1A obra A bandeira do elefante e da arara, publicada em 2016 pela editora Devir é de autoria de Christopher Kastensmidt, norte-americano, radicado em Porto Alegre desde 2001, conta com livros traduzidos para dez idiomas e adotados em escolas no Brasil e nos EUA. Atualmente, além de seguir com sua carreira de escritor, também atua como professor da UniRitter no curso de Design para Jogos Digitais. Foi finalista do Prêmio Nebula e vencedor do Prêmio Realms of Fantasy em 2011. Além desse livro, o autor também publicou uma série de livros de Role-playing game (Jogos de interpretação) que compartilham o mesmo cenário, exploram o passado colonial brasileiro, envolvendo mitos e lendas dos povos nativos e dos africanos, além de seres fantásticos do folclore brasileiro.
2Entre esses jogos de Role-playing game estão o “módulo mestre”, com o mesmo título do romance, e os suplementos, aventuras prontas para serem jogadas no mesmo cenário, como A misteriosa sesmaria de Dom Perestrelo (Kastensmidt 2018), Flagellum amazonis: a ilha abandonada (Kastensmidt 2019) e Flagellum amazonis: a mãe serpente do mundo (Araújo & Kastensmidt 2021), este último publicado em parceria com Marco Poli de Araújo. Além desses suplementos, a editora Devir seguiu explorando o cenário criado por Kastensmidt, publicando outros suplementos com outros autores, aventuras que se desenrolam no universo do livro A bandeira..., como A capitania do Rio de Janeiro (Tardock 2018), A maldição de Ipaúna (Giehl 2019) e Senhoras do pássaro da noite (Capella 2021). É perceptível que o cenário baseado no romance de Kastensmidt tem rendido frutos para a editora, que tem lançado suplementos para jogos de Role-playing game com frequência, ampliando a difusão de representações do passado e do folclore brasileiro a partir dessas publicações.
3Realizar a resenha de um romance em diálogo com áreas/temas como história, memória e patrimônio não é comum, mas é importante, pois o passado não pode ser entendido como propriedade privada de historiadores e professores de história. O conhecimento histórico é uma forma de conhecer criticamente o passado, mas não é a única forma.
Vale lembrar que os processos de aprendizado histórico não ocorrem apenas no ensino de história, mas nos mais diversos e complexos contextos da vida concreta dos aprendizes, nos quais a consciência histórica desempenha um papel. (Rüsen 2007: 91)
4Filmes, novelas, séries, jogos, músicas, histórias em quadrinho, literatura, entre outros meios, possibilitam o contato com o passado, além da história. Isso não significa entender que a história produzida por historiadores, por pesquisas que seguem critérios teóricos e metodológicos particulares deve ser compreendida da mesma forma que um quadrinho ou filme. São tipos diferentes de conhecimentos, mas que não devem ser entendidos como opostos, pelo contrário.
5Como Rüsen (2007) observa, o saber histórico tem fundamental importância para a vida dos sujeitos, desempenhando funções de orientação prática e na formação de identidades. “Orientação histórica da vida humana para dentro (identidade) e para fora (práxis) – afinal é esse o interesse de qualquer pensamento histórico.” (ibid.: 87) O conhecimento que temos sobre o passado é elemento fundamental para uma auto-compreensão de si no mundo e para atuação dos sujeitos em sociedade. Nós entramos em contato com o passado constantemente em nossa vida prática, o que exige uma capacidade de reflexão e ordenação temporal para nos situarmos e entendermos o mundo em que vivemos.
6A compreensão das categorias de tempo (passado, presente e futuro) é imprescindível para isso, pois “as representações da identidade são inseparáveis do sentimento de continuidade temporal”. (Candau 2012: 84-85) Ao distinguir o presente do passado, pensamos sobre o tempo e sua passagem, o que “supõe classificá-lo, ordená-lo, denominá-lo e datá-lo”. É necessário ressaltar, concordando com Catroga (2009: 12), que na “experiência vivida, a memória individual é formada pela coexistência tensional e nem sempre pacífica, de várias memórias”, oriundas de diferentes experiências, que nos auxiliam nessa ordenação/compreensão do mundo e na elaboração narrativa (temporal) de nossa vida.
7O romance de Kastensmidt (2016) é exemplar nesse sentido, pois permite perceber os entrecruzamentos da ficção, da história e do patrimônio cultural, ao mobilizar mitos, lendas e o folclore brasileiros em sua narrativa. Esse entrecruzamento ocorre, de acordo com Ricoeur (2010: 311), quando tanto história quanto a ficção só realizam suas respectivas intencionalidades tomando de empréstimos a intenção da outra. O primeiro indício de que a ficção se entrecruza com a história é que narrar é quase como contar algo que aconteceu no passado. “As narrativas são contadas em um tempo passado. ‘O era uma vez...’ marca, no conto, a entrada em narrativa.” (ibid.: 323) Essa inclinação para o passado é reforçada pelo uso, na narrativa ficcional, de personagens históricos, acontecimentos datados, lugares geográficos reais, que se misturam com os personagens, acontecimentos e lugares inventados (Ricoeur 2010: 217). Não obstante tais entrecruzamentos, as referências históricas reais “são despojadas de sua função de representância no tocante ao passado histórico e se alinham ao estatuto do irreal dos outros acontecimentos.” (ibid.: 218) Cabe destacar que não é a intenção de um autor de ficção, mesmo de romances históricos, construir explicações sobre o passado embasadas na ciência histórica. O tempo da narrativa ficcional de caráter histórico é o “tempo monumental”, que se entrecruza com o “tempo mortal” (real). (ibid.).
8O tempo monumental é a aproximação, por meio da narrativa ficcional, a um passado mítico, fantástico, construído a partir do emprego de elementos da história, da memória e do patrimônio cultural de uma sociedade. Tal construção ocorre dentro de “marcos memoriais” (Halbwachs 2004) característico da cultura que produz tal narrativa. Ricoeur (1994: 94) observa a intrínseca relação entre as “normas imanentes de uma cultura” e a questão da valorização das ações componentes de uma narrativa, que recebem um “valor relativo, que faz dizer que tal ação vale mais que tal outra”. Esse valor das ações recai sobre os agentes que as promovem (os personagens) e, de acordo com o contexto (e a cultura) que estão inseridos são classificados como “bons, maus, melhores ou piores”. Essa valorização também decorre da própria narrativa que “está enraizada numa pré-compreensão do mundo e da ação”, que narrador e leitor compartilham. Assim, além de identificar as relações e representações de ficcionalizações da história e historicização da ficção, também interesse observar as ações e atitudes dos personagens do livro, que evocam posicionamentos éticos frente a temas problemáticos da história brasileira, como a escravidão, o preconceito e o racismo.
9O livro trata das aventuras de dois personagens, Gerard Van Oost, um holandês que vem ao Brasil em busca de aventuras, e Oludara, um africano escravizado que foi libertado por Gerard. Ambos adentram o Brasil, encontrando e se relacionando com populações nativas (tupinambás, goitacás) e seres fantásticos, como o Saci, a Iara, o Curupira, o Labatut, entre outros. Embora não apareça uma referência a data, é perceptível que as aventuras se passam no início ou nas primeiras décadas do século xvi, antes de os franceses invadirem o Rio de Janeiro – são tais referências a lugares e acontecimentos reais, como as bandeiras, a França Antártica, que possibilitam ao leitor articular a narrativa ficcional com a história. O primeiro parágrafo do livro já dá indícios dos entrecruzamentos entre ficção e história:
Bem no alto da Igreja da Imaculada Conceição, contrastando com os desbotados matizes da pedra e argamassa da construção sem pintura, uma arara escarlate se empoleirava na cruz de madeira. A arara virava a cabeça de um lado ao outro, observando as pessoas passarem pela praça principal de Salvador. Depois de uns minutos, ela fez uma pausa para estender as asas, exibindo toda sua disposição de cores – rubi, âmbar, esmeralda, safira, marfim e carvão – uma combinação não encontrada em nenhum outro lugar na natureza. (Kastensmidt 2016: 13)
10O lugar geográfico real, Salvador, bem como a igreja (a primeira Igreja da Imaculada Conceição em Salvador foi construída em 1549), são elementos articuladores entre a história e a ficção. Outro elemento empregado pelo autor com frequência em sua narrativa é a natureza. A exuberância e beleza da fauna e da flora conferem ao território sua originalidade, suas peculiaridades e criam uma atmosfera de mistério. Ao final dos capítulos, personagens e acontecimentos da narrativa são descritos a partir da visão de animas, como uma suçuarana que observa os personagens, deita em um rio lamacento após uma refeição, um macaquinho que conseguiu roubar um chapéu de um bandeirante o exibe triunfante para seus companheiros, uma sucuri que se aproxima para devorar uma carcaça e acaba surpreendida pelos goitacás. A natureza aparece quase como um dos personagens do livro, observando os acontecimentos com curiosidade, anseios e medo. A natureza, somada a presença e descrição das criaturas do folclore que os personagens principais enfrentam, compõe esse passado mítico ficcional construído pelo autor para o desenrolar de sua narrativa.
11Outro elemento importante reside no valor das ações dos personagens. Como já mencionado, o livro aborda temas exploração colonial, escravidão e racismo. O autor realiza uma crítica a exploração escravista. Essa crítica fica clara logo no primeiro capítulo, “O encontro fortuito de Gerard van Oost e Oludara”. Gerard é um personagem holandês, protestante, e com aversão a escravidão. O primeiro encontro entre os dois personagens é quando Gerard encontra Oludara acorrentado com outros africanos. Oludara havia aprendido a falar português e demonstra um conhecimento sobre como enfrentar monstros e outras criaturas fantásticas, o que leva Gerard e enfrentar sua primeira aventura, conseguir ouro o suficiente para libertar Oludara.
12Em diferentes momentos do livro, a ética protestante de Gerard entre em conflito com aspectos da sociedade colonial brasileira. A escravidão e a violência praticada contra africanos e indígenas revelam esse primeiro conflito. Gerard não trata os africanos ou nativos com preconceito, (a não ser quando seus costumes entram em choque com sua visão de mundo cristã e protestante – canibalismo, poligamia, ou mesmo a nudez, por exemplo) os trata como iguais, independente da cor da pele ou do lugar onde nasceram. As ações de Gerard revelam, portanto, um valor – uma crítica sobre a sociedade colonial escravista, raiz do racismo contemporâneo. A própria noção de bandeira é ressignificada. No livro, Gerard e Oladura formam uma bandeira (mesmo composta por apenas dois homens), mas seu objetivo é buscar aventuras e lutar contra monstros que atrapalham e atacam os homens (europeus ou nativos).
13Embora apareça no livro bandeiras que se aproximam do seu significado histórico (o rival de Gerard, Antônio Dias Caldas, é um bandeirante que busca escravizar nativos para vender aos engenhos de açúcar), os personagens buscam fazer o bem. Em uma primeira reflexão, é possível identificar tais atitudes como anacrônicas (um europeu que não tenha preconceito e não trate africanos como inferiores no século xvi, o significado das bandeiras, por exemplo), mas abordar esse passado colonial que revela raízes de problemas sérios de nossa sociedade, exigem uma crítica, uma condenação de práticas como a escravidão, o preconceito que resulta no racismo, o entendimento e valorização das diferenças entre costumes europeus e nativos. A construção do personagem Gerard permite ao autor desenrolar sua narrativa e apresentar uma visão crítica sobre esses problemas históricos da sociedade brasileira. Portanto, é na relação entre Gerard, Oludara e outros personagens que aparecem representações sobre relações sociais do período colonial.
14Essas representações difundidas pelo livro contribuem para a formação histórica dos sujeitos, não por causa de uma simples assimilação do conteúdo e da narrativa, mas por exigirem do leitor uma compreensão histórica do passado, das relações sociais e problemas, tanto quanto dos mitos e seres fantásticos do folclore brasileiro. Na leitura das diversas aventuras de Gerard e Oludara, o leitor mobiliza sabres históricos previamente aprendidos para interpretar e compreender relações e diferenças entre o conhecimento histórico adquirido por meio do saber formal e as representações ficcionais. Mesmo que seja um leitor com conhecimento histórico limitado (uma criança ou jovem que ainda não tenha concluído as etapas da educação básica – ensino fundamental ou médio, por exemplo), as relações/comparações entre a representação ficcional do passado e o conhecimento histórico científico vão ser mobilizadas, vão ser exigidas, possivelmente estimulando o interesse em descobrir mais sobre a história brasileira na medida em que as carências (Rüsen 2007) para tal compreensão/explicação histórica sejam percebidas e sentidas.
15Além de lidar com essas questões problemáticas da sociedade brasileira que não podem ser ignorados ao escrever um romance no período colonial, o autor confere aos territórios coloniais um protagonismo na narrativa. No caso brasileiro, a construção de um passado mítico e fantástico já foi exemplificada. É a partir de Oludara que a África aparece como um continente também submergido em uma esfera de fantasia, com seus reinos, criaturas lendárias, paisagens deslumbrantes e de vasta sabedoria. É Oludara, que já tinha experiência no combate a monstros, quem atua com raciocínio rápido e planejamento nas aventuras, além de sempre dar conselhos ao seu parceiro e amigo a partir de ditados de sua terra. A mobilização dos mitos, das lendas tanto do Brasil quanto da África despertam a imaginação do leitor e o introduzem em um mundo que, na narrativa é mais encantador e fantástico que a Europa, de acordo com o próprio Gerard:
A Europa esqueceu-se desses tempos. As nações estão constantemente em guerra, matando-se ao capricho dos monarcas, trocando de alianças como a maioria dos homens troca de roupa. Aqui, alguém pode se tornar um herói de verdade, e não um mercenário açougueiro de homens. (Kastensmidt 2016: 25)
16Concluindo, a presente resenha não objetivou resumir o livro, mas problematizar alguns aspectos/elementos da narrativa para estimular a reflexão de futuros leitores, bem como afirmar a potencialidade dessa obra para abordar problemas que afetam a sociedade brasileira no presente. O uso de seres do folclore brasileiro para criar um cenário, um universo de fantasia baseado no passado colonial já é elemento suficiente para recomendar a leitura do livro, pois estimular a imaginação é estimular a criatividade, e despertar a curiosidade, o interesse pelo passado, pela história e pelo patrimônio cultural. É profícuo que autor e editora estejam engajados em atualizar sua produção, expandindo e divulgando novas aventuras para serem exploradas em jogos de Role-playing game. Mas as contribuições do livro não estão limitadas apenas ao universo ficcional, como exemplificado. Exploram questões e problemas da sociedade colonial, além de colocar o Brasil como protagonista da narrativa.