Miguel Bandeira Jerónimo e Joana Pontes (coord.), Visões do Império
Miguel Bandeira Jerónimo e Joana Pontes (coord.), Visões do Império, Lisboa, Tinta da China, 2021, ISBN: 9789896716202.
Texte intégral
1Nos últimos anos, a questão das “visões do império” desencadeou uma série de estudos, exposições, documentários e filmes. Sabendo-se que o colonialismo usou, quase desde o princípio, a fotografia (e a película cinematográfica) como um dos meios de propaganda mais eficazes para divulgar e inculcar a sua ideologia, importa perceber o modo como o processo visual, por vezes com pretensões artísticas, agiu sobre o processo mental. Neste sentido, veja-se o estudo O Império da Visão. Fotografia no contexto colonial português (1860-1960), de Filipa Lowndes Vicente, dado à estampa em 2014. No que às imagens em movimento diz respeito, além de diversos documentários, vale a pena mencionar duas longas-metragens, como o mais “estático” Posto Avançado do Progresso (2015), de Hugo Vieira da Silva, ou Mosquito (2020), de João Nuno Pinto, quase um road movie, cuja acção decorre no norte de Moçambique, durante a Primeira Guerra Mundial.
2De certo modo, o volume aqui descrito procurou unificar todos esses registos, encontrando-se na intersecção de um documentário e de uma exposição sobre fotografia dos tempos coloniais. Esta última, que esteve patente entre 16 de Maio e 30 de Dezembro de 2021, no Padrão dos Descobrimentos, em Lisboa – com o mesmo título –, contou com a curadoria científica dos coordenadores do livro, o historiador Miguel Bandeira Jerónimo e a realizadora e também investigadora Joana Pontes. Podemos, assim, falar num catálogo, mas cujos numerosos contributos, entre os quais se conta um texto de Mia Couto, conferem uma amplitude maior, sobretudo porque enquadram, complementam e completam as muitas fotografias exibidas no decorrer da exposição. Por seu turno, o documentário, com o mesmo título, foi realizado por Joana Pontes. Com uma duração de 93 minutos, a película é, ainda segundo Pontes, “uma viagem colectiva ao passado colonial através de uma selecção de fotografias do império português, captadas desde os finais do século xix até à Revolução de Abril de 1974”.
3Breves textos assinados por Joana Gomes Cardoso, Presidente do Conselho de Administração da EGEAC (p. 9), e Margarida Kol de Carvalho, Directora do Padrão dos Descobrimentos (p. 11), constituem a introdução do livro. Três ideias de Gomes Cardoso são dignas de realce, tanto mais que percorrem à maneira de leitmotiven as 160 páginas do livro: em primeiro lugar, o facto de muitas destas fotografias e postais provirem de arquivos pessoais, “que continuam a ser destruídos ou abandonados […] alguns resgatados em locais como a Feira da Ladra”; em segundo, o óbice de a investigação não ter conseguido identificar a maior parte dos autores, pelo “que somos obrigados a imaginar quem estaria por detrás da câmara e em que estaria a pensar”; e, por último, a questão de o espólio reunido “levanta(r) mais perguntas do que oferece(r) respostas” (p. 9).
4Nove secções, cindidas por sua vez em várias alíneas, compõem o livro, articulando um esquema a um tempo temático, geográfico e cronológico. As fotografias, oriundas de diversos arquivos e colecções e, como se disse, quase sempre acompanhadas pela legenda de “autor não identificado”, são eloquentes na caracterização que procuram oferecer da alteridade e dos elementos exóticos, dando destaque, como seria expectável, ao contraste entre o chamado “indígena” e o colono. Neste sentido, um texto de Joana Pontes, intitulado “Sinais de Vida” (pp. 131-133), apresenta um excurso interpretativo particularmente interessante em torno da fotografia de um primeiro-cabo português pertencente a uma companhia de caçadores, junto de um pequeno altar, onde figura uma imagem de Nossa Senhora de Fátima. À maneira de um exercício de micro-história, a autora reúne as escassas informações proporcionadas pelo “objecto”, discorrendo acerca da sociedade portuguesa perante a Guerra Colonial.
5A primeira secção do livro, da responsabilidade dos coordenadores, teoriza sucintamente o tema, chamando à colação os conceitos de “ocupação efectiva” e “científica”, que pressupuseram o conhecimento, a documentação e a exibição do Outro, a fim de justificar a “missão civilizacional” e o trabalho compelido. De facto, captar visualmente as “suas putativas ‘tradições’, os seus ‘usos e costumes’, o seu corpo e ‘alma’ (muitas vezes de modo indigno, despudorado e voyeurista, em especial no que dizia respeito ao género feminino)” (p. 17), responderia ao desafio eurocêntrico de “conhecer para dominar”, processo durante o qual se geraram, alicerçaram e robusteceram estereótipos e preconceitos. Seja como for, os coordenadores enfatizam também os “trajectos e sonhos individuais, familiares e grupais” que se desprendem do registo fotográfico. Não atender a estes elementos seria realizar uma leitura demasiado orientada em torno das estruturas, as quais, em todo o caso, parecem sempre presidir.
6Por seu turno, a segunda secção, “Campos da Ciência”, com um texto de Cláudia Castelo e Catarina Mateus (pp. 31-36), enquadra a famosa fotografia de Serpa Pinto apoiado num topógrafo, que remonta ao lançamento do Terceiro Império Português, assim como imagens de longas fileiras de carregadores africanos, um dos subprodutos destas “expedições científicas”. Quanto à terceira secção, “Os ‘Outros’ documentados (e exibidos)” (pp. 37-49), com textos dos coordenadores e de Cármen Rosa, as fotografias por si escolhidas põem em relevo a cristalização do “Outro”, demostrando que um certo percurso era concebido pelo olhar europeu: a passagem da “selvajaria” à “civilização”, através de sucessivas etapas que deveriam anular, melhor dizendo folclorizar, o “exotismo” percepcionado. Daí que um dos pontos de partida deste processo assentasse nos chamados jardins zoológicos coloniais (fotografia da Aldeia dos Muleques na Exposição do Mundo Português, p. 38), os quais dariam vida às imagens e gravuras estereotipadas que os visitantes conheciam dos livros e dos bancos da escola. Refira-se, ainda, que a quarta secção (pp. 51-72), outrossim sob o signo do “mundo que o português criou”, aborda a questão do cacau de S. Tomé e Príncipe, com fotografias das roças e das duras condições de vida dos trabalhadores “contratados”; a alínea intitulada “De ‘pacificação’ em ‘pacificação’”, num jogo de palavras com as ditas “campanhas de pacificação” dos finais de Oitocentos e inícios de Novecentos – na realidade brutais campanhas militares –, mostra os autores Bandeira Jerónimo e José Pedro Monteiro a seleccionarem registos fotográficos da “pacificação”, quer por via da malha administrativa, quer através de um interrogatório no contexto do Massacre de Batepá, em S. Tomé, em 1953; finalmente, “As ‘oficinas da alma’” apresenta cinco fotografias sobre a questão educativa.
7Enquanto a secção seguinte trata do povoamento e das tentativas de desenvolvimento levadas a cabo por Lisboa (pp. 71-91), a sexta secção, “As Práticas da Cultura” (pp. 93-104), não deixa de evocar a “aculturação” desejada, com diversas fotografias sugestivas (uma banda musical saudando uma missão; uma residência “indígena” em Luanda; ou o “retrato de mulher com auscultadores”). A secção mais longa abarca a “guerra” (pp. 105-142), aqui tratada numa perspectiva não necessariamente cronológica, mas espelhando os seus vários cambiantes: fotografias de soldados, fotografias da “frente interna”, o conflito das ideias e, sobretudo, as vítimas. Por seu lado, a oitava secção, “Visões da Independência” (pp. 143-150), parece fixar-se mais no modo como a descolonização foi sentida pelo colonizador: abundam, com efeito, fotografias de estátuas e fotografias de malas, num exercício que parece decompor (e remeter) para a ainda mais famosa imagem captada por Alfredo Cunha, em 1975, perante o maciço regresso de portugueses de Angola e Moçambique.
8A secção final (pp. 151-157), que reproduz parte de Nação, instalação artística montada por Romaric Tisserand, no contexto da exposição, apresenta um poema de Myrian Taylor sobre o trabalho de Tisserand. E, de facto, “Um não lugar”, sintetiza em verso livre o objectivo da exposição, do documentário e do livro aqui revisto: “falo de um não lugar / onde se vive a realidade da sombra” (p. 157). Na verdade, a lente e a objectiva coloniais compuseram uma realidade complexa e multiforme, baseada num discurso ideológico que medrou a partir de concepções pseudocientíficas, envoltas numa moral de progresso da humanidade. Desmontar essas peças, imagens e visões, uma por uma, é, pois, o objectivo desta releitura do império.
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Référence électronique
Sérgio Neto, « Miguel Bandeira Jerónimo e Joana Pontes (coord.), Visões do Império », Lusotopie [En ligne], XXI(1) | 2022, mis en ligne le 01 septembre 2022, consulté le 02 décembre 2024. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lusotopie/5294 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lusotopie.5294
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