigidas para beneficiários não-muçulmanos que a Noor Fatima adquiriu uma importância tão grande para os muçulmanos de origem indo-moçambicana. A associação permite a articulação simbólica entre uma prática religiosa – a caridade – e a intervenção cívica e, por isso, está claramente inscrita nas lógicas que estruturam a participação no espaço público português.

O projecto da Praça da Mouraria

37Um terceiro exemplo é o atual projeto de construção da praça da Mouraria, entre a rua da Palma e a rua do Benformoso, no centro da cidade de Lisboa. Este projecto de renovação urbanística, desenhado pela arquiteta Inês Lobo, incluirá também uma mesquita e um centro religioso/cultural, mesquita essa que já existe naquela zona desde 2002. Este é o resultado de dez anos de negociações entre o Centro Islâmico do Bangladesh e a Câmara Municipal de Lisboa (CML), com vista à construção de um espaço de culto que permita fazer face ao crescente número de crentes que ali acorrem semanalmente.

38A CIB é uma associação ligada à imigração do Bangladesh para Portugal, imigração essa que começa em final dos anos 80 do século XX e se sedimenta ao longo das três décadas seguintes. Em 2002, a presença de várias famílias e negócios Bangladeshis na zona da Mouraria implicou a abertura de um lugar de culto que mais tarde se transformou na mesquita Baitul Mukarram. O objetivo era ter um espaço de oração relativamente perto dos locais de trabalho e das zonas de residência. Esta mesquita viu a sua congregação crescer e diversificar-se nos últimos anos, com base em diversas origens nacionais, linguísticas, etc. Essa transformação e crescimento é bem visível nas duas orações anuais que ocorrem na praça do Martim Moniz, por alturas do id-ul-fitr e do id-ul-adha. Na última celebração que ali se realizou, e segundo as estimativas dos organizadores, eram perto de quatro mil pessoas. Esta solução, de fazer as duas orações anuais na praça, começou em 2009 em estrita articulação com a CML, para fazer face à grande afluência, incomportável para o espaço actual.

39A mesquita Baitul Mukarram que será transferida para a nova praça da Mouraria está, portanto, ligada a uma congregação específica – oriunda do Bangladesh – e a um Islão onde convivem argumentos revivalistas de inspiração no Tablighi Jamaat mas também posições barelwi, ou seja, doutrinariamente próximas de visões de intersecção associadas a cultos sufi, com ligações a vários mazaars no Bangladesh e a outros movimentos transnacionais (uma ideia de Islão liberal que favorece a convivência de vários argumentos).

  • 15 O movimento doutrinal deobandi, que segue uma orientação escrituralista, considera que o Alcorão e (...)

40Aqui e contrariamente ao que ocorre noutros contextos em Lisboa e em Portugal, a tensão não é entre deobandis e barelwis15 mas sim entre a esquerda secular e movimentos conservadores no contexto do “nacionalismo de longa distância” (Anderson 1998). Foi precisamente esta tensão que levou à criação de uma segunda sala de orações naquela zona.

41A transferência desta mesquita para a nova praça da Mouraria pretende fazer face não apenas a necessidades logísticas prementes, como aliás os seus responsáveis têm enfatizado, mas também representa a emergência de outras vozes e projectos no âmbito de um “Islão público” Português e em Portugal. O acordo celebrado entre a CIB e a CML é, portanto, o reconhecimento da importância destes segmentos, por parte do estado local, na transformação da cidade de Lisboa nas últimas décadas. Simultaneamente, para a CML, a praça da Mouraria (como aliás o museu judaico em Alfama) é um projecto estratégico para aquela zona da cidade não apenas no âmbito de uma cidade religiosa e culturalmente inclusiva e diversa, mas também num momento em que a pressão turística e gentrificadora é crescente.

42Um outro aspecto a mencionar aqui é que a praça representa a celebração de um património associado à importância e ao papel histórico dos muçulmanos, da Mouraria, e do Islão, na história da cidade Lisboa (entre os séculos XII e XV). Em suma, cruzam-se aqui, portanto, vários discursos onde a religião aparece simultaneamente como prática, mas também como património (Astor, Griera & Burckardt 2017).

43Finalmente, este projeto tem vindo a suscitar, em momentos distintos e com intensidades diversas, múltiplas contestações. Os argumentos contra mobilizam um conjunto de tropos que conhecemos bem de outros contextos na Europa contemporânea sempre que se discute a criação de mesquitas (Cesari 2004, Arab 2017, Verkaik & Arab 2017, inter alia), tais como o secularismo e a laicidade do estado e os riscos de guetização e de auto-segregação. Um dos elementos discursivos mobilizados contra o projecto é também a legitimidade dos actores que vão gerir a mesquita na nova praça. Afinal estes não são, e citamos, “os nossos muçulmanos”, “aqueles que conhecemos desde Moçambique colonial” e que “as nossas famílias já conheciam”, como expressos por alguns actores em debates no espaço público. A consequência, esperada ou inesperada, destes argumentos é a produção de alguns segmentos muçulmanos como “estrangeiros” e “desconhecidos”, que são frequentemente vistos como um risco securitário crescente. Em certa medida, a contestação à presença da mesquita Baitul Mukarram na nova praça da Mouraria produz um discurso nativista, assente numa dicotomia entre estabelecidos e estrangeiros (fazendo lembrar o famoso título de Elias e Scotson 1994), representando estes últimos um conjunto de pânicos morais.

Notas conclusivas

44Estes três exemplos etnográficos configuram a realidade actual do Islão em Portugal e estabelecem, desde logo, várias conexões e desconexões com o passado colonial. Mostram que as fronteiras pós-imperiais reflectem complexidades do Islão na lusotopia e a sua influência na criação de diferentes geografias e temporalidades dos sujeitos muçulmanos na contemporaneidade. Estas dinâmicas são animadas por processos e redes globais que têm diferentes configurações e que exibem uma disputa por posições de poder e de autoridade assentes na antiguidade, em relações historicamente privilegiadas, mas também, reclamadas através de um espaço público que se define como plural. Este é o caso do Centro Islâmico do Bangladesh que reivindica a possibilidade de transferência/construção de uma mesquita no centro da cidade de Lisboa após vários anos de negociações com as autoridades locais. Esta reivindicação é, aliás, parte do desejo de reconhecimento deste actor institucional e respetivas lideranças no panorama do “Islão público” português.

45Nos casos da Associação Islâmica e Cultural da Margem Sul e da Noor Fatima é possível analisar estes processos de afirmação no espaço público através de outras perspectivas. Na Noor Fatima, os muçulmanos de origem indo-moçambicana aderem a este projecto de intervenção e solidariedade social, onde concepções religiosas se articulam com pertenças e sentidos para a acção que são mais vastos, entre os quais um dever cívico e social. Tal permite questionar uma perspectiva intelectual que prioriza as motivações e o ethos religioso como o mais relevante nas escolhas e decisões dos muçulmanos. Também possibilita enquadrar o sentido religioso ou ético das suas acções, que é importante noutros processos de sociabilidade comunitária, redes pessoais, de parentesco, profissionais e de afinidades, que merecem ser igualmente estudadas. Esta associação mostra assim os frutos do investimento da Comunidade Islâmica de Lisboa e dos governantes políticos numa ideia de excepcionalidade do caso português, sobretudo quando comparado com outros países europeus.

46No que respeita à Associação Islâmica e Cultural da Margem Sul, o encontro no mesmo local de culto de muçulmanos portugueses de origem indo-moçambicana e muçulmanos paquistaneses produz dinâmicas, ora tensionais ora colaborativas, que se refletem em diversas esferas sociais e em públicos de muito diversas amplitudes. Por um lado, materializam-se numa reivindicação de um lugar no espaço público do Islão em Portugal, procurando a restauração de um equilíbrio com as sensibilidades islâmicas escrituralistas que, para estes muçulmanos, monopolizam de forma desproporcional o “Islão visível” no país. Por outro, são condição indispensável para a sustentabilidade interna da mesquita, cuja orgânica depende do enraizamento nas lógicas locais dos indo-moçambicanos, mas também do voluntarismo e rejuvenescimento trazidos pelos imigrantes do Paquistão. Finalmente, permite que esta congregação encontre lugar num espaço transnacional do Islão sufi/carismático, uma rede global de circulação de barakah que tanto integra afinidades com confrarias em Moçambique, como abarca circuitos mais recentes de missionação barelwi originários do subcontinente indiano e em rápida expansão pela Europa.

47Em suma, a contemporânea complexidade das paisagens islâmicas em Portugal relaciona-se com distintas mobilidades que estão associadas por um lado, a “legados coloniais” e “formações pós-imperiais” e por outro ao reposicionamento da sociedade portuguesa face aos fluxos migratórios globais. A percepção de tais transformações e dinâmicas históricas, a circulação global de vários pânicos morais em torno dos muçulmanos e as ideias reificadas de um excepcionalismo português são manuseadas no espaço público, parecendo criar, ao nível das políticas de reconhecimento, centralidades e margens. Os três estudos de caso abordados neste artigo indiciam precisamente estas ambiguidades no campo do “Islão público” na sociedade portuguesa.

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Notes

1 Utilizamos o conceito de “Islão público” tal como é proposto por Armando Salvatore e Dale Eickelman (2004), no sentido da sua invocação em vários debates cívicos que ocorrem na esfera pública. Na perspectiva dos autores, o Islão não se circunscreve ao universo estritamente religioso, mas é convocado por diversos actores e entidades para reconfigurar a vida social e política, em contextos em que é uma tradição religiosa maioritária ou minoritária.

2 Ver o estudo de Macagno (2006) que analisa o lugar dos muçulmanos no luso-tropicalismo colonial.

3 Uma recolha exaustiva sobre as representações dos muçulmanos em Portugal nos meios de comunicação ainda está por fazer. No entanto, algumas notícias demonstram as narrativas que são mobilizadas tanto pelos representantes das instituições islâmicas como pelos líderes políticos (ver, por exemplo, Petiz 2017 e Ramalho 2018). Petiz, J., 2017, “Aqui não há Islamofobia, Portugal é um paraíso, deviamos orgulhar-nos. Almoço com Abdool Vakill”, Diário de Notícias, 11 de Fevereiro de 2017, acedido no dia 3 Setembro 2020, https://www.dn.pt/sociedade/aqui-nao-ha-islamofobia-portugal-e-um-paraiso-deviamos-orgulhar-nos-5661240.html; Ramalho, N., 2018, “Marcelo: ‘Alma árabe é o fundo da alma portuguesa’ ”, Expresso, 16 de Março de 2018, acedido a 3 de Setembro de 2020, https://expresso.pt/politica/2018-03-16-Marcelo-Alma-arabe-e-o-fundo-da-alma-portuguesa.

4 Ver Araújo 2019 para uma análise da Islamofobia em Portugal.

5 Usamos aqui politicas de reconhecimento no sentido proposto por Charles Taylor (1994), isto é, como estratégia através da qual argumentos identitários procuram reconhecimento na esfera pública.

6 (AML): A Área Metropolitana de Lisboa é uma área metropolitana que engloba 18 municípios, dividindo-se em duas áreas principais, a Península de Lisboa (AML Norte) e a Península de Setúbal (AML Sul). É a área metropolitana mais populosa do país (NUTS III), com 2 821 876 habitantes (segundo o censo de 2011), e a segunda região mais populosa (NUTS II), a seguir à Região do Norte.

7 Na região da AML existem atualmente entre 30 a 40 mesquitas e lugares de culto islâmicos, sendo na sua quase totalidade espaços adaptados de estruturas pré-existentes, principalmente garagens e lojas. A Mesquita Central de Lisboa é uma das duas mesquitas construídas propositadamente para o efeito, estando nela sediada a Comunidade Islâmica de Lisboa, organização que representa os muçulmanos sunitas. O Islão sunita é claramente maioritário na região da AML, como no resto do país, contando com várias associações que, a nível local, materializam expressões demográficas mais significativas da população muçulmana (Laranjeiro, Odivelas ou Tapada das Mercês, por exemplo). Em termos doutrinais, a maior parte dos locais de culto sunitas está mais próxima de movimentos escrituralistas como o deobandi, contando-se apenas quatro mesquitas alinhadas com o movimento barelwi. A este respeito, a Mesquita Central de Lisboa, assume uma posição equidistante. No que concerne às ordens sufi (turuq), a confraria Mouride é a única que possui local de culto próprio. Já o xiismo está principalmente representado na sua vertente septimana, Ismaili Nizari, com a Comunidade Muçulmana Shia Imami Ismaili de Portugal sedeada no Centro Ismaili, em Lisboa, e congre-gando cerca de 7 a 8 mil crentes. O Centro Ismaili conta com a segunda mesquita construída de raiz em Portugal continental (inaug. 1998). A capital portuguesa é também, desde 2015, a sede mundial do Imamat Ismaili, a entidade supranacional que representa a sucessão dos Imãs para os muçulmanos ismaelitas. A outra vertente do xiismo, o duodecimano, conta com duas centenas de crentes organizados na Comunidade Xiita de Portugal, com sede em Almada. O dinamismo da região da AML no panorama do Islão em Portugal é ainda sublinhado pela existência nesta região dos 3 cemitérios com talhões islâmicos do país (Feijó, Odivelas e Lumiar), da principal instituição de ensino islâmico em Portugal, o International School of Palmela, e do Instituto Halal de Portugal, encarregue da certificação dos produtos halal para consumo em território nacional.

8 Sobre os muçulmanos ismaelitas em Portugal e em contexto africano ver S. Bastos (2006) e Trovão e Batoréu (2017).

9 Algumas famílias Portuguesas – Bangladeshis têm remigrado para vários países europeus (Reino Unido, Suíça e França), especialmente após a implementação das políticas de austeridade (Mapril no prelo).

10 O último recenseamento do INE (2011) indica apenas 568 muçulmanos no concelho de Almada. Em 2019, estimativas de membros da comunidade islâmica local apontam para entre 1000 a 5000 muçulmanos residentes no município.

11 Um processo cismático equiparável ocorreu um ano depois no concelho de Odivelas, com um grupo de muçulmanos a abandonar a mesquita Aisha Siddika (inaug. 1983) para fundar uma pequena mesquita de inspiração sufi, a mesquita Al-Gausiyah (inaug. 1997), a poucas centenas de metros da primeira.

12 Uma especialização profissional que foi identificada por Malheiros (1996), Batoréu (2007) e Bastos (2005) e que também foi encontrada entre os voluntários ou beneméritos da associação Noor Fatima.

13 O pagamento do zakat, por exemplo, só pode ter como destinatários muçulmanos. As outras formas de dádiva podem incluir destinatários muçulmanos ou não muçulmanos.

14 Ver, por exemplo Muehelebach (2012), que analisa estas transformações em Itália.

15 O movimento doutrinal deobandi, que segue uma orientação escrituralista, considera que o Alcorão e os hádices são os fundamentos essenciais do conhecimento religioso, dos quais toda a ortodoxia islâmica deve derivar; já o movimento barelwi legitima práticas e conhecimentos transmitidos ao longo de gerações e de mestre a discípulo, incluindo diversos elementos rituais e doutrinais associados ao sufismo. A tensão entre estas duas escolas de pensamento, com graus variáveis de crispação e conflito, é uma das dinâmicas mais estruturantes do Islão de origem sul-asiática, tanto no subcontinente indiano como na sua diáspora.

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Pour citer cet article

Référence papier

José Mapril, Raquel Carvalheira et Pedro Soares, « Paisagens islâmicas na Área Metropolitana de Lisboa: (pós)colonialismo e políticas de reconhecimento »Lusotopie, XIX(2) | 2020, 157-180.

Référence électronique

José Mapril, Raquel Carvalheira et Pedro Soares, « Paisagens islâmicas na Área Metropolitana de Lisboa: (pós)colonialismo e políticas de reconhecimento »Lusotopie [En ligne], XIX(2) | 2020, mis en ligne le 01 décembre 2022, consulté le 17 janvier 2025. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lusotopie/5570 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.1163/17683084-12341759

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Auteurs

José Mapril

Centro em Rede de Investigação em Antropologia, Departamento de Antropologia, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Portugal jmapril[at]fcsh.unl.pt

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    Paru dans Lusotopie, XIV(1) | 2007

Raquel Carvalheira

Centro em Rede de Investigação em Antropologia, Departamento de Antropologia, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Portugal raquelcarvalheira[at]gmail.com

Pedro Soares

Centro em Rede de Investigação em Antropologia, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Portugal pestanasoares[at]gmail.com

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