- 1 “Mulheres negras” tem aqui o sentido dado por Lélia Gonzalez: de categoria política crítica à conce (...)
1O texto abordará as demandas por mudança na narrativa oficial e por igualdade e justiça raciais, com a inclusão da perspectiva de gênero e busca de história de mulheres negras1, em decorrência da descoberta de uma carta escrita de próprio punho, por Esperança Garcia, em 6 de setembro de 1770. A missiva estava no arquivo público do Piauí e sua revelação desencadeou, na geração presente, uma imediata identificação. Teve impacto na reformulação da memória coletiva local e nacional, com fortalecimento do movimento e feminismo negros, incremento de pesquisas acadêmicas sobre protagonismo das mulheres negras e com iniciativas para prestar homenagens às pessoas que lutam por liberdade e justiça.
2Analisaremos como (ou se) o acervo formado em torno da carta de Esperança Garcia dialoga (ou pode dialogar) com duas recentes condenações do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), nos casos: Fazenda Brasil Verde (Corte IDH 2016); e Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus Familiares (Corte IDH 2020). Nos dois casos, a imposição, pela Corte IDH, de medidas de reabilitação das vítimas encontra o desafio de lidar com a discriminação e o racismo estruturais, inerentes à ordem social brasileira, a suas estruturas e a seus mecanismos jurídicos, e que resultam em práticas que expõem os mais frágeis a maiores riscos.
3Nossa hipótese é que a experiência em torno do resgate da memória de Esperança Garcia pode ser aproveitada no desenho e implementação das medidas de reparação às vítimas nesses dois casos em que o Brasil foi condenado pela Corte IDH. O papel da memória é central na conexão entre a narrativa de Esperança e as violações de direitos humanos nos casos eleitos, ocupando a lacuna do tempo entre o passado, presente e futuro. A pesquisa se concentra no uso, pela geração presente, da denúncia feita por Esperança, com o objetivo de repartir e atribuir responsabilidades e fortalecer os direitos humanos e as instituições com valores democráticos.
4Iniciaremos contextualizando Esperança Garcia e sua reivindicação escrita, para depois tratar das principais homenagens e iniciativas para valorização de sua resistência. Depois, abordaremos as iniciativas para o combate ao racismo no Brasil, bem como os dois casos em que o país foi condenado pela Corte IDH, pela discriminação estrutural que, no entender dos julgadores, decorre do legado da escravidão. Por fim, analisaremos os pontos de diálogo entre as condenações e o enquadramento de Esperança Garcia no espaço público, como mulher negra que lutou contra a opressão.
- 2 A Corte Interamericana de Direitos humanos é uma instituição judiciária autônoma, cujo objetivo é a (...)
5A metodologia adotada será precipuamente analítico-dedutiva, com base documental. Na primeira parte, a pesquisa se centrará no contexto histórico da carta de Esperança Garcia, com revisitação bibliográfica. E na segunda, analisaremos, à luz da legislação internacional dos direitos humanos, as duas decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos2, que condenam o Brasil por violações perpetradas a grupos historicamente discriminados e atualmente marcados pela pobreza e ausência de oportunidades. A ideia é refletir, a partir da memória de Esperança, as violações de direitos humanos que negros e, sobretudo, negras ainda sofrem no Brasil contemporâneo, com destaque para as condições ainda precárias e análogas à escravidão.
6Esperança Garcia viveu no século xviii, no nordeste brasileiro, nas Fazendas Algodões e Poções, localizadas onde hoje estão os Estados nordestinos do Piauí e Maranhão. Estas propriedades integravam o acervo de 33 fazendas pertencentes aos missionários da Companhia de Jesus, que foram confiscadas pela Coroa Portuguesa quando da expulsão dos jesuítas (Silva 2017). A partir de então, ficaram sob a custódia real e receberam a denominação de “Fazendas do Real Fisco” ou “fazendas da Nação”.
7A Esperança Garcia que escreveu a carta a Gonçalo Lourenço Botelho de Castro, presidente da Província de São José do Piauí, para reclamar de maus-tratos quando foi forçada a sair da Fazenda Algodões para a Fazenda Poções, era uma mulher negra, escravizada, nascida no Brasil, jovem, casada, mãe de dois filhos vivos, católica, alfabetizada, com alguma noção dos direitos e da forma de reivindicá-los, vivendo longe de seu marido, por imposição do regime escravocrata.
8No formato de petição da época, a carta de Esperança Garcia é considerada um dos registros mais antigos que uma pessoa escravizada fez sobre a escravidão no Brasil. Esperança pede para voltar à fazenda anterior, onde vivia com seu marido, denunciando a violação à sua liberdade religiosa, por não poder batizar sua filha caçula, e maus-tratos e abusos físicos que ela e seu filho sofriam. A carta tem o seguinte teor:
- 3 No original: “Eu sou hua escrava de V. Sa. administração de Capam. Antº Vieira de Couto, cazada. De (...)
“Eu sou uma escrava de Vossa Senhoria da administração do Capitão Antônio Vieira do Couto, casada. Desde que o capitão lá foi administrar que me tirou da fazenda algodões, onde vivia com o meu marido, para ser cozinheira da sua casa, ainda nela passo muito mal.
A primeira é que há grandes trovoadas de pancadas em um filho meu sendo uma criança que lhe fez extrair sangue pela boca, em mim não posso explicar que sou um colchão de pancadas, tanto que caí uma vez do sobrado abaixo peiada; por misericórdia de Deus escapei. A segunda estou eu e mais minhas parceiras por confessar há três anos. E uma criança minha e duas mais por batizar. Peço a Vossa Senhoria pelo amor de Deus ponha aos olhos em mim ordenando digo mandar ao procurador que mande para a fazenda de onde me tirou para eu viver com meu marido e batizar minha filha.
De V.S.ª sua escrava, Esperança Garcia.”3
9Na redação da missiva, ao seguir requisitos formais e centrar a reclamação em pontos específicos, Esperança “utilizou a estratégia dos conquistadores para defender os seus direitos, angariar vantagens e, com isso, (re)planejar seu destino perto dos seus filhos e do seu marido” (Souza & Silva 2017), o que indica uma noção das instituições e de institutos jurídicos.
10Como ressaltou Luiz Mott – o historiador que descobriu a carta de Esperança Garcia – esse registro trouxe à tona a existência, em meados do século xviii, de mulheres escravizadas alfabetizadas e suficientemente “politizadas” para reivindicar seus direitos e denunciar às autoridades os desmandos de prepostos (Costa 2012). É consenso, entre pesquisadores, a dificuldade de “achar fontes sobre elas por elas mesmas - diários, registros, entrevistas” (Miranda 2019). A historiadora Maria Odila Dias, em artigo que analisa a invisibilidade das mulheres, especialmente das pobres, na urbanização incipiente da cidade de São Paulo, a partir do último quartel do século xviii, destaca o analfabetismo paulista da quase totalidade da população feminina pobre (Dias 1983). Quando há o recorte de gênero na pesquisa sobre escravidão, “tratar de mulheres negras – principalmente as escravizadas – ainda é procurar uma agulha no palheiro da historiografia” (Miranda 2019: 87). Maria Silvia Barbosa, pesquisadora em estudos interdisciplinares sobre a mulher, constatou, em 2003, o desinteresse da historiografia brasileira em relação às mulheres e que mesmo os pesquisadores comprometidos com a questão racial mencionavam apenas superficialmente a resistência feminina à escravidão (Barbosa 2003). No Brasil da década de 2020, a situação começa a mudar e já há uma biblioteca sobre o universo feminino negro se consolidando, construído por vozes negras (Santana 2020).
11A carta de Esperança Garcia, além da excepcionalidade de ser manuscrita por uma mulher negra no século xviii, enquadra-se na categoria das fontes escritas que Maria Odila Leite da Silva Dias entende necessário que os historiadores se debrucem, para encontrar “fragmentos de realidades diferentes, simultâneas, que se enredam e se eludem umas às outras [...]”, embora reconheça que seja “difícil e tortuoso o desvendar desse quotidiano, que nem sequer corresponde aos tempos dos sinos da igreja; impõe muitas reflexões sobre as limitações das fontes escritas” (Dias 1983: 32).
12A instrução formal de Esperança Garcia guarda relação com a presença dos padres jesuítas, missionários da Companhia de Jesus nos atuais estados nordestinos do Maranhão e Piauí e no Estado do Pará (na região norte). Por terem sido donos e encarregados da gestão de fazendas e dos que nela moravam e trabalhavam, os religiosos tiveram participação no processo de alfabetização e orientação de pessoas escravizadas na região em que Esperança Garcia se encontrava. Isso, no entanto, não significa que o aprendizado fosse algo permitido e corrente entre os escravizados, como ressalta Élio Ferreira de Sousa, pesquisador da temática do negro na literatura: “Esperança Garcia é uma exceção, porque era proibida a leitura para escravo; quem fosse flagrado ensinando escravo a ler era preso e/ou processado. Ela escreveu a carta um ano depois que os jesuítas, de quem era escrava, foram expulsos do Brasil por Marquês de Pombal” (Silva 2015: 7).
13Apesar da existência dessa proibição formal de ler, a relação dos missionários com as pessoas sob seu jugo (negras, indígenas dentre outros grupos) conferiu características diferentes à violência da escravidão, com incorporação de direitos pelos cativos, como “garantias em torno das partilhas dos animais nascidos nas fazendas, acessos aos ritos e cerimônias do catolicismo, como o compromisso dos matrimônios entre os escravos, batismos e confrarias religiosas” (Silva 2017: 43). Os registros de casamento na região de Oieiras, onde viveu Esperança, mostram que, diferente de outras localidades, era permitida a união formal entre pessoas escravizadas de donos diferentes ou entre pessoas cativas e livres (ibid.: 39).
14Os jesuítas deixaram o Maranhão em 1772. Mas antes disso, as propriedades não eram suas, já que a ordem de expulsão dos religiosos e confisco os bens da congregação aconteceu formalmente em 1759. A transição entre gestores das propriedades (dos jesuítas para os prepostos da Coroa) não foi tranquila, pois a exploração dos religiosos tinha traços que conferiam alguma “dignidade” às pessoas escravizadas.
15A reivindicação veiculada na carta de Esperança tem uma preocupação comunitária (pede para ela e as outras se confessarem e batizarem os filhos), um traço marcante na vida das cativas, fugitivas ou libertas de ancestralidade africana (Mott 1988; Barbosa 2003) e também das mulheres pobres de regiões urbanas do Brasil dos séculos xviii e xix (Dias 1983).
16Ao abordar a luta feminina por sobrevivência no final do século xviii, Maria Odila Dias menciona a importância dos laços de vizinhança construídos e mantidos por mulheres, destacando que “o seu espaço social era justamente o ponto de interseção onde se alternavam e se sobrepunham a área de convívio das vizinhanças e dos forasteiros; a do fisco municipal e do pequeno comércio clandestino; as fímbrias da escravidão e do trabalho livre, o espaço do trabalho doméstico e de sua extensão ou comercialização pelas ruas” (Dias 1983: 32). Num outro cenário de resistência, Márcia Barbosa faz constatação semelhante, ao analisar as relações travadas dentro do Quilombo do Urubu, na Bahia, no início do século xix, a partir da pesquisa sobre a negra Zeferina, líder deste quilombo, que foi capturada e morta em 1826 (Barbosa 2003). Bianca Santana ressalta a importância das negras nas irmandades da Boa Morte e Nossa Senhora dos Pretos, no início do século xix. Por essas instituições, organizavam-se compras coletivas de alforrias e enterros dignos e também realizavam festas celebrando os espíritos dos antepassados (Santana 2020).
17O legado da vida comunitária caracteriza a luta contemporânea das mulheres negras, faveladas, indígenas, quilombolas e de comunidades tradicionais (ibid.). Bianca Santana ao destacar a importância das mulheres negras na resistência ao machismo e ao racismo no Brasil de hoje, lembra que, “nas comunidades negras, especialmente as mais pobres, são comuns os relatos de partilha de recursos materiais e de redes de solidariedade [...]. A rede de ajuda mútua também se materializa na troca de cuidados, serviços e outros recursos, além dos financeiros” (Santana 2020: 168-169).
- 4 Bianca Santana, em sua tese de doutorado (Santana 2020), apresenta um rol extenso e detalhado da ev (...)
- 5 A comercialização do Acarajé é considerada um exemplo de empreendedorismo feminino de sucesso. Para (...)
18Entre a divulgação e debate do teor da carta e a consolidação da imagem de Esperança Garcia como liderança negra, decorreram cerca de três décadas. Neste período, o país saiu de uma longa ditadura (1964-1985) e promulgou uma nova Constituição (1988), pautada em valores democráticos, na garantia das liberdades e no combate às desigualdades, inclusive declarando o racismo como crime imprescritível e inafiançável. Neste período, na luta pela memória das pessoas negras4, destacam-se, em rol não exauriente: a Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes, de 1985; o tombamento do terreiro de candomblé Casa Branca, em Salvador, em 1984, que não tinha valor arquitetônico, mas que portava valores religiosos e culturais ligados às pessoas afrodescendentes; a criação, em 1988, do Geledés - Instituto da Mulher Negra, uma Organização da Sociedade Civil que desenvolve ações e projetos que buscam a erradicação do racismo e do sexismo ainda vigentes na sociedade brasileira; a criação, em 1988, da Fundação Cultural Palmares, uma entidade pública federal; a realização do I Encontro Nacional da Mulher Negra, em 1988, no Rio de Janeiro, que reuniu cerca de 450 participantes, com a finalidade de organizar o movimento incipiente de mulheres negras; a promulgação da Lei do Racismo, em 1989, que permitiu a punição criminal de práticas racistas; a realização, em 1992, do I Encontro de Mulheres Negras Latino-Americanas e Caribenhas, com a fundação, nesta reunião, da Rede de Mulheres Negras Afro Latinoamericana e Afro Caribenhas (RMAA); a divulgação da pesquisa Arqueológica realizada por Pedro Paulo A. Funari, Charles Orser e Michael Rowlands, na década de 1990, que desvendou a materialidade do Quilombo de Palmares, liderado por Zumbi dos Palmares (Orser & Funari 2004); a concessão, em 2005, do título patrimônio cultural do Brasil, ao ofício das Baianas de Acarajé, prática tradicional de produção e venda, em tabuleiro, das chamadas comidas de baiana, feitas com azeite de dendê e ligadas ao culto dos orixás, herança africana trazida pelos escravizados e adotada, há mais de 150 anos, como meio de sustento pelas mulheres negras5; a promulgação da Lei 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nos ensinos fundamental e médio; a Inauguração, em 2004, do Museu Afro Brasil em São Paulo.
- 6 No Tomo 1, “La République”, de 1984, o primeiro da coleção Les Lieux de mémoire, publicada entre 19 (...)
19Eleger efemérides para formar e consolidar a memória coletiva e para reparar simbolicamente grupos injustiçados é uma prática prevista na Constituição, no art. 215, que versa sobre liberdade de manifestação cultural. Independentemente do status constitucional, as datas comemorativas podem, em determinadas circunstâncias, ser entendidas como um lugar de memória, termo difundido pelo historiador Pierre Nora6. Para Nora, os “Lugares de Memória” “nascem e vivem do sentimento de que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais" (Nora 1993: 13). Nora concebe os lugares de memória como “restos”, como “rituais de uma sociedade sem ritual; sacralizações passageiras numa sociedade que dessacraliza;[...] sinais de reconhecimento e de pertencimento de grupo numa sociedade que só tende a reconhecer indivíduos iguais e idênticos (ibid.: 12-13).
20Ao constatar que a memória coletiva precisa de símbolos que sustentem ou criem laços identitários unificadores, Pierre Nora argumenta que é possível construir uma unidade memorial a partir da reunião de signos e significados comuns: “o que fica do passado no vivido dos grupos ou o que os grupos fazem do passado” (Nora 2008: 21). Nora ressalta que certos lugares de memória são bastiões erguidos pela necessidade de se defender algum valor, direito ou princípio que está ameaçado (Nora 1993). Nesta perspectiva, a escolha da data que consta na carta de Esperança Garcia (dia 6 de setembro) como o dia da Consciência Negra no estado do Maranhão é um lugar de memória e é também um bastião, que serve de amparo e inspiração para as gerações presentes.
21Mais que o uso da data da carta como efeméride, o próprio documento, manuscrito e firmado por Esperança é um lugar de memória “matriz”. É da carta que decorrem todos os outros símbolos, homenagens e atividades memoriais em torno da existência e da resistência de Esperança Garcia.
22Os sentidos material, funcional e simbólico da carta, combinados ou separadamente, inspiraram e formaram um acervo tão diverso e complexo, que permite, inclusive, refletir acerca da possibilidade de enquadrá-lo em outra categoria – a do território de memória, termo cunhado pela pesquisadora Ludmila da Silva Catela, para definir espaços de participação política, produção cultural e social, lugares de denúncia e luta contra as ditaduras (Catela 2007: 41). A utilização da conceituação de território de memória para o caso Esperança Garcia oferece maior aporte para reflexão sobre a memória das pessoas negras, especialmente das mulheres, bem como sobre as formas de reparação e adoção de políticas públicas que garantam um futuro de igualdade.
23Ao buscar um aporte teórico para lidar com as memórias traumáticas dos desaparecidos políticos da ditadura argentina (1976-1983), Ludmila Catela critica a conceituação de lugar de memória de Pierre Nora, por entendê-la por demais “estática, unitária e substantiva”, mas a toma por base para propor a expressão território de memória, que remete à ideia de “um tecido de lugares que potencialmente pode ser representado por um mapa” (Catela 2001: 208). Para Catela, “as propriedades metafóricas do território nos leva a associar conceitos tais como conquista, litígios, deslocamentos ao longo do tempo, variedade de critérios de demarcação, de disputas, de legitimidades, direitos, ‘soberanias’” (ibid.).
24Com a categoria território de memória é possível compreender a articulação entre o teor da carta, a inserção de sua data em calendário comemorativo, a materialização de Esperança, com rosto, corpo e vestimentas, a renomeação de espaços com seu nome e até o uso de fantasia inspirada na escravizada pela rainha da escola de samba Estação Primeira de Mangueira, em 2019, quando foi campeã do desfile de carnaval no Rio de Janeiro, com um samba-enredo intitulado “história para ninar gente grande”, que fala das violências não contadas (ou não lembradas no discurso oficial) praticadas contra negros, indígenas e outros grupos vulneráveis que formam a sociedade brasileira7.
25No território de memória de Esperança, ainda lhe faltava materialidade para que circulasse com maior desenvoltura nos espaços públicos: um corpo, um rosto, uma prova de existência. A demanda foi atendida no ano 2000, com a instalação de uma escultura de barro em tamanho real, do artista Charles do Delta, na Central de Artesanato Mestre Dezinho, local turístico e de ampla visitação em Teresina. A estátua é de uma mulher de estatura mediana, certa 1,60 de altura, sentada, com os pés descalços e acorrentados, mas com as mãos livres escrevendo a carta. Ao lado, há outro monument de barro com o texto da carta.
Estátua de Esperança Garcia em Teresina
Cristihiane Castro, maio 2022
- 8 A palavra crioula é usada nesse texto como designação de pessoa negra de ascendência africana nasci (...)
26A criação da escultura seguiu algumas orientações/sugestões do historiador que descobriu a carta, Luiz Mott. Ele informou que, como Esperança era crioula8 e já nascida no Brasil e de religião católica, não deveria usar turbante ou cabelo trançado e sua vestimenta provavelmente seria um vestido ou blusa de algodão, sem largos decotes ou seios à mostra. Podia ter cabelos curtos ou usar um lenço na cabeça e, por ter filhos pequenos, era jovem, com cerca de vinte e poucos anos. Luiz Mott ainda sugeriu uma expressão altiva e sofrida para o olhar dela (Costa 2012). A estátua de Esperança Garcia integra o rol de homenagens que se tornam uma materialidade para a resistência de Esperança, aproxima a geração presente, cria empatia e tem a pretensão de comprometer as pessoas com a luta contra o racismo.
27Desde a descoberta da carta até a primeira década dos anos 2000, houve homenagens esparsas a Esperança. Foi a partir dos anos de 2010 que aconteceu o reposicionamento da memória coletiva, para inserção mais incisiva de Esperança Garcia como liderança negra, num mesmo patamar dos protagonistas mais emblemáticos na luta contra o regime escravagista, como Zumbi dos Palmares, Luiz Gama, Luísa Mahin, Teresa de Benguela, Dandara dos Palmares, Zeferina, dentre outros.
28Sob a ótica das “propriedades metafóricas do território”, mencionadas por Catela, a inserção de Esperança Garcia, nos espaços públicos e no imaginário coletivo, expressa disputas – entre ela (recém-descoberta) e lideranças negras já estudadas e com lugar na história – por protagonismo e tem momentos de tensão nos processos de acomodação dos elementos da memória.
29Michael Pollak, assim como Nora, considera importante a materialidade, os símbolos e signos, ainda entende que a construção da memória só é possível quando ligada à questão identitária, uma “ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e o sentimento de identidade” (Pollak 1992: 204). Nesse sentido, a construção da resistência à escravidão a partir de Esperança Garcia é uma reconfiguração de futuro negro e feminino, um “enquadramento da memória” (ibid.).
30Baseado nas duas funções da memória comum – a manutenção da coesão interna e a defesa das fronteiras daquilo que um grupo compartilha entre si, Pollak defende que o termo “memória enquadrada”, cunhado por Henry Rousso, é mais apropriado do que memória coletiva, por notar que essas funções da memória comum precisam de “um quadro de referências e de pontos de referência” (Pollak 1989). A moldura da memória de Esperança Garcia tem, no acervo sistematizado sobre a escravidão no Brasil, o seu quadro de referências; e, nas instituições e valores como casamento, maternidade, liberdade religiosa, incolumidade física e psíquica, confiança nas instituições (já que faz uma denúncia formal, lançando mão da via criada e usada pelo dominador), seus pontos de referência.
31Pollak nota que a credibilidade “depende da coerência dos discursos sucessivos”. E a combinação na moldura da memória de Esperança Garcia deu credibilidade e facilitou o trabalho de enquadramento, que, nas palavras de Pollak,
“[...] se alimenta do material fornecido pela história. Esse material pode sem dúvida ser interpretado e combinado a um sem-número de referências associadas; guiado pela preocupação não apenas de manter as fronteiras sociais, mas também de modificá-las, esse trabalho reinterpreta incessantemente o passado em função dos combates do presente e do futuro. (…) o trabalho permanente de reinterpretação do passado é contido por uma exigência de credibilidade que depende da coerência dos discursos sucessivos.” (Pollak 1989: 10)
32No caso Esperança Garcia, o enquadramento da memória passou por disputas com Zumbi dos Palmares, líder do quilombo homônimo, maior herói negro do país, símbolo da resistência e da não aceitação da escravidão. Nota-se que a credibilidade da memória de Esperança Garcia está baseada na sua identidade interseccionada – mãe, mulher e negra – e na atual visão de “as lideranças que representam essas interseções desempenham um papel fundamental na conexão de diferentes grupos de pessoas” porque desafiam “o privilégio branco no movimento de mulheres” e “o patriarcalismo nas comunidades de minorias raciais e étnicas” (Berbec-Rostas et al. 2018: 109). É neste território de memória, e em seu enquadramento, que a visão da geração atual se destaca:
“[...] Além disso, toda memória é construída no presente, por agentes que visam sua reapropriação no futuro. As versões do passado, as diferentes abordagens históricas, as memórias coletivas que são acionadas pelos agentes sociais são reveladoras de preocupações encontradas no presente. É no presente, portanto, que a construção do passado é disputada como recurso para a construção de um futuro que responda às aspirações deste presente.” (Nercolini & Enne 2016: 5)
33Desde a década de 1970, havia comemorações do dia da consciência negra em 20 de novembro, em homenagem a Zumbi dos Palmares, já que esse é o dia atribuído à sua morte, em 1695. No âmbito nacional, o dia foi instituído, pela Lei nº 12.519, em 2011. Rompendo esse consenso, a lei do Estado do Maranhão escolhe a data da carta de Esperança (6 de setembro) como o Dia da Consciência Negra. Em 2017, o Memorial Zumbi dos Palmares, espaço dedicado à cultura negra em Teresina, que funcionava desde 2007, foi reformado e reinaugurado com o nome de Memorial Esperança Garcia9. Essa mudança de nome aconteceu após a publicação da pesquisa intitulada “Dossiê Esperança Garcia: Símbolo de Resistência na Luta pelo Direito” (Souza & Silva 2017), realizada pela Comissão da Verdade da Escravidão Negra da Ordem dos Advogados do Brasil no Piauí (OAB-PI). Esta publicação, bem como o trabalho da Comissão, utilizou a história de Esperança para lançar luzes sobre as histórias de resistência negra e indígena às injustiças a que foram e são submetidos (ibid.: 10).
- 10 O Projeto está em tramitação, no Congresso Nacional, com todos os pareceres das comissões da Câmara (...)
34O Dossiê Esperança Garcia (Souza & Silva 2017) também serviu de base para a concessão, pela OAB-PI do título simbólico de primeira mulher advogada do Brasil a Esperança Garcia, em 2017; e a apresentação, em 2019, do Projeto de Lei nº 3772, que visa inscrever o nome de Esperança Garcia no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria10.
35As homenagens à indignação de Esperança Garcia não se restringiram ao Piauí. Há diversos coletivos e movimentos sociais que usam o nome Esperança Garcia como símbolo de luta pelos direitos humanos, inclusive com a reivindicação de renomeação de espaços públicos para celebrar essa mulher escravizada. Uma renomeação importante foi a do auditório da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), de Joaquim Nabuco11 para Esperança Garcia. Em 2019, foi oficializado o Instituto Esperança Garcia, que desenvolve iniciativas de educação em Direitos Humanos12.
36A forte presença do passado colonial e escravocrata é um dos pontos mais relevantes para compreensão do resgate da memória de Esperança Garcia. Dentre tantas pautas ligadas à equidade racial, a luta por igualdade de oportunidades e por garantias de trabalho digno indicam a dificuldade, no Brasil, de se aniquilar os resquícios da escravidão. Assim, elegemos dialogar com as condenações do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos nos casos Fazenda Brasil Verde e Explosão da Fábrica de Fogos de Bom Jesus. Optamos por focar nos caminhos institucionais e dos instrumentos de cidadania para buscar justiça racial com o encaminhamento da denúncia a pessoas ou instituições, que têm o dever de garantir algum patamar de dignidade, para gerar mudança de postura e melhoria de toda comunidade.
37Nessa perspectiva, pode se dizer que a carta de Esperança Garcia encontra espaço no Estado democrático de direito brasileiro não somente por lembrar a necessidade de superar de vez o racismo estrutural, mas também acreditar que instituições e pessoas públicas têm compromissos com valores maiores.
38Em diálogo com o sistema ONU (Comitê Cedaw 1992), a discriminação estrutural é aquela inerente à ordem social, a suas estruturas e a seus mecanismos jurídicos, institucionalizada em todos os âmbitos das sociedades, resultando em práticas que desigualam e prejudicam determinados grupos ou pessoas (CIDH 2006), colocando-as em maior risco ou perigo. No Brasil, o racismo é uma das mais relevantes formas de discriminação e, assim como em outros países, o racismo estrutural tem a sofisticação de operar dentro do ordinário, sem chamar atenção para o desvio, desarranjo ou anormalidade comportamental, sendo conjuntos de práticas inconscientes, conscientes e até mesmo institucionalizadas, que se articulam sofisticadamente de modo a normalizar “relações políticas, econômicas, jurídicas e até familiares” (Almeida 2019: 52).
- 13 A definição legal de Quilombolas é de comunidades compostas por “grupos étnico-raciais, com trajetó (...)
39O racismo estrutural permeia as discussões sobre efetividade dos direitos sociais no Brasil. A Constituição inspirou a criação de instituições e o desenho de políticas públicas para o combate ao racismo, ao destacar a dignidade e a cidadania como fundamentos do Estado Democrático brasileiro e ao trazer diversos artigos que valorizam a igualdade racial, criminalizam atitudes racistas e garantem o direito de manutenção da identidade cultural, conferindo, inclusive, direitos territoriais às comunidades quilombolas13.
- 14 Art. 3º, I a IV, da CF.
40Além disso, nos dispositivos constitucionais, é previsto que cabe ao Estado brasileiro a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e ainda a promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação14. A declaração desses objetivos é o reconhecimento da necessidade de desenvolvimento econômico e social e da existência de desigualdades.
41A garantia constitucional de igualdade, no entanto, não foi suficiente para eliminar ou sequer arrefecer o racismo. Para Isis Aparecida Conceição, a questão racial está mais ligada ao direito à dignidade do que apenas direito à igualdade (Conceição 2010). Lélia Gonzalez lembra que a igualdade perante a lei tem “caráter nitidamente formalista em nossas sociedades” e que o racismo na América Latina é “suficientemente sofisticado para manter negros e indígenas na condição de segmentos subordinados no interior das classes mais exploradas, graças a sua forma ideológica mais eficaz: a ideologia do branqueamento”, que “reproduz e perpetua a crença de que as classificações e os valores da cultura ocidental branca são os únicos verdadeiros e universais” (Gonzalez 2011: 15).
42Entre as décadas de 1990 e 2000, o poder executivo federal brasileiro se envolveu no combate ao racismo, com a estruturação de unidades e órgãos públicos para implementação de políticas públicas desenhadas para fortalecimento dos direitos das pessoas negras. Uma das iniciativas mais importantes foi a criação, em 2003, da Secretaria Nacional de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR), no âmbito do governo federal, sempre ligada à pasta de direitos humanos ou equivalente.
43No entanto, apesar da importância do reconhecimento, no âmbito federal, da necessidade de uma atuação estatal permanente na implementação de medidas e ações que permitam alcançar a igualdade racial, as medidas adotadas pelo Poder Público ainda não foram suficientes para reverter o cenário.
44Em 2016, antes mesmo do governo Bolsonaro (2018-2022), quando havia um esforço institucional para fortalecer os grupos vulneráveis, o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana, no caso Trabalhadores da Fazenda Brasil Verde (Corte IDH 2016). Foi a primeira vez em que a Corte IDH expressamente determinou a responsabilidade internacional contra um Estado, por perpetuar uma situação estrutural histórica de exclusão.
45Os fatos do caso remontam à situação de trabalho forçado e servidão a que foram submetidos centenas de trabalhadores na Fazenda Brasil Verde, localizada no Sul do Estado do Pará. Esta conjuntura foi primeiramente conhecida quando alguns trabalhadores conseguiram escapar do local e procuraram autoridades para denunciar o que ali vivenciaram.
46Foram realizadas fiscalizações em 1993, 1996, 1997 e 2000 na propriedade e, em uma das operações realizadas pelo Ministério do Trabalho, foi constatado que, além de trabalharem em condições de total precariedade, sofriam ameaças, inclusive com armas de fogo, e eram proibidos de deixar a fazenda (Corte IDH 2016: § 144). As ações penais propostas contra o empregador dos trabalhadores rurais, o gerente e o proprietário da Fazenda Brasil Verde não resultaram em condenação e os responsáveis saíram impunes.
47O caso foi levado à Corte IDH em 2011 e julgado em 2016. A Corte IDH avaliou que o Estado não deve apenas se abster de violar direitos, como também deve adotar medidas positivas voltadas à proteção do sujeito de direito por necessidades particulares (Corte IDH 2016: § 316). Nesse sentido, destacou-se que o Estado não adotou medidas necessárias para desempenhar sua obrigação internacional de prevenção à escravidão contemporânea.
48Do mesmo modo, havendo um contexto de discriminação estrutural, o Estado que não adota medidas específicas voltadas à proteção de grupos vulneráveis deve também ser responsabilizado internacionalmente (Corte IDH 2016: § 338). Sendo assim, o Estado brasileiro foi considerado omisso em relação aos trabalhadores da Fazenda Brasil Verde, tendo em vista que eram, em sua maior parte, pessoas pobres, negras e sem escolaridade.
49Ademais, a Corte IDH ponderou que o Estado brasileiro não cumpriu com seus deveres de agir com a devida diligência, considerando a urgência da situação e o risco ao que os trabalhadores da Fazenda Brasil Verde estavam sujeitos (Corte IDH 2016: § 368). Ainda, entendeu-se que o Estado falhou em atuar dentro de um prazo razoável e oferecer recursos efetivos às vítimas para que obtivessem uma resposta da justiça.
50 Não só os afetados por aquele evento, inconsoláveis pela inércia do Estado, podem ser considerados vítimas pela Corte IDH, como também toda a sociedade brasileira, que tem o direito de atestar que o Estado deu efetiva resposta ao cometimento de crimes, para que estes não se perpetuem e nem contribuam para a persistente desigualdade em nosso País.
51Assim, a Corte IDH constatou que as vítimas foram vulneradas pela desigualdade da realidade brasileira, marcada pela pobreza, desigualdades regionais e restrição de acesso ao emprego. Nesse sentido, concluiu-se que a pobreza e a concentração de propriedades contribuíam para a perpetuação do trabalho escravo no país (Corte IDH 2016); e que “apesar da abolição legal, a pobreza e a concentração da propriedade das terras foram causas estruturais que provocaram a continuidade do trabalho escravo no Brasil” (Corte IDH 2016: § 111).
- 15 Nota Técnica Smartlab n. 1/2017. Observatório Digital do Trabalho Escravo no Brasil. Disponível em (...)
52Diante disso, insta salientar que a vulnerabilidade socioeconômica, com marcadores raciais definidos, mostra um legado histórico a ser desconstruído pela densificação do projeto de democracia social inclusiva reafirmado pelo constituinte em 1988. Não é por acaso, que, de acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Ministério Público do Trabalho (MPT), 90% dos trabalhadores resgatados da escravidão vêm de municípios com baixos índices de desenvolvimento, sendo, na sua maioria, identificados como negros15.
53Não restam dúvidas de que os resultados da sentença do caso Fazenda Brasil Verde vs. Brasil se alastram pelos atores institucionais brasileiros. Um dos efeitos imediatos é trazer à tona o tema do trabalho análogo ao escravo e inseri-lo novamente no debate público, provocando maior participação social e pressionando os órgãos estatais para que realizem uma prestação de contas sobre a questão. Somada ao constrangimento internacional, a ampla divulgação em âmbito interno de uma condenação por violação a direitos humanos chama a atenção da população para a maneira como o Estado vem atuando na concretização dos direitos plasmados na CADH (Lazzari 2017).
54Apesar de legalmente abolida há quase 130 anos no país, e em plena dissonância com o projeto constitucional pátrio, a escravidão ainda é realidade presente por meio de formas contemporâneas mais ou menos explícitas de racismo e discriminação, denunciando situação sistemática e estrutural. Essa desigualdade da realidade brasileira estampada sobre a alcunha da discriminação estrutural foi novamente denunciada na penúltima condenação brasileira – o caso Empregados da Fábrica de Fogos de Santo Antônio de Jesus e seus Familiares vs. Brasil.
55As circunstâncias remontam à explosão, ocorrida em dezembro de 1998, em uma fábrica de fogos de artifício na cidade de Santo Antônio de Jesus. Na tragédia, quase 70 pessoas foram vitimadas, em sua maioria mulheres, muitas jovens, algumas crianças, todas em especial condição de vulnerabilidade. A sentença da Corte Interamericana constatou que a situação de extrema pobreza obrigava as vítimas a se submeterem a trabalho extremamente perigoso, na fábrica de fogos, e com uma remuneração absolutamente desproporcional à periculosidade e à insalubridade do trabalho.
56A explosão aconteceu em 1998 e até 2020, quando da condenação do Brasil, os responsáveis não haviam sido punidos. Assim, foi reconhecida a falha do país em proceder a investigação por todos os meios legais disponíveis, buscando determinar a verdade e a responsabilização dos responsáveis intelectuais e materiais pelos fatos (Corte IDH 2020: § 220).
57A Corte IDH reconheceu que foram as condições inseguras, precárias e insalubres de trabalho que ocasionaram o ambiente de violações e que o Estado brasileiro falhou ao não fiscalizar o local e a produção dos fogos, que se realizava de maneira perigosa. Além disso, segundo a Corte IDH, o Brasil faltou com o dever de promover desenvolvimento dos moradores da cidade e da região, o que evitaria que o exercício de trabalho nessas condições tivesse sido uma das poucas oportunidades de subsistência para as vítimas. Se não bastasse, após o desastre, o Estado não puniu os responsáveis.
58No caso da fábrica de fogos se reconhece situação de discriminação estrutural oriunda da vulnerabilidade comum, marcada pela pobreza, desigualdades regionais e pouco acesso a emprego. Tudo isso é entrecortado por um inevitável fator de raça, marcante na região da fábrica de fogos que explodiu. É que, como destacado no julgamento do caso, o recôncavo baiano é uma região povoada por descendentes de pessoas escravizadas que, embora livres e no exercício de sua cidadania desde a abolição da escravidão em 1888, não tiverem oportunidades e acesso a trabalhos dignos, nem suficiente atenção do poder público para implementação de políticas que transformassem suas vidas.
59Neste julgamento, o juiz Mac-Gregor Poisot apresenta um voto separado no qual, partindo de voto anterior, que proferiu no caso Fazenda Brasil Verde vs Brasil (Corte IDH 2016), avança para cotejar a discriminação estrutural histórica e a pobreza com reflexões sobre direitos humanos e empresas e igualdade substancial (Corte IDH 2020). Ao não considerar as vulnerabilidades, herdadas do passado escravocrata, o Estado promoveu tratamento discriminatório em razão da posição econômica dos trabalhadores.
60Essas desigualdades socioeconômicas se afloram nas complexidades das interseccionalidades, com marcadores raciais e de gênero bem definidos. Empregados da Fábrica de Fogos (Corte IDH 2020) é, acima de tudo, um caso sobre mulheres e meninas, negras e pobres. Isso não significa que a força de trabalho fosse exclusivamente feminina, mas que a atividade de fabricação de estalo de salão (ou traque) era realizada por mulheres, crianças e idosas, sob a justificativa de que tinham maior habilidade manual, caraterística essencial para esse tipo de trabalho. As crianças ocupavam 30 a 40% do total de pessoas trabalhando. Aos homens, cabia a tarefa de preparar a “massa” ou recheio dos traques (Corte IDH 2020: § 65 e 66).
61A Corte, após constatar que, em 1998, havia aproximadamente 60 % das 2 000 mulheres dedicadas à fabricação de fogos de artifício eram afrodescendentes, reconheceu que as trabalhadoras nas fábricas de Santo Antônio de Jesus eram “normalmente mulheres que não concluíram o ensino fundamental, que começaram a trabalhar na indústria entre os 10 e os 13 anos, e que aprenderam de vizinhos e familiares, sem receber nenhum tipo de capacitação formal. Trata-se de mulheres marginalizadas na sociedade, sem outras opções de trabalho” (Corte IDH 2020: § 65). As vulnerabilidades somadas – as interseccionalidades – agudizam o aspecto das vítimas: mulheres negras e pobres, cujo destino era traçado desde muito novas.
62Para esse caso, como garantia de não repetição, a Corte determinou que o país adotasse uma série de medidas de caráter estrutural, dentre as quais estão: a criação de alternativas econômicas para a inserção econômica e laboral das vítimas e familiares da explosão; e a criação e execução de um programa de desenvolvimento socioeconômico destinado à população de Santo Antônio de Jesus, cidade do Recôncavo Baiano (Corte IDH 2020: § 289 e 290). Foi a primeira vez que Brasil foi condenado a adotar medidas de reparação que contemplem as “chances perdidas”, termo que, na doutrina de direitos humanos, está relacionado à impossibilidade de execução do projeto de vida:
“o denominado projeto de vida atende à realização integral da pessoa afetada, considerando sua vocação, circunstâncias, potencialidades e aspirações, que lhe permitem estabelecer razoavelmente determinadas expectativas e atingi-las. A noção de dano ao projeto de vida se elabora em torno da ideia de realização pessoal e tem como referências diversos dados da personalidade e desenvolvimento individual, que sustentam as expectativas do indivíduo e sua capacidade para alcançá-las.” (Ramírez 2005: 67)
63Assim, a determinação da Corte de que sejam estabelecidas políticas públicas e empreendimentos que fortaleçam a população e a tirem do estado de vulnerabilidade extrema, parte do passado de desigualdades para lançar luzes para um futuro mais seguro, tanto econômica quanto socialmente. A garantia de não repetição não versa sobre a tragédia de morrer numa explosão em seu local de trabalho, mas em ter opções de sustento e escolhas de atividades seguras em sua comunidade.
64A sentença traz, nesse aspecto, interseção com o princípio de igualdade e não discriminação em relação à pobreza e diálogos explícitos com disposições da Constituição Brasileira e com a Consolidação das Leis do Trabalho. A decisão se aprofunda sobre o alcance do trabalho infantil e a jurisprudência da matéria, possuindo uma vertente de gênero de forma bastante nítida, apontando a injustiça da divisão do trabalho e das oportunidades para as mulheres; e aponta o dever do Estado de garantir um futuro para a comunidades vulneráveis, reparando-as quando se verificar a “perda de chances”.
65Ainda que as condenações do Estado brasileiro produzam efeitos consideráveis do ponto de vista institucional, bem como em relação à imagem do Brasil no plano internacional, não há dúvidas de que há muito a se fazer para a concretização de uma sociedade livre da pobreza, da marginalização e das discriminações. E mais: revela como o passado escravocrata ainda se reflete no presente brasileiro, com a precarização do trabalho das pessoas negras, sobretudo em contextos periféricos – como nos casos julgados pela Corte Interamericana.
66Por fim, é bom lembrar que as condenações, em especial esta da fábrica de fogos, chegam em um momento complexo da conjuntura brasileira em relação à proteção dos direitos humanos. As políticas executivas têm sido pautadas por uma agenda atentatória à proteção dos direitos humanos, cabendo às instituições do sistema de justiça fazer o referido contrapeso no sentido de se colocar como um “contra poder” no resguardo dos direitos, sobretudo dos grupos mais vulneráveis. Assim, o cumprimento da condenação do Brasil nos dois casos conta com um esforço maior das instituições do sistema de justiça, que tentam viabilizar as reparações, enquanto, outros atores públicos, a começar pelos ocupantes dos cargos mais elevados no poder executivo, ainda insistem em discursos e práticas violadoras e retrógadas.
67A memória de Esperança lança luzes para a insuficiência dos mecanismos institucionais já implantados para coibir práticas de trabalho degradantes, indicando a urgência de eliminar o racismo das relações no Brasil contemporâneo.
68Os maus-tratos e as violações descritas sucintamente por Esperança Garcia em sua carta guardam semelhanças com as denúncias feitas atualmente no Brasil, por mulheres que, apesar de livres, permanecem igualmente vulneráveis: negras, pobres, exploradas no trabalho, sem segurança em seus lares localizados em favelas ou zonas periféricas, vítimas de violência doméstica e de perseguição por crença religiosa, entre outras vulnerabilidades.
69Nossa hipótese de que a experiência em torno da memória de Esperança Garcia poderia ser aproveitada na adoção das medidas de reparação às vítimas nesses dois casos em que o Brasil foi condenado pela CIDH ainda não se confirmou na prática, embora seja viável no plano das ideias.
70Como destaca Thiago Amparo, ativista negro e professor de Direito, “há um poder em nomear a própria opressão. Também há um poder enorme em narrar as estratégias de resistência e as múltiplas formas de existência negra para além da opressão” (Amparo 2018: 118). Sabemos que as diferentes iniciativas a partir da carta de Esperança conseguiram despertar na coletividade sentimentos que contribuíram para melhor compreensão da violência da escravidão e a narrativa na primeira pessoa, feita por uma mulher negra e escravizada, tem o poder de emocionar a geração presente ao traduzir a vivência coletiva em uma “memória possível”. No entanto, as iniciativas a partir do enquadramento da memória de Esperança têm potencial para transformar o futuro. Isso, todavia, não aconteceu de forma significativa.
71Pollak observa que “a significação do silêncio sobre o passado, não remete forçosamente à oposição entre Estado dominador e sociedade civil” e que esse problema tem sido observado com maior frequência nas relações entre “grupos minoritários e sociedade englobante” (Pollak 1989: 5). A percepção de Pollak se confirma no caso Esperança Garcia, pois as movimentações e principais reflexões decorrentes de sua narrativa, embora tenham apoio e, em muitas vezes patrocínio, do Estado, e apontem a ferida aberta da escravidão e revelem a persistente desigualdade racial e de gênero, não avançam para o tema do racismo estrutural e não apontam caminhos para mudança do cenário.
72Há ainda hoje milhares, milhões de “Esperanças Garcias” levando às autoridades brasileiras as suas denúncias de violações a seus direitos fundamentais. Denúncias que se perdem. Não deveríamos esperar mais dois séculos para nos assombrarmos com relatos dirigidos a pessoas que podem reverter a situação de vulnerabilidade. A memória de Esperança está aí para antecipar o futuro.