Navigation – Plan du site

AccueilNumérosXXI(1)Dossier - Patrimoines difficiles ...Quando narrar a dor e o sofriment...

Dossier - Patrimoines difficiles et politiques publiques de la mémoire : décolonialités, redémocratisations et démocraties en péril

Quando narrar a dor e o sofrimento é possível: uma leitura dos testemunhos das vítimas militares à Comissão Nacional da Verdade

Quand raconter la douleur et la souffrance est possible : une lecture propédeutique des témoignages de victimes militaires à la Commission nationale de la vérité (Brésil)
When Narrating Pain and Suffering Is Possible: A Propaedeutic Reading of the Testimonies of Military Victims to the National Truth Commission (Brazil)
Giovane Rodrigues Jardim

Résumés

Cet article propose de penser les témoignages de victimes militaires à la Commission nationale de vérité au Brésil, entre 2013 et 2014, comme des récits de douleur et de souffrance dans un contexte de respect et d’intérêt public. Ces rapports oraux sont une source pour la philosophie politique et pour son engagement à comprendre, avant tout pour que de tels événements ne se reproduisent plus dans le monde commun et humain. Pouvoir raconter la douleur et les souffrances vécues ou dont on a été témoin au cours de la période d’exception du pays en matière de violations graves des droits de l’homme commises par l’État est l’une des conditions de possibilité pour que de tels événements puissent être supportés dans le présent et, peut-être, surmontés par les victimes, leurs familles et la société en général.

Haut de page

Notes de l’auteur

O presente trabalho foi realizado com apoio do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio Grande do Sul (IFRS).

Texte intégral

É perfeitamente verdadeiro que “todas as desgraças podem ser suportadas se você as colocar em uma estória ou narrar uma estória a respeito delas”, nas palavras de Isak Dinesen, que não somente foi uma das maiores contadoras de estórias de nossa época, mas também – e ela foi quase única quanto a esse aspecto – sabia o que estava fazendo.
(Arendt 2016: 247)

Introdução

1A história recente do Brasil, após um longo processo de redemocratização que sucedeu a ditadura civil-militar no país, é de narrativas em disputa entre o desejo de recontá-la ou de encerrá-la. A memória da não liberdade, organizada como culpa coletiva, impossibilita às novas gerações a compreensão do momento histórico de não liberdade presente, ou seja, de impossibilidade para o discurso e ação humana no mundo. O hodierno retorno público de narrativas de minimização do sofrimento humano, de justificação das restrições de liberdades ou de naturalização de discursos de ódio e de intolerância justifica a necessidade teórico-epistemológica, no âmbito da Filosofia Política, de pensar sobre as condições de possibilidade para narrar a dor e o sofrimento humano para que tais acontecimentos não se repitam.

  • 1 A Comissão Nacional da Verdade foi criada no Brasil pela Lei 12528/2011 e instituída em 16 de maio (...)

2O período de 1946 a 1988 apurado pela Comissão Nacional da Verdade no Brasil (CNV)1, compreende dois momentos: a) o período de 1946 a 1964, desde o fim do chamado Estado Novo e a Constituição de 1946, de uma nova ordem democrática, mas de continuidades em relação ao regime anterior, como por exemplo, de perseguição a grupos políticos e a associações sindicais por associação ao comunismo, e, ainda, de forte aproximação entre o exército brasileiro e dos Estados Unidos, e de permanência do nacionalismo, do populismo, assim, marcado ainda por uma democracia frágil, instável e hesitante; b) e o período de 1964 a 1988, desde o Ato Institucional nº 1 que inaugura o golpe civil-militar no país e a Ditadura de Segurança Nacional, perpassando os anos de chumbo e o período de redemocratização iniciado com a Convocação da Assembleia Nacional Constituinte em 1985 e a promulgação da Constituição Federal de 1988. A CNV foi criada e instituída no Brasil para apurar as graves violações aos direitos humanos cometidas por agentes civis e militares por motivações políticas, tendo como perspectiva que o reconhecimento da memória e da verdade como direito fundamental do ser humano é um dever do Estado.

3A passagem em epígrafe possibilita situar uma perspectiva de análise sobre os trabalhos da CNV a partir da coleta de depoimentos de vítimas militares. Ao reafirmar as palavras de Isak Dinesen (pseudônimo de Karen Blixen), Arendt (2016: 247) acrescenta a observação de que ela “sabia o que estava fazendo”, ou seja, de que ela tinha consciência de que a “realidade é diferente da totalidade dos fatos e ocorrências”. Assim, os testemunhos são analisados como indícios, como exercício de memória pela narrativa que constrói e se reconstrói no diálogo e na rememoração, pois a realidade não é sinônima da totalidade do que aconteceu.

4O presente artigo não é um trabalho de história oral, tampouco de história. Situa-se como um exercício de Filosofia Política e de diálogo sobre a memória da dor e do sofrimento, tendo como questionamento as potencialidades dos acervos orais, dos depoimentos à CNV, como fontes para a justiça e a reparação. Entretanto, não se propor uma história oral não significa estar liberado para desconsiderar suas metodologias e epistemologias, pelo contrário. São estas que possibilitam compreender perspectivas e possibilidades que a oralidade e sua materialização em diferentes suportes potencializam para a memória sobre o que é necessário rememorar, para que não volte a acontecer e, também, para que um dia seja seguro esquecer.

Perspectivas e possibilidades a partir da metodologia da história oral

5Os acervos orais têm, cada vez mais, interessado aos pesquisadores de diferentes áreas do conhecimento, bem como têm sido melhor considerados pelos historiadores adeptos ou não da história oral e de suas metodologias. Tem-se presente a importância dos estudos e do desenvolvimento de métodos e técnicas que possibilitem o trabalho e o estabelecimento do trabalho historiográfico a partir da oralidade através de metodologias e epistemologias próprias, tendo a narrativa oral como uma de suas fontes documentais. Como uma fonte, o relato oral necessita, ao ser coletado, por exemplo, em uma entrevista, seguir uma série de preceitos e de observações que possibilitem não só sua validação, mas, sobretudo, a garantia de respeito com as pessoas que se expõem e cuja memória é dependente. Nas palavras de Fentress e Wickham (1992), citado por Errante (2000: 141), “o que define a história oral, e a coloca à parte de outros ramos da história, é sua dependência à memória em vez de a outros textos”.

6Um traço fundamental a ser enfatizado é que a oralidade não é somente uma manifestação humana mais generalista do que a prática da leitura e da escrita; ela possibilita a inclusão de pessoas. Por isso, há uma profunda relação entre oralidade e democracia, como destaca Portelli (2009). O trabalho com fontes orais não busca apenas informações que o sujeito verbaliza, mas o considera em sua diversidade, pluralidade e subjetividade, naquilo que lhe é próprio. Nas palavras de Portelli (2009: 3):

Em primeiro lugar porque na oralidade encontramos a forma de comunicar específica de todos os que estão excluídos, marginalizados, na mídia e no discurso público. Buscamos fontes orais porque queremos que essas vozes – que, sim, existem, porém ninguém as escutas, ou poucos as escutam – tenham acesso à esfera pública, ao discurso público, e o modifiquem radicalmente.

7Nesse contexto, a CNV no Brasil possibilitou que, individualmente e/ou coletivamente, pessoas e grupos narrassem em um contexto de respeito e de interesse público o que se passou e vivenciou durantes os períodos de exceção no país. Os depoimentos analisados demostram que uma primeira demanda dos entrevistados é por espaço para falar, para contar, para narrar sua história e suas memórias. Nesse ponto, o caráter de entrevista/testemunho que caracteriza esses depoimentos precisa ser destacado em sua perspectiva narrativa e em seu caráter indiciário, temporal e circunstancial, e não como a descrição precisa do que aconteceu.

8Entrevistas/testemunhos tais como os que analisamos diferem-se também de depoimentos judiciais, em que figura no processo legal a palavra dita como prova testemunhal ao ser transcrita para um novo suporte, seja suporte físico ou digital. A possibilidade da narrativa pelas vítimas à CNV, antes de trazer conhecimento sobre fatos, traz a humanização dos processos, traz as subjetividades e, assim, amplia a voz de quem foi silenciado não só no passado, mas também pelo presente e por sua elaboração do passado como apaziguamento. Não entraremos na questão dos depoimentos como ferramenta policial ou jurídica em um Estado democrático de direitos, mas importa destacar que entrevistas/testemunhos se diferem, ainda, das informações prestadas mediante as violações aos direitos humanos como no caso da tortura, em que, por vezes, o objetivo não era apenas empreender dor e sofrimento às vítimas, mas fazê-lo no intuito de obter informações, de nomes, de localizações, etc. Importa refletir sobre a tentativa de testemunhar pela oralidade e narrativa o novo lugar da memória, não enquanto expressão da verdade, mas como exercício pela verdade, justiça e reparação. Tratar as entrevistas/testemunhos das vítimas à CNV como depoimentos situa-se como um empenho a posteriori em atribuir oficialidade ao que foi narrado de forma oral e não, propriamente, como uma crença a priori de que esses relatos orais possam, de forma unívoca e/ou unidimensional, constituir-se como provas irrefutáveis sobre os acontecimentos.

9Errante (2000), apresenta como o interesse pela narrativa pessoal deu proeminência ao trabalho de história oral, mas também trata do desafio frente à atração intuitiva. Para expor o que nomeia de complacência metodológica, Errante (2000: 143) descreve uma série de questões que deveriam estar presentes, tais como o significado de coletar e analisar narrativas pessoais, a forma como as pessoas verbalizam ou como narram sua voz, as concepções de pessoa que diferem e podem influenciar na natureza da voz, etc. Errante destaca, ainda, que a história oral interliga essas questões em um “conjunto particular de condições”, em um “contexto onde a identidade é praticada”. A identidade nesse contexto depende da relação estabelecida entre o narrador e o entrevistador, de forma que rememorar e contar estão fundamentalmente relacionados com o presente, com a experiência narrativa possibilitada pela entrevista. Essa experiência narrativa não é a descrição do passado, como muitos objetivam ao tratar as narrativas orais como prova e/ou descrição exata sobre algo, o que significaria reduzir a memória a um exercício de lembranças. Essa ilusão de um espelhamento do passado não é prerrogativa do uso inadequado de fontes orais, mas das fontes de forma geral como provas e não como indícios, sejam elas escritas ou materiais, em generalizações que decorrem da confusão entre o pessoal e o coletivo e, sobrevestes, da dicotomia entre verdade e falsidade, certo e errado, história e verdade.

10Errante (2000) procura explicar e definir o que é fundamental para a história oral: o contexto; a ocasião para rememorar; a rememoração negociada; a relação entre narrador e historiador; o luto como lembrança; a narrativa a despeito de si; a rememoração para esquecer e reconstruir o passado; o momento em que o pessoal se torna epistemológico; a questão da intimidade; enfim, a história oral como forma de rememorar e contar. Essas questões postas em relação à sua experiência como historiadora e entrevistadora não são importantes apenas para a história oral, mas também para o trato e a pesquisa como acervos orais como fonte e sua relação com a memória. Assim, embora sejam muitos os limites para o trabalho de investigação a partir de narrativas orais em suportes não orais e que isso não se configure como história oral, são também muitas as potencialidades desses para a tarefa não apenas de dar novamente a voz, mas de inseri-los em um novo contexto de rememoração. E assim, a memória em história oral não é apenas um exercício de lembranças, mas são as diferentes razões para se querer ou não querer rememorar.

11No presente percurso, importa destacar alguns aspectos da história oral que possibilitam uma aproximação mais consciente dos pesquisadores frente a fontes orais, mesmo que seu interesse não seja de caráter historiográfico. Assim, importa pensar questões importantes para o trato da oralidade e desta como narrativa, tais como, por exemplo, a questão da autoria, tratada por Meihy (2015. Meihy traz uma questão importante não só para pensar a oralidade no contexto de comunidades ou coletividades, como os povos indígenas, mas também no caso de narradores múltiplos ou de narrativas compactuadas. Ao tratar da questão para além do problema do silêncio, ele afirma que “frente à decisão de publicar um relato indígena, na impossibilidade de definir autoria, assume-se o risco de colocar o problema a público e convidar os leitores à reflexão” (Meihy 2015: 171).

12A opção de do autor em publicar e expor os riscos, convidando os leitores à reflexão, assemelha-se a perspectivas necessárias quanto aos usos dos acervos orais para tratar da dor e do sofrimento em regimes ditatoriais. Quem é o autor? Quais os limites de tal exposição? O que é pessoal e o que é público? Quais os limites de um possível direito ao esquecimento? Enfim, essas questões são postas de antemão não porque as responderemos em algum momento, mas porque sua consideração é imprescindível para a proposição de que os acervos orais são uma importante fonte, não só documental, mas também da experiência plural que consiste na própria oralidade e no contexto em que sua narrativa é ou não possível.

13Nesse sentido, e considerando que não “há experiência humana que não possa ser expressa na forma de uma narrativa”, nas palavras de Jovchelovitch & Bauer (2003: 91), a constituição de acervos orais contribui significativamente para dar voz a pessoas e grupos marginalizados, perseguidos, bem como à dor e ao sofrimento. Talvez por isso as narrativas orais estejam cada vez mais presentes em memoriais e em museus de memória, dentre outras instituições museológicas e educativas, como parte do acervo, como parte dos conjuntos documentais em exposição e/ou, ainda, em suas reservas técnicas. Dentre esses acervos, há entrevistas orais em diversos suportes, gravações de áudio e voz, degravações, transcrições, etc. Em algumas dessas entrevistas ainda é possível encontrar outros rastros, como o depoimento do entrevistador, ou, ainda, diários de campo e anotações. Entretanto, nem sempre isso é possível e, mediante essa impossibilidade, quais são as potencialidades para a utilização desses acervos para que a dor e o sofrimento não voltem a acontecer? Mais como perspectiva do que como resposta, tratar os acervos orais na perspectiva de narrativa é uma potencialidade que permite deixar visível mais a pluralidade e menos o unidimensional artificialmente construído, mais o contraditório e menos a pretensa univocidade; ou seja, a oralidade como experiência dialógica compreende não só a performance, mas também um contexto que, enquanto enredo, dá sentido às partes em um exercício de dizer e não dizer.

14Como destaca Portelli (2010), “sempre existe uma barreira”. Ele discute a narração oral da história e situa no diálogo/encontro a fonte e o pesquisador, de forma que também este participa da criação. Assim, a “história oral é um gênero multifocal, resultado do trabalho comum de uma pluralidade de autores em diálogo” (ibid.: 20). Assim, os acervos orais utilizados como base de pesquisa em que a relação entre pesquisador e entrevistador (quando se tratando de entrevistas), ou entre o narrador e o contexto de sua oralidade (quando não entrevista), precisam ser reconstruídos para a compreensão das condições de possibilidade do dito e do não dito.

15Para quem pretende pensar os acervos orais como fontes, mesmo não tendo acesso aos originais, ou passado muitos anos da entrevista e na impossibilidade de acessar novamente os entrevistados ou entrevistadores, Portelli (2010: 19) observa que “na história oral, enfim, o relato não é o fim em si mesmo. No que diz respeito ao entrevistador, visa à produção de um outro texto: uma fita, um vídeo, e, principalmente, um texto escrito, um livro”. A leitura proposta na sequência, dos depoimentos das vítimas militares à CNV, situa um gênero misto de entrevista/testemunho/depoimento, alguns privados e outros públicos, em que também o relato não é o fim em si mesmo. Todavia, se o objetivo dos pesquisadores é o de encontrar provas do que aconteceu, esses defrontam-se com vestígios, com pistas em meio a uma narrativa oral que como discurso multifocal é fugitivo, pois o lugar da memória é a experiência que possibilita a narrativa, no caso em análise, da dor e do sofrimento no entremeio da reapresentação da história entre “naquele tempo” e “hoje”.

16Os testemunhos das vítimas à CNV, assim como as audiências públicas, contribuíram para a pesquisa/investigação e em muito subsidiaram a construção do seu relatório final. Nesse relatório, partes de algumas dessas entrevistas/depoimentos são citados direta e/ou indiretamente, de modo a constituírem indícios (ou, por vezes, provas) do que foi concluído sobre as graves violações aos direitos humanos e ao que se propõe como reparação. Os impedimentos são tangíveis durante a experiência narrativa da oralidade e, segundo Portelli (2010: 35), o que é fluído se transfere para uma barreira exata, também por uma “linha semiótica: a barreira entre a oralidade e a escritura, indício escrito do distanciamento da voz”. Nesse contexto, a revisita aos acervos orais como fontes de pesquisa pode potencializar uma abordagem mais fluída dessas barreiras, mesmo que em suportes não orais como no caso das transcrições/degravações, ou mesmo nas gravações em que a corporeidade não está presente. Roseman (2000), ao discutir a relação entre a “preocupação com a exatidão” e as “complexas falhas da memória”, demostra outra dimensão importante sobre a qual não nos deteremos, que são as consequências pessoais e sociais de não poder narrar, seja pelo trauma enquanto uma patologia individual, seja pelo contexto social e político.

17Os testemunhos das vítimas na CNV são um exercício de compartilhamento e de memória coletiva que, na perspectiva de Candau (2012: 24) é uma retórica holista, uma crença no compartilhamento, ou seja, é uma construção e/ou reconstrução do passado por exigências do presente: “um enunciado que membros de um grupo vão produzir a respeito de uma memória supostamente comum a todos os membros desse grupo”. Assim, o relato oral distancia-se da linearidade cronológica e da ordem dos acontecimentos, bem como é um exercício de subjetividade e de experiência de cada sujeito. Discrepâncias e ou contradições são esperadas, não surpresas – são o resultado de um novo lugar para essas memórias e da tentativa dos narradores de que suas lembranças sejam importantes e, também, da possibilidade ou impossibilidade de lidar com essas lembranças de dor e de sofrimento.

Sobre os depoimentos de vítimas militares à Comissão Nacional da Verdade

18A CNV no Brasil ouviu, entre os anos de 2012 e 2014, centenas de depoimentos de agentes do Estado, de vítimas civis e de vítimas militares. O recorte adotado nesse estudo centra-se na leitura de 30 depoimentos de vítimas militares, entre 2013 e 2014, a partir dos quais é possível compreender que os eventos do passado não são tão distantes das vítimas e de seus familiares, pois seus efeitos não cessaram. A partir destes depoimentos se procura delinear características comuns da relação estabelecida entre os depoentes e suas vivências e/ou patentes nas instituições militares, o que poderá no futuro ter continuidade em uma abordagem comparativa em relação aos demais depoimentos das vítimas civis e dos agentes do Estado.

19Esses depoimentos foram registrados por meio do relato oral dos depoentes, convidados na condição de vítimas ou que se ofereceram para falar, alguns testemunhos em oitivas públicas e outros de forma mais privada, os quais foram gravados. Os depoimentos foram degravados, analisados e estudados e, como destaca a CNV, formam importantes referências para traçar entendimentos e leituras das demais fontes documentais, sobretudo para a definição de agentes do estado que deveriam ser convocados a prestar informações, para a identificação de locais de violações aos direitos humanos etc. Assim, registra a CNV, no volume I do seu Relatório Final:

Para a execução de seus objetivos, a CNV recebeu valiosos testemunhos. Realizou cerca de 75 audiências públicas, em diversos estados da Federação – por vezes, em parceria com outras comissões da verdade. Fez assim ecoar, em seus trabalhos, o testemunho de vítimas das graves violações de direitos humanos, assim como de familiares e militantes. Passados quase 30 anos do final da ditadura militar, esse testemunho revelou aqueles que tiveram sua vida irremediavelmente atingida pelo aparelho repressivo. Foi determinante o depoimento das vítimas também nas visitas a instalações militares nas quais ocorreram a perpetração de graves violações de direitos humanos, pois proporcionou à CNV relato circunstanciado da violência sofrida nesses locais. A transmissão, pela internet, das audiências públicas e o amplo registro das atividades da CNV nas mídias digitais possibilitaram que esses testemunhos fossem ouvidos por milhares de pessoas em todo o país, muitas das quais nem eram nascidas quando ocorreram os fatos testemunhados. (CNV 2014: 43)

20Os depoimentos de vítimas militares que utilizamos nesta leitura inicial foram degravados e constituem a fonte documental do Relatório Final da CNV, alguns inclusive são citados por esse documento e, individualmente, encontram-se publicados em site oficial2. Cabe ressaltar que são fontes orais que precisam ser entendidas não como provas, mas como indícios; não como uma versão dos fatos, mas como um exercício de memória pela narrativa que constrói e se reconstrói no diálogo e na rememoração. Em uma experiência de narrar aos membros da CNV sobre suas memórias provocadas e evocadas, se tem acesso aos depoimentos orais apenas pelas suas degravações, ou seja, foram registrados em gravação de áudio, das quais temos acesso apenas à transcrição e a algumas informações técnicas, como o tempo de duração, os responsáveis pela tomada de depoimento, o local, o nome e a categoria do depoente, por meio de uma ficha inicial de registro nos documentos intitulado “tomada de testemunho (transcrição)”. Algumas dessas transcrições registram apenas o testemunho oficialmente falado; outras, contudo, registram momentos anteriores e/ou posteriores, tendo assim intervenções de familiares e/ou de outras pessoas presentes, as quais não são identificadas, além, é claro, dos pontos em que se solicitou sigilo sobre algo, tendo sido as informações protegidas e ocultadas. Em um depoimento realizado de forma mais privada, sobre o qual inclusive se solicita o sigilo sobre o local onde ocorre, a degravação inicia bem antes do testemunho propriamente dito, e assim é possível ler a transcrição do depoimento de Kardec Lemme (2013: 2):

Interlocutora não Identificada – Vô, mudança de plano, vamos voltar para o parque, porque vão, as pessoas estão vindo para cá tomar sol, aí vão terminar ouvindo e, de repente você fica mais inseguro, não é inseguro, porque você não tem o que esconder, mas, você é que sabe.
Kardec Lemme – Não tenho nada que esconder, mas, isso aí, essa decisão de ir lá para o quarto outra vez.
Interlocutora não Identificada – Não, você é que sabe.
Interlocutor não Identificado – Não, fica a seu critério.
Interlocutora não Identificada – Se você quiser falar lá.
Kardec Lemme – As pessoas daqui são pessoas do povo, coisa, que povo, aqui tem pouca gente partidária, tem pouca gente que, pelo contrário, eu não sou discriminado aqui, não fizeram ainda uma estátua, mas, como o Kardec, vai sair uma estátua espírita aqui.

21Essa passagem exemplifica esses detalhes periféricos do depoimento, anterior ao introdutório e ao início do testemunho propriamente dito, mas que não são menores para a oralidade, e que se tornam importantes para a compreensão das narrativas como um posicionamento do presente e no qual o narrador tenta também corresponder às expectativas de quem o escuta. Pois, embora para os integrantes da CNV ali presentes esteja a perspectiva de que o que é falado importa para a memória e a verdade sobre um Estado que causou dor e sofrimento a milhares de pessoas e suas famílias, para o depoente estão presentes, sobretudo, algumas pessoas que se importam, dentre eles, familiares que conhecem mais intimamente sua dor e sofrimento, bem como as consequências nas relações familiares sobre o que se quer esquecer, mas é preciso cada vez mais falar.

  • 3 Culpa coletiva como uma falácia onde se “todos são culpados ninguém o é” (Arendt 2004).

22Os depoimentos das vítimas militares, assim como as conclusões da CNV, contribuem com a desconstrução de algumas generalizações sobre a culpa coletiva3 dos militares, ou ainda, oposição entre civis e militares existente como um constructo que impossibilita muitas ações em relação à responsabilização pelos acontecimentos no período de 1946 a 1988. Está presente a necessidade de uma formação militar democrática, para a qual a história e a memória de militares perseguidos e expulsos pela defesa da legalidade são fundamentais. As instituições militares que não podem furtar-se de sua responsabilidade enquanto Estado, entretanto, são formadas por pessoas e, dentre essas, algumas cometeram violações aos direitos humanos de outros militares e de civis, entretanto, algumas foram vítimas dessas violações. O não reconhecimento dessa condição dos militares como vítimas contribui com uma dicotomia que ampara, em uma culpa coletiva construída, a impossibilidade de responsabilidade daqueles militares que praticaram as violações e que, por eles, poderiam ser julgados e culpados juridicamente.

23Por sua vez, as vítimas militares narram seu ingresso na carreira, as relações estabelecidas com os colegas e suas famílias e, do ponto de vista interno e mesmo de conhecimento sobre técnicas e estratégias militares, como o regime de exceção constituiu-se e, em relação às vítimas militares, como operou em repressão física, mas principalmente psicológica sobre eles e seus próximos. Há, nesses depoimentos, apontamentos direcionados a lugares e a pessoas, o que torna possível a diferenciação entre responsabilidade coletiva e a culpa moral. No depoimento de Amadeu Felipe da Luz Ferreira (2013: 2), é possível exemplificar esta dimensão, em suas palavras:

Quero cumprimentar o segundo sargento Manuel Alves de Oliveira preso em 1964, que foi morto sob tortura. O responsável pela tortura foi o tenente coronel Bulcão Viana da Vila Militar do grupamento de unidade escola. O segundo sargento Manuel Raimundo Soares salvou a minha vida e de todos os nossos companheiros. Ele sabia onde eu me escondia com ele e ele aguentou a tortura durante todo o tempo 2, 3 meses quando não tinha esse compromisso político era da gente resistir a tortura 48 horas para dar tempo pra pessoa depois se evadir. Ele ficou 2, 3 meses sem absolutamente. Ele ficou durante todo o período. Ele não falou nada enquanto eles o torturavam ele assoviava Ou Ficar a pátria livre/ Ou morrer pelo Brasil ele tinha 1 metro 50 de altura, 3 m de estatura foi talvez o homem mais culto que eu conheci na minha vida e era um segundo sargento do exército. Quero dizer que os responsáveis pela tortura e pelo assassinato dele chamam-se coronel Washington Bermudez, chefe de polícia do Rio Grande do Sul.

24Nessa passagem do depoimento, está claro que não foi o Estado e/ou o Exército que torturou e matou, sendo possível delinear a reivindicação de justiça que consistiria na imputação legal e responsabilização de um tenente em específico por esse ocorrido. Embora as narrativas enfatizem o descontentamento com o Estado pela não escuta e pela não reparação, e nesse contexto estejam as instituições militares a que pertenciam, está claro nos relatos orais a identificação de contemporâneos, de pessoas e de patentes e o posicionamento de cada um nas violações a que foram submetidos. Faz-se presente nos depoimentos analisados, ainda, a questão hierárquica das instalações e a discrepância entre as ordens de superiores e a prática de subordinados e, por vezes, abusos desses segundos sobre o pretexto dos primeiros. Assim, como dever de memória dos que não sobreviveram para contar, o depoente expressa com destaque a patente e o nome daquele que, mesmo torturado, não o entregou e que, por esse feito, teria salvado a sua vida.

25Não nos detemos aos depoimentos das vítimas civis e dos agentes do estado que possibilitem fazer um paralelo neste momento, mas nos depoimentos das vítimas militares o teor é personalizado, como demostra a passagem acima. Não se trata de ser “conduzido por um soldado” que pode resumir a fala de um civil em relação a um militar sem distinguir sua patente e/ou função, mas aparece de forma identificada: “O segundo sargento Manuel Raimundo Soares salvou a minha vida e de todos os nossos companheiros”; “os responsáveis pela tortura e pelo assassinato dele chamam-se [...]” (Ferreira 2013: 2).

26Um dos depoimentos que é, inclusive, citado no Relatório Final ao tratar das violações aos direitos humanos no meio militar é do comandante Luiz Carlos de Souza Moreira (2014: 20), no qual ele relata:

A gente, esses anos se passaram e nós, efetivamente, estamos, hoje, curtindo lembranças, lembranças que nos trouxeram muitas mágoas e muitos sofrimentos, não foram poucos, as nossas famílias foram penalizadas, com que dificuldade foram criados os nossos filhos, com que dificuldade tivemos de encontrar uma atividade laboral, quando eles próprios, numa lei de segurança diziam, determinavam que as empresas deveriam denunciar todos aqueles que tinham sofrido perseguição política e deveriam ser demitidos. Então, nós fomos impedidos até de trabalhar, você veja quanto sofrimento nos foi infringido e nós estamos aí, perdemos uma carreira, simplesmente porque defendemos um governo legalmente constituído, entendeu? Nos colocamos a favor ou contra essa, esse regime de exceção, que tantos malefícios trouxe para o país e nós estamos aqui hoje, continuamos lamentando que nada, nenhuma reparação, a reparação por inteiro tenha ocorrido e isso cabe ao Governo fazer, se o Governo, o Governo, inclusive, que é composto por pessoas que participaram dessas lutas, foram vítimas, também, dessas violências da ditadura e estão aí indiferentes, insensíveis ou estão preocupados com o que? Porque não querem fazer, o que está faltando é vontade política por parte desses governantes, para resolver uma questão que não é complicada, não é difícil. A anistia não é a volta à situação anterior? É isso é que diz a, todos os doutrinadores, todas as pessoas que falaram sobre anistia, todos os juristas dizem, é a volta à situação anterior, é a amnésia, é perdão, eu não estou pedindo perdão de nada, nem é, não quero que esqueçam, não, não vamos esquecer, eu quero voltar à situação que eu detinha anteriormente, que foi interrompida por um ato de força, um ato arbitrário, entendeu? Que retirou, me retirou da carreira, só quero que me devolvam tudo, me coloque onde estão, hoje, meus paradigmas, todos os meus contemporâneos, só isso que eu quero, porque qual é o absurdo que existe nisso? E quero uma reparação pelos danos materiais e morais que eu sofri durante esses anos todos, o Estado brasileiro me deve isso, me deve e eu vou continuar cobrando. Eu espero que o Governo tenha sensibilidade bastante para, um dia, que tenha de nos ouvir, nos ouça, realmente e faça o que nós e promova essa reparação que nós estamos, continuamos buscando.

  • 4 Em 1979 foi sancionada, com vetos, a Lei nº 6.683/79 (Lei da Anistia) que introduz a expressão crim (...)

27O depoimento de Moreira na CNV possibilita pensar sobre a temática da memória em suas múltiplas dimensões, sobretudo como reivindicação memorial. Essa passagem acima transcrita de seu depoimento resume diversas temáticas comuns que aparecem nos demais depoimentos das vítimas militares: interrupção da carreira militar, perspectiva frustrada em relação à Lei da Anistia4, a não responsabilização de seus contemporâneos que seguiram a carreira independente das violações cometidas e, sobretudo, a escuta, o reconhecimento e a reparação por parte do Estado brasileiro, etc.

28A questão da perda da carreira, a dificuldade com empregos e com a subsistência da família é um ponto recorrente nos depoimentos das vítimas militares, assim como a banalidade dos fatos que ocasionaram muitas das suas perseguições, prisões e expulsões. Havia aqueles que assistiam a sessões de cinema, aqueles que participavam de clubes de livros, dentre outros com participação mais ativa em ações e em grupos de resistência ou, ainda, que se recusavam a cumprir ordens que consideravam não legítimas.

29Como aparece no depoimento de Moreira (2014: 20), muitos depoentes relatam que foram expulsos da corporação e observados “simplesmente porque defendemos um governo legalmente constituído”. Nesse sentido, segundo dados do Relatório Final – volume II – da CNV, cerca de 6 591 militares foram perseguidos (do Exército, da Marinha, da Aeronáutica e das Forças Policiais) (CNV 2014: 13), sendo que as perseguições, as prisões e os interrogatórios atingiam seus familiares, muitas vezes também crianças, e se estendiam pela vigilância mesmo após o desligamento do Exército.

A política repressiva imposta aos militares apresentou outras faces, já que os demitidos passaram à condição de mortos-vivos e suas viúvas mantiveram o direito de receber somente o montepio, que compunha uma pequena parte do soldo. Alguns deles procuraram recompor suas vidas profissionalmente em outras atividades, como editores, vendedores de livros, professores de cursinho etc., mas continuaram a ser constantemente vigiados e chamados a depor em vários inquéritos. (CNV 2014: 30)

30Ao compararmos os diversos depoimentos analisados, é possível delinear ao menos duas linhas gerais que sobressaem: 1) daqueles que apresentam uma convicção de militância política; 2) daqueles que também se consideram perseguidos políticos, mas que não avaliam ter motivos para a expulsão, prisão e interrogatórios. No primeiro grupo, é interessante notar que a narrativa, embora retorne a períodos anteriores ao ingresso na carreira militar, centra-se nas experiências da escola militar, nas funções e atividades desempenhadas, no posicionamento institucional e pessoal etc. O segundo grupo, por sua vez, possui uma narrativa centrada em uma retrospectiva na infância ou adolescência, nos elementos que os levaram à carreira militar, questões familiares e/ou situação econômica e, posteriormente, na vida após a expulsão.

31Outra dimensão, esta comum aos dois grupos, é que, com o desenvolvimento dos depoimentos e o diálogo entre as vítimas e os depoentes, seus familiares e os pesquisadores, pouco a pouco os depoimentos vão tendo maior robustez em detalhes, em apontamento de nomes e de locais. Isso explica-se por ser a memória um olhar do agora sobre o passado, sempre do presente. Assim, também é possível defender a necessidade de narrar outros fatos da vida familiar ou pessoal que não estão diretamente relacionados ao período e aos acontecimentos de abordagem da CNV, bem como os aspectos positivos do convívio no período de repressão, sobretudo no que se refere a jovens que compartilham suas vidas, pertences, ambientes e expectativas por um longo período de suas trajetórias pessoais. Em uma passagem, essa questão torna-se premente e se faz como necessidade de justificativa do depoente por narrar não só dores, mas também amizades e interação; assim em parte do depoimento de Carlos Alberto Medeiros (2013: 11-12) se pode ler:

Carlos Alberto Medeiros - [...] Então, o que eu me recordo, era isso. Eu não tive a oportunidade que você teve de ser da turma antiga e eventualmente ter uma função lá num órgão acadêmico lá. Passei os dois anos lá estudando, levando lá a minha vida. Achava a Escola muito legal, é uma experiência que os civis têm dificuldade de entender, porque você fica confinado com os seus colegas, sofrendo agruras em comum. Isso vai criando laços de amizade, de integração. Acho que é interessante.
Paulo Ribeiro da Cunha (Comissão Nacional da Verdade) – Por favor, coronel Carlos Alberto.
Carlos Alberto Medeiros – O que acontece: nossa turma tinha 200 caras, 200 e poucos caras. Ou seja, caras de 15, 16, mais velhos de 17, convivendo 24 horas por dia. Não só sofrendo, mas também curtindo um monte de coisa, era muita brincadeira, muita coisa engraçada. Então foi uma experiência em conjunto numa escola de alto nível também do ponto de vista de ensino. Então, foi uma experiência que, com tudo que aconteceu, eu repetiria. Talvez de uma outra forma, mas repetiria.

32Os depoimentos das vítimas militares revelam o conhecimento no meio militar das perseguições, prisões ilegais e torturas, bem como demostram o tratamento diverso que cada um dos depoentes enfrentou em relação aos locais em que tais eventos ocorreram. Entre os depoentes, muitos relataram cárceres em precárias condições, alguns afirmaram não terem sido torturados fisicamente, contudo, indicaram nomes de militares que teriam sofrido tais violações, bem como os nomes de possíveis torturadores. Entretanto, as narrativas enfatizam menos esses sofrimentos e são mais questionadores em relação às promessas não realizadas pelo Estado, como, por exemplo, quanto à Lei da Anistia que os mobilizou junto a outros setores da sociedade civil e que, diversamente do esperado por eles, não possibilitou o retorno destes depoentes à vida e à carreira militar. Nesse sentido, a ascensão na carreira, a ascensão de patentes desses militares apontados como responsáveis e sua não punição representam para os depoentes um fator de sofrimento e de continuidade da repressão, bem como uma contínua ameaça e, inclusive, um cerceamento sobre o pode ou não pode ser dito em público, nas associações e na própria CNV.

33Alguns dos depoentes no período do testemunho enfrentavam não só o descontentamento com a Leia da Anistia no que se refere à não punição jurídica dos culpados ou responsáveis pelas violações, mas também a expectativa frustrada de que seriam reintegrados à vida e à carreira militar, o que não aconteceu, nem mesmo em termos salariais. Outros depoentes ainda são exitosos em tratar da questão da anistia e acabaram por revelar, após insistentes questionamentos dos entrevistadores, que estavam com os processos sendo revistos judicialmente, como no caso de um militar cuja patente era de cabo e cujo nome não constava individualizado nas listagens dos perseguidos politicamente. Ele destaca que embora não tenha sido preso ou torturado, enfatiza que foi processado, seguido e expulso da corporação, e por isso reinvoca seu status de anistiado político. O tema da anistia, suas conquistas e seus limites, por exemplo, possibilita analisar nos depoimentos uma certa timidez no relato de pertença a partidos políticos e/ou a movimentos de resistência, bem como mantém termos como “comunista” e “de esquerda” com certa qualificação justificável para a perseguição de alguns, de si mesmos na maioria, possibilitando material para uma análise posterior do contexto hodierno no Brasil de criminalização da participação política e dos movimentos sociais.

34A Filosofia Política enquanto questionamento sobre as condições para uma ordem social correta e justa, sobre a origem da organização em sociedade e das exigências e das compensações aos indivíduos pela vida na coletividade, difere-se da Ciência Política enquanto estudo do Estado, dos governos e de suas instituições. Entretanto, a busca por compreender o retorno da barbárie em pleno século xx ocupou a pauta intelectual e diversas vezes aproximou as elaborações da Filosofia e da Ciência Política, sobretudo a partir das investigações sobre as origens e as causas que tornaram possível o totalitarismo. E, nesse contexto, embora pouco interessada no que ocorreu no século passado fora da Europa e dos Estados Unidos, a Filosofia Política Contemporânea se aproximou de outras formas de investigação e de coleta de dados, com as pesquisas empíricas e sociais como o fez, por exemplo, a Teoria Crítica da Sociedade. Trata-se assim de uma recusa da regressão da filosofia a uma ciência particular, que implica em trazer à tona a sua limitação e sua discrepância em relação à realidade, como destacou Adorno. Nas palavras de Adorno (2009: 22), “a necessidade de dar voz ao sofrimento é condição de toda verdade. Pois sofrimento é objetividade que pesa sobre o sujeito; aquilo que ele experimenta como seu elemento mais subjetivo, sua expressão, é objetivamente mediado”.

35Assim, a Filosofia Política traz para a sua pauta e reintroduz no âmbito da reflexão filosófica a questão da dor e do sofrimento humano tantas vezes negada ou apenas insinuada pela tradição ocidental e pela sua insistência em separar filosofia e política. Nesse sentido, os depoimentos analisados de vítimas militares à CNV possibilitam diversas análises e estudos para a Filosofia Política enquanto seu compromisso de crítica social, possibilitam compreender as reivindicações presentes não somente por reparação material, mas, sobretudo, pela possibilidade de narrar a dor e o sofrimento em um ambiente de consideração e de respeito.

36A CNV, ao ouvir, registrar e publicizar esses depoimentos das vítimas, atribui-lhes uma importância social e um propósito para a revisita desta dor e deste sofrimento para além do âmbito familiar e dos seus círculos de relações, frente aos quais, para muitos, o que fora relatado extrapolou o que por eles era sabido ou imaginado sobre esse período. A publicização dessas narrativas e da importância da memória daquilo que se quer esquecer, mas que socialmente é necessário que alguém lembre, abre um caminho para uma elaboração que tem como base o percurso para o esquecimento não como fuga da realidade, mas porque já é possível porque está público, compartilhado, cumprido este “dever de memória” (Ricoeur 2018) e como enfatizou Lemme (2013: 32) em seu depoimento à CNV, para que “Comissão da Verdade faça uma verdade que nos interesse”.

37Os depoimentos/testemunhos públicos ou privados, no contexto da justiça, verdade e reparação, oportunizaram as vítimas narrar a sua história para além do âmbito familiar, do grupo de amigos, e da solidariedade das demais vítimas. Trata-se de narrar e de narrar-se para a sociedade em geral, para as novas gerações, em um contexto interligado ao enredo de poder/dever falar sobre os acontecimentos privados e públicos uma vez que o Estado brasileiro se propõe a conhecer, e quiçá, as suas instituições poderão reconhecer as graves violações aos direitos humanos cometidos no país no período de exceção.

Considerações finais

38A busca pela verdade, pela justiça e pela reparação também é uma busca humana pela possibilidade de narrar a dor e o sofrimento vivenciados e/ou testemunhados e, ainda, de o fazer em um espaço real (ou fictício) de respeito e de consideração. O percurso por conhecimento sobre os acontecimentos do passado, sobre as graves violações aos direitos humanos, tem como um ponto central oportunizar experiências em que o contexto e o enredo tornaram a narrativa possível.

39A CNV representa um marco de valorização do conhecimento sobre a verdade e a memória, da narrativa sobre a dor e o sofrimento em um “dever de memória” como responsabilidade coletiva de que não voltem a acontecer. Assim, os testemunhos narrados no contexto da CNV podem contribuir para o conhecimento sobre as violações cometidas e sofridas, mas, sobretudo, para a compreensão de sua permanência ou superação no presente. Pela importância que esses depoimentos possuem como fonte documental para a CNV, pelo trabalho de elaboração como tomada de posição contra o passado, mas também contra o futuro, esses testemunhos podem ser pensados como patrimônio de interesse das vítimas e de seus familiares, mas também da sociedade de forma geral.

40Os depoimentos irrompem o distanciamento do espaço e do tempo, fazendo o passado presente pela possibilidade estabelecida para narrar sua dor e o seu sofrimento não só por um dever de memória como algo externo, como compromisso uns com os outros, mas de elaboração do passado também no âmbito individual, como o fechamento de uma ferida ainda aberta. Nesse sentido, pensar os depoimentos das vítimas à CNV como fonte para a reflexão filosófica implica em reconhecer a relação entre narrar e compreender e a decorrente “reconciliação com a realidade”. Assim, importam para a Filosofia Política que, pela investigação desses acervos, pode e deve reintroduzir a temática do sofrimento humano em sua reflexão política. Os depoimentos fazem atual não só a necessidade de compreensão sobre o que aconteceu, mas sobre a permanência desses no presente, pois, enquanto paira o passado como algo distante, ofusca-se a percepção de que as causas do que passou continuam presentes, vigilantes e constitutivas de discursos de sua minimização, justificação ou naturalização.

41Se os testemunhos das vítimas militares não possibilitam provas ou o espelhamento do passado, pois sua realidade difere da totalidade, permitem, por sua vez, que se compreenda, suporte ou supere o que se passou. Pensar filosoficamente a partir de narrativas orais, mesmo que em suportes não orais, é um desafio de aproximação e de distanciamento para o qual é preciso o conhecimento sobre o que se está fazendo; em outras palavras, ao invés de pensar a ação a partir do texto, deve-se pensar o texto a partir da ação. Se a narrativa é uma condição de possibilidade para que a dor e o sofrimento possam ser suportados e quiçá superados, não é, entretanto, sua garantia.

Haut de page

Bibliographie

Adorno, T. W. 2009, Dialética negativa, Rio de Janeiro, Zahar.

Arendt, H. 2004, Responsabilidade e julgamento, São Paulo, Companhia das Letras.

Arendt, H. 2016, Entre o passado e o futuro, São Paulo, Perspectiva.

Brasil, 1979, Lei n. 6.683 de 28 de agosto de 1979, Brasília, Presidência da República.

Brasil, 2011, Lei n. 12.528 de 18 de novembro de 2011, Brasília, Presidência da República.

Candau, J. 2012 [1998], Memória e identidade, São Paulo, Contexto.

CNV 2014, Relatório: Volume I, Brasília, Comissão Nacional da Verdade (CNV), http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/relatorio/volume_1_ digital.pdf (acesso em 15 de outubro de 2021).

Errante, A. 2000, Mas afinal, a memória é de quem? Histórias orais e modos de lembrar e contar, Pelotas, História da Educação, 8: 141-174.

Fentress, J. & Wickham, C. 1992, Social Memory, Oxford, Blackwell.

Ferreira, A. F. 2013, Depoimento à Comissão Nacional da Verdade, Brasília, Comissão Nacional da Verdade, Tomada de Testemunho em 19/03/2013, http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/depoimentos/especialistas/fv_Ama deu_Felipe_da_Luz_Ferreira_e_Pedro_Lobo_19.03.2013.pdf (acesso em 7 de novembro de 2021).

Jovchelovitch, S. & Bauer, M. 2003, Entrevista narrativa, in Bauer, M. & Gaskell, G. eds, Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um manual prático, Petrópolis, Vozes: 90-113.

Lemme, K. 2013, Depoimento à Comissão Nacional da Verdade, Brasília, Comissão Nacional da Verdade, Tomada de Testemunho em 19/06/2013, http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/depoimentos/Kardec_Lemme_-_RDK_19.06.2013.pdf (acesso em 7 de novembro de 2021).

Medeiros, C. A. 2013, Depoimento à Comissão Nacional da Verdade, Brasília, Comissão Nacional da Verdade, Tomada de Testemunho em 8/10/2013, http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/depoimentos/Sued_Lima_Carlos_Alberto_Medeiros_Artur_Vieira_dos_Santos_08.10.2013_-_ct-rp.pdf (acesso em 7 de novembro de 2021).

Meihy, J. 2015, “Autoria em oralidade: em busca de um protocolo”, Revista de História Oral, 14: 169-171.

Moreira, L. C. S. 2014, Depoimento à Comissão Nacional da Verdade, Comissão Nacional da Verdade, Tomada de Testemunho em 25/03/2014 – Parte 2, http://cnv.memoriasreveladas.gov.br/images/pdf/depoimentos/Luiz_Carlos_de_Souza_Moreira__2.pdf (acesso em 7 de novembro de 2021).

Portelli, A. 2009, “História oral e poder”, Mnemosine, 6(2): 2-13.

Portelli, A. 2010, Ensaios de história oral. São Paulo, Letra e Voz.

Ricoeur, P. 2018 [2000], A Memória, a história, o esquecimento, Campinas, UNICAMP.

Roseman, M. 2000, Memória sobrevivente: verdade e inexatidão nos depoimentos sobre o Holocausto, in Ferreira, M., Fernandes, T & Alberti, V. eds, História Oral: desafios para o século xxi, Rio de Janeiro, Fiocruz: 123-134.

Haut de page

Notes

1 A Comissão Nacional da Verdade foi criada no Brasil pela Lei 12528/2011 e instituída em 16 de maio de 2012. Teve como finalidade apurar as graves violações aos Direitos Humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de 1988, para efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.

2 Disponível em http://cnv.memoriasreveladas.gov.br

3 Culpa coletiva como uma falácia onde se “todos são culpados ninguém o é” (Arendt 2004).

4 Em 1979 foi sancionada, com vetos, a Lei nº 6.683/79 (Lei da Anistia) que introduz a expressão crime político e trata sobre a anistia política de crimes contra a segurança nacional e a ordem política e social. Em seu artigo primeiro concede “anistia a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com fundamento em Atos Institucionais e Complementares”.

Haut de page

Pour citer cet article

Référence électronique

Giovane Rodrigues Jardim, « Quando narrar a dor e o sofrimento é possível: uma leitura dos testemunhos das vítimas militares à Comissão Nacional da Verdade »Lusotopie [En ligne], XXI(1) | 2022, mis en ligne le 01 septembre 2022, consulté le 13 décembre 2024. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lusotopie/5149 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lusotopie.5149

Haut de page

Auteur

Giovane Rodrigues Jardim

Universidade Federal de Pelotas, Brasil
giovane.jardim[at]erechim.ifrs.edu.br

Haut de page

Droits d’auteur

Le texte et les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés), sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.

Haut de page
Rechercher dans OpenEdition Search

Vous allez être redirigé vers OpenEdition Search