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Dossier - Patrimoines difficiles et politiques publiques de la mémoire : décolonialités, redémocratisations et démocraties en péril

Os tempos do M’saho: práticas de construção de memória e processo de patrimonialização em Moçambique

Les temps du M’saho : pratiques de construction de la mémoire et processus de patrimonialisation au Mozambique
The Times of M'saho: Memory Construction Practices and the Patrimonialization Process in Mozambique
Sara Morais

Résumés

L’article analyse les formes d’appréhension par différents agents sociaux d’un festival dédié aux timbila des Chopi appelé M’saho, en se centrant sur la période post-indépendance. À travers une discussion bibliographique et la description ethnographique de M'saho réalisée en 2018, le texte propose une réflexion sur les changements dans les relations de l'État avec les timbileiros, mettant en évidence les dilemmes et les limites auxquels ils sont confrontés dans la transition des régimes politiques et des pratiques de gouvernement associés aux périodes coloniale et post-indépendance. In fine, il s'agit de comprendre la place occupée par le festival dans le processus de patrimonialisation de la timbila.

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Texte intégral

If heritage discourse focuses on discontinuity and the revitalizing of pasts, memory is constituted by a politics of remembering and forgetting that stresses repetition and continuity. (De Jong & Rowlands 2007)

  • 1 Utilizo timbila no plural e mbila no singular, tal como estabelecem as regras gramaticais da língua (...)
  • 2 Os régulos, e consequentemente suas atribuições, foram uma criação do governo colonial, que se paut (...)
  • 3 Embora Webster inclua nesta área os distritos de Zavala e Inharrime, sabe-se que muitos sujeitos ch (...)
  • 4 “É através da música e das letras que as lealdades do indivíduo se estabelecem; as canções oferecem (...)

1M’saho é o nome atribuído atualmente a um festival anual de timbila1 e outras expressões musicais, convidadas por agentes do governo local a se apresentarem no palco do Miradouro de Quissico, localizado no distrito de Zavala, província de Inhambane, em Moçambique. Trata-se de uma palavra do vocabulário cicope (língua chope), cuja acepção mais difundida assenta-se na ideia de reunião de grande quantidade de agrupamentos de timbila que competem pela melhor performance diante de uma audiência (em geral, pessoas oriundas de comunidades rurais do distrito). Antes da independência do país, as timbila eram organizadas pelas chefias tradicionais (também chamados de régulos)2 das povoações do “território chope”3. Os grandes agrupamentos mantidos em localidades específicas, constituídos por instrumentos de tipo xilofone de variados tamanhos e tonalidades, receberam a alcunha de orquestras (Tracey 1948, Webster 2009) em outros tempos e se caracterizavam como um dos principais elementos de identificação dos indivíduos com suas localidades4.

  • 5 Webster (2009: 130) indica o caso de alguns indivíduos que migraram da sua zona de origem porque nã (...)
  • 6 “Nesses momentos, a competição é aguerrida, reforçando a consciência da área em que se reside e a l (...)

2Antes de 1975, quando Moçambique se tornou independente de Portugal, quase todas as povoações possuíam sua própria “orquestra”, cujos “compositores incorporam nas letras versos de enaltecimento à sua povoação e insultos às povoações vizinhas” (Webster 2009: 97)5. As orquestras exibiam-se em festividades locais e em concursos competitivos6. As letras das canções desempenhavam um papel fundamental na regulação de comportamentos prescritos pela sociedade. Webster (2009) atribuiu tamanha centralidade às timbila que afirmou ser a “prática musical dos chopes” mais efetiva do ponto de vista dos alívios das tensões entre rivais do que as acusações de feitiçaria.

  • 7 São cerca de 7 grupos existentes em Zavala e o número de integrantes de cada um varia entre 25 e 30 (...)
  • 8 Ver, por exemplo, o vaticínio de António Rita-Ferreira (1974).

3Atualmente os grupos de timbila existentes no distrito de Zavala são entidades autônomas, fundadas e chefiadas por timbileiros7. Após a independência de Moçambique, com a abolição do sistema de regulados, as timbila não puderam mais contar com o aparato que as havia sustentado por décadas. Assim, munidos de habilidades de liderança, talentosos timbileiros arregimentaram gente (filhos, cunhados, vizinhos, irmãos, companheiros de trabalho nas minas da África do Sul), constituíram seus próprios agrupamentos e deles tornaram-se chefes (Morais 2020a). Inventaram um novo modo de existência que os permitiu enfrentar um destino de desaparecimento anunciado8 e a continuarem criativamente a praticar suas timbila em cerimônias tradicionais de homenagem a antepassados/ancestrais, em casamentos, em comemorações diversas – que ainda se configuram como fundamentais para a vida social naquele território –, em eventos de recepção de autoridades políticas e em festivais culturais organizados pelos governos distrital e provincial.

  • 9 A Guerra Civil moçambicana foi um conflito armado bastante violento entre FRELIMO (Frente de Libert (...)

4Meu intento neste artigo é explorar alguns dos sentidos atribuídos ao M’saho por diferentes agentes (intelectuais, funcionários do governo, régulos, timbileiros) contidos em relatos, descrições e, principalmente, memórias coletivas assentes num passado que se tornaram reificadas no presente. Reificação possível a despeito das inúmeras transformações pelas quais passaram as timbila antes e depois da independência de Moçambique e após a guerra civil, com a inauguração de um sistema democrático de multipartidarismo9.

  • 10 Sobre o tema da nostalgia e o modo como é abordado em processos de patrimonialização em contexto af (...)

5Discuto como, no âmbito da elaboração da candidatura das timbila chopes para o extinto Programa das Obras-Primas do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade em 2005, o M’saho foi utilizado como uma tecnologia patrimonial (Hafstein 2018) pautada em sentimentos nostálgicos envolvendo a “revitalização” do modo como certos aspectos da vida social das timbila eram praticados no passado10. Argumento, com foco da análise de alguns dados etnográficos construídos a partir do M’saho realizado em 2018, que a estrutura atual do festival segue a estrutura da própria sociedade de Zavala, ou seja, um contexto muito distinto do que foi proposto na candidatura das timbila à UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura). Os timbileiros e demais apreciadores da música das timbila, que tanta estima devotam aos misaho (plural de M’saho) do passado, reelaboram suas memórias no presente ao vivenciarem os novos tipos de organização do festival.

Introdução

  • 11 A partir de 1991, iniciou-se um processo de descentralização da administração pública, seguido do s (...)

6Embora o uso do termo m’saho por populações chopes seja mais antiga do que se imagine atualmente, e assuma algumas distintas acepções, a palavra começou a ser utilizada a partir de 1994 como referência específica a um festival proposto e organizado pela Amizava (Associação dos Amigos de Zavala), recém fundada após uma sangrenta guerra civil que assolou o país por cerca de dezesseis anos. O M’saho surge ressoando os valores da democracia recém adotada pelo país em 1990: tratava-se de um evento proposto pela “sociedade civil”, com objetivo de valorização e promoção de uma manifestação de um grupo etnolinguístico representante da sua diversidade cultural. De fato, a ideia de promoção e valorização de aspectos da cultura por meio de associações da “sociedade civil” passou a ter espaço nos últimos anos da guerra11, em que discursos governamentais e oriundos de agências internacionais preconizavam a necessidade de promoção da diversidade cultural com objetivo de busca pela paz e pela solidariedade entre os povos do território moçambicano.

  • 12 São eles: a Lei 10/88, que determina a proteção legal dos bens materiais e imateriais do patrimônio (...)
  • 13 O que confirma a proposição de Trajano Filho (2012: 38) de que “o processo formal de patrimonializa (...)
  • 14 Sobre o processo de patrimonialização das timbila, ver Morais (2020b).
  • 15 Para uma leitura crítica a respeito das ações de salvaguarda que não foram implementadas pelo gover (...)

7Quando Moçambique é convidado pela UNESCO para submeter uma candidatura com vistas à Terceira Proclamação das Obras-Primas do Patrimônio Oral e Imaterial da Humanidade (2005), a existência de dois aparatos legais voltados à área da cultura e do patrimônio cultural foi fundamental para sustentar o corpus de documentação necessária ao pleito12. Baseados em descrições, esquemas e explicações já consagradas na literatura produzida sobre as timbila13, o dossiê foi aprovado e em 2005 as timbila chopes foram proclamadas Obra-Prima14. Não é meu objetivo aqui adentrar na discussão sobre as transformações ocorridas na dinâmica da prática cultural após esse reconhecimento oficial15. No que tange especificamente ao M’saho, cabe salientar que, nos primeiros anos consecutivos à conquista do título internacional, o festival foi organizado com financiamento de embaixadas sediadas em Maputo (por meio de recursos captados e geridos por uma produtora cultural) e da própria UNESCO; condições que atenderam, em parte, às demandas dos timbileiros. Passada essa euforia inicial, os recursos se tornaram cada vez mais escassos. As conversas com meus interlocutores e outros dados construídos em campo permitem afirmar que o dirigismo de certas esferas do governo em relação aos modos como as timbila deveriam se apresentar no palco continuou frequente, frustrando as expectativas iniciais dos então detentores daquele patrimônio, os quais esperavam um maior protagonismo na organização do evento. A descrição do M’saho ocorrido em 2018 contida neste artigo permitirá aos leitores uma aproximação a esse contexto, além de uma compreensão mais circunstanciada a respeito da dinâmica contemporânea do festival.

  • 16 Nos últimos anos, avolumaram-se estudos antropológicos que trataram de diferentes aspectos do conce (...)

8Estudos sobre memória no continente africano têm demonstrado as naturezas contraditórias de práticas de rememoração e esquecimento16. Políticas estatais de monumentalização têm sido reforçadas pela UNESCO e outras agências que promovem tecnologias de patrimônio para a produção de passados e futuros considerados oficiais (De Jong & Rowlands 2007: 13), frequentemente alheios às vontades dos próprios detentores desse patrimônio. Em suas estratégias de construção de mecanismos de preservação do patrimônio, o Estado moçambicano selecionou algumas memórias convenientes e rejeitou outras, o que implicou recorrer a um passado imaginado como ideal a ser reproduzido num futuro reparador.

  • 17 O ato formal de patrimonialização que culminou na conquista do prestigioso título foi precedido por (...)

9O M’saho inserido no Plano de Ação da candidatura das timbila foi o evento “festivalizado”, e não os encontros competitivos com imperativo de sociabilidade assentes na memória dos timbileiros tal como lhes contavam seus antepassados. Tão pouco a dimensão das timbila como imperativo da vida social chope por meio de encontros de “orquestras” foi abordado no material elaborado para a UNESCO. Discutirei nas linhas que seguem as ambiguidades assentes na escolha do M’saho como principal atividade de salvaguarda das timbila, confrontando-as com certos aspectos contemporâneos da realização desse festival. Tomarei o M’saho como uma situação social complexa por reunir uma série de elementos constitutivos das timbila, podendo também ser considerado como parte do processo de objetificação que nelas produziu reduções semânticas (Trajano Filho 2012) diversas17.

Diferentes formas de apreensão do M’saho

10O dossiê produzido pelo governo moçambicano para a candidatura das timbila chopes enfatizou em seu Plano de Ação a “reorganização do festival M’saho” (República de Moçambique 2004: 27). O documento afirma que

In the past, each chieftainship had an orchestra and the chief used to invite the orchestras of other chiefs to perform their new migodo to the public. This type of meetings had a competitive nature and it lasted for about a week, and at the end, one of the participating orchestras was declared the winner. Thus, instead of being only a one or two-day festival with short highlight performances (as it used to be in the past decade), Msaho will again take place during a whole week since this corresponds much more to the needs of the timbila players who wish to play their compositions in full length.

  • 18 Segundo Tracey (1970), ngodo é “uma dança orquestral de nove a onze movimentos. Cada movimento é di (...)

11Como se pode apreender, o formato do M’saho tal como preferido pelos timbileiros e que deveria ser repetido após a patrimonialização como uma ação de salvaguarda das timbila era o organizado pelos chefes dos regulados no período colonial, no qual os agrupamentos se expressavam por meio de um n’godo completo18. Descontentes com o tempo disponibilizado para se apresentarem no formato inaugurado a partir de 1994, entre outras insatisfações relativas à organização do festival, os timbileiros teriam se manifestado a respeito de suas preocupações em relação aos rumos do festival para os agentes do governo central e distrital, tendo em vista um tão prestigioso título internacional. Entendiam se tratar de uma situação privilegiada para que alcançassem melhorias em prol da vitalidade da suas timbila.

12A reivindicação dos timbileiros não deve ser tomada como uma defesa do modelo dos misaho organizados antes da independência. Embora pareça, à primeira vista, que essa demanda tendo como parâmetro o que ocorria no período colonial constitua um revivalismo de uma época que teria sido benéfica para os timbileiros (e, consequentemente, para as timbila), trata-se de uma percepção equivocada e simplista de um processo de exclusão pautado em assimetrias várias que se perpetuou no governo pós-independência.

  • 19 Nomenclatura utilizada no período colonial para se referir às instâncias territoriais e políticas s (...)

13Quando alguns timbileiros, durante a construção da candidatura para a UNESCO, afirmavam que gostariam de ter um festival como “nos tempos” (neste caso específico, referiam-se ao período colonial) – e conforme me explicaram muitos anos depois, em 2018 –, expressavam em grande medida não somente seu desejo de conviver durante mais tempo com músicos de outras circunscrições19, mas principalmente de terem condições mínimas de alimentação e de cuidado com a higiene corporal dos músicos. Ainda que certas práticas do governo colonial direcionadas às timbila sejam reconhecidas pelos timbileiros como benéficas para a prática musical, não significa que muitos sujeitos chopes não tenham passado por constrangimentos violentos de diversas ordens, incluindo o trabalho compulsório em terras do régulo (Morais 2020a).

14O processo de patrimonialização das timbila, na fase de elaboração da candidatura, idealizou a possibilidade de ressurgimento de um evento em que o tempo das apresentações e do convívio entre timbileiros – os quais vivem a longas distâncias uns dos outros e muitos não possuem meios de locomoção –, além das condições mencionadas acima, estivessem garantidos. Os resultados foram muito distintos do que se propôs e se imaginou à época. Diferentemente de um evento em que a primazia do exercício de memória coletiva (dos timbileiros) prevalecesse, o que se assiste atualmente são apresentações ainda mais curtas e com menos grupos. O tempo almejado pelos timbileiros, que incluiria intenso convívio entre grupos, entre estes e a audiência afluente no evento e o compartilhamento de habilidades (novas composições, execução de todos os movimentos do n’godo), necessárias à competição foi-lhes tomado. No lugar, foi instalado o tempo dos discursos políticos escorados numa pretensa democracia. Mas antes de passar ao contexto contemporâneo, gostaria de discutir algumas das noções sobre m’saho abordadas na bibliografia especializada sobre o tema das timbila, de modo a fornecer ao leitor algumas das complexidades do contexto em causa.

15As timbila são mencionadas em registros escritos desde pelo menos o século xvi, tendo chamado atenção de Henri-Alexandre Junod no final do século xix e do seu filho, Henri-Philipe Junod, nas primeiras décadas do século xx. Mas foi somente a partir da década de 1940, em função dos estudos conduzidos por Hugh Tracey, etnomusicólogo inglês radicado na África do Sul, que elas passaram a ser conhecidas por um público mais amplo. Em Chopi Musicians, o autor define msaho como “musical competition, combined performance by several orchestras” (Tracey 1970: 149). Além dessa explicação contida no glossário inserido ao final do livro, o autor menciona o termo num trecho específico em que analisa o ngodo do célebre timbileiro Gomukomu, composto em 1940:

The various villages are proud of their musicians and dancers and they strive to excel in their performances. They hold competitions (Msaho) in which the orchestras compete against each other. The musicians of the Mangeni district, under their Chief, Filippe Banguza, were specially recommended to me and they lived up to their reputation. (Tracey 1970: 33)

16Esse comentário de Tracey remete ao contexto mais amplo de organização e manutenção das timbila naquele período. Tudo o que se relacionava às apresentações das “orquestras” (ensaios, recrutamento de músicos, organização de algum evento etc.) era responsabilidade dos régulos. Webster (2009: 373) afirma que “o recrutamento para as orquestras corresponde, grosso modo, às divisões territoriais e políticas mais vastas. Cada povoação é geralmente representada por uma orquestra e é a partir destas que se forma a orquestra do grupo de povoações, mas a solução mais frequente é a escolha da melhor de entre elas”. Meus dados de pesquisa apontam que haviam acirradas competições entre “orquestras” de diferentes regulados; a presença de um renomado compositor era uma marca de distinção que aumentava ainda mais o prestígio do régulo entre os portugueses. Não espanta que tanta dedicação fosse despendida na organização dos numerosos agrupamentos: quanto mais pujantes fossem, mais reputado se tornava o regulado.

17Margot Dias, a partir de observações realizadas em 1959 no regulado de Banguza, descreve:

De vez em quando arranjavam uma festa grande, um concurso, msaho. Os chefes chamavam a população de longe e convidavam os grupos das outras aldeias para tocar. O júri era formado por chefes, mas chefes hóspedes, e não do grupo local. Tocavam todos os grupos e aos que saíam vencedores era marcada a vitória com um corte de machado na sua árvore; podiam dançar três ou quatro dias e ficavam contentes”. (Dias 1986: 47)

18Conversas e entrevistas realizadas em 2018 e 2019 nos distritos de Zavala e Inharrime com timbileiros que se lembravam desse tipo de m’saho, mostraram a sua dimensão e importância na vida social de sujeitos chopes, que se deslocavam por longas distâncias para apreciar a música das timbila e prestigiar os agrupamentos das suas circunscrições. O régulo Nhanombe, de Inharrime, explicou-me que m’saho era “competição grande”, ocasião para a qual afluía grande quantidade de pessoas: “Aquilo de encher, mesmo. Comício de presidente não é nada”. Segundo ele, a partir de sua experiência mesmo antes de ter sucedido na linhagem para assumir o cargo, cada regulado queria mostrar a toda a gente a superioridade dos seus agrupamentos em termos de composição, execução dos instrumentos e das danças. Quem decidia o melhor grupo era a população presente, “que não era um mero espectador, mas sim elemento que participava activamente no M’saho e que para desempenhar o papel de júri era preciso que se identificasse com a dança e música de timbila” (Bande 2012: 28). Assim, o encontro em torno das timbila fazia parte do convívio entre pessoas que viviam em diferentes partes do território chope (Jopela 2006).

  • 20 Material do jornal Notícias veiculado em 30 de agosto de 1972, escrito pelo administrador e pesquis (...)

19Outro tipo de evento com a presença de várias timbila organizado pela administração colonial era denominado genericamente de festivais. Caracterizados pela observância de um programa restrito de apresentações realizadas na sede do distrito e a separação nítida entre audiência e os músicos, os eventos nesse formato acabaram por engendrar uma dinâmica distinta daquela que se verificava nas circunscrições dos regulados20.

  • 21 A FRELIMO passou por três transformações distintas ao longo das últimas décadas: num primeiro momen (...)
  • 22 Importante também assinalar que, no quadro jurídico colonial, a extinção dos estatutos de indígena (...)

20O fim do sistema de regulados após 1975 provocou transformações sensíveis para as timbila. A organização de um agrupamento pelos régulos não teve continuidade, pois as condições sociais e materiais que o suportava não tinha mais lugar na nova ordem política do governo da FRELIMO21. Com efeito, desde sua criação, “a FRELIMO encarou sempre essas figuras de autoridade com grande desconfiança” (West 2009: 22)22. Após a independência do país, o então partido único destituiu todas as “autoridades tradicionais” (os régulos) das funções que exerciam e criou órgãos locais para arbitrarem em casos de distribuição de terras e na resolução de conflitos (West 2009), pois eram consideradas ora como representantes do “obscurantismo rural”, ora como colaboradores das autoridades coloniais (Meneses et al. 2003: 351). As timbila acompanharam as mudanças e se recriaram a partir de outros critérios (Morais 2020a). O formato das “orquestras”, agrupamentos numerosos que exibiam canções de prestigiados compositores, assim como a organização de encontros entre eles, existiu quando havia um sistema político e uma organização social que os suportavam.

21Se a “criação” do M’saho pela Amizava teve como objetivo “revitalizar” uma prática cultural chope num formato muito semelhante ao adotado nos festivais organizados pela administração colonial portuguesa (observância de um programa de apresentações, organização do tempo e do espaço com divisão nítida entre plateia e músicos etc.), a proposta elaborada para a candidatura das timbila chopes se inspirou em outro modelo. Tratou-se de um movimento nostálgico por parte dos agentes do Estado face às transformações da prática das timbila em Zavala e suas dinâmicas mais contemporâneas, à semelhança (guardadas as devidas distâncias entre os distintos contextos) do caso da patrimonialização da cerimônia do kankurang analisada por De Jong (2013).

22Todavia, os agentes envolvidos no processo burocrático de confecção da candidatura ignoraram não somente a necessidade de condições materiais anuais para organização de um evento que deveria – segundo parâmetros do m’saho tal como ocorria no passado colonial – ter duração de vários dias, mas principalmente o contexto de convivialidade inerente ao evento (concurso, festa, competição) conforme acontecia nas circunscrições dos regulados, nas localidades rurais daquele distrito. Considerando que a memória não é “capaz de recuperar um passado original e finito” (Santos 2003: 71), não espanta que, no lugar de um presente em que velhas estruturas sociais simplesmente se reproduzam, novos processos de rememoração e esquecimento se estabeleçam e, diante deles, formas alternativas de restabelecimento de aspectos do passado.

Os novos tempos do M’saho

23Acompanhei de perto a organização e a realização do M’saho 2018. Mais do que apresentar em minúcias todas os tempos do ciclo ritual que o perfazem, meu objetivo nesta seção é descrever certos elementos que permitam uma apreensão panorâmica do que se passou com as timbila no dia 24 de agosto daquele ano. Tomo o festival, assim, como uma via privilegiada para a análise e a compreensão de um fenômeno social complexo que revela algumas das facetas do Estado moçambicano contemporâneo no trato com populações rurais. Antes de avançar na descrição dos acontecimentos do evento, são necessárias algumas observações sobre os dias que o antecederam.

  • 23 Os motivos para a exclusão dos três grupos (Canda, Zavalene e Nyakutowe) não foram completamente ar (...)

24Após uma tentativa frustrada de terceirização da organização a dois produtores culturais de Maputo – os quais teriam sido convidados pelo Ministério da Cultura e Turismo e teriam apoio financeiro do escritório da UNESCO sediado na capital do país –, a realização do evento ficou a cargo da administração do distrito de Zavala, ou seja, nas mãos dos poucos funcionários do SDEJT (Serviço Distrital de Educação, Juventude e Tecnologia). Diante da escassez de recursos (alimentos, combustível para buscar os grupos em suas longínquas localidades, etc.), o chefe da repartição pediu a um dos seus subordinados para avisar a três grupos de timbila que não participariam do M’saho aquele ano23. Não ser convidado “pelo governo” é motivo para muito desapontamento por parte dos timbileiros. A ligação telefônica em cicope para Masotchwane, chefe do grupo de Nyakutowe, não terminou bem. Ele ficou muito nervoso, proferiu xingamentos e acusou “a cultura” de estar lhe excluindo daquele importante festival. Vociferou ao telefone que, se o grupo dele não poderia tocar, nenhum grupo se apresentaria, sugerindo que iria contactar o poder da feitiçaria para o efeito.

25A atividade para a qual se dedicaram em seguida tinha, na realidade, muito a ver com esse episódio. Tratava-se da realização do kupahla, cerimônia para os antepassados/ancestrais, que ocorre um dia antes do festival. Não obstante ser o momento menos “visível” do evento, contando com a presença de um número muito restrito de pessoas, sua execução é fundamental, pois tem como função garantir que nenhuma catástrofe, provocada ou não por ação de feitiçaria, impeça o bom andamento do M’saho. A cerimônia, além disso, desvela algumas faces locais do Estado em relação aos régulos. Desde o ano 2000, por meio de um decreto presidencial, o governo da FRELIMO reinseriu oficialmente as autoridades tradicionais na esfera governativa; seu papel nesse novo contexto, entretanto, é bastante ambíguo, sendo desempenhado e legitimado de diferentes formas por todo o país (Meneses et al. 2003).

26No âmbito do festival, o régulo de Quissico é chamado pelo governo do distrito para conduzir o kupahla. Não deixa de ser interessante observar que essas autoridades, há décadas vistas com suspeição pela FRELIMO, entre outros aspectos, por praticarem ritos considerados tribalismos, duramente coibidos nos primeiros anos pós independência, foram inseridas na vida política do Estado. A incumbência para a qual são convidados a atuar torna a história ainda mais surpreendente. Trata-se de uma atividade especializada, desempenhada por determinados indivíduos, aos quais a administração pública precisa recorrer, pois seus funcionários não possuem competência para tal. O ritual, nesse sentido, é realizado não somente porque estabelece a conexão com os ancestrais, mas também porque é uma atribuição importante daqueles que o conduzem no âmbito do conjunto das atividades desempenhadas pelo Estado em cerimônias públicas desde a publicação do Decreto 15/2000 (ver nota 2).

27A Amizava, que tanto protagonismo teve na concepção do M’saho em 1994, passou nos últimos anos a ter um papel circunscrito a essa cerimônia e a uma breve fala conduzida por um representante na abertura do evento. Alguns dos meus interlocutores relataram que a associação já teria recebido recursos da UNESCO para organizar o festival em anos posteriores à candidatura, como parte de medidas de salvaguarda das timbila. Com o enfraquecimento da associação devido a conflitos internos e o falecimento de parte do seu conselho diretivo, a responsabilidade pela organização passou a recair cada vez mais na administração pública local. Não havendo um recurso próprio destinado pelo Ministério ou qualquer outra esfera governamental para tal atividade, resta ao Serviço Distrital buscar auxílio nos estabelecimentos que exercem atividade econômica no distrito: bancos, mercearias, o único posto de gasolina, donos de pousada, entre outros. E foi assim, com a exclusão de uns, e a participação reduzida de outros, que o M’saho 2018 teve lugar na capital do distrito.

28Ato contínuo à chegada do governador no Miradouro de Quissico, o programa foi iniciado. Um a um, de acordo com a ordem estabelecida, dirigiram-se ao púlpito móvel de madeira posicionado no palco de cimento coberto as autoridades presentes. Constava no programa, após a comunicação do presidente do conselho municipal, a participação do representante da UNESCO, que chegou a ser anunciado ao microfone para comparecer ao púlpito, sem sucesso. Desde a proclamação das timbila como Obra-Prima, à UNESCO é destinado um lugar no rol dos discursos a serem proferidos na abertura do festival. A ausência em 2018 não foi exceção; em anos anteriores essa situação também pôde ser observada. Mesmo sabendo previamente que o convite havia sido negado, os funcionários do governo a nível distrital mantiveram a “Intervenção do Representante da UNESCO” no programa desenhado, pois assim “mandava o protocolo”.

  • 24 Embora o caráter de competição não seja explícito, os timbileiros e grande parte da audiência sabem (...)

29Durante os discursos, tocadores de timbila e de njele reunidos em m’kwaio (seleção dos melhores) permaneceram sentados no chão ou nos banquinhos de madeira. Alguns conversavam entre si, outros folheavam o panfleto das eleições ou davam uma olhadela no celular, mas, na maior parte do tempo, ficaram bastante quietos. Parte da concentração devia-se à leitura corporal que faziam uns dos outros, tentando antecipar, pela postura dos timbileiros de outros grupos, se estes estariam mais preparados que eles próprios. A preparação refere-se a quanto estariam focados no M’saho, se poderiam ser considerados páreos fortes na competição que teria lugar naquele palco24. Uma conversa entre dois timbileiros me chamou a atenção; comentavam sobre a captura do festival por “assuntos que não têm nada a ver com música”. Outros disseram discretamente, em voz baixa: “timbila não tem nada a ver com política”.

  • 25 Mafurra é um fruto comestível, retirado da árvore mafurreira (Trichilia emetica); dele produz-se o (...)

30O tempo dedicado a cada comunicação é proporcional à posição ocupada pelo narrador na hierarquia: o governador fala pelo tempo mais extenso, o administrador do distrito um pouco menos que este, o secretário-geral da Amizava ainda menos e o presidente do conselho municipal bem pouco. O representante da Amizava, ao se aproximar do púlpito, afirmou ao microfone que desde a sua fundação a associação se dedicava a promover “várias atividades de nível sociocultural”, com destaque para a realização anual do M’saho. O festival, entretanto, segundo ele, já havia transcendido o desejo inicial da associação, tendo tornado uma “exigência e necessidade públicas”, o que justificava o envolvimento cada vez maior do governo distrital para a sua viabilização. Além das timbila, “uma das manifestações culturais originais genuínas de Moçambique”, o secretário-geral da associação destacou que Zavala era terra de mandioca, ananás, mafurra e ntona25.

31A próxima autoridade a se dirigir ao púlpito foi o administrador do distrito. Em sua intervenção, fez coro ao seu antecessor, ao realçar certas especificidades gastronômicas da região. Ambos, ao relacionarem aspectos da alimentação local a certos tipos de identificação cultural – num caso, com ênfase na “etnia”, no outro, com foco na geografia – explicitaram o binômio da política cultural moçambicana contemporânea, cujas fontes deveriam gerar “desenvolvimento econômico”: cultura e turismo. O discurso em torno das belezas naturais inexploradas (belas lagoas e praias) e das timbila, um “Patrimônio da Humanidade”, tem sido recorrente. O maior intuito dos governantes daquela porção da província de Inhambane é conjugar os dois, transformando Zavala num polo de turismo em Moçambique. Esse intento se justificaria porque as timbila, segundo o governador da província em sua comunicação que se seguiu a essa, são um “símbolo da cultura a nível provincial, nacional, continental e internacional”.

32O mote do discurso do governador recaiu no apoio que deve ser prestado à realização do M’saho, uma discussão recente que tem tido lugar no interior das instituições da administração pública provinciais e distrital sobre a organização e função desse festival no âmbito das diretrizes da política cultural contemporânea, a qual valoriza a realização de festivais culturais como fonte de “desenvolvimento sustentável”. A realização de festivais, além disso, é concebida pelo Estado como ocasiões de trocas de experiências entre artistas e promotores da paz, ao propiciarem um ambiente de convívio entre grupos sociais das várias regiões e províncias do país. Por um lado, o governador mencionou a realização do M’saho como importante para a promoção da “cultura chope”; por outro, identificou as timbila como símbolo da província, do país, do continente africano e do mundo, mas não do distrito de Zavala ou mesmo dos chopes.

33A essas comunicações seguiu-se a apresentação das timbila em m’kwaio. Seguindo a regra habitual, tocaram uma composição do prestigioso Chambine, de 1963, notabilizada pela Rádio Moçambique após a independência e transmitida quase que diariamente ainda hoje pelas ondas do rádio. Finda a apresentação, o governador e todo o aparato que o acompanhava saíram de cena. Essa partida encadeou algumas alterações no comportamento do público. Seria o início de uma transformação paulatina na disposição espacial do Miradouro, provocada pela retirada das demais autoridades, que permitiu a sua maior e mais efetiva ocupação pelos habitantes de localidades rurais do distrito, muitos dos quais haviam percorrido longas distâncias para estar ali.

34A programação seguiu, sem intervalos, durante toda a tarde. Com a saída dos ocupantes primeiros das duas tribunas (a de honra e a permanente), o público passou a ocupar esses espaços (principalmente a tribuna permanente, mais próxima ao palco), apropriando-se cada vez mais do vazio que a distanciava dos artistas. Se antes a audiência incluía personalidades políticas, funcionários de alta patente no governo da província e alguns régulos, paulatinamente ela se tornou preenchida ainda mais por aqueles que estavam ali para apreciar a música das timbila: mulheres com bebês amarrados às costas e cintura, senhoras e senhores mais velhos, crianças, jovens, mulheres e homens adultos, todos trajados nas suas roupas de passeio e ansiosos por verem os artistas da sua zona se destacarem no palco.

As timbila presentes

35O primeiro grupo de timbila a se apresentar foi o de Muane, liderado por Filipiane. Todos vestiam a camiseta cor de rosa patrocinada pelo banco Millenium Bim. Os dançarinos trajavam saiotes de diferentes cores, uns em capulana e outros confeccionados com um tecido fino de cor amarela; eram seis jovens, dentre eles uma menina. Há uma responsabilidade em ser a primeira timbila a se apresentar, pois é sabido que os escalados na frente são considerados os melhores grupos, os mais fortes. Assim, é preciso demonstrar que a escolha dos organizadores não fora infundada. Nessa altura, o público, com a coordenação dos guardas municipais, já havia avançado a grama onde também se localizava a corda verde de retenção, mas não ousaram compartilhar o palco com os dançarinos. Todos permaneceram sentados no chão e atentos.

36Poucos minutos conduziram a troca de músicos no palco. Enquanto os tocadores de Muane levantavam-se e, ato contínuo, erguiam suas timbila, os tocadores de Guilundo adentravam o mesmo espaço com as suas empunhadas ao ombro, ou carregadas por dois, no caso dos cikhulu (tipo de timbila duplo-baixo, construída com três ou quatro teclas). Quando o grupo começou a tocar seus solos de entrada, parte do público, em geral crianças, que se encontravam a uns metros de distância do palco, havia se aproximado tanto que se posicionavam praticamente dentro deste. Mas a alegria não durou muito, e rapidamente um guarda municipal os afastou. Antes da entrada dos dançarinos, os tocadores executaram três curtos mitisitsos (introduções), diferentemente dos outros grupos que, provavelmente para otimizar o tempo, optaram pela entrada dos dançarinos imediatamente após a primeira introdução.

37A entrada dos dançarinos do grupo de Guilundo no palco foi anunciada por um verso de chamamento, enunciado por José (falecido em 2021), chefe dos dançarinos, acompanhado de uma batida forte do escudo no chão. Perceptível somente para aqueles que estavam muito próximos, seu conteúdo expressava indignação com as autoridades estatais, que não lhes têm facultado suficientes oportunidades para se apresentarem com mais frequência em eventos diversos. A corajosa mensagem foi transmitida, embora os seus destinatários não a tenham podido ouvir. Os dançarinos cativaram de imediato a audiência. Os movimentos dos escudos, das pernas e dos braços eram sincronizados. Algumas pessoas adentraram o palco, dançaram juntos, mas não conseguiram acompanhar os pulos enérgicos daqueles dançarinos. Um menino foi escalado para recolher o dinheiro depositado nas cabeças dos dançarinos (ku fuha). Algumas senhoras do público divertiam-se, sentadas no chão, mexendo os ombros em gestos de makhara (movimento repetitivo de ombros e braços característicos de expressões performativas dessa região).

  • 26 A bibliografia sobre as motivações e condicionantes que levaram um número significativo de sujeitos (...)

38Os guardas da polícia municipal, que estavam atentos ao movimento onde se aglomeravam mais pessoas, no segundo nível do Miradouro, rapidamente se voltaram para o palco para impedir a “invasão” de crianças, em sua maioria. Duas mulheres levantaram-se do chão, onde estavam sentadas na parte gramada em frente ao palco, e aproximaram-se do Domingos (considerado um dos melhores tocadores da atualidade) em ato de ku fuha. Um homem, bastante animado pelo efeito do álcool, dançava dentro do palco, em uma das pontas, com uma nota de rand (moeda sul-africana) entre os lábios. Trabalhador das minas na África do Sul, estava de férias em Zavala e não perderia aquele excelente ensejo para mostrar publicamente sua posição de prestígio.26

  • 27 Nesse ano Estevão resolveu não se apresentar com o grupo. Dizia estar “cansado” e sem energias para (...)

39Seguido a Guilundo, entrou em cena o grupo de timbila de Mazivela, liderado por Estevão Nhacudime27. Após uma breve introdução, adentraram ao palco os oito dançarinos, quatro de cada lado, todos trajados com as mesmas capulanas em tons de azul, verde e laranja e com as camisetas cor de rosa aludidas anteriormente. Eram todos jovens, que se posicionaram mais próximos dos tocadores do que da audiência no palco descoberto. Acuados, quiçá porque ainda estão em fase inicial de treinamento, não despertaram no público a vontade de romper a barreira que os separavam. Os tocadores eram também jovens (filhos, netos e vizinhos do chefe do grupo) – característica deste grupo há uns anos. Alguns poucos solos foram executados por Milerte, filho de Estevão, que se posicionou como tocador principal na ausência do pai. Os dançarinos entreolhavam-se vez ou outra num gesto de confirmação que antecipava os passos seguintes; em geral concentravam esses olhares em um deles, o líder dos dançarinos, que empunhava um apito amarrado ao pescoço, utilizado para sinalizar algumas mudanças no tempo da dança. Seguindo as canções, as melodias e os passos ensaiados, o grupo terminou a sua apresentação em tempo inferior ao permitido.

40Os tocadores do grupo de timbila de Chizoho estavam muito animados quando arrumaram seus instrumentos no palco. Dentre os onze dançarinos, maioritariamente integrantes do sexo feminino, encontrava-se a mais jovem de todos os que já tinham pisado o palco naquele ano: uma das filhas do Cremildo, chefe do grupo, de apenas seis anos. Tocadores e dançarinos iniciaram juntos a apresentação. Ou seja, não houve um movimento introdutório, como é de praxe numa exibição de timbila. Aquele grupo preferiu adaptar ainda mais o número a ser demonstrado de modo a otimizar o tempo dedicado à dança.

41Assim, todos se posicionaram ao mesmo tempo nos seus respectivos lugares e, antes de iniciar, Cremildo deu orientações a todos, que ouviram atentamente. A chefe das dançarinas, enquanto batia o escudo no chão, entoou o verso de chamamento que exortava os ouvintes sobre a importância da prevenção contra o HIV/Sida. Em outras ocasiões em que pude acompanhar essas timbila, o grupo de dançarinos sempre exercia um impacto positivo na audiência, que facilmente se misturava com eles para compartilhar animadamente passos de makhara. Naquele M’saho não foi diferente. Não demorou muito para que várias crianças e alguns adultos se aproximassem dos habilidosos dançarinos. Nessa altura do festival, o Miradouro estava abarrotado de gente. Todos os espaços estavam ocupados, incluindo as laterais do palco coberto, nas quais uma hora antes ainda era possível circular.

Passado revivido, futuros possíveis

42Atualmente, a dinâmica do dia do M’saho é uma metáfora da dinâmica daquela sociedade. Dispersas na vida social, as atividades e funções desempenhadas por sujeitos distintos seguem, no festival, a mesma lógica do cotidiano: o régulo conduz a cerimônia tradicional; o governador e demais autoridades políticas têm o poder da palavra e realizam os discursos; os habitantes do distrito que constituem o público devem ficar distanciados do palco e das tribunas, apenas ouvindo e vendo; o lugar dos artistas é no palco e se restringe à apresentação musical, e o dos técnicos da administração distrital e provincial é circular pelo palco e no espaço entre o palco e a tribuna para organizar as apresentações; o dever dos guardas municipais é manter a ordem e impedir que o público ultrapasse os limites a ele impostos. Nos interstícios do espaço vigiado, a audiência consegue subverter o controle, tentando participar o mais próximo possível dos grandes músicos das timbila.

43Embora a “festivalização”, tal como discutida por Hafstein (2018), não tenha sido produzida pelo processo de patrimonialização, ela foi acentuada após o título recebido da UNESCO, tendo o Estado tomado cada vez mais o tempo que em outras épocas era dedicado ao convívio e associado a diversas formas de interação social. No caso das timbila, é possível afirmar que a sua objetificação como prática musical transformada em festival não é fenômeno recente, nem tampouco produzido por dinâmicas alheias à sua trajetória sócio-histórica (Morais 2020b).

44Dicotomias como dominadores vs dominados, colonizadores vs colonizados, opressores vs oprimidos, entre tantas outras, mais confundem do que auxiliam a compreender complexos e ambíguos processos políticos e históricos no continente africano. E isso não significa, como discuti, que sob os colonialismos e sob os governos pós-independência não tenha havido (e ainda haja) violentas formas de exclusão que só reforçam profundas relações assimétricas. Mas isso não explica tudo. Conforme aponta Cooper (2016) com muita propriedade, “reconhecer que os europeus gozaram de muito mais poder durante o encontro colonial não implica negar a influência da agência africana nesse encontro” (ibid.: 96). Assim, um olhar desatento, com foco apenas nos modos como as timbila eram organizadas durante diferentes momentos do governo colonial ou como são tratadas pela atual administração estatal no âmbito do M’saho pouco revela sobre os modos como os timbileiros se colocam com e frente aos seus governantes.

45Timbileiros possuem suas próprias maneiras de posicionamento político, por meio do protesto institucionalizado expresso nas canções, nas acusações de feitiçaria, nas recusas a tocar. A ideia de democracia e de participação social tal como foi introduzida para essas populações do distrito pelo Estado e pela UNESCO possui pouca ressonância. Com efeito, a adesão à democracia ocorrida após a guerra civil não resultou em uma “genuína renegociação das relações políticas internas” (Cabral 2004: 388). Muitos dos conflitos sociais continuam sendo administrados pelos régulos e por formas alternativas àquelas impostas pelo Estado após a guerra civil. Como, no caso das timbila, essas autoridades não desempenham mais o papel do passado colonial no que tange à organização dos agrupamentos e arregimentação de seus membros, resta aos timbileiros a adaptação às novas formas de autoridade do presente. Ainda que o M’saho desvele violentos processos de exclusão, os timbileiros continuam a executar sua música. Conforme Estevão Nhacudime, chefe do grupo de Mazivela, explicou-me certa vez, “se nossos chefes nos convidam, não podemos negar, fica feio”. Ficar feio, nesse sentido, se refere ao confronto direto com as autoridades políticas estatais, atitude prescrita nas normas de etiqueta vigentes naquela sociedade.

46A memória coletiva em relação aos misaho do passado está incorporada nos sujeitos presentes desse festival, que têm nas timbila parte basilar da sua trajetória social. Somam-se a ela as novas mudanças e transformações, num processo contínuo de ressignificação, além de novas formas de dependência material e política. A memória desse passado continua a exercer forte influência, principalmente para os chefes dos grupos de timbila, que se sentem bastante ofendidos quando não convidados pelas autoridades políticas do presente a participarem de eventos importantes. O caso explorado propicia a compressão sobre processos de objetificação de expressões culturais que antecedem a patrimonialização em seu estágio final (ou seja, o reconhecimento oficial) no continente africano e sobre como práticas de governação por meio do modo como o Estado se relaciona com populações rurais e suas práticas de convivialidade.

47São várias as abordagens possíveis tendo o M’saho como foco de análise. O que se buscou aqui foi elucidar aspectos pouco explorados desse festival e relacioná-los a algumas das transformações ocorridas com as timbila nos períodos colonial e pós-independência. Ainda há, contudo, muito a explorar sobre o tema. Estudos com foco nos festivais culturais africanos têm iluminado a antropologia do Estado no continente, como por exemplo o trabalho de Apter (2005) na Nigéria. A proposta deste artigo vai em outra direção, ao analisar o M’saho a partir de uma perspectiva interacionista e situacional, privilegiando as complexas dinâmicas e performances ocorridas no Miradouro em Zavala. Por essa via, talvez seja possível adensar as múltiplas – e muitas vezes ambíguas – relações societárias implicadas em eventos significativos na África contemporânea, os quais têm se mostrado fundamentais para a compreensão dos modos como diferentes agentes sociais interagem entre si.

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Notes

1 Utilizo timbila no plural e mbila no singular, tal como estabelecem as regras gramaticais da língua chope. Em geral a utilização escrita de mbila se refere a um único instrumento e de timbila ao agrupamento de vários desses instrumentos. Às timbila é também atribuído o sentido de toda a prática expressiva, incluindo música, dança e poesia. Sobre o tema das timbila, ver Tracey (1948), Munguambe (2000), Jopela (2006), Laffranchini (2007) e Wane (2019).

2 Os régulos, e consequentemente suas atribuições, foram uma criação do governo colonial, que se pautou em grande medida na existência de autoridades tradicionalmente legitimadas pela população rural, mas frequentemente subverteu as regras de sucessão linhageiras para nomear indivíduos que serviam melhor aos interesses da administração. O termo continua sendo utilizado no cotidiano dos sujeitos que habitam os espaços onde angaria legitimidade e também pela administração pública (Dava et al. 2003). O contexto de reinserção desses atores após a guerra civil no processo de formação do Estado moçambicano é bastante complexo e ambíguo, conforme argumenta Florêncio (2005). Não é possível aqui me deter nos meandros do tema, o qual foi devidamente discutido pelo autor referenciado. Para os propósitos deste artigo, cumpre assinalar algumas das perspectivas terminológicas adotadas pela legislação moçambicana. Em 20 de Junho de 2000 o governo moçambicano promulga o Decreto nº 15/2000, “que constituiu o último e mais importante acto legislativo no processo de institucionalização das autoridades tradicionais” (Florêncio 2005: 65). Esse decreto define como autoridades comunitárias “os chefes tradicionais, os secretários de bairro ou aldeia e outros líderes legitimados como tais pelas respectivas comunidades locais” (art. 1, § 2). Florêncio (2005: 68) aponta que a lei, ao legitimar institucionalmente da mesma maneira grupos sociais tão distintos, “acaba por gerar confusão e conflitos”. Além disso, o decreto não especifica qual o grau de participação das denominadas autoridades comunitárias no processo de construção do Estado nas localidades. Em relação à área de atuação dessas autoridades, observa-se que parte significativa dela se assemelha às atividades desenvolvidas pelas autoridades tradicionais no período colonial. Quatro ano depois, a Constituição da República de 2004, em seu Art. 118º “Autoridade Tradicional”, preconizava: “1 – O Estado reconhece e valoriza a autoridade tradicional legitimada pelas populações e segundo o direito consuetudinário. 2 – O Estado define o relacionamento da autoridade tradicional com as demais instituições e enquadra a sua participação na vida económica, social e cultural do país, nos termos da lei”. Neste artigo, utilizo os termos régulos e chefias tradicionais como sinônimos e em consonância com o uso que deles faziam meus interlocutores.

3 Embora Webster inclua nesta área os distritos de Zavala e Inharrime, sabe-se que muitos sujeitos chopes habitam outras porções da província de Inhambane, por exemplo, Jangamo e Homoíne. Na década de 1980, Ilídio Rocha apontaria como legenda em um mapa da região: “A área cultural chope tem o seu coração no actual distrito de Zavala, mas atinge também os distritos limítrofes” (Rocha 1983: 83).

4 “É através da música e das letras que as lealdades do indivíduo se estabelecem; as canções oferecem uma unidade de propósitos e um núcleo identitário.” (Webster 2009: 97)

5 Webster (2009: 130) indica o caso de alguns indivíduos que migraram da sua zona de origem porque não toleraram o ridículo ao qual foram expostos nas canções.

6 “Nesses momentos, a competição é aguerrida, reforçando a consciência da área em que se reside e a lealdade para com ela.” (Webster 2009: 97)

7 São cerca de 7 grupos existentes em Zavala e o número de integrantes de cada um varia entre 25 e 30 pessoas, dentre as quais cerca de sete são tocadores de mbila, dois tocadores de njele (chocoalho), um tocador de ngoma (tambor) e o restante são dançarinos. Em geral ensaiam nas localidades de residências dos chefes de cada grupo; as distâncias entre essas localidades podem ultrapassar 60 km.

8 Ver, por exemplo, o vaticínio de António Rita-Ferreira (1974).

9 A Guerra Civil moçambicana foi um conflito armado bastante violento entre FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) e RENAMO (Resistência Nacional Moçambicana) que se desenrolou de 1976/1977 a 1992. Teve como desfecho oficial a assinatura do Acordo Geral de Paz em Roma em 1992. Caracterizou-se como uma guerra de guerrilhas, conduzida pela RENAMO, que construiu sua base social a partir de grupos rurais em todo o país, tendo colocado a FRELIMO numa situação extrema. No seu auge, o conflito se espalhou pelas fronteiras, afetando também populações na Zâmbia e no Zimbábue; as forças armadas regidas por brancos da Rodésia e África do Sul, assim como dos independentes Zimbábue e Tanzânia estavam todos diretamente envolvidos vez ou outra nos combates (Darch 2018: 403). Sobre o tema, ver especialmente Geffray (1991) e Cahen (1987). O desfecho oficial do conflito produziu uma série de mudanças fundamentais. A grave crise do Estado provocada, entre outros fatores, pela guerra, conduziu o país ao empréstimo de grandes somas em moedas estrangeiras, além da implementação de dois programas de reajuste estrutural: em 1987, o Programa de Reabilitação Econômica (PRE), e em 1990, o Programa de Reabilitação Econômica e Social (PES). Darch (2018: 395) aponta que os Estados Unidos enviaram quantidades significativas de ajuda internacional a Moçambique no início da década de 1990, entre elas as doações de alimentos durante o estado de emergência provocado pelas secas de 1991 a 1993, tendo tido também papel importante nas negociações que puseram fim à guerra civil, levando às eleições multipartidárias de outubro de 1994. Venceu a eleição o candidato da FRELIMO, Joaquim Chissano.

10 Sobre o tema da nostalgia e o modo como é abordado em processos de patrimonialização em contexto africano, ver De Jong (2013) e em contextos africanos e asiáticos, ver Berliner (2020).

11 A partir de 1991, iniciou-se um processo de descentralização da administração pública, seguido do surgimento de ONG’s (Organizações Não-Governamentais) e de associações, “que preencheram parte dos espaços vazios deixados por um Estado que enfrentava dificuldades em garantir o bem-estar dos cidadãos, procurando ao mesmo tempo encontrar formas alterativas de gestão social, numa situação de crise social e política” (Santos et al. 2004: 23).

12 São eles: a Lei 10/88, que determina a proteção legal dos bens materiais e imateriais do patrimônio moçambicano, e a Resolução nº 12/97, que aprova a Política Cultural e Estratégia de sua Implementação.

13 O que confirma a proposição de Trajano Filho (2012: 38) de que “o processo formal de patrimonialização não nasce da pura decisão arbitrária do Estado”, sendo precedido de um processo pré-patrimonialização conduzido muitas vezes por atores não estatais.

14 Sobre o processo de patrimonialização das timbila, ver Morais (2020b).

15 Para uma leitura crítica a respeito das ações de salvaguarda que não foram implementadas pelo governo moçambicano após o reconhecimento oficial das timbila chopes pela UNESCO, ver: Ferrara & Morais (2021).

16 Nos últimos anos, avolumaram-se estudos antropológicos que trataram de diferentes aspectos do conceito de memória. Para uma avaliação dos excessos de significação que o conceito adquiriu, ver Berliner (2005). Na mesma direção, mas a partir de um relato pessoal, ver Fabian (2010).

17 O ato formal de patrimonialização que culminou na conquista do prestigioso título foi precedido por um longo processo de objetificação que remonta às primeiras décadas do século xx. Trajano Filho (2012) propõe que esforços explícitos e formais de patrimonialização são antecedidos por processos de objetificação produtores de redução semântica de práticas culturais. Assim, manifestações ou instituições culturais totais de solidariedade, reciprocidade e convívio são transformadas em ícones de identidade, memória e cultura nacional a partir de escolhas, seleções e opções de instituições estatais ou organismos internacionais. Essas reduções podem assumir resultados variados. O M’saho, por meio das reduções semânticas sofridas pelas timbila, passou a ser concebido pelos agentes governamentais como apenas um festival de cultura, a despeito de todas as outras dimensões complexas atribuídas pelos timbileiros e por demais sujeitos chopes.

18 Segundo Tracey (1970), ngodo é “uma dança orquestral de nove a onze movimentos. Cada movimento é distinto e separado, e duram somente um minuto cada, como no caso de algumas das introduções, podendo prolongar-se a cinco ou seis minutos cada. A execução completa tem duração de cerca de 45 minutos, dependendo da complexidade dos movimentos dos dançarinos e da atmosfera do momento” (ibid.: 2). Trata-se, como se concebe ainda hoje, da performance completa de timbila, constituída por todos os movimentos compostos por cada grupo, incluindo as danças, as composições musicais e as letras cantadas.

19 Nomenclatura utilizada no período colonial para se referir às instâncias territoriais e políticas sob responsabilidade de um administrador. Mais especificamente, “A colónia era dirigida por um governador-geral e dividida em distritos em cada um dos quais a autoridade era delegada a um governador de distrito. Os distritos, por sua vez, subdividiam-se em circunscrições que representavam a unidade principal da estrutura administrativa. As circunscrições e os concelhos eram dirigidos por um administrador, coadjuvado por um secretário, que se ocupava das questões burocráticas e substituía o administrador em seu impedimento, e por aspirantes administrativos, que representavam o primeiro escalão do quadro”. [...] A área de cada posto administrativo englobava regedorias (ou regulados), sob a autoridade de um regedor, também designado régulo. [...] O régulo/regedor representava, contemporaneamente, o último escalão do aparelho administrativo e o primeiro escalão da sociedade indígena.” (Cabaço 2009: 77-80)

20 Material do jornal Notícias veiculado em 30 de agosto de 1972, escrito pelo administrador e pesquisador António Rita-Ferreira, divulgava a realização de um festival que contou com um júri especializado composto por um padre de Zavala, um maestro, quatro compositores chopes e ele próprio, Rita-Ferreira. O evento, denominado por “festival de folclore chope” aconteceu durante os dias 26 e 27 de agosto daquele ano, segundo a reportagem, por iniciativa do administrador do Concelho de Zavala e patrocinado pelo Centro de Informação e Turismo do governo colonial.

21 A FRELIMO passou por três transformações distintas ao longo das últimas décadas: num primeiro momento, foi um movimento de libertação armado; posteriormente, tornou-se um partido de vanguarda marxista-leninista e, mais contemporaneamente, trata-se de um partido social-democrata num sistema eleitoral pluralista (Darch 2018: 164). Está no poder desde a independência do país em 1975 e vence as eleições multipartidárias desde 1994.

22 Importante também assinalar que, no quadro jurídico colonial, a extinção dos estatutos de indígena e de assimilado em 1961 não foi acompanhada pela supressão das atividades dos régulos, pois eram “os interlocutores da administração colonial com a maioria da população rural” (Farré 2015). Manter sua lealdade em um iminente cenário de guerra de guerrilhas era estratégico (Coelho 2012, Farré 2015), e de fato foi, com a arregimentação dessas autoridades pela RENAMO.

23 Os motivos para a exclusão dos três grupos (Canda, Zavalene e Nyakutowe) não foram completamente arbitrários. Eles são considerados, por aquele chefe da administração pública, como grupos “fracos”. Essa avaliação, segundo pude apreender a partir de nossas conversas e de comentários entre os funcionários daquela repartição, refere-se a aspectos de caráter comparativo com outros grupos. Dessa forma, os grupos “fracos” são aqueles cujos membros se caracterizam pela idade avançada, falta de vigor nos passos da dança, poucos ensaios e, sobretudo, poucos convites para apresentação em cerimônias e outros eventos no distrito e fora dele. Mais informações sobre os grupos de timbila em Zavala atualmente podem ser encontradas em Morais (2020a).

24 Embora o caráter de competição não seja explícito, os timbileiros e grande parte da audiência sabem quem foi o melhor grupo daquele ano.

25 Mafurra é um fruto comestível, retirado da árvore mafurreira (Trichilia emetica); dele produz-se o ntona, espécie de azeite utilizado para temperar saladas e frango.

26 A bibliografia sobre as motivações e condicionantes que levaram um número significativo de sujeitos do sul de Moçambique para trabalhar nas minas sul-africanas a partir de fins do século xix é extensa; ver entre outros: Harris 1959, Isaacman & Isaacman 1983, Harries 1994, Centro de Estudos Africanos 1998, Covane 2001, Macagno 2001, Thomaz 2012. Conforme explica Thomaz (2012), “as províncias do sul de Moçambique – Maputo, Gaza e Inhambane – foram, entre fins do século xix e ao longo de todo o século xx, fornecedoras privilegiadas de mão de obra para as minas e as farmes (grandes propriedades agrícolas, anglicismo incorporado ao português de Moçambique) da África do Sul” (ibid.: 235). Esses sujeitos (em sua maioria jovens), que saíram de suas localidades rurais para buscar trabalho assalariado na indústria mineira, viram na oportunidade a possibilidade de aquisição de bens materiais e do cumprimento de obrigações matrimoniais, ou seja, prestações relativas ao lobolo (Newitt 1995: 484). Esse trabalho migratório tem sido caracterizado como “iniciação dos jovens do sexo masculino” (Webster 2009: 15). Ainda que o fluxo de trabalhadores tenha diminuído substancialmente nos últimos anos devido a fatores diversos, o retorno desses sujeitos a suas localidades continua sendo esperado com muita expectativa, porque com eles chega também a possibilidade de distribuição de recursos materiais entre grupos sociais com os quais estabelece relações de parentesco e/ou vizinhança.

27 Nesse ano Estevão resolveu não se apresentar com o grupo. Dizia estar “cansado” e sem energias para tocar. Alguns interpretaram a decisão como um ato de revolta em relação ao descaso com que têm sido tratados. Trajava um elegante terno e, durante a apresentação do grupo, permaneceu sentado na última fileira das timbila, com olhar compenetrado, atento, por vezes evasivo.

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Pour citer cet article

Référence électronique

Sara Morais, « Os tempos do M’saho: práticas de construção de memória e processo de patrimonialização em Moçambique  »Lusotopie [En ligne], XXI(1) | 2022, mis en ligne le 01 septembre 2022, consulté le 02 décembre 2024. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lusotopie/5014 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lusotopie.5014

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Auteur

Sara Morais

Laboratório ECOA - Etnologia em Contextos Africanos, Universidade de Brasília, Brasil
sarasmorais[at]gmail.com

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