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Dossier - Patrimoines difficiles et politiques publiques de la mémoire : décolonialités, redémocratisations et démocraties en péril

Os desertos habitados: Estado Novo, colonialismo, memória e patrimônio em perspectiva comparada

Les déserts habités : perspective comparée sur l'Estado Novo, le colonialisme, la mémoire et le patrimoine
Inhabited Deserts: Estado Novo, Colonialism, Memory and Heritage in a Comparative Perspective
Juliana Poloni et Pedro Paulo A. Funari

Résumés

L’article cherche à discuter la référence continue aux récits historiques pour justifier la soumission des peuples et des lieux colonisés. Il compare des publications de relations publiques des Estados Novos du Brésil et du Portugal, mettant en évidence des cadres d’interprétation savants utilisant des concepts tels que le colonialisme intérieur et la colonialité. Il pointe ensuite les utilisations récentes de ces mêmes cadres, afin de critiquer la façon dont les peuples autochtones sont réduits au silence, soumis à l’oubli, par le biais de politiques colonialistes.

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Texte intégral

Introdução: alguns conceitos

1O Estado Novo é um conceito do século xx, mas resultado de outros tantos, anteriores. Seus pressupostos, alguns deles muito antigos, foram ressignificados à luz do nacionalismo, do colonialismo e do imperialismo modernos. Estes podem começar a ser esmiuçados, na medida em que são coetâneos e interdependentes. A invenção do Estado Nacional relaciona-se à industrialização, ao racionalismo e à criação do cidadão. Desde o início, esse movimento foi acompanhado de expansionismo imperialista, fora das fronteiras, e colonialista, em seu interior. O nacionalismo, o colonialismo e o imperialismo estão ligados ab origine, desde sempre.

2O colonialismo anterior ao estado nacional era muito mais antigo e não tinha essas características mencionadas à época da formação dos estados nação modernos. Desde sempre, pelo ius gentium, o direito dos povos, os insubmissos derrotados podiam ser mortos ou escravizados. O historiador latino Tácito (Agrícola 30,4) mencionava a crítica, a esse respeito, sobre os próprios romanos: solitudinem fecerunt et pacem appellaverunt, fizeram um deserto e chamaram isso de paz. Na colonização moderna, territórios ocupados por nativos, ameríndios, africanos ou mesmo asiáticos foram considerados terra nullius, terra de ninguém, cujos habitantes podiam, por isso mesmo, ser mortos, escravizados ou apenas expulsos (Gosden 2004). O próprio termo indígena (engendrado ou nascido dentro) aplicado aos ameríndios é também ele antigo, latino, para designar o que nasceu no lugar, sentido também de nativo. Essa designação, contudo, foi retomada do idioma latino quando da classificação iluminista, racista e cientificista das pessoas. Antes disso, usavam-se outros termos, mais específicos, como, no caso do Brasil, negros da terra, por oposição aos negros da guiné, africanos, ou, no caso de Portugal, o uso da expressão gentio, em oposição à palavra índio, que designava aqueles que haviam sido batizados e submetidos ao regime colonial (Cardim 2019). A generalização moderna do indígena ou nativo foi resultado do próprio racionalismo, derivado de ratio, cálculo, de reor, eu calculo, daí razão: tudo separar para poder calcular. Inventaram-se as raças, também termo derivado de ratio, e essa invenção (inunenio, venho em, tanto invento como descubro) é considerada pelo racionalismo como descoberta. Esse processo de naturalização das situações do status quo, de como as coisas e as relações são e sempre deverão ser, depende desse efeito verdade: não se trata de dogma, como antes, nem de especulação ou hipótese, mas de constatação (Foucault 1979). Daí que parece crível, aceitável e mesmo verdade que existam raças, terra de ninguém (terra nullius), e que a expulsão, a escravização ou a morte de outrem sejam consideradas da natureza das coisas.

3A essas considerações bem genéricas, há que acrescentar os contextos históricos e culturais específicos. O conceito de fascismo, como termo genérico, pode ser aplicado a diferentes circunstâncias, mas a particularidade do fascismo original italiano não deixa de ser única. Isto é importante ter em mente, quando se trata do termo Estado Novo, usado em apenas dois países: Portugal, primeiro, e Brasil, em seguida. Para além da caracterização genérica de regimes autoritários, defensores das elites e centralizadores, convém esmiuçar as particularidades comuns e diferentes entre si dos Estados Novos. Em comum, claro, a cultura portuguesa, o idioma, mas, aqui, convém ressaltar aspectos sociais de largo prazo, como o patriarcalismo, o clientelismo, a forte hierarquização, o familismo, o rentismo.

4Ainda em comum, há os contextos históricos, do início do século xx, com embates entre liberais e conservadores, ante aos conflitos sociais. Aí, as diferenças entre Portugal e Brasil devem ser mencionadas. Em Portugal (Briesemeister 1997), a reação autoritária e em defesa do status quo ocorreu em meados da década de 1920 (Leal 2016), sob influxo de movimentos fascistas contemporâneos, no poder, como na Itália, ou na agitação, como o nazismo, na Alemanha (Rosas 1993). A adoção do nome Estado Novo (Torgal 1997, 2009), depois replicado no Brasil, servia para diferenciar a versão portuguesa e depois brasileira de outros regimes no poder, em particular em diferenciação com o fascismo italiano (Pinto 2007). A Constituição Portuguesa de 1933 mencionava os termos Estado, Nação e mesmo República, todos presentes, também, na constituição brasileira de 1937 (Pedrosa Filho 2020), sem o uso de termos tão distintivos como fascismo ou nacional socialismo (nazismo). Estado Novo aparece na propaganda oficial ou oficialista, primeiro em Portugal (cf. Decálogo do Estado Novo, de 1934, foto), depois no Brasil (Pereira 2013, foto de 1940). Neste aspecto, a preocupação com a continuidade de uma nação e um estado prevalecia sobre a narrativa prospectiva explícita no nazifascismo, algo também comum e importante em Portugal e Brasil, parte de uma disputa mais geral, entre tendências pró e anticlericais. Os regimes autoritários adotaram uma perspectiva ao menos cooperativa com as hierarquias eclesiásticas, ainda que pudessem, em nome do projeto de um homem novo, rejeitar aspectos diversos da teologia cristã, tanto no fascismo como no nazismo. Nos casos do Estado Novo, ainda que isso também ocorresse (Rosas 2001), em certa medida, a aliança com as hierarquias foi o mais marcante.

5Os indígenas entram neste contexto de colonialismo interno, se pudermos considerar os africanos e asiáticos sob controle colonial português em posição, em certo sentido, comparável à dos silvícolas brasileiros (Poloni 2017b). Todos esses foram classificados por séculos, e no período em estudo, como grupos humanos à parte da nacionalidade, com direitos limitados por seu estatuto indígena (Garfield 2000, Martins 2015). O Estado autoritário em defesa do status quo, surgido no Entre-Guerras (1918-1939), teve nos indígenas uma das preocupações essenciais, ainda que nem sempre tão presentes no discurso público e difundidas nos meios de comunicação.

Colonialismo interno e colonialidade do poder nos Estados Novos

6Segundo Casanova (2006), a independência de territórios anteriormente colonizados levou a uma reprodução, no interior dos novos Estados nascentes, de relações políticas, econômicas e culturais coloniais. A partir de discursos que reclamam “direito divino”, “missão civilizatória” e “status cultural”, a reprodução de relações autoritárias nos novos estados segue mantendo as assimetrias da sociedade colonial a partir de outros atores. Nesse contexto, o monopólio econômico exercido sobre a colônia pela metrópole não se reforça sem a imposição de dominações culturais, e essas duas ações se concretizam através do domínio militar, político e administrativo, mas sempre mantendo a primazia o domínio econômico como motor maior da empresa colonial.

7O conceito de Colonialismo Interno, de inspiração marxista, foca na reprodução de estruturas sociais e econômicas do fenômeno internacional do colonialismo. Já a categoria Colonialidade do Poder (Quijano 2005, 2009) foca na existência de um padrão estrutural de poder que caracteriza a modernidade e que, por sua vez, entrelaça-se com o nascimento do sistema colonial, a partir do domínio do continente americano, e com o processo histórico que torna a Europa potência hegemônica mundial. Embora a categoria afirme que a colonialidade é o padrão de poder exercido pelo sistema capitalista em sua mundialização, destacam-se suas estruturas sociopolíticas, quais sejam a hierarquização da população e das culturas mundiais baseada na ideia de “raça” e de racismo e o desenvolvimento de mecanismos de controle que possibilitem a expropriação e a exploração do trabalho de territórios e culturas subalternizados.

8A categoria colonialidade é assim pensada não somente como herança do sistema colonial, mas como um modelo de dominação e exploração, como um sistema ordenador de relações sociais, enfim, que é precedido pelo colonialismo, mas que sobrevive a ele, reinventa-se permanentemente em nível local e segue sendo elemento central das sociedades pós-coloniais.

9Há que se destacar, neste contexto, a permanência, tanto no mundo colonial português, inicialmente, quanto no brasileiro, por herança, de uma visão Aristotélica do mundo. Segundo esta visão, a vida urbana é encarada como o padrão civilizacional e o modelo a partir do qual se estabelecem critérios de pertença, que se focam em ações cívicas, tais como a residência prolongada, o pagamento de impostos, o comprometimento com o bem-estar e a segurança dessas cidades, como também em valores culturais, atrelados à adoção da língua, dos costumes e da religião. Esse universo, sustenta, assim, a concepção dos nativos como estrangeiros, bem como a construção de sistemas jurídicos e culturais que poderiam, em tese, admitir a sua introdução no mundo do colonizador, mediante a sua gradual aceitação e aderência às responsabilidades devidas às autoridades e à vida citadina (Cardim 2019).

10Na mesma medida, ao espaço exterior aos núcleos urbanos é atribuída, também em consonância com a tradição Clássica, a ideia de barbárie, e aos nativos que nesses espaços transitavam um caráter humano reduzido. Era para esses “sertões” que os governos coloniais procuravam expandir seu ordenamento, de forma a civilizar lugares e pessoas. As “guerras justas” são aqui usadas sistematicamente, como forma de defesa e conquista sobre esses “gentios” a quem não se reconhece o caráter civilizado do europeu citadino. Essas guerras proporcionavam não somente a escravização desses “gentios”, mas também a sua eliminação física e a consequente ocupação de suas terras (Cardim 2019).

11Assim, percebe-se como a construção do estatuto de “indígena” bem como todos os outros a ele associados constituem-se como um aparelho colonial, na medida em que foram impostos de maneira unilateral, pelos poderes estabelecidos, não estando à disposição dos próprios povos nativos a sua adoção. Percebe-se, também, uma longa permanência desses sistemas legais e sociais, que percorrem diferentes períodos políticos em ambos os países, mantendo como constância os mecanismos coloniais de exclusão das comunidades nativas (Cardim 2019, Jerónimo 2009).

12Nesse sentido, se o Diretório Pombalino, de 1757, declara a liberdade dos indígenas em territórios coloniais, ainda que tutelados à figura do “diretor” incumbido de administrá-los, tal diploma abrirá espaço para que, em períodos subsequentes, o recrutamento de mão-de-obra nativa para serviços públicos seja oficializado, como é o caso da Carta Régia, de 1798, e do Regulamento das Missões, de 1845, que, já após a independência do Brasil, estabelece e regulamenta os chamados aldeamentos imperiais, celeiros de recrutamento compulsório de nativos para obras públicas e promotores de deslocamentos forçados de comunidades pelo território. Já no contexto da República Brasileira, mesmo o surgimento de Serviço de Proteção ao índio (1910) tem por objetivos importantes o conhecimento e a tomada de posse de áreas consideradas “desconhecidas” nos mapas da época, bem como a conversão dos indígenas em trabalhadores nacionais (Lima 1992, Moreira 2017).

13No espaço colonial português dos séculos xix e xx, percebe-se como a criação da Commissão Central Permanente de Geographia (1876), as expedições exploratórias e científicas lideradas por Brito Capelo, Roberto Ivens e Serpa Pinto, entre 1877 e 1879 em África, os atritos relacionados ao mapa cor-de-rosa e ao Ultimatum britânico de 1890 e a criação da Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais, em 1933, já no Estado Novo, entre outros eventos, devem ser entendidos a partir de questões estratégicas de domínio sobre territórios coloniais, mas também do conhecimento sobre suas características físicas e humanas (Ribeiro 2004, IICT 2008).

14As justificativas giram em torno tanto do direito histórico de Portugal sobre os territórios africanos como também sobre a sua ¨Missão Civilizadora¨, que, por sua vez, se liga intimamente à questão do trabalho indígena. Em consonância com essa narrativa também se enquadra o Acto Colonial (1930), que proclama a vocação imperial do Estado português e a missão de civilizar populações indígenas. Tal mística imperial é chamada à narrativa mesmo depois da Segunda Grande Guerra, quando Portugal, respondendo a pressões internacionais, procura substituir referências ao Império e às colônias pelo uso do termo Territórios Ultramarinos. Este termo reafirma uma ressemantização de seus direitos históricos, com menção aos Descobrimentos, bem como sua missão civilizadora expressa no objetivo de comunicar aos nativos os benefícios da civilização cristã (Castelo 1999, Ribeiro 2004, Jerónimo 2009).

15O que na década de 50 do século xx se consolida legalmente a partir do uso do termo Territórios Ultramarinos, qual seja, a indissociabilidade entre as partes da Nação e a essência orgânica da Nação Portuguesa no possuir e civilizar esses domínios, parece o culminar de uma tradição narrativa sobre os territórios coloniais, segundo a qual tais territórios não se colocam como externos à Nação e, nesse sentido, pode-se estabelecer diálogo entre as políticas de cunho colonial desenvolvidas no Brasil e aquelas desenvolvidas por Portugal em seus domínios ultramarinos durante os dois regimes estadonovistas.

16Assim, através da ideia de colonialidade do poder, podemos, nas análises a que nos propomos neste trabalho, perceber de que forma iniciativas políticas e científicas, desenvolvidas durante os regimes estado-novistas, cuja incidência se dá sobre populações nativas de territórios subalternizados, utilizam-se de ideias tais como as de “deserto verde” e “bandeirante”, no caso brasileiro, ou de “territórios insalubres” e “descobridores”, no caso português, para estabelecerem e/ou consolidarem relações de poder e de exploração dentro das lógicas do sistema capitalista. Da mesma forma, pretendemos perceber como tais imagens se constituem em fórmulas que são reencontradas periodicamente, quando poderes hegemônicos voltam a incidir sobre territórios e culturas subalternizados, constituindo um poderoso instrumento de apagamento (Ricoeur 2007: 452-462) de memórias e patrimônios indígenas.

Dois periódicos de divulgação do Regime Estado-Novista

17Passemos a uma breve abordagem qualitativa do conteúdo de dois periódicos de propaganda ditatorial, um português e outro brasileiro. Temos por objetivo captar algumas das imagens que são sistematicamente usadas tanto para caracterizar o território a ser colonizado, provocando, de forma direta ou indireta, o apagamento, o silenciamento e a subalternização das populações indígenas do território, quanto para construir uma imagem conceitual do colonizador como sujeito intrépido e, ao mesmo tempo, justo, exortando a participação dos metropolitanos na empresa colonial-desenvolvimentista do Estado Novo.

18No caso brasileiro, analisaremos a revista Cultura Política, que circulou de 1941 a 1945. Neste caso, o início da circulação do periódico dá-se após a instauração oficial do Regime, que data de 1937, enquanto o seu encerramento coincide com o ano do fim do Estado Novo. No caso português, a escolha recai sobre a revista Portugal Colonial, cujos números abarcam o período de 1931 a 1937. Neste caso, o início da circulação da revista precede a instauração oficial do Estado Novo (1933), e o seu período de circulação circunscreve uma pequena parcela de um Regime ditatorial que se estendeu até 1974. Entretanto, ambos os periódicos tiveram circulação durante o mesmo período histórico, qual seja durante a primeira metade do século xx, nos contextos que direta ou indiretamente envolvem as duas Grandes Guerras e um forte expansionismo do sistema capitalista em escala mundial. Nos dois casos os periódicos contam com autores que são figuras de destaque nos dois países, autoridades políticas, científicas e culturais, que dão prestígio e concedem legitimidade aos textos (Velloso 1997, Duarte et al. 2018).

Desertos verdes, marcha para o Oeste e os novos bandeirantes

19A revista Cultura Política (Andrade 1941: 5-10) dedicou-se “ao estudo de todos os problemas sociais e políticos do Brasil”, de forma a unir a todos os brasileiros em torno de um único ideal: “o Brasil grande e unido, com uma só alma e como um só todo solidário”. Essa solidariedade viria do trabalho, que “outrora forma de escravidão, é hoje um meio de emancipação da personalidade, algo que valoriza o homem e o torna digno do respeito e da proteção da sociedade”. Mas isso não pressupunha o seu acesso igualitário, mas, sim, o sacrifício de todos em prol da missão histórica “de distribuir os bens sociais na medida das capacidades e necessidades de cada um, assegurar a ordem para a melhor eficiência do trabalho”, de forma a combater individualismos. Para isso, pressupunha-se, para além da figura centralizadora do próprio Ditador, também um plano desenvolvimentista para todas as regiões ainda em descompasso econômico em relação ao centro-sul do país.

20Sobretudo, a região amazônica é a mais visada, por lá estarem os trabalhadores perdidos na selva, “lutando bravamente contra a inclemência dos elementos”, na miséria. Para fazê-la “ressurgir de si mesma”, seria preciso melhorar as redes de transporte, criar “campos experimentais de plantio”, fundar escolas especializadas, reduzir impostos e colonizar o espaço com brasileiros (Galvão 1941: 149-155). Afinal, “para 1 820 000 quilômetros quadrados, apenas 450 000 habitantes. Que é isso? Um deserto.” A Amazônia seria “um matadouro”, um “sorvedouro de vidas” de “nordestinos audazes que se obstinam em povoá-la” devido à “inclemência do clima”. Embora estivesse “nas invasões do homem civilizado” a causa da insalubridade amazônica, através da proliferação de doenças exógenas, “o fato social é que não corresponde a densidade da população dispersa pelos latifúndios da Amazônia às incalculáveis riquezas em potencial” da região. “Preparar regiões circunscritas para salvar os amazonenses – eis o programa.” E também “a exploração inteligente da terra”, de forma a que a região pudesse vir a ser “o celeiro do mundo”, afinal, “de que serve sanear um deserto, se não o povoarmos depois?” (Lima 1941: 98-111) A “marcha para o Oeste” assim configura-se não somente como um plano desenvolvimentista, mas, sobretudo, como uma visão a partir do sudeste e do sul do país para o Norte brasileiro (Carvalho 1941: 13-22). No emblemático “Discurso do Rio Amazonas”, proferido pelo próprio Getúlio Vargas quando da sua viagem pela região, em 1940, o ditador ressalta que “todo o Brasil tem os olhos voltados para o Norte, com o desejo patriótico de auxiliar o surto do seu desenvolvimento” e que, com o trabalho que se pretendia desenvolver na região, o grande rio Amazonas passaria de “um simples capítulo da história da terra” e viria a tornar-se “um capítulo da história da civilização” (Vargas 1941: 227-230).

21Como protagonistas dessa arriscada empresa estariam os novos bandeirantes, que, à imagem daqueles que viveram durante o período colonial, estariam também dispostos a expandir as fronteiras – civilizacionais – do país. O bandeirante aqui é um “tipo representativo”, ou um “tipo social”, cujos ofícios são o da mineração e o da “caça ao índio”, e cuja marca cultural é a da mestiçagem resultante “do conúbio de portugueses com as cunhãs do reino guaianás”, mas também incluindo, em sua constituição genética, outros europeus e também africanos. Eles teriam “feitio operário”, vivendo em “solidariedade social”, “trabalhando modestamente em serviços manuais”, e praticariam uma “democracia rudimentar”, não coincidindo aqui o termo com os “regimes tagarelas e parlamentares”, mas com um espírito empreendedor e voluntarioso que valoriza mais a ação do que a decisão política. A ação, por sua vez, não dispensa a hierarquia. Na sociedade do bandeirante, a eles cabe o comando, aos negros a obediência e aos indígenas o movimento, o domínio – em termos de conhecimento – do território selvagem. Assim sendo, tratar-se-ia de uma “democracia social e biológica”. O papel histórico do bandeirante na destruição de quilombos, no assassinato do indígena dito “selvagem comedor de carne humana” e na dissolução de aldeamentos jesuítas denominados como exemplares do “império teocrático Guarani”, ele o cumpre por ser “o protetor, o elemento de ordem, a garantia de tranquilidade em certas zonas de turbulência”. Dessa forma, o bandeirante encarna o “governo forte” do Estado ditatorial, “um executivo que tudo dispõe e tudo ordena” (Ricardo 1941: 110-132).

Territórios insalubres, Missão Civilizadora e os novos descobridores

22Portugal Colonial nasce com a missão de fazer exortar “um glorioso passado de heroísmo libertador e civilizador” do povo português, esquecido desde a década de 20 do século xix, quando o país se contaminou “com as primeiras febres do liberalismo” e de voltar a atenção aos “seis milhões de almas que precisavam viver, não degradados à condição servil numa colônia de mestiços, mas sim reerguidos ao nível normal dos homens europeus”. Para o cumprimento dessa “grande obra colonial que constitui a sua mais alta missão entre os povos do mundo” seria preciso criar uma consciência nacional em torno de um “sentido colonial” que deveria unir a todos os portugueses, empreendimento ao qual o periódico deveria dedicar-se (Galvão 1931: 1-2).

23Nesse sentido, “coloniza-se porque se é sábio”, ou seja, porque se teve capacidade para isso, e “a colonização é fenômeno humano, eterno e complicado contra o qual nada podem as efêmeras e excessivamente simples ideias dos homens”. Mas estava-se a viver um contexto internacional no qual nações europeias “hesitam no seu direito de colonizar, e quase pedem desculpa de possuírem colônias” (Campos 1931: 5-6), e um contexto nacional no qual os territórios coloniais ultramarinos estariam sendo considerados “o luxo e a glória e o oneroso prolongamento da verdadeira pátria”. Cumpria-se lutar contra tal situação e pôr em evidência que o “espírito ultramarino” português havia colocado “em pé de igualdade todas as partes da terra que formam Portugal”. Isso porque os territórios ultramarinos, para além de constituírem “a pesada tarefa civilizadora” do país, eram também a solução de muitos dos seus problemas, tais como o dos “excedentes demográficos” da metrópole. Esses vastos territórios “não custam hoje à Metrópole um centavo e lhe rendem, em benefícios de toda a ordem, moral e materialmente, enormes vantagens” (Monteiro 1934: 4-12, Galvão 1934: 12-16). Os números aqui também esclarecem a dimensão da tarefa que portugueses teriam em mãos. “Sobre os 256 000 000 de quilômetros quadrados da África vivem apenas 3 500 000 europeus”. Destes, “2 000 000 pertencem à União Sul Africana e 1 200 000 povoa os países ao norte da África, Tunísia, Algéria e Marrocos”. Dos “300 000 que faltam”, Moçambique contaria com 25 000 e Angola com 52 000, mostrando que a colonização se fazia em África “duma maneira mais notável, pelos países que não possuem na verdade um extraordinário excedente demográfico”, como no caso de Portugal (Azevedo 1936b: 15). E embora alguns técnicos fossem da opinião de que “o continente africano chegou ao ponto de saturação quanto a habitantes brancos”, fato demonstrado por “90 por cento de sua população branca estar concentrada nas regiões do norte e do sul”, isso não se aplicaria ao povo português, dotado de larga experiência em matéria colonial, capaz de transformar as circunstâncias que circunscrevem esses territórios, (S.A. 1936: 20) através da “admirável política sanitária que temos seguido em todas as latitudes do Império Colonial Português” (Azevedo 1936c: 12).

24A obra ultramarina devia-se ao “gênio português”, um elemento genético e cultural, “imprimindo à população uma ansiedade expansiva cheia de heroica melancolia” e conferindo-lhe a natural “tentação do mar”, à qual juntou-se “o espírito da colonização”, herdado dos romanos (Almeida 1931: 7). O Português seria “impulsivo, temerário, aventureiro e um pouco ambicioso”, além de movido pela causa maior da religião, o que lhe havia conferido “a mola real da obra humanitária, que, através dos séculos, Portugal tem vindo a desenvolver” (Santos 1935: 10-14). Já os indígenas seriam dotados de uma “passividade” que “presta-se a que o eduquemos no sentido de subordinar a um método, de benéficas consequências gerais”, a qualidade inata ou adquirida de seu trabalho. Além disso, seriam dotados da “alegria pura, individual ou coletiva”, que é “um bom elemento para facilitar as condições de instalação do trabalho moderno”, evitando “a neurastenia, que assassina o melhor trabalho dos brancos” (Azevedo 1936a: 13-14). Para o efetivo desenvolvimento das “raças inferiores coloniais”, urgia-se, entretanto, orientação “baseada em normas científicas”, tendo em vista o conhecimento de suas origens e a consequente adoção de métodos para o aproveitamento das suas “qualidades de trabalho” (Almeida 1931: 7-8), bem como, através dos recursos de “segregação, assimilação, e adaptação”, o alcançar dos resultados que trouxessem mais vantagens ao domínio colonial (Martins 1931: 19). Ao problema do indígena soma-se o problema dos colonos, da salubridade do território, da possibilidade econômica de fazer “ao branco viver e prosperar” naquelas terras (Galvão 1933: 2). E como “não há colônias prósperas sem metrópole forte”, desta empresa também depende o sucesso da ditadura (Galvão 1934: 12-15).

Apagamentos, redes e permanências

  • 1 Mendes Correia foi presidente da câmara municipal do Porto e deputado à Assembleia Nacional entre 1 (...)

25A política colonial e os seus tipos representativos encontram pontos de concordância no meio acadêmico. No caso português, figuras científicas de grande importância na investigação dos indígenas e de sua produção cultural são também figuras políticas da ditadura1. É o caso, por exemplo, de Mendes Correia e de António de Almeida, ambos diretamente envolvidos no incentivo e desenvolvimento das chamadas Missões Antropológicas aos territórios Ultramarinos (Poloni 2017a). Aliás, a ideia de “colonização científica”, que se desenvolve no período, cobra dos cientistas nacionais um engajamento direto com pesquisas realizadas nas colônias. Em artigo datado de 1945, denominado “Missões antropológicas às colónias”, Mendes Correia afirma:

Enfim o estudo científico da população das nossas colônias sob os mais variados aspectos não é menos importante e imprescindível do que o das maiores riquezas do subsolo ou do revestimento vegetal daqueles territórios. Pelo contrário, é mais urgente e mais imperioso do que qualquer outro, pois, se apresenta incontestável interesse económico e nacional, a par do seu interesse científico, não possui menor valor nos pontos de vista político e humanitário. (Correia 1945: 9)

26Esses cientistas coloniais também acedem às ideias relativas à necessidade de se superar a insalubridade dos territórios ultramarinos, de se cumprir a Missão Civilizadora portuguesa no Ultramar e de se honrar o trabalho dos Descobridores. No plano de estudos antropológicos ultramarinos, assinado por Mendes Correia, em 1940, (Correia 1941: 1), por exemplo, são contemplados dois enfoques: o da ciência pura, definida como a que pretende prender-se a indagações científicas desinteressadas, e o da ciência aplicada, ou aquela que visaria à melhoria das condições de vida dos indígenas e à sua colaboração com o Império. Em texto de 1947, dedicado à campanha preliminar à Missão da Guiné, Mendes Correia alerta:

Felicitemo-nos por quase sempre – e hoje mais do que nunca – ser diversa a atitude de Portugal perante as gentes de além-mar que estão sob sua soberania e para com as quais não esquecemos os deveres de protecção e solidariedade que tal facto e altos princípios nacionais e espirituais impõem do modo mais absoluto. (Correia 1947: 7)

27Já no discurso de Mendes Correia na inauguração do primeiro Congresso Nacional de Antropologia Colonial, realizado em concomitância com a primeira Exposição colonial portuguesa, em 1934, o político e antropólogo afirma:

Vagueamos por longos anos nas incertezas duma política romântica, que só com as conferências de Bruxelas e de Berlim começa a abrir os olhos, enquanto os Serpa Pinto, os Capelo, os Ivens, os Dias de Carvalho, os Silva Pôrto, procuram em África garantir prioridades que vinham já dos Duarte Lopes e dos outros pioneiros dos velhos tempos. Mas, reatando embora a tradição gloriosa, nem por isso esses homens alcançaram evitar que a sofreguidão de oiro e as modernas ambições imperialistas nos arranquem países imensos que eram bem nossos, pedaços frementes da nossa carne e do nosso sangue. (Correia 1934: 6)

28Nesses trechos, sob a voz de Mendes Correia, fundador da Sociedade Portuguesa de Antropologia e Etnologia e do Instituto de Antropologia da Universidade do Porto e o maior idealizador e impulsionador das pesquisas em ciências sociais e humanas em territórios coloniais, percebe-se que, em consonância com interesses de cunho científico, estão interesses políticos que em muito se equiparam aos que se consubstanciam na revista Portugal Colonial.

29Também no Brasil ocorre o mesmo. Angyone Costa, importante Antropólogo e Arqueólogo do período, por exemplo, escreve na própria revista Cultura política, em 1943:

Para atingirmos a fôrça civilizadora, o potencial norte-americano, necessitaremos de adotar-lhes a técnica, pôr em prática a sua sistemática educativa, conservando, porém, nosso caráter nacional. É uma transformação que terá de ser condicionada à terra, em função do homem que a povoou, e tendo como elemento básico o índio, primeiro e importante fator do caldeamento que aqui se está processando. (Costa 1943: 98)

30Em sua obra Introdução à Arqueologia Brasileira, uma das muitas produzidas pelo autor, Angyone Costa assim sintetiza a composição mental do nativo:

Ficou simples assistente do grande drama que, em torno dele, se desenrolava. Pobre de atenção e acuidade, mais pobre ainda de compreensão dos fatores morais, o índio contentou-se com pouco. Não pesquisou. Não perquiriu. Não sentiu. Não se impregnou do encanto da natureza opulenta. Viveu sem aspirações. (Costa 1938: 304)

31Outra cientista importante do período, a Antropóloga e Arqueóloga Heloisa Alberto Torres, que foi diretora do Museu Nacional do Rio de Janeiro durante o Estado Novo, escreve, em 1937, para a primeira edição da Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, periódico do nascente e homônimo órgão de proteção patrimonial brasileiro, o artigo “Contribuição para o Estudo da proteção ao Material Arqueológico e Etnográfico no Brasil”:

O simples fato de nos encontrarmos em face de gente que não consegue exprimir, ou sugerir sequer, o modo por que desejara ser amparada, que nem sempre é capaz de discernir o que convém lhe seja aplicado, deixa ao nosso inteiro arbítrio a decisão sobre o modo de proceder. (Torres 1937: 25)

32Nestes casos, parece evidente aos cientistas em questão que a mente primitiva dos indígenas abria espaço ou para a tutela estatal, ou para a intervenção direta sobre os modos de vida e as culturas nativas.

33Os enredamentos que aqui se veem, entre ciência e política desenvolvimentista, com sua consequente ação sobre as comunidades indígenas dos territórios, se perpetuam ademais no tempo, para além das ditaduras estadonovistas. No caso brasileiro, um novo surto desenvolvimentista incide sobre a região amazônica após a instauração da Ditadura Civil-militar em 1964. No âmbito desse ideário é criado, em 1970, o Programa de Integração Nacional (PIN), que tinha como um dos seus lemas “terra sem homens para homens sem terras”. Conforme apontado pelo Relatório da Comissão da Verdade sobre “Violações de Direitos Humanos dos Povos indígenas”, o PIN preconiza “o estímulo à ocupação da Amazônia. A Amazônia é representada como um vazio populacional, ignorando assim a existência de povos indígenas na região” (Brasil 2014: 209).

34Também nesse contexto é criado, em 1968, o Sexto Batalhão de Engenharia de Construção com o objetivo de construir as BR-174 e da BR-401, duas grandes rodovias que cortam a região amazônica do país. O mesmo relatório da Comissão da Verdade demonstra como a construção da BR-174, por exemplo, contribuiu para o genocídio do povo Waimiri-Atroari e qual era a visão do Sexto Batalhão sobre o contexto:

A estrada é irreversível como é a integração da Amazônia ao país. A estrada é importante e terá que ser construída, custe o que custar. Não vamos mudar o seu traçado, que seria oneroso para o Batalhão apenas para pacificarmos primeiro os índios [...] Não vamos parar os trabalhos apenas para que a Funai complete a atração dos índios. (Brasil 2014: 235)

  • 2 Sobre o tema, consultar o site do departamento de Engenharia e Construção do Exército, sobre a hist (...)

35Aqui, mais uma vez, emerge a figura do Bandeirante. No ano posterior ao surgimento do Sexto Batalhão, é eleito como símbolo dos Batalhões de Engenharia brasileiros o Chapéu Bandeirante, inspirado no adereço usado pelo bandeirante Domingos Jorge Velho na tela de Benedito Calixto, de 19032. O chapéu simboliza “o desprendimento, o estoicismo e do desassombro pelo desconhecido dos integrantes da arma de engenharia” (Exército brasileiro in Marques 2015: 36). Também o bandeirante aparece na canção do sexto batalhão de engenharia, denominado “A mais bela batalha”:

Num contínuo rugir de motores.
Batalhão de novos pioneiros, Seguidores
do exemplo imortal
De engenheiros heróicos, guerreiros
Duma guerra como nunca houve igual. (estribilho) Companhia
de audazes, indômitos
Bandeirantes de raça viril,
Ansiosos por ver a Amazônia
Para sempre integrada ao Brasil
(Exército brasileiro, Marques 2015: 36)

36Tais recorrências, muito para além de recursos estéticos ou poéticos, demonstram como o bandeirismo, no Brasil, tem sido usado como um princípio que exprime a colonialidade do poder e ao qual se recorre sempre que novos projetos desenvolvimentistas são pensados para regiões periféricas do país. De tais permanências, pode-se inferir a seriedade com que se deve avaliar as investidas do atual governo brasileiro sobre a região amazônica, haja vista seu forte vínculo militarista. Também pode-se perceber incidentes tais como o recente incêndio da estátua do bandeirante Borba Gato, em São Paulo3, em julho de 2021, como sendo a canalização de insatisfações populares que vão para além da biografia do indivíduo homenageado, mas se estendem a uma forma de ação que, segundo Quijano (2009), inclui um padrão de poder que se baseia na hierarquização cultural e na expropriação e exploração do trabalho dos subalternizados.

37No caso português, chama a atenção o esforço recente da Câmara Municipal de Lisboa de ali criar um museu dedicado às “Descobertas”. A proposta, que tem enfrentado muitas resistências por parte de intelectuais engajados com a descolonização do país, representa a continuidade da narrativa hegemônica segundo a qual:

Portugal promoveu uma colonização exemplar através de um processo de descobrimentos marítimos e de miscigenação com outros povos. Um outro elemento fundamental dessa narrativa é a de que Portugal é um país pacífico e de brandos costumes, cujo território europeu esteve fundamentalmente em paz durante o século xx. (Coelho & Vila 2019)

38Aqui, como dito anteriormente, parece persistir, se não mais a ideia do direito à posse sobre os Territórios Ultramarinos, já que em descompasso com o contexto político e econômico moderno, pelo menos certo orgulho em relação à obra realizada, ao menos do ponto de vista cultural, à qual subjaz a naturalização das relações de poder estabelecidas pelo regime colonial.

39Essas memórias amnésicas (Cardina 2016) sobre o período colonial, embasam-se, assim, na ideia de ter sido a colonização um encontro de culturas, na excepcionalidade da presença portuguesa no mundo que se plasma na língua, na cultura e no patrimônio e em um sistemático evitar de termos, tais como colonização, racismo, escravatura e guerra colonial, tópicos que Cardina associa a ¨um imaginário de traços coloniais, de timbre luso-tropicalizante, num espaço-tempo pós-colonial (ibid.: 38), e que o autor identifica em discursos políticos contemporâneos do Estado Português.

40Esforço de igual importância faz Rui Pereira (2020) ao procurar responder para que serve um Museu dos Descobrimentos. Começando por percorrer a constituição da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, já em fins dos anos 80 do século xx, o autor ressalta a forma como se exalta a forma arrojada, coesa e sistemática da Expansão, ignorando, por outro lado, as políticas de dominação e sujeição indígenas. O autor questiona-se também sobre o uso da categoria Lusofonia como forma de justificar a produção de conhecimento sobre as ex-colônias portuguesas, ação exercida como privilégio adquirido sobre aqueles territórios. Por fim, retomando o tema da criação, na capital do país, de um espaço museológico destinado a celebrar “o papel de Portugal na descoberta do mundo” (Pereira 2020: 379), o autor critica o memorialismo colonial e exorta uma descolonização do conhecimento, chamando a atenção para a necessidade de se musealizar também toda a violência colonial. O autor termina propondo que tal empreendimento, se viesse a se concretizar, mereceria, antes, a denominação de Museu do Colonialismo, uma ousada e pertinente proposta para descolonizar a sociedade.

Apagamentos e esperanças: algumas conclusões

41Ricoeur, na clássica obra “Memória, História, Esquecimento” (2007: 455), chama a atenção ao caráter sempre seletivo da narrativa. Sendo a ideia de uma narrativa exaustiva de fato impossível, esta sempre comportará um recorte. Dessa forma, a configuração narrativa oferece espaço para a ideologização da memória, através da história autorizada, oficial. A narrativa canônica, nos diz Ricoeur, direcionada por potências superiores, pode levar a uma forma ardilosa de esquecimento “resultante do desapossamento dos atores sociais de seu poder originário de narrarem a si mesmos”. Essa “memória manipulada”, que, segundo Ricoeur (2007: 99-104), aponta para o futuro através de instrumentos tais como a história cívica e as comemorações, busca a manutenção de determinada identidade.

42Nos contextos aqui tratados, buscamos perceber de que forma o recurso das imagens, tais como a de desertos verdes, ou de territórios insalubres, produz uma narrativa que invisibiliza as comunidades nativas de territórios visados por políticas coloniais. Da mesma forma, tipos sociais como o “bandeirante” ou o “descobridor” levam a que se reafirme um olhar hegemônico dos centros políticos e econômicos sobre lugares e povos subalternizados, de forma a justificar planos desenvolvimentistas que geram ações violentas que se perpetuam e se repetem.

43Estamos diante de situações que se enquadram dentro do universo da colonialidade do poder, contra a qual atitudes, tais como as denúncias do relatório brasileiro da Comissão da Verdade em relação ao extermínio sistemático de indígenas no período contemporâneo da história do país, ou a contraposição ao projeto do Museu da Descoberta, de Lisboa, por intelectuais engajados, são passos ainda incipientes, porém necessários. No longo percurso da descolonização de ambas as sociedades e para o qual nos exorta ainda Ricoeur (2007: 456), convém aos agentes sociais interessados a reconquista da sua capacidade de narrar, gerando redes de solidariedade que produzam narrativas de forma “inteligível, aceitável e responsável”. O filósofo lusófono do século xvii Bento Espinosa constatava que a tristeza leva à destruição e à morte, maneira de descrever a narrativa triste do colonialismo, antigo ou atual. Espinosa propunha que a alegria e a convivência são afetos mais poderosos. Isso só é possível sem o ocultamento das tristezas do passado e do presente. Se tivermos contribuído para isso, estaremos contentes.

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Notes

1 Mendes Correia foi presidente da câmara municipal do Porto e deputado à Assembleia Nacional entre 1945 e 1956, enquanto António de Almeida ocupou o cargo de deputado entre 1938 e 1957 (Poloni 2017a).

2 Sobre o tema, consultar o site do departamento de Engenharia e Construção do Exército, sobre a história da engenharia militar e do chapéu bandeirante. Disponível em: http://www.dec.eb.mil.br/historico/, acesso em 15 de novembro de 2021.

3 Estátua de Borba Gato é incendiada em São Paulo. Disponível em: https://g1.globo.com/sp/noticia/2021/07/24/estatua-de-borba-gato-e-incendiada-por-grupo-em-sao-paulo.ghtml, acesso em 15 de novembro de 2021.

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Pour citer cet article

Référence électronique

Juliana Poloni et Pedro Paulo A. Funari, « Os desertos habitados: Estado Novo, colonialismo, memória e patrimônio em perspectiva comparada »Lusotopie [En ligne], XXI(1) | 2022, mis en ligne le 01 septembre 2022, consulté le 13 décembre 2024. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lusotopie/5090 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lusotopie.5090

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Auteurs

Juliana Poloni

Instituto de Ciênciais Humanas-ICH, Universidade Fereral de Pelotas, Brasil
julianapoloni[at]hotmail.com

Pedro Paulo A. Funari

Departamento de História, IFCH, UNICAMP, Brasil
ppfunari[at]uol.com.br

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