1“O extraordinário sobre os monumentos é que você não os percebe. Não há nada neste mundo tão invisível como um monumento”, diagnostica clinicamente o escritor austríaco Roberto Musil em 1927. Se esta afirmação parecia confirmada pela relativa invisibilidade em que os monumentos submergiram em todo o século xx – ou mesmo pela dificuldade de se produzir novos monumentos em sentido estrito, como apontava Françoise Choay (2001), historiadora da arquitetura e do urbanismo, o século xxi recoloca-os violentamente no centro do debate público. O fato é que o conflito de valores, subjacente a toda escolha patrimonial, emerge com força inusitada desde a virada do século, tornando inescapável a explicitação e o questionamento das escolhas que levaram à construção de marcos públicos comemorativos.
2Em junho de 2020, um mundo já convulsionado pela pandemia causada pelo Covid-19, com uma paralisação inédita das atividades produtivas1, assiste a gigantescos protestos promovidos pelo movimento internacional “Black Lives Matter”2, aos quais se associam, por toda parte, a derrubada e a destruição de estátuas e monumentos de personagens associados à escravidão, ao colonialismo e ao racismo. Cristóvão Colombo, o “descobridor” da América, foi um dos primeiros alvos dos manifestantes, sendo sua estátua decapitada na noite do dia 9 de junho, em Boston, Estados Unidos. Os gestos contra os símbolos do colonialismo se repetiram: em 11 de junho, na cidade inglesa de Bristol, a estátua de Edward Colston, traficante de escravos, foi derrubada e jogada no rio; no mesmo dia, um monumento ao padre Antônio Vieira, que se localizava no Largo Trindade, em Lisboa, Portugal, foi atacado, sendo a palavra “descoloniza” pintada em seu pedestal, enquanto “a boca, mãos e hábito do clérigo foram tingidas de vermelho e no peito das crianças indígenas que estão representadas à sua volta foi pintado um coração”3. Do outro lado do Atlântico, em setembro, grupos indígenas da comunidade Misak, na cidade de Popayán, Colômbia, tombaram a estátua equestre de um colonizador espanhol, Sebastián de Belalcázar, argumentando que ele cometera crimes como genocídio e expropriação de terras de povos que habitavam a região4. Os governos também se moveram, reagindo de formas variada às manifestações: enquanto os dirigentes de Lisboa e o de Popoyan se apressaram em defender as estátuas contestadas, o presidente da câmara de Antuérpia, na Bélgica, Koen Palinckx, declara ser bastante provável que não se recoloque no lugar uma estátua do Rei Leopoldo II, conhecido pelas atrocidades cometidas no Congo, que se retirara para limpeza e restauração, e o prefeito de Londres, Sadi Khan, cria uma comissão para avaliar a diversidade e a pertinência dos monumentos nos espaços públicos da capital britânica.
- 5 Samuels (2015) faz uma interessante discussão entre os diversos termos utilizados para se referir a (...)
3Esse clima de contestação radical em relação aos monumentos, que culmina com a supressão de alguns deles, vem nos lembrar que o campo do patrimônio é sempre marcado intrinsecamente pelo conflito – existente e potencial – entre interesses e valores distintos, representados por diferentes sujeitos. O patrimônio envolve, como sabemos, um processo contínuo de negociação e releitura dos significados que o presente recupera do passado. Numa era como a nossa, caracterizada pelo antagonismo radicalizado entre narrativas sobre a história e a memória, não é de se estranhar que essa negociação não seja fácil, ganhando mesmo formas altamente competitivas e virulentas. A expressão “patrimônio dissonante”, cunhada por Tunbridge e Ashworth (1996) para se referir aos patrimônios que incluem uma discordância entre diferentes histórias e uma falta de concordância na forma como o passado é representado e as memórias usadas na esfera pública, parece-nos servir bem para sublinhar esse caráter conflitivo presente em nosso tempo. Essa ênfase nos conflitos e nas desarmonias – mais que na harmonia e na identidade compartilhada – tem ensejado uma rica discussão teórica em todo o mundo, colocando em pauta questões como as do pertencimento do patrimônio, da sua comercialização e acessibilidade, do apagamento das memórias traumáticas, da herança colonial, do imperialismo, da exclusão social baseada em classe e etnia, entre outras5.
4Para discutir esse caráter dissonante de todo patrimônio, que se manifesta com força nas contestações que hoje se fazem aos monumentos ligados a memórias difíceis, este artigo escolhe uma dupla perspectiva. Em primeiro lugar, nos deteremos sobre uma importante chave de leitura fornecida pelo texto O Culto Moderno dos Monumentos, do teórico austríaco Alois Riegl, que, já no início do século xx, traça uma distinção seminal entre dois tipos de monumentos – o “monumento intencionado” e o “monumento não intencionado” –, mostrando como esses estariam sujeitos a diferentes regimes de temporalidade. Em seguida, vamos centrar nossa análise nos acontecimentos recentes na América Latina, território convulsionado na última década por uma intensa crise social-econômica e política, onde a intensificação de antagonismos já existentes termina por recolocar os monumentos no turbilhão da história, retirando-os de sua invisibilidade, ao ressignificá-los, vandalizá-los ou mesmo destrui-los. Como um estudo de caso, vamos tomar os eventos no Chile, onde, já em 2019, se inicia um conjunto de protestos de estudantes, trabalhadores e organizações, que reclamavam por uma condição de vida mais digna, justa e igualitária, e que vai ter nos monumentos um dos seus alvos, registrando-se o impressionante número de 1 353 monumentos danificados entre outubro de 2019 e fevereiro de 2020. Ao se procurar completar o longo processo de transição para a democracia através de imensas manifestações e ações diretas que se multiplicam por todo o país latino-americano, o caso chileno nos aponta com clareza como o passado – tanto aquele mais remoto, quanto aquele ligado ao recente regime ditatorial – estava intrinsecamente imbricado com o presente, e poderia ser decisivo para a constituição de um futuro diferente.
- 6 A Escola de Viena de História da Arte compreende um conjunto de pensadores, entre os quais se desta (...)
5Se se tem que esperar a Carta de Burra, o pós-modernismo e o relativismo cultural do final do século xx para que a ideia da pluralidade dos valores em jogo nas escolhas patrimoniais ganhe uma maior centralidade na área da conservação, pode-nos causar espanto encontrar um pensador que constrói uma teoria crítica dos valores no patrimônio já no início do século passado, afastando-se de qualquer perspectiva dogmática em relação aos bens culturais e oferecendo-nos uma matriz que dialoga bem com a teoria contemporânea da conservação e que, ainda hoje, ajuda a iluminar certos dilemas da área. Trata-se do austríaco Alois Riegl (1858-1905), historiador da arte, um dos fundadores da chamada “Escola de Viena”6 e presidente, a partir de 1902, da Comissão de Monumentos Históricos do Império Austro-Húngaro. De sua autoria é o texto “O Culto Moderno dos Monumentos: essência e gênese”, publicado em 1903 como parte de um amplo “Projeto de organização legal para o serviço de patrimônio na Áustria” (“Entwurf einer gesetzlichen Organizationskonzeptes für die staatliche Denkmalpflege in Österreich”), no qual o historiador, ao encarar a tarefa de criar uma legislação de preservação para um império multilíngue e multicultural, tem que realizar uma profunda reflexão teórica que ultrapassa as aporias em que a doutrina da conservação desembocara no final do século xix. O Culto Moderno é o texto- manifesto, que, nas palavras de Sandro Scarrocchia, “funda a conservação como disciplina autônoma, situada definitivamente além dos horizontes e dos estatutos próprios da história da arte e da teoria e da prática do restauro”.
6Em nosso caso, para analisarmos a contestação aos monumentos desencadeada com muita força no início do século xxi, parece-nos apropriado começar por uma distinção proposta por Riegl em seu texto seminal entre dois tipos de monumentos: o “monumento intencionado”, realizado com a finalidade de comemorar um evento ou um personagem, e o “monumento não intencionado” ou “monumento histórico e artístico”, que seria um objeto realizado inicialmente com outra função e ao qual, posteriormente, se atribuiria valor histórico e/ou artístico.
- 7 Le Goff nos ensina que a palavra latina monumentum remete à raiz indo-europeia men, que exprimiria (...)
- 8 O termo parece ter surgido no alemão no século XVI, cunhado por Lutero como uma tradução do latim m (...)
7Françoise Choay, em A Alegoria do Patrimônio, ao analisar o significado de “monumento”, chama a atenção para o sentido original do termo em latim, monumentum, que viria de monere (“advertir”, “lembrar”), “aquilo que traz à lembrança alguma coisa” (Choay 2001: 17-18)7, significado também encontrável no termo alemão Denkmal, que parece nos fazer um apelo a pensar em algo, a lembrar de algo8. A historiadora francesa aponta, assim, o caráter inescapavelmente “afetivo” desse tipo de monumento, cujo propósito não seria o de apresentar uma “informação neutra”, mas o de tocar “pela emoção” “uma memória viva”:
A especificidade do monumento deve-se precisamente ao seu modo de atuação sobre a memória. Não apenas ele a trabalha e a mobiliza pela mediação da afetividade, de forma que lembre o passado fazendo-o vibrar como se fosse presente. Mas esse passado invocado, convocado, de certa forma encantado, não é um passado qualquer: ele é localizado e selecionado para fins vitais, na medida em que pode, de forma direta, contribuir para manter e preservar a identidade de uma comunidade étnica ou religiosa, nacional, tribal ou familiar. (Choay 2001: 18)
- 9 “O monumento assegura, acalma, tranquiliza, conjurado o ser do tempo. Ele constitui uma garantia da (...)
- 10 Segundo Jacques Le Goff, desde a antiguidade romana, o monumentum tenderia a se especializar em doi (...)
8Neste sentido, tanto para aqueles que o erigiriam quanto para os que o manteriam, o monumento, em seu sentido original, seria uma defesa contra “o trauma da existência”, uma espécie de “dispositivo de segurança”. Túmulo, templo, coluna, arco do triunfo, estela, obelisco, tótem, seriam formas de se lidar com a angústia humana frente à perecibilidade e à morte9. Com esta afirmação, que se baseia, no fundo, numa leitura do texto de Alois Riegl, se percebe que o monumento, “no sentido mais antigo e mais original do termo” seria uma espécie de “universal cultural”, constituindo sua relação com o tempo vivido e com a memória a sua “função antropológica”, a sua própria essência. Assim, o monumento, em seu sentido lato, apareceria em “todos os continentes e em praticamente todas as sociedades, dotadas ou não de escrita”10 (ibid.: 18).
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- 13 Françoise Choay (2001) anota que, apesar da expressão “monumento histórico” só ter entrado nos dici (...)
9Apesar de onipresente, esse tipo mais antigo de monumento não teria mais um lugar de destaque em nossos dias, seguindo apenas uma “carreira formal e insignificante”: “O monumento simbólico erigido para fins de rememoração está praticamente fora de uso em nossas sociedades desenvolvidas; o entusiasmo por este foi transferido para os monumentos históricos, à medida em que se desenvolviam técnicas mnemônicas mais eficientes.” (ibid.: 23) De fato, como já chamava a atenção Riegl no início do século xx, embora a humanidade não tivesse deixado de produzir esses monumentos intencionados11, não seria mesmo a eles que a “sociedade moderna” se referiria quando se utilizava do termo “monumento”, mas sim aos “monumentos históricos e artísticos”, monumentos “não intencionados”, nos quais “o sentido e o significado” não vêm “das obras mesmas, da sua destinação original”, “mas somos nós, sujeitos modernos, que os atribuímos a elas” (Riegl 2022: 9). Aqui aparece com clareza aquele que Sandro Scarrocchia, chamaria de “princípio fundamental” de “O Culto moderno dos Monumentos”: o reconhecimento da “função cooperativa que o sujeito da fruição desempenha no âmbito do processo de valorização do patrimônio”12, ao atribuir valor aos monumentos. Surgem, assim, os “monumentos históricos e artísticos” (Kunst- und historischen Denkmale), expressão oficial na Áustria daquele período e que Riegl considerava “plenamente justificada de acordo com as concepções vigentes do século xvi ao xix”13. Diferentemente do “monumento”, de validade quase universal, o “monumento histórico e artístico” seria, a seu ver, uma invenção ocidental, cujas origens podiam ser traçadas na Renascença italiana do século xvi, quando começam então a se valorizar “de modo novo” os monumentos da Antiguidade,
porém não mais unicamente pelo seu valor de rememoração patriótico do poder e da glória do antigo Império, transmitidos por eles, aos quais o romano da Idade Média, numa ficção cheia de fantasia, atribuía uma existência real ou apenas um eclipse provisório, mas por seu “valor histórico e artístico”. (Riegl 2022: XIII)
10Segundo Thordis Arrhenius, no interessante ensaio “The fragile monument. Alois Riegl’s Theory of Conservation”, o conceito de “monumento não intencionado” de Riegl introduz uma lógica radicalmente diferente daquela dos “monumentos intencionados”: onde esses sempre procuram suprimir a “perda” (loss) por meio da articulação de um triunfo ou de um martírio, os “monumentos não intencionados” deixam a perda no centro do seu próprio significado, que deve ser sempre preenchido de novo por cada época (Arrhenius 2003: 52). Arrhenius chama a atenção, com isso, para o fato de que se ambos os tipos de monumentos, intencionados e não intencionados, seriam caracterizados por um “valor comemorativo”, este se apresenta, no entanto, de forma diferenciada em cada um dos casos. Assim, enquanto o valor do monumento intencionado é sempre condicionado pelos seus criadores – o monumento é cuidado por quanto tempo a pessoa ou evento que comemora ainda é lembrado –, o valor do monumento não intencionado é sempre relativo e, como aponta Riegl, deixado para nossa própria definição: “[...] a denominação de ‘monumento’ que costumamos dar a essas obras não podem ser compreendidas no sentido objetivo, mas apenas no sentido subjetivo”, afirma de forma peremptória.
11Aqui fica claro como a origem do valor dos monumentos é distinta nos dois casos: enquanto no primeiro, “o valor de rememoração nos é imposto por outros (os criadores do passado)”, no segundo, “nós o determinamos nós mesmos”, explica o autor. Esta observação é fundamental, pois denota uma distinção importante entre o monumento intencionado e o não intencionado: enquanto o primeiro aparece como um fenômeno transhistórico e quase onipresente, o monumento não intencionado constitui uma invenção datada do Ocidente, cuja origem Riegl faz remontar ao Renascimento italiano. As consequências dessa distinção também se fazem sentir na maneira de se conservar os monumentos: enquanto o monumento é cuidado por quanto tempo a pessoa ou evento que comemora ainda é lembrado, o “monumento histórico e artístico” demandaria políticas de preservação para ser preservado. Não é de se estranhar, portanto, que Riegl tenha identificado também no reconhecimento do “monumento histórico e artístico” a origem das políticas de patrimônio:
É muito significativo que a mesma época que descobriu o “valor histórico e artístico” dos monumentos, pelo menos daqueles da Antiguidade, tenha sido também aquela que editou as primeiras medidas de proteção dos monumentos (particularmente importante é o brevê de Paulo III, de 28 de novembro de 1534); como a legislação tradicional não conhecera uma proteção aos monumentos não intencionados, imediatamente se viu a necessidade de se cercar esses valores recentemente descobertos também de medidas especiais de proteção. (Riegl 2022: XIV)
12Com isso, fica claro que estamos lidando com dois regimes diferentes de temporalidade: enquanto o “monumento”, por se constituir através de um ato de asserção de um sujeito, que quer comemorar um evento ou personagem, se inscreve no seio do tempo e da história e pode ser tocado por ela, o “monumento histórico e artístico”, reconhecido a posteriori, postula uma posição atemporal, fora do fluxo da histórica e de suas inevitáveis oscilações de humor. É como explica, lapidarmente Françoise Choay:
Essa relação diferente com o tempo faz diferença no tocante à conservação: os monumentos são, de modo permanente, expostos às afrontas do tempo vivido, podendo ser esquecido e abandonado; já o monumento histórico, por estar inserido em um lugar imutável e definitivo num conjunto objetivado e fixado pelo saber, exige uma conservação incondicional. (Choay 2001: 26)
13Esta vai ser, então, a diferença fundante que devemos evocar ao analisar os recentes ataques aos monumentos em todo o mundo e na América Latina, percebendo que, além do seu lugar aparentemente protegido das vicissitudes da história garantido pelo seu estatuto de “monumento histórico e artístico”, os monumentos comemorativos ou intencionados inscrevem-se, de fato, no calor dos acontecimentos e estão “expostos às afrontas do tempo”.
14Assim, para entendermos as manifestações anti-monumentos na América Latina do século xxi, parece-nos importante localizar os acontecimentos, que, já em meados dos anos 2010, apontavam para a irrupção ali de uma forte crise social e política, depois de mais de uma década de relativa estabilidade. De fato, nosso continente, cuja história tem sido marcada por uma instabilidade crônica e ataques recorrentes à democracia, experimentara desde o início dos anos 2000 um período estável, com sucessivos governos eleitos e com um relativo sucesso econômico. No início da década de 2010, os fantasmas dos golpes políticos pareciam afastados de vez no continente, com a redemocratização que vinha em curso desde os anos 1980 aparentemente consolidada, com a realização de seguidas eleições e a sucessão pacífica no poder de diferentes grupos. Naquele momento parecia também que, junto ao crescimento econômico, finalmente estávamos alcançando uma situação social mais justa e um grau de desenvolvimento mais elevado e, mais importante, sustentável.
- 14 “Em linhas gerais, esse período se caracterizou não apenas pela melhoria na conta corrente, mas tam (...)
15Neste sentido, um relatório da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina) de 2011 apontava que, apesar de se manter “a rigidez das brechas produtivas e a pouca mobilidade desde os setores de baixa produtividade em grupos específicos”, estariam diminuindo a pobreza e a desigualdade na região, sendo as principais causas disso “em primeiro lugar, o incremento nos rendimentos do trabalho e, em segundo, o aumento das transferências públicas aos setores mais vulneráveis” (NU.CEPAL, 2011). Chama a atenção aqui a diminuição do índice Gini, que mede a desigualdade, que decresce 1,5 % anuais em média na região entre 2002 e 2008 (CEPAL, 2018). Também é notável que, particularmente entre 2003 e 2008, a região experimentara um crescimento, que por sua intensidade, duração e características, não tinha precedentes na sua história econômica, com o produto regional crescendo a uma taxa média anual de 4,8 % e acumulando um crescimento do produto interno bruto (PIB) per capita de 22,1 %, equivalente a 3,4 % anual (Kacef & López-Monti 2010: 37)14. Assim, a situação parecia muito positiva e muito mais promissora que em qualquer outra época, com a conjugação de diversos fatores, como bem aponta Winter:
Uma melhora nos níveis de educação, uma “janela de oportunidade demográfica” única, mais acesso a telefones celulares e outras tecnologias revolucionárias, a contínua ascensão da China, um panorama fiscal saudável e a disseminação quase universal da democracia – tudo isso era citado como fatores que continuariam a impulsionar a América Latina pelos próximos anos. (Winter 2019)
16É importante anotar, no entanto, que a combinação do crescimento econômico com a diminuição da pobreza e da desigualdade não acontecera espontaneamente, mas fora, sim, provocada pela presença mais efetiva do Estado, que, em consonância com a orientação progressista da maioria dos governos da região, atuava como ator central nos processos de desenvolvimento, dotando-o de orientação estratégica, e fazendo investimentos significativos em infraestrutura, educação, saúde, e políticas distributivas.
- 15 “En las sociedades contemporáneas constatamos un estado de desigualdad social como en el viejo régi (...)
17O que aconteceu, no entanto, desde o início da década de 2010, frustrou essas esperanças: tanto o crescimento econômico da região se mostrou assentado em bases mais frágeis do que pensávamos, quanto nossos sistemas democráticos entraram em colapso, sob um ataque coordenado. Se no início dos anos 2010 a região ainda vivia o auge do boom das commodities, as perspectivas mudam completamente ao longo da década, apresentando a América Latina um crescimento econômico médio de aproximadamente 2,2 %, muito menor que a média global (3,8 %) e particularmente distante de outros mercados emergentes como a Ásia Emergente (7,1%) e em desenvolvimento como a África Subsaariana (4,1 %) e o Oriente Médio e o norte da África (3,3 %) (Winter 2019). Com a diminuição do crescimento, abre-se margem para o enfraquecimento dos governos progressistas e a introdução na América Latina daquilo que o historiador Olaf Kaltmeier denomina “refeudalização”, com o retorno de governos de direita: à extrema polarização da estrutura social com a distribuição desigual da terra e uma marcada segregação espacial somam-se a reafirmação de uma economia extrativista com a acumulação através da expropriação e a duplicação do poder econômico através do poder político, em forma de milionários que, como Mauricio Macri ou Sebastián Piñera se convertem em presidentes (Kaltmeier 2019)15.
18A insatisfação difusa, derivada do baixo crescimento, resulta não somente na volta ao poder da direita, através de eleições, como nos casos da Argentina e do Chile, mas é utilizada muitas vezes para se justificar golpes contra o próprio sistema democrático. Desta maneira, sucedem-se na América Latina desde 2015 uma série de golpes de estado, que pensávamos já superados: primeiro na Guatemala, depois no Paraguai, no Brasil e finalmente na Bolívia. Não se trata aqui, no entanto, de golpes nos moldes tradicionais, com a intervenção direta das forças armadas e forte repressão militar, como a região conhecera nos anos 1960 e 1970: as novas formas de golpe de Estado que se deram em nosso continente no século xxi estiveram ancorados numa pseudo-legalidade institucional dos processos de impedimento nas esferas parlamentares e jurídicas, apoiados e divulgados amplamente pelos meios de comunicação de massa. De fato, como aponta Michel Löwy, a nova estratégia das oligarquias latino-americanas parece ser a prática do “golpe de Estado legal”, forma que “se mostrou eficaz e lucrativa para eliminar presidentes (muito moderadamente) de esquerda” (Löwy 2016).
- 16 Casara aponta que a expressão “pós-democracia” costuma ser atribuída ao cientista político inglês C (...)
19Nesta mesma linha, Caio Vinicius Roldão Agarie, num interessante trabalho, mostra como os processos de ruptura constitucional e a implantação do estado de exceção em “democracias tardias” da região tiveram uma ampla influência de suas cortes judiciais, o que faz com que esses processos se diferenciem substancialmente dos processos acontecidos no século xx. A seu ver, a política e a vontade de se manter o status quo interferem de maneira assimétrica nos próprios procedimentos jurídico-políticos, acabando por esvaziar seu sentido jurídico. Assim, veríamos emergir na região aquilo que bem define Rubens Casara como um “estado pós-democrático”, que viria substituir o “estado democrático de direito”, entendendo-se este como aquele Estado “que tem o compromisso de realizar direitos fundamentais e tem como principal característica a existência de limites legais ao exercício do poder” (Casara 2017: 19). Na sua forma atual, o Estado “pós-democrático”, que estaria em vigor em vários países do continente atingidos pelo novo tipo de golpe de estado, já não teria “limites rígidos ao exercício do poder, isso em um momento em que o poder econômico e o poder político se aproximam, e quase voltam a se identificar, sem pudor” (ibid.: 23)16.
- 17 Como anota Winter, em 2018, apenas 16 % dos latino-americanos diziam estar “satisfeitos” com a econ (...)
- 18 “A desigualdade social vem se ampliando no país há décadas. Segundo a World Inequality Database, o (...)
20À crise econômica soma-se, então, a crise política, que vem acompanhada por um extremo mal-estar social, um descontentamento cada vez maior da opinião pública17, que muitas vezes se reflete em manifestações e agitação nas ruas do continente. A agitação social também cresce, e as manifestações de rua respondem – às vezes violentamente – às políticas governamentais. O exemplo mais significativo disso foi o chamado “estallido social” chileno, iniciado em outubro de 2019, quando milhões de pessoas se mobilizam para protestar não só contra políticas de austeridade circunstanciais, mas contra o próprio modelo que vinha sendo adotado ali desde a era pinochetista, e que não fora modificado com a redemocratização. “No son 30 pesos, son 30 años”, ecoavam os manifestantes que se referiam ao aumento de 30 pesos da tarifa do metrô e aos 30 anos de implantação do que entrou para a história como o modelo chileno de neoliberalismo. No caso daquele país, os protestos, com uma pauta ampla e difusa, acabaram encontrando um objeto específico: a Constituição pinochetista de 1980, que funcionava como um elo entre o Chile atual e o passado ditatorial, configurando o pano de fundo legal para o neoliberalismo18. Como resultado das manifestações, arrancou-se do governo a convocação de um plebiscito, no qual quase 80 % se manifestaram a favor da convocação de uma assembleia constituinte exclusiva, eleita finalmente em 2021, com a tarefa de redigir uma nova Constituição para aquele país, que teria a tarefa de finalmente completar o longo processo de transição para a democracia naquele país.
- 19 Nesta linha, Rodney Harrison questiona, na Introdução a Understanding the politics of heritage: “Bu (...)
21Laurajane Smith, em The Uses of Heritage, chama a atenção para o caráter conflitivo do patrimônio, ressaltando que o “processo ou momento do patrimônio” tem o potencial de ser “criticamente ativo”, sendo através dele que “as pessoas podem negociar a identidade, os valores e os significados que subjazem a ele, mas também através do qual elas também desafiam e tentam redefinir a sua posição ou ‘lugar’ no mundo ao seu redor” (Smith 2006: 7). Assim, o patrimônio não seria um bem ou processo apenas social e cultural, mas também político por excelência, com uma série de disputas sendo sempre negociadas por meio dele19. Este “valor de conflito”, sempre presente nos processos de patrimonialização, fica muito visível se observarmos a cena latino-americana nos últimos anos, em que se travaram verdadeiras batalhas pela memória e pelo patrimônio.
22Nesse processo de contestação a monumentos oficiais, em todo o continente, cabe chamar a atenção para o caso do Chile, onde, desde o “estalido social”, entre outubro de 2019 e fevereiro de 2020 se registraram 1 353 monumentos danificados durante as manifestações que tomaram as ruas daquele país. Não é fortuito também que nesse processo os principais focos de ataque e ressignificação tenham sido signos que remetiam à conquista hispana (séculos xvi a xviii) e à república – incompleta – chilena (séculos xix e xx). Como comenta Claudia Oliva Saavedra:
A través de la transformación del patrimonio histórico y los monumentos, la sociedad civil cuestiona la validez de los mismos como objetos de memoria. La alteración de estos emblemas constituye un recurso que persiste a lo largo de la historia como símbolo de protesta. Las expresiones de descontento a través de barricadas, de grafitis y de afiches, han tomado cuerpo desde el 18 de octubre en Chile, como forma de alterar la vida cotidiana, un llamado de atención gráfico que se entrecruza con lugares consolidados claves para el funcionamiento de las ciudades. (Oliva Saavedra 2020)
23Assim, a crise de representação e a deslegitimação das instituições de governo e da ordem vão se expressar tanto na série de revoltas para melhorar as condições de vida, quanto no plano simbólico, na transformação e/ou destruição de monumentos históricos e espaços significativos que fazem parte do contexto urbano. Para entendermos esses movimentos sociais de revolta, que se espalham pelo mundo e que se manifestam no Chile no início do século xx é importante percebermos como esses têm características próprias que os distinguem dos movimentos sociais tradicionais. Segundo Manuel Castells em seu livro Redes de Indignação e Esperança, uma das chaves para a compreensão desses movimentos sociais do século xxi residiria no entendimento das transformações pelas quais o ambiente comunicacional global passou nas últimas décadas, levando-nos ao que ele denomina de “autocomunicação de massa”, termo que designa o uso massificado da internet e das redes sem fio como plataformas de comunicação digital. “A autocomunicação de massa fornece a plataforma tecnológica para a construção da autonomia do ator social, seja ele individual ou coletivo, em relação às instituições da sociedade”, afirma Castells (2013). A seu ver, a “autocomunicação de massa” reconfiguraria as redes sociais virtuais, garantindo um alto grau de criação e propagação de novos discursos não hegemônicos.
24Ainda naquela obra, Castells aponta uma outra característica nova, a ocupação do espaço público que seria uma estratégia utilizada para permitir a construção de uma rede presencial de solidariedade, ao mesmo tempo em que garantiria ao movimento um alto grau de visibilidade na cena pública. A seu ver, a ocupação construiria comunidades, e como as comunidades se baseiam na “proximidade”, essa se estabeleceria como um mecanismo psicológico fundamental para superar o medo – medo do uso arbitrário do poder. Além disso, seria importante destacar que a ocupação de um espaço comporia mais uma camada simbólica: na medida em que evoca memórias relacionadas ao espaço ocupado, ela cria vínculos entre o movimento e a vida urbana, reivindicando simultaneamente o direito de uso público das propriedades ociosas.
25Um outro traço fundamental nesses novos movimentos sociais poderia ser descrito como a formação de novas “ecologias culturais”, como descrito por Reinaldo Ladagga em Estética da Emergência. Naquela obra, Laddaga chama a atenção para a simbiose entre política e estética nesses novos movimentos, falando sobre a formação de um novo regime das artes que emergiria em um contexto de globalização, crise da modernidade artística e consolidação do capitalismo cognitivo, um regime que, embora iniciado por iniciativas de artistas, seria voltado para a formação de “ecologias culturais” entre artistas e não artistas.
O presente das artes está definido pela inquietante proliferação de certo tipo de projeto, que se deve às iniciativas de artistas e escritores que, em nome da vontade de articular a produção de imagens, textos ou sons e a exploração das formas de vida em comum, renunciam à produção de obras de arte ou ao tipo de repúdio que se materializava nas realizações mais comuns das últimas vanguardas, para iniciar projetos abertos (de improvisação) que envolvam não artistas, durante logos períodos de tempo, em espaços definidos, onde a produção estética se associe ao desenvolvimento de organizações destinadas a mudar o estado de coisas em tal ou qual espaço e que apontem para a constituição de “formas artificiais de vida social”, modos experimentais de coexistência. (Laddaga 2012: 28)
26No caso das manifestações no estalido chileno, acreditamos poder identificar essas três características essenciais que marcariam os novos movimentos sociais do início do século xxi: a constituição de redes sociais virtuais e de discursos não hegemônicos através da autocomunicação de massa, a criação de redes sociais presenciais e de comunidades instantâneas através da ocupação do espaço público e a formação de “ecologias culturais” destinadas a mudar o estado de coisas em tal e qual espaço. Neste sentido, parece-nos muito adequado acompanhar um interessante projeto no qual se entrelaçam essas três linhas, o projeto @MonumentosIncomodos, que aparece como uma plataforma para registrar visualmente e discutir as intervenções realizados sobre os monumentos públicos, chamando a atenção exatamente para o caráter conflitivo em muitas camadas20. O projeto vai nascer em pleno “estallido social”, dias depois do 18 de outubro de 2019, quando começa a ficar claro que o descontentamento popular se dirigia a monumentos e a esculturas comemorativas, recolocando a questão da arte pública e de seu valor patrimonial. Querendo “des-invibilizar” os monumentos, ao desnaturalizá-los e problematizá-los, a plataforma define com clareza seu alvo:
Chamamos “Monumentos Inconvenientes” àqueles símbolos urbanos, tais como estátuas, nomes de ruas, praças ou outros elementos comemorativos e de homenagem no espaço público que geram sentimentos de segregação, injustiça e ódio em comunidades cujos direitos têm sido sistematicamente violados, como resultado da colonização, racismo, xenofobia, patriarcado, homofobia, entre outros, e que representam uma visão única da história de forma tangível, na qual as formas de abuso e discriminação não foram sancionadas e muito menos reconhecidas. (Mora et al. 2020)
27Na origem desse movimento/plataforma, cruzam-se o presencial e o virtual, numa configuração típica do século xxi: o ponto de partida para os @monumentosincomodos foi um concurso realizado para o pavilhão chileno na Bienal de Arquitetura de Veneza de 2020, para a qual um grupo de artistas e intelectuais preparou uma proposta com ativistas indígenas, LGTBIQ+, feministas, ambientalistas, entre outros, que decidiu encarar na sua proposta a questão de como conviver com os atuais monumentos. A proposta apresentada foi pré-selecionada entre as 10 melhores em nível nacional, e propunha uma releitura radical da Plaza de la Dignidad (oficialmente Plaza Baquedano ou Plaza Italia) e do monumento a Baquedano, que se tornara o epicentro do estalido social. Aquele monumento representava, segundo eles, não somente “uma memória de batalhas militares”, mas seguidamente objeto de intervenção e transformação, se tornara uma espécie de “Cavalo de Troia, que, em seu interior, continha as esperanças e as diversas demandas sociais levantadas pelo movimento social, sobre um país mais justo”.
28A partir dessa leitura, propuseram um exercício participativo para decidir se se transladava a Veneza o original ou uma réplica do monumento ao General Baquedano, convertida num “Cavalo de Troia”, cuja irrupção permitiria “a discussão nesse espaço internacional, criando um diálogo para uma transformação, ressignificação do espaço intervisto, trazendo de volta a discussão da atual de estética de comemoração à Europa e ao mundo”. Parte central do projeto estava no próprio processo de decisão em relação ao que fazer com o monumento, que estaria nas mãos dos cidadãos e não de um grupo de experts, como acontece tradicionalmente nas bienais, processo que se estenderia no tempo, na medida em que, quando houvesse o retorno, caberia à comunidade decidir novamente se ele deveria ser (ou não) reinstalado no pedestal vazio. Suas intenções eram claras, em suas próprias palavras:
Neste sentido, o objetivo do projeto era o gesto coletivo e democrático que desencadeasse um debate público sobre os espaços públicos e a cidade através de uma ação colaborativa.
O monumento como essência é “competitivo”, pois ao elevar ou exaltar um, você está deixando muitos para trás. Devemos voltar à essência do ser humano, que não é a competição, mas a colaboração. (Mora et al. 2020)
29Mesmo não tendo tido a sua proposta escolhida, o grupo, formado por profissionais do patrimônio atuando em órgãos diferentes e provenientes de diferentes disciplinas (Arquitetura, Artes Plásticas, Direito, História, entre outras), optou pela presença nas redes sociais virtuais, criando uma plataforma através da qual continuariam a apontar a ligação íntima entre monumentos e poder, que se manifesta no espaço público e que erige “imagens de auto adoração, citando forças imperialistas que nada têm a ver com a construção simbólica popular”. Na visão dos ativistas dos @monumentosincomodos essas seriam “estratégias publicitárias, que converteriam a cidade em um sítio de representação central para a violência, o controle e a ordem, distantes e contrapostas a nossas memórias coletivas”: “São sangrentos próceres, assassinos, impondo falsas identificações de fatos históricos que enaltecem a violência da classe dominante”, denunciam num de seus posts, significativamente denominado “De monumentos a memoriais” (Fig. 1).
A trama que molda a cidade entre o material, o simbólico e o político é atravessada pela presença da estatuária colonizadora na expectativa de que, na mediação simbólica, estejamos convencidos de que é algo a ser tratado. Justificados pela ideia de patrimônio, aqueles que intervêm em imagens republicanas são punidos.
Quando um monumento não é próprio, espontâneo e coletivo, ele é então a representação simbólica da dominação e do poder.
(https://www.instagram.com/p/CUd2nZalR_O/)
Fig. 1
De monumentos a memoriales
Fonte: @monumentosincomodos
30Para os criadores do projeto, também as estratégias de contrabalançar os “monumentos incômodos” com outros que celebrem aspectos divergentes da história, numa espécie de reparação simbólica às comunidades atingidas, estariam fadadas ao fracasso, na medida em que tornariam equivalentes ambos os processos de memorialização. Vistos frequentemente pelas comunidades como “gestos de maquiagem”, esses esforços terminariam seguindo a lógica do “empate simbólico”, “que se destina a proporcionar uma solução para a injustiça, mas onde não houve uma reparação legislativa eficaz e nenhuma participação daqueles que foram violados” (Mora et al. 2020).
- 21 Patricio Mora é arquiteto e fundador de Monumentos Incómodos e da Fundación Proyecta Memoria; Rober (...)
31O projeto gerou um impressionante arquivo digital assim como a possibilidade de acompanhar, quase em tempo real, as intensas discussões e debates que se travavam. Seus objetivos e destino são muito bem descritos por Patrício Mora, Roberto Manríquez, Magdalena Novoa e Bárbara Oettinger, que estiveram envolvidos de formas diferentes na empreitada21:
Seu arquivo fotográfico colaborativo de mais de 6 000 imagens e vídeos de monumentos após 18 de outubro será doado ao Arquivo Nacional do Chile. Com uma plataforma digital que possui mais de 400 casos no mundo, com diversos comentários e contribuições de mais de 10 000 seguidores, este novo espaço virtual visa a uma reflexão participativa sobre as diversas formas de ressignificação do chamado patrimônio nacional em todas as suas formas e manifestações (remoções, alterações, substituições, transformações). Um espaço de “diálogo” entre a estátua do “poder” e as formas alternativas de comemoração espontaneamente propostas por vários coletivos que não se sentiram representados. (Mora et al. 2020)
Fig. 2
Tipos de monumentos em Punta Arenas, Chile
Fonte: @monumentosincomodos
32A ligação do ato de asserção representado pelos monumentos e o discurso oficial da história – que exclui determinados grupos e perspectivas, fica muito claro numa das postagens dos @monumentosincomodos, em que se apresenta um infográfico com a representatividade dos diversos temas em Punta Arenas (Fig. 2). Nele se vê que 44 % dos monumentos naquela localidade se referem aos colonizadores (24), 29 % às forças armadas e seus símbolos (16), 9 % a atores populares (5) e apenas 4 % aos povos originários (2). “Nosso estudo”, concluem, “mostrou como resultado que as narrativas oficiais dos monumentos públicos inviabilizam as memórias e experiências históricas vinculadas com os habitantes que ocupam o território austral desde antes que o homem ocidental e que foram vítimas da violência colonial e militar em #PUQ (Punta Arenas, LBC)”22. As mulheres também eram sistematicamente excluídas do discurso oficial produzido pelos monumentos: numa outra postagem (Fig. 3), o movimento mostrava que no centro de Santiago, de cada seis monumentos, apenas um representava personagens femininos.
Fig. 3
De cada seis monumentos no centro de Santiago, apenas um representa personagens femininos.
Fonte: @monumentosincomodos
- 23 Segundo o cadastro do Conselho de Movimentos Nacionais do Chile, no período 24 obras foram perdidas (...)
33Se alguns dos monumentos foram modificados parcialmente por arranhões, pichações e adesivos, outros chegaram a ser destruídos, retirados ou substituídas23. Em seus mais de dois anos de existência, a plataforma tem registrado e discutido extensivamente os mecanismos simbólicos utilizados frente a diferentes “monumentos incômodos” ao redor do mundo, que vão de ressignificações efêmeras, que se propõem não a substituir, mas a problematizar as relações de poder subjacentes a esses monumentos, até os casos mais extremos de sua supressão. Um dos casos mais significativos e amplamente divulgado, dado o seu simbolismo, aconteceu na cidade de La Serena, a cerca de 450 quilômetros ao norte de Santiago, onde os manifestantes substituíram um monumento em homenagem ao conquistador espanhol Francisco de Aguirre pela estátua “Milanka”, em homenagem à mulher da cultura indígena diaguita (Fig. 4). Decidido a não recolocar no lugar a escultura do conquistador espanhol, o prefeito da cidade, Roberto Jacob, declarou que a figura de Francisco de Aguirre “divide a comunidade, e as coisas que dividem é preferível que estejam guardadas”. A reação foi louvada pela plataforma: “A @muni_laserena é uma das primeiras municipalidades a reconhecer que um Monumento Incômodo não pode ser reinstalado sem debate” (https://www.instagram.com/p/CU0kp5hpRVs/).
Fig. 4
#LaSerena no repondrá Monumento de conquistador español derribada post 18-O
Fonte: @monumentosincomodos
34Finalmente, não há como deixar de destacar como, no caso da América Latina, fica muito clara a presença de fatores étnico-religiosos nas disputas pela memória, que espelham de forma bastante explícita as tensões políticas contemporâneas do continente. Aqui, o passado é recorrentemente relido pelo presente, com vistas a um projeto de futuro: o recurso à memória indígena e à opressão da conquista, por exemplo, estão sempre presentes em diversas manifestações dessa luta contemporânea, com o pêndulo inclinando-se para um ou outro lado conforme os vencedores do momento. Assim, na mesma linha das manifestações chilenas, grupos indígenas da comunidade Misak, na cidade de Popayán, na Colômbia, tombam a estátua equestre de um colonizador espanhol, Sebastián de Belalcázar, argumentando que ele cometera crimes como genocídio e expropriação de terras de povos que habitavam a região, ação que é combatida com dureza pelo governo local24. Em sentido inverso, a senadora de direita Jeanine Añez, que se proclamou presidente interina da Bolívia após o golpe de estado contra Evo Morales, exibiu orgulhosa, ao assumir o cargo, não uma, mas duas Bíblias de grande tamanho, prova, a seu ver, da força dos cristãos no cenário político boliviano25: “Deus permitiu que a Bíblia voltasse a entrar no Palácio. Que Ele nos abençoe”, declara Añez na ocasião. Paralelamente, as forças golpistas promoveram a queima, por todo país, da wiphala – um quadrado com sete cores no qual se representa a visão indígena do mundo, com o verde da produção agrícola, o violeta do poder comunitário ou o vermelho da terra –, bandeira que tinha sido consagrada como símbolo oficial da Bolívia, durante o primeiro mandato de Evo Morales, entre 2006 e 2009.
35Neste sentido, é muito significativa uma postagem da plataforma @monumentosincomodos, em junho de 2021, que mostra a mapuche Elisa Lancon em pé, orgulhosa, num pedestal vazio, numa recriação simbólica de um monumento. A imagem era duplamente icônica (Fig. 5): Elisa se tornara a primeira indígena a presidir a Convenção Constitucional do Chile, eleita num pleito em que, a partir do “estalido” de 2019, fora paritário em relação aos gêneros e com ampla inclusão dos povos originários. Porque seria importante que aquele órgão fosse presidido por uma mulher mapuche, pergunta retoricamente @monumentosincomodos, que dá a palavra à própria retratada que responde, também em sua conta do Instagram: “Sería un paso para instalar un Chile distinto que respete la condición humana de la diversidad, valore a las mujeres y sus raíces ancestrales. Es lo que no ha hecho institucionalmente” (https://www.instagram.com/p/CQ6rgTQpWUT/).
Fig. 5
Elisa Lancon, num pedestal vazio
Fonte: @monumentosincomodos
36Para finalizar, cabe retomar as considerações de Alois Riegl, que já no início do século xx apontava, pioneiramente, o caráter essencialmente conflitivo em todas as escolhas patrimoniais. Como sabemos, em “O Culto Moderno dos Monumentos”, Riegl articula um modelo complexo e que não oferece possibilidade de se chegar a soluções esquemáticas ou simplificadoras para a análise dos diversos conflitos – existentes e potenciais – no campo da conservação: em cada situação é necessário analisar circunstanciadamente os diversos atores e a atribuição de valor que esses promovem em relação aos monumentos. Como coloca Sandro Scarrocchia, dado que “os valores são relativos a sujeitos sociais”, “nenhum deles pode pretender ditar normativa; por outro lado, cada sujeito social somente pode alcançar a pluralidade das potências culturais em ato; o interesse do monumento também nasce como unidirecional [...]” (Scarrocchia 2007: 17). Assim, no sistema riegliano, não seria possível, por exemplo, pensar em se basear a tutela dos monumentos na “instância estética”, sobre o juízo de valor artístico, como no caso de Cesare Brandi, nem muito menos sobre o valor histórico. Se o caminho que conduz à tutela tem em Brandi duas vias, a “instância estética” e a “instância histórica”, no caso de Riegl essa tem pelo menos seis, às quais se juntaria, de acordo com Sandro Scarrocchia, uma outra, “aquela da emergência”, “a mais importante no caso de dificuldade”.
E sabemos que os casos de tutela do patrimônio têm sempre um caráter de dificuldade. A dificuldade surge do conflito de interesses em jogo; por isso, nos recorda Riegl, você pode encontrar no mesmo jornal, no mesmo dia, embora não na mesma página, a queixa sobre uma restauração incorreta, ..., e uma outra sobre um grave estado de abandono em que se encontra um outro monumento, que requer, portanto, restauração. (Scarrocchia 2011: 89)
37O conflito vai ser inescapável no pensamento complexo de Alois Riegl, nos cabendo reconhecer, acompanhando a interpretação reveladora de Scarrocchia, que, na verdade, o próprio “valor de conflito” vai ser o telos, o fio condutor que ligaria todos os outros valores. Assim, mesmo não aparecendo no sistema de valores riegliano, este novo valor seria a sua fonte de inspiração, guiando e constituindo a riqueza do seu pensamento: todos os valores, de fato, estão sempre e inexoravelmente em conflito entre si. Em O Culto Moderno, Riegl não nos apresenta qualquer fórmula simples ou apaziguadora, chamando continuamente a atenção, pelo contrário, para os pontos de ruptura e de descontinuidade entre os valores, criando, assim, um sistema de grande dinamismo, um verdadeiro quadro de “valores em conflito”. Françoise Choay resume a posição vigorosa de Riegl, numa fórmula simples, que parece responder à perspectiva também relativista de nossa própria época:
Riegl mostra assim que, no plano teórico assim como no prático, o dilema destruição/conservação não pode jamais ser cindido de modo absoluto, e o quê e o como da conservação não comportam jamais uma solução – justa e verdadeira – mas várias soluções alternativas, de uma pertinência relativa. (Choay 1984 : 17)
38Para retomar apenas uma dentre as diversas distinções que o autor austríaco nos propõe, aquela entre os “monumentos intencionados” e “não intencionados” parece-nos particularmente útil para entendermos as diversas posições frente à contestação que os monumentos sofrem no mundo e na América Latina. Assim, em primeiro lugar, ao entender o seu caráter de celebração, de asserção de uma posição política de um determinado grupo, fica claro o regime de temporalidade no qual os monumentos, em sentido estrito ou “intencionados”, se inscrevem: o da história viva, estando sujeito às suas vicissitudes e flutuações. A sua forte carga simbólica como expoentes de determinadas visões culturais e políticas faz com que eles sejam expostos, ao longo da história, ao escrutínio público, que pode levar a intervenções sobre eles ou mesmo à sua destruição, nos advertem os militantes do @monumentosincomodos, listando uma série de precedentes:
o Concílio de Trento no século xvi instruiu a ereção de templos católicos em cada local sagrado dos povos nativos; bem antes disso, a destruição dos narizes dos rostos das figuras egípcias ou a fundição de estátuas de imperadores romanos pelas monarquias cristãs durante a Idade Média e de figuras religiosas na Revolução Francesa são apenas alguns exemplos de iconoclastia encorajados tanto pelos que estão no poder quanto pelas comunidades locais. (Mora 2020)
39A história mais recente também estaria povoada desses exemplos: a remoção dos ícones racista e imperiais na África do Sul, o debate sobre o destino da iconografia soviética e russa na Ucrânia, em 2014, o debate nos Estados Unidos sobre os monumentos dos confederados, entre muitos outros. “Estes exemplos são evidências de que os monumentos públicos não são de forma alguma objetos assépticos, permanentes e certamente não consensuais, mas têm significado, contexto e funções dentro do ambiente urbano”, concluem lapidarmente (Mora 2020).
Fig. 6
Charge de Iñaki y Frenchy, reproduzida na plataforma @monumentosincomodos
Fonte: @monumentosincomodos
- 26 Esses conceitos se refeririam, assim, a seu ver, não às próprias características dos monumentos, ma (...)
40No entanto, é importante perceber que os monumentos intencionados também podem ser simultaneamente “não intencionados”, constituindo aqueles apenas uma pequena parte desses. É como explica Gabi Dolff-Bonekämpfer: a diferenciação riegliana não se refere tanto à gênese dos monumentos, mas muito mais ao destino histórico de sua recepção, só se aplicando, portanto, a posteriori (Dolff-Bonekämpfer 2010: 34-35)26. Assim, por exemplo, uma estátua equestre de um colonizador, além de ser um “monumento” no sentido estrito, comemorativo, do termo, pode ser vista como um verdadeiro “monumento histórico e artístico”, se a ela atribuirmos também valor de testemunho de um tempo ou de uma visão de mundo, ou mesmo valor estético. Essa é, a meu ver, a principal objeção que se pode levantar quanto à destruição deliberada de monumentos que temos presenciado: não estaríamos anacronicamente impondo a visão particular de nosso tempo a artefatos vindos de outras eras e portadores de outras visões? Se Riegl já condenava a destruição deliberada de obras de arte por juízos puramente estéticos, talvez pudéssemos fazer o mesmo em relação à destruição de monumentos por juízos históricos, sempre circunstanciais. Ao ver os “monumentos” como “monumentos históricos e artísticos”, estaríamos inscrevendo-os num outro regime de temporalidade, no qual a sua conservação se faria necessária, não obstante os juízos que pudéssemos (contemporaneamente) emitir sobre eles.
- 27 Argumentos semelhantes foram utilizados no Brasil, em diversas ocasiões em que o Monumento às Bande (...)
41Este vai ser o questionamento que as historiadoras Ana Maria Stuyen, Elivra Roca e Sol Serrano apresentam nos jornais chilenos El Mercurio e La Tercera, onde fustigam fortemente o que denominam “presenteísmo histórico”, ou que identificam como revisionismo do passado com “critérios morais do presente”, o que as leva a não aceitar os ataques a “monumentos que representam o nosso comuns” (Stuven), que “projetam os parâmetros mentais de hoje em outras épocas” (Roca), o que poderia levar a “apagar toda a história” (Serrano) (Mora et al. 2020)27.
42Aqui aparece um conflito de difícil resolução: qual valor deverá prevalecer? Em que regime de historicidade devemos inscrever os monumentos, para, de forma consequente, pautar nossa intervenção sobre eles? Devemos manter os monumentos como estão, interpretá-los, com a inserção de placas e outros artefatos que os circunscrevam temporalmente, ou temos o direito de eliminar da cena urbana aquelas homenagens que consideramos indevidas e atentatórias aos valores contemporâneos? Se essas questões são complexas e incômodas, mais uma vez parece-me necessário recorrer a Riegl, anotando que qualquer decisão coerente só será possível após haver analisado de forma aprofundada os diversos atores e as diferentes atribuições de valor que esses promovem em relação aos monumentos.