1Entre o final do século xx e as primeiras décadas do século xxi jovens músicos cabo-verdianos propuseram novos modos de representar a história de Cabo Verde e a sua realidade cultural, através da cultura expressiva, em particular da música popular. Uma discursividade alargada em torno da sua história e cultura centradas na ilha de Santiago, no seu passado colonial, nos seus eventos históricos, atores sociais, práticas culturais e geografia, ocupa um lugar significativo nos seus processos de criatividade sonora e poética.
2Esta emergente sensibilidade cultural pode ser traçada a partir do trabalho do músico Orlando Barreto, conhecido como Orlando “Pantera”. Partindo de diversos recursos e materiais culturais disponíveis, Pantera desenvolveu uma linguagem estética pessoal que veio a exercer uma influência significativa em processos de mudança musical no arquipélago e na diáspora. Desde a sua morte prematura em 2001, o seu legado artístico constituiu um dos principais pontos de referência para o trabalho de músicos como Princezito, Tcheka, Vadú, Mayra Andrade ou Lura.
3O presente artigo pretende traçar as condições históricas, sociais e políticas que possibilitaram a emergência deste novo olhar sobre a história e cultura de Cabo Verde e refletir sobre o seu significado. Procura, concretamente, interpretar esta estética e o olhar para o passado e para a realidade cultural da ilha de Santiago que veicula à luz do processo de construção da nação e das lutas em torno da definição de uma identidade cabo-verdiana, frequentemente traduzida através do termo “cabo-verdianidade.”
4A literatura clássica sobre nações e nacionalismos predicou a sua análise na distinção entre a nação (uma formação cultural) e o Estado (uma unidade política), sendo o Estado-nação a expressão “congruente” da cultura e da política (Gellner 1983). Historicamente, a formação da nação esteve intimamente ligada à construção de uma cultura e história suscetíveis de serem partilhadas e de estreitarem elos entre os membros da comunidade nacional. Este processo coube tradicionalmente aos atores de movimentos nacionalistas e aos sistemas de representação coordenados por organismos dos Estados, investidos na criação e disseminação de “culturas nacionais” que, com o suporte de diversas práticas culturais e rituais materializaram versões da história, assim como os valores e os significados partilhados por cidadãos nacionais, enquadrando a sua existência (Hall 1992, 2017).
5Na sua aproximação a esta literatura, os estudiosos da música mostraram como a prática expressiva e a cultura popular, mais do que o reflexo de relações de poder alargadas, desempenharam um papel crítico na formação de nações, quer disseminando passados oficiais e unificadores, quer tornando públicas “visões alternativas e potencialmente contra-hegemónicas de passado e futuro” (Thomas 2004: 6). Estes processos envolveram frequentemente a reavaliação de práticas culturais associadas a passados silenciados que, na ótica de alguns grupos sociais, constituíram patrimónios culturais de difícil integração em culturas nacionais. O sentido a atribuir a esses passados a sua inclusão em narrativas oficiais da nação tem sido, desse modo, alvo de lutas travadas entre as políticas culturais dos novos Estados-nação e emergentes culturas populares (mais ou menos integradas em movimentos sociais alargados) representadas pelas vozes sociais alternativas de músicos, artistas e intelectuais.
- 1 Emprego a noção de estética para abordar as formas de “conhecimento sensível” (Rancière 2009: 5) qu (...)
6No caso de Cabo Verde procuro mostrar como as práticas culturais (onde se incluem os géneros de música e dança) e as versões do passado selecionadas pela classe nacionalista foram tracejadas em redor de demarcações particulares de classe social, raça, assim como de geografia e pertença insular. Defendo que a estética1 de Pantera reclama a inclusão de histórias, práticas culturais e experiências de se ser cabo-verdiana/o, historicamente silenciadas no quadro desta narrativa nacional crioula hegemónica. Ao evidenciar a agência histórica da população camponesa da ilha de Santiago e, muito em particular, das mulheres, constitui uma prática historicizadora que interroga as fundações de classe social, raça e género dessa narrativa da nação, assim como as constelações de gosto e de valor cultural a elas associadas.
7O interesse pela história de Cabo Verde e da ilha de Santiago não pode ser dissociado, nos anos que volveram a independência nacional, da ação da política cultural do regime de partido único (1975-1991), uma vez que este constituiu um dos principais agentes socializadores de uma relação dos cidadãos, e em particular dos jovens, com a cultura e história de Cabo Verde. Desse modo começo por refletir sobre o lugar ocupado pela cultura popular no projeto da nação cabo-verdiana conforme pensado pela política cultural nacionalista após o 25 de Abril de 1974, enfatizando de que modo selecionou os géneros de música e dança que integraram uma cultura nacional que moldou a ligação dos jovens às práticas culturais ilhéus; aponto, em simultâneo, a agência cultural dos músicos ao dialogarem com visões institucionais de identidade e cultura, questionando-as e propondo, no plano artístico, alternativas a elas.
8No momento que sucedeu a independência nacional, a definição de uma nova cultura nacional pelo Estado foi questionada pelo trabalho cultural dos músicos, que se baseou substancialmente em práticas expressivas entendidas como parte de uma herança cultural africana preservada no interior da ilha de Santiago. É nessa genealogia cultural que a estética de Pantera se inscreve. Cabe, contudo, questionar em que medida a sua discursividade em torno da cultura e história da ilha de Santiago difere daquela do momento pós-independência e se constitui uma resposta às mesmas tensões e diferenças no espaço da nação, herdadas do regime colonial.
- 2 Baseio-me no trabalho de Partha Chatterjee (1993) ao postular a divisão, estabelecida pelos movimen (...)
9Enquadrada pelo pensamento de Amílcar Cabral, a música popular participou do projeto de nação desde a sua incipiência. Durante o período da luta anticolonial, a morna, a koladera e a poesia declamada foram entendidas, como o próprio Cabral (1974) aludiu nos seus escritos, enquanto artefactos de resistência cultural, narrando as assimetrias do regime colonial e exaltando os progressos da luta pela libertação e os seus combatentes. Adicionalmente, a gravação e edição discográfica destes géneros pela Morabeza Records, a partir de Roterdão, na Holanda, procurou documentar, perante a comunidade internacional, a soberania dos cabo-verdianos no “domínio espiritual” e cultural que legitimava a busca de soberania política2 – um modo de comprovar que a independência nacional era “um ato de cultura.”
- 3 As Forças Armadas Revolucionárias do Povo.
- 4 Sustento este argumento no depoimento sobre o período que me foi confiado por Ildo Lobo numa entrev (...)
10Após o 25 de Abril de 1974 e o reconhecimento pelo governo português do Estado guineense, do direito do povo cabo-verdiano à independência e do Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) como seu legítimo representante (acordos de Londres e de Argel, Agosto de 1974), um acordo entre o português e aquela organização política preconizou a constituição de um governo de transição. Entre Dezembro de 1974 e a data das eleições para a Assembleia Constituinte, em 30 de Junho de 1975, o PAIGC integrou, conjuntamente com representantes da soberania portuguesa, um governo dotado dos poderes legislativo e executivo que deveria assegurar a gestão económica e financeira do território, assim como promover a democratização, nomeadamente a reforma administrativa das estruturas coloniais (Andrade 1996: 278). Durante esse período, o PAIGC conduziu uma campanha em várias ilhas de Cabo Verde para solidificar a sua base social e se firmar como representante do Estado perante as populações. Para tal, mobilizou um conjunto de músicos – como Os Tubarões, Kolá ou o Conjunto das FARP3 –, que em manifestações políticas interpretou canções, maioritariamente, nos géneros da morna e koladera, de modo a sintonizarem a audiência com os discursos políticos dos dirigentes do partido e a fazerem-na experimentar, sensorialmente, a pertença a uma nova nação4.
11Salvaguardando a importância social da música e dança em Cabo Verde, esses eventos sublinharam a íntima relação entre a música popular do país e o projeto de nação. Nos anos de formação da nação apontaram, igualmente, os contornos da futura política cultural nacionalista, sobretudo no que respeita à seleção da morna e da koladera como os principais géneros de música e dança de representação nacional. Estes eram transversais à experiência social da música nas diferentes ilhas do arquipélago, e participavam da experiência e do gosto da classe nacionalista, que passava a reclamá-los como base da nação e como signo da unidade nacional entre nove ilhas habitadas com histórias culturais parcialmente comuns, parcialmente disjuntas.
12As eleições para a “Assembleia Representativa do Povo de Cabo Verde” ditaram a vitória do PAIGC, que após a declaração da independência da República de Cabo Verde, em 5 de Julho de 1975, instaurou um regime monopartidário nas ilhas. Enquanto o poder político foi conferido aos nacionalistas pelo seu papel revolucionário na luta pela libertação, o poder económico foi conquistado através de uma crescente “estatização” da economia (Andrade 1996). O Estado tornou-se “o principal administrador da vida económica cabo-verdiana” (PAICV 1983), e a independência da República de Cabo Verde seria promulgada sob o signo da ideia de Cabral de “unidade e luta” ou “luta pela unidade da Guiné e de Cabo Verde”. A história de interligação entre os dois territórios desde o século xv, que havia fornecido a Cabral e aos nacionalistas do PAIGC o fundamento de uma luta comum pela libertação nacional, constituía agora o princípio de acordo com o qual uma mesma organização política governaria dois Estados diferentes.
13Durante os anos de governação do PAIGC e da unidade entre Guiné e Cabo Verde (1975-80), o projeto de cultura nacional que começou a ser proposto pelos nacionalistas no período de transição e se estendeu aos primeiros anos volvendo a independência, seria questionado por jovens músicos maioritariamente oriundos da ilha de Santiago. Num ambiente de fervor nacionalista marcado pela discussão da obra de Cabral e por influências culturais oriundas da África ocidental, que ganharam um peso sem precedentes na vida social do arquipélago – “a euforia de um reencontro com África”, nas palavras de Dulce Almada Duarte (1984) –, os músicos abordaram as práticas de música e dança do interior da ilha de Santiago como expressões de uma africanidade interna; e reclamaram a sua inclusão em noções de história, cultura e identidade cabo-verdianas nacionalmente aceites.
14Entre as ilhas do arquipélago, Santiago foi aquela que foi mais profundamente estruturada pela instituição social da escravatura. O seu interior montanhoso havia sido um lugar de refúgio de escravos fujões e dos seus descendentes, e era entendido como o mais distante da governação colonial e das relações sociais na sua órbita. Desse modo, abrigava uma “herança cultural africana” não reconhecida pela maioria dos cabo-verdianos, uma vez que havia sido socialmente desvalorizada na ordem colonial e silenciada no âmbito das práticas de representação da cultura cabo-verdiana pela elite cultural ilhéu. Dado o peso histórico da instituição da escravatura na ilha e as desigualdades ligadas ao regime de exploração da terra e à divisão social do trabalho agrícola, as práticas culturais desenvolvidas pela população camponesa no seu interior montanhoso, como o batuko e o funaná, estavam envoltas em histórias de “resistência cultural” que, num momento de questionamento das identidades pós-coloniais dos cabo-verdianos, urgia revelar.
15Foram estas ideias que enquadraram a adaptação a novos estilos de música popular do funaná, uma prática participativa de música e dança que emergiu no final do século xix em torno das figuras do tocador de gaita (acordeão diatónico de botões) e do tocador de fero (uma barra de ferro friccionada e percutida com uma faca), ambos dividindo a interpretação vocal. A sua performance nas sociabilidades comunitárias da população camponesa no interior de Santiago e nas zonas periféricas da cidade da Praia tornou-a alvo de coerção e repressão por parte de autoridades civis e religiosas por ser considerada ameaçadora da ordem colonial, violenta e licenciosa. Nos anos volvendo a independência esta história suprimida estimulou o interesse e a imaginação de jovens como o grupo Bulimundo (incluindo o guitarrista Katchás e o cantor Zeca di nha Renalda, entre outros músicos destacados) ou, na diáspora, o multi-instrumentista Norberto Tavares num contexto de crítica ao colonialismo português e de auto-reflexividade identitária marcada pelos princípios da “reafricanização dos espíritos” e do “retorno às fontes”. Através do trabalho musical e poético em torno de vários dos elementos estilísticos do funaná como tradicionalmente interpretado, e da adaptação de composições de alguns dos mais destacados tocadores de gaita, os músicos criaram novos estilos modernos baseados na instrumentação eletrónica dos conjuntos, aproximando-se das premissas de Cabral sobre a modernização da cultura.
16Como expôs a linguista Dulce Almada Duarte (1984), os projetos da independência nacional e da “reafricanização dos espíritos” não conheceram, contudo, durante os anos da unidade da Guiné e de Cabo Verde, uma aceitação incondicional entre todos os grupos sociais, particularmente entre a pequena burguesia cabo-verdiana. Além da parte ínfima desse grupo social que tomou “consciência da sua africanidade” através da participação na luta pela libertação nacional nas florestas da Guiné, as restantes fações revelaram ora uma resistência ao projeto nacionalista e de unidade entre os dois Estados, apoiada em “ideias pré-concebidas” e no “medo,” que vieram a ultrapassar progressivamente; ora uma adesão expectante e calculada ao projeto, motivada pela obtenção de ganhos. Esta última fação, assinalou a autora,
é provavelmente a que menos se identifica com a África e as massas populares cabo-verdianas, a que continua a repudiar a sua herança africana, a que permanece presa de todos os complexos do assimilado, a que se revela mais saudosa dos seus privilégios de classe na época colonial, embora, com a independência, continue a ocupar postos de responsabilidade dentro da máquina administrativa, devido às suas qualificações técnicas ou profissionais (Duarte 1984: 219).
17Um último grupo distinguido pela autora era formado por aqueles que se haviam exilado na anterior metrópole dada a negação da sua “herança cultural africana” e o desacordo, por vezes manifestado “de forma violenta”, com o princípio da unidade com a Guiné-Bissau.
18Foi em alusão a estes diferentes posicionamentos face ao passado colonial e ao futuro político de Cabo Verde que Katchás, guitarrista e compositor do grupo Bulimundo, num texto retrospetivo publicado em 1986, usou o termo “guerrilha cultural” para dar conta da ação desenvolvida para tornar nacionalmente aceites os novos estilos do funaná. De um modo mais largado, este processo ficaria conhecido como o movimento de “trazer” o funaná “para cima do Plateau” ou “para cima da Praia”. A expressão alude à participação do grupo Bulimundo no Festival Praia 80, organizado no âmbito das comemorações estatais do Quinto Aniversário da Independência Nacional (1980) e realizado no Cineteatro da Praia. O seu significado profundo dá conta do ato simbólico de trespasse, por parte do funaná, dos espaços da geografia colonial, nomeadamente do Plateau, a zona do centro da cidade da Praia que constituiu o espaço social da elite política e económica durante o período colonial e permanecia o centro de construção política da nova nação. Ao abordarem as práticas expressivas de Santiago integrando-as em repertórios compostos por géneros nacionalmente aceites como a morna e a koladera, os músicos procuraram posicionar a experiência histórica da população santiaguense e a memória social que comportava no quadro das identidades insulares compondo a nova nação.
19Em Novembro de 1980, um golpe militar na Guiné-Bissau ditou o fim do período em que uma mesma organização política governou dois estados diferentes. Em Cabo Verde o renomeado PAICV reforçou uma política cultural de definição e cristalização de uma cultura nacional que, no caso da música popular, passou a compreender batuko e funaná, uma conquista que pode ser atribuída ao trabalho criativo dos músicos e à popularidade dos novos estilos modernos nas ilhas e em centros da diáspora. Ao longo da década de 80 o regime de partido único (1981-1991) fomentou a criação de uma cultura nacional homogénea, mas consagrando diferenças de experiência histórica e cultural entre as ilhas. Longe de ser entendida enquanto “natural” ou “dada”, a relação dos cidadãos e, particularmente, dos jovens com o património musical do arquipélago foi politicamente incentivada e repousou em várias tecnologias políticas: a difusão exclusiva de música de Cabo Verde na rádio e, a partir das suas emissões experimentais, na televisão; a concessão de vistos a músicos e o estabelecimento de protocolos de cooperação com organismos de outros estados ou instituições internacionais, tendo em vista gravações e digressões no exterior; e, sobretudo, a escolha da juventude como “terreno” para a formação de subjetividades políticas e nacionais, o que compreendia, entre outros aspetos, fomentar uma ligação a práticas culturais nacionais legítimas, nomeadamente a géneros musicais e às suas histórias durante o período colonial.
20Uma parte substancial da política cultural do período foi assumida pela Juventude Africana Amílcar Cabral (JAAC-CV), uma “organização de massas” que embora não fosse formalmente estatal era suportada através dos meios, recursos e ligações com o exterior do Estado e atuava no sentido de reforçar a sua hegemonia. A JAAC mobilizava crianças e jovens, a quem procurava incutir os valores do partido com o objetivo de formar os futuros quadros políticos da organização. A organização era considerada chave na implementação da hegemonia do partido que, para se concretizar, deveria iniciar-se através de socialização na infância, junto dos “pioneiros” afetos à OPAD, a Organização dos Pioneiros Abel Djassi (OPAD), e ser continuada junto dos “jovens” afetos à JAAC. Cumpridas as etapas, os jovens tornar-se-iam, idealmente, militantes e quadros do PAIGC na entrada para a vida adulta. No regime monopartidário, a juventude constituiu uma das “forças sociais” contidas em organizações sob controlo do partido, à semelhança dos sindicatos ou do movimento das mulheres (Andrade 1996: 282).
- 5 Entrevista a Arnaldo Andrade (Arnaldo Andrade Ramos, n. Sal Rei, Boavista, 1957), elemento fundador (...)
21Através de seminários políticos, os jovens dirigentes da JAAC, bem como militantes e dirigentes do partido convidados, transmitiam às crianças e aos jovens o significado da luta armada, os valores da independência nacional, os princípios do partido, os seus projetos para o país e a importância dos jovens para a sua concretização. Os valores preconizados por Cabral da “luta da libertação nacional”, do “pan-africanismo”5 e da “reafricanização dos espíritos”, do “papel da cultura” na construção da nação, eram enfatizados.
22A par da formação política, os jovens ligados à organização eram mobilizados para desenvolver trabalho “voluntário”, útil à comunidade e à construção da nova nação, promotor de valores centrais para a organização como o “voluntarismo”, a “cooperação”, o “coletivismo”, a “solidariedade” e a “igualdade de oportunidades.”6 A ação da JAAC-CV foi especialmente visível nos domínios da “cultura” e do desporto. O desporto constituía, a par da expressão cultural, uma das principais áreas de mobilização dos jovens, promovendo os ideais de um corpo são e combatendo o ócio e o desvio social.
23No interior de Santiago e com base na interpretação das premissas de Cabral do “retorno às fontes” e do relevo da “cultura na luta da libertação nacional”, a JAAC procurou comunicar a crianças e jovens a prioridade de reproduzir ou manter práticas culturais “da terra”. Nesse contexto foi especialmente significativa a “valorização” das expressões com histórias de interdição colonial, nomeadamente o batuko e funaná.
24Através de iniciativas como as “noites juvenis” ou os “acampamentos agro-políticos”, a organização promovia o contacto dos jovens com as pessoas mais velhas das comunidades do interior de Santiago. Seminários incidindo na história de Cabo Verde, enfatizando acontecimentos estruturantes na memória social e historicidades das populações que interessava à organização acentuar na criação de uma alteridade relativamente à governação colonial, como as fomes dos anos 40 do século xx ou a proscrição das “tradições” do batuko, tabanka e funaná, eram narrados por pessoas que os haviam testemunhado.
- 7 Ibid.
- 8 O zouk é um género de música e dança formado entre as Antilhas e Paris no início da década de 80 do (...)
25O evento organizado pela JAAC no domínio cultural que maior visibilidade teve durante os anos do regime de partido único e aquele ao qual os dirigentes da organização atribuem maiores repercussões sociais foi o concurso Todo o Mundo Canta (1983-1991). Ao desafiar crianças e jovens a interpretarem canções da música popular de Cabo Verde com base na premissa de que “todos” podiam “cantar” e participar, o concurso procurou desencadear um “movimento de interesse dos jovens pela música.”7 Em cada uma das eliminatórias, os cantores em competição deveriam interpretar duas canções nos géneros nacionais da morna, koladera ou funaná. Num período de crescente popularidade da música das Antilhas entre os jovens, sobretudo do recém-criado zouk8, concebido pela elite cultural, política e por músicos de gerações mais velhas, como ameaçador da reprodução dos géneros do arquipélago, nomeadamente da morna, o concurso constituiu uma tecnologia política nacionalista central para sedimentar a ligação dos jovens cabo-verdianos aos géneros musicais das ilhas.
26A ação da JAAC-CV teve um impacto significativo nos processos criativos desenvolvidos por uma geração de jovens nascida nos anos antecedendo ou sucedendo imediatamente a Independência Nacional de Cabo Verde, como Orlando Pantera, sobretudo no recorte de práticas culturais concretas, enquanto objetos de inspiração para a criação de uma poética do quotidiano e de uma discursividade em torno do cultural, trabalhada através das dimensões expressivas do som, da língua e da poesia.
27A transição para o regime democrático, após a realização de eleições em Janeiro de 1991, ditou o desmantelamento da política cultural de orientação nacionalista e, desse modo, a extinção da JAAC e do concurso Todo o Mundo Canta. O recém-eleito governo do MpD preconizou a gradual privatização de todos os sectores da economia, na continuidade de um processo de liberalização económica iniciado em meados da década anterior pelo PAICV. A “cultura” deveria ser, idealmente, suportada pela iniciativa privada na economia de mercado. Desse modo, caberia ao empreendimento empresarial fornecer as condições para que músicos desenvolvessem a sua atividade no âmbito das indústrias da música popular, gravando discos e realizando concertos em Cabo Verde e em centros de diáspora, ou no âmbito da emergente e idealizada indústria do turismo e do lazer (hotéis, restaurantes, bares e discotecas).
28Apesar da ausência de condições materiais que pudessem suprir o vazio causado pelo fim da política nacionalista (infraestruturas para a produção de discos, como estúdios de gravação ou fábricas de prensagem de discos, pontos de comercialização das mercadorias da música, assim como lugares para a performance regular de música ao vivo), a indústria internacional da música forneceu, no âmbito da ordem neoliberal, um novo enquadramento para a produção e circulação da música de Cabo Verde. A categoria de mercado de world music passou a regular a mercadorização de toda a música oriunda de contextos periféricos da modernidade capitalista, integrando nas suas redes, a cantora da ilha de São Vicente, Cesária Évora. Durante a década de 90, a popularidade da cantora a uma escala global veio corroborar a visão neoliberal dos novos dirigentes políticos de que a música popular deveria ser suportada pelo mercado.
29A transição não envolveu apenas um novo estatuto da cultura, reforçado por um contexto neoliberal a uma escala global com repercussões crescentes na produção cultural. O novo lugar da cultura na política do Estado participou de uma transformação mais alargada caracterizada por Miguel Cardina e Inês Rodrigues (2020), a da própria “paisagem de memória” de Cabo Verde. A nova elite política veio propor uma memória “anti anticolonial” (ibid.) que apagou a centralidade da luta pela libertação nacional na formação da nação, e recuperou figuras, eventos e uma herança cultural filiados na presença portuguesa no arquipélago. Esta “transição mnemónica” (ibid.) foi visível na alteração de monumentos públicos, nomes de ruas e símbolos de Estado que desenharam um novo imaginário social de nação.
30A conjuntura de transição entre uma política cultural nacionalista encarando a cultura como pilar da construção da nação e da hegemonia partidária, e um regime de produção cultural característico da ordem neoliberal, vislumbrando-a como um veículo de produção de valor na economia cultural global, conjugaram-se para moldar o interesse dos jovens pelo património cultural de Cabo Verde, especialmente nos géneros da cultura expressiva da ilha de Santiago.
31O músico Orlando Barreto, conhecido como Orlando “Pantera”, desempenhou um papel criativo significativo nesta emergente sensibilidade cultural. Nascido em São Lourenço dos Órgãos, no interior de Santiago, em 1967, a sua infância foi passada em Angola, onde os pais foram emigrantes, tendo regressado a Santiago, concretamente à cidade da Praia, nos anos que sucederam a independência nacional, quando o início da guerra civil naquele país fez muitos cabo-verdianos regressarem às ilhas ou escolherem outros destinos de emigração.
32Pantera formou-se enquanto músico em diálogo com as instituições de política cultural do regime de partido único, com a complexa história da música popular de Cabo Verde gravada após a independência nacional e, de um modo geral, com os contextos sociais de partilha da música nas ilhas. Iniciou a aprendizagem de guitarra de modo autodidata e em sociabilidades de amigos do bairro da Achadinha, na Praia. O nome “Pantera” terá nascido durante a adolescência por ser notado por outros jovens a ler livros da “Pantera Cor de Rosa.” O nome foi reforçado por ser magro como a personagem de banda desenhada.
33A sua formação introdutória em guitarra clássica deu-se com Kubala (José Francisco Monteiro Baptista), um professor do instrumento formado em Cuba e ligado à JAAC. O seu envolvimento com o mundo da infância enquanto educador social marcou, igualmente, a sua atividade de compositor. Foi autor de composições de música para crianças, algumas das quais submetidas à Gala Nacional dos Pequenos Cantores, outro dos eventos organizados pela JAAC. Na metade da década de 90 a sua participação como instrumentista, letrista e compositor em agrupamentos como Gama 80 e Pentágono tornou-o notado por intérpretes de música popular que iniciaram a gravação comercial de composições suas.
34A crescente globalização da produção cultural envolveu Cabo Verde em circuitos de produção artística que extravasaram o domínio da música popular. Neste contexto, Pantera integrou o elenco de História da Dúvida (1998), uma obra de dança contemporânea da autoria da coreógrafa Clara Andermatt, que constituiu uma encomenda no âmbito da programação da Exposição Mundial de Lisboa (Expo 98) e que seria igualmente apresentada em países europeus, no Brasil e nos EUA. O trabalho com os músicos e bailarinos ligados a esse projeto e ao que lhe sucedeu, Dandau (1999), ambos sob a coordenação da coreógrafa Clara Andermatt e do diretor musical João Lucas, permitiu-lhe comunicar com metodologias de composição e com linguagens de expressão musical novas para si, sobretudo ligadas ao trabalho artístico colaborativo e à criação musical em diálogo com o movimento e a expressão corporal da dança contemporânea.
- 9 Entrevista a Carla Garcia, Plateau, Praia, 11 de Dezembro de 2019.
35Pantera criou uma linguagem estética pessoal, assente em materiais musicais, poéticos, narrativos e linguísticos que trabalhou criativamente a partir da observação da realidade cultural e social de Cabo Verde, nomeadamente da ilha de Santiago. Esse projeto era suportado por uma metodologia de perfil etnográfico que designou de rakodja (“recolha”), levada a cabo no interior da ilha, através da qual procurava conhecer as práticas culturais da população camponesa em domínios como a religião e o ritual, o vestuário, a alimentação,9 além da cultura expressiva, em especial do batuko, da gaita e fero e da tabanka.
36Os seus familiares e amigos colocam o seu sentido de observação no centro da sua proposta artística e dos seus processos de criatividade, como foi o caso do pianista e amigo Ulisses Português:
- 10 Entrevista a Ulisses Português, Plateau, Praia, 11 de Dezembro de 2019.
ele parecia uma pessoa distraída, mas era uma pessoa bastante atenta. Tu ouves nas suas músicas que ele descrevia situações que aconteciam na sociedade; que era uma pessoa que realmente tu pensavas que ele era distraído, mas ele absorvia, sentia o que acontecia e sabia como transmiti-lo na música. (...) Ele contava histórias com que estava a conviver, histórias além do seu tempo. Tipo um historiador, tipo um antropólogo. Mas conseguia transportar a pessoa para aquele momento e transformá-lo em música e tu ouvia-lo como uma pessoa que tivesse estado naquele lugar, que tivesse estado naquele ambiente. Ele tem muitas músicas que tu sentes que simplesmente ele está a fazer uma viagem no tempo, está a assistir àquele acontecimento e conseguia transportá-lo para a sua música10.
37Na passagem, Ulisses alude ao modo como as canções de Pantera, enquanto modos de propor conhecimento sobre o passado, têm a capacidade de transportar os ouvintes para cronótopos (Bakhtin 1981) particulares.
38Apesar de as suas composições terem sido, ao longo do seu percurso, interpretadas através de diferentes tipos de instrumentação, a sua linguagem está ligada a uma abordagem pessoal do violão, ao uso da voz e do texto. Com base nesses recursos trabalhou criativamente elementos musicais (melódicos, rítmicos, harmónicos) e poéticos característicos dos vários géneros da cultura expressiva cabo-verdiana como a morna, a koladera, o batuko, a tabanka ou o funaná. Ao abordar géneros tradicionalmente não interpretados através do violão, procurava emular as sonoridades características das suas configurações instrumentais de acordo com o modo como as interpretava auditivamente. Desse modo, mais do que a inscrição nas regras e convenções culturais historicamente sedimentadas dos géneros, o seu trabalho criativo dá conta de uma representação poética e de um trabalho de iconicidade musical em torno dessas práticas culturais e da experiência social da sua partilha.
- 11 Entrevista a Orlando Pantera, RDP África, s.d.
- 12 Entrevista a Tó Tavares, 10 de Dezembro de 2019, em Plateau, Praia.
39Entre os géneros abordados, a criatividade musical e ligada à voz desenvolvida em torno do batuko é frequentemente destacada na sociedade cabo-verdiana como um dos seus maiores contributos artísticos. Ao recriar este género performativo tradicionalmente interpretado por mulheres, interligando a percussão em panos, o canto e a dança, Pantera procurou conferir-lhe “um ambiente diferente em termos harmónicos.”11 Como acentuou em entrevista o seu amigo e pedagogo Tó Tavares, dotou o batuko de uma harmonia sofisticada baseada em acordes de sétima12, além de explorar no violão os seus ritmos sobrepostos.
40Através da sua estética, Pantera propôs uma representação poética da realidade social quotidiana dos cabo-verdianos tendo como locus a ilha de Santiago e centrando-se particularmente na figura do camponês do interior de Santiago. O principal dispositivo dessa representação consiste na “imitação” ou mimesis: a incorporação ou interiorização da própria voz dos sujeitos que habitam esse contexto e que assim se tornam os protagonistas da narrativa da canção. A voz, o uso do timbre, das suas inflexões de sentido e da língua crioula materializam as diferentes personagens que protagonizam a narrativa multivocal da canção, evocadora de um universo de relações sociais e de um contexto cultural que enreda as suas subjetividades.
41Na canção “Batuko” o recurso à mimesis compreende o registo vocal da personagem narradora, uma mulher que ao ser convidada a participar em performances de batuko em diferentes localizações do interior de Santiago, constata que essa prática expressiva “está na moda”. Ao compor e popularizar uma canção que descreve como uma prática expressiva historicamente interpretada por mulheres de classe baixa se tornou “na moda”, a canção concretiza a própria mudança que anuncia, isto é, tornar o género socialmente aceite. A recuperação do batuko operada pela canção contribuiu, conjuntamente com o seu restante trabalho artístico, para que uma geração de músicos seus contemporâneos se envolvesse com a abordagem do batuko de acordo com novos estilos de música popular, e para que essa abordagem se tornasse familiar entre os diferentes públicos da música popular de Cabo Verde.
42A voz do outro permite-lhe refletir sobre o significado social da cultura expressiva, as relações de género, a sedução, o afeto, as relações de idade, as estratégias de sobrevivência socioeconómica, as experiências de escassez material, mas igualmente sobre os eventos históricos formadores do presente. A canção “Raboita di Rubon Manel”, composta para uma peça com o mesmo nome do grupo de teatro OTACA (Oficina de Teatro e Comunicação de Assomada, 2000), descreve a eclosão de uma das revoltas sociais com maior significado para o pensamento nacionalista e anticolonial, a “revolta de Ribeirão Manuel” de Novembro de 1910. No contexto da desigual economia de exploração da terra da ilha de Santiago, um grupo de mulheres camponesas (“rendeiras”) da povoação de Ribeirão Manuel foi surpreendido na propriedade de uma latifundiária (“morgada”) a colher frutos de purgueira, uma planta usada com fins energéticos, higiénicos e medicinais, e cuja venda permitia a “rendeiros” e “parceiros” fazer face ao elevado custo do arrendamento da terra. Após queixa do “morgado” Aníbal dos Reis Borges, irmão da proprietária das terras Nazoline dos Reis Borges, as mulheres foram detidas e aprisionadas violentamente por militares da cavalaria (Martins 1985). A detenção gerou uma revolta entre os membros da comunidade que se dirigiram à cadeia e, dada a impetuosidade revelada, as conseguiram libertar. Durante essa noite a população foi surpreendida em Ribeirão Manuel quando militares da cavalaria arrancaram as mulheres das suas casas e as amarraram com o intuito de serem novamente transportadas para a cadeia. O ato gerou novo confronto entre a comunidade e os militares que ditou a derrota e desmobilização da cavalaria. Os acontecimentos deram origem a uma “campanha de pacificação” com uma forte componente bélica, liderada pelo novo governador de Cabo Verde, Marinha de Campos, que procurou serenar os ânimos da comunidade, atribuindo ao padre António Duarte a autoria moral dos acontecimentos (ibid.).
43A canção configura-se desde as primeiras estrofes como um relato de história oral e parece encenar o próprio ato de transmissão da memória. O género escolhido para a composição é o batuko, a expressão cultural cabo-verdiana que historicamente constituiu um dos principais meios de transmissão da memória social e de comunicação de conhecimento cultural entre as populações escravas e camponesas da ilha de Santiago, sobretudo a partir da voz das mulheres. As coordenadas de tempo e espaço enunciadas na abertura da canção indicam que um evento significativo para a história da comunidade que a escuta será lembrado:
Em 1910 mocinhos
Revolta de Ribeirão Manuel
Já eles levaram as nossas mulheres, já eles prenderam a nossa gente
Por causa de um ou dois grãos de purgueira
Eh eh eh como foi doloroso no mundo
Eeeh como passámos um mal tamanho
Xila di Pala não mereceu ir para a cadeia
Nh’Ana Bombolom não mereceu ir para a cadeia
Os maridos todos desorientados
Porque as mulheres estavam fechadas
Eh eh eh como foi doloroso no mundo
Eeeh como passámos um mal tamanho
Já eles perderam o tino, não sabiam onde iam
Nh’Ana Bombolom mijou o brejeiro na boca
O soldado tropeçou numa pedra e deu com o toutiço no chão
Minha gente já eles correram e foram aos seus caminhos
Eh eh eh como foi doloroso no mundo
Eeeh como passámos um mal tamanho
Eles mandaram chamar o padre Duarte
Este agora não tinha nada a ver com isto
Fizeram um discurso bonito
Mas é aqui no chão que nós estamos
- 13 A canção interpretada por Pantera consta de um programa de rádio encomendado pela RDP África a João (...)
Eh eh eh como foi doloroso no mundo
Eh como passámos um mal tamanho13.
44As canções de Pantera parecem conter o projeto de salvaguardar a importância histórica e social das mulheres na sociedade cabo-verdiana, num movimento contrário ao modo como, tradicionalmente, o seu comportamento social esteve sob a inspeção crítica masculina em géneros de música e dança das ilhas. Em “Tunuka” (o nome feminino escolhido para designar a figura da mulher cabo-verdiana) a voz de um narrador masculino homenageia a coragem e a intrepidez da mulher face às dificuldades impostas por um quotidiano de escassez, especialmente patentes na história de diáspora a partir do arquipélago. Pode ler-se que foi a sua aliança ao homem cabo-verdiano que permitiu concretizar o projeto de sobrevivência ligado à migração, especialmente a migração de trabalho contratado para São Tomé e Príncipe entre o final do século xix e o fim da governação colonial, especialmente acentuada no período de fomes e mortes da década de 40 do século xx. Enquanto migrante ou alguém que permaneceu na terra, a mulher assegurou o trabalho da reprodução social. Foi a ela que coube historicamente uma ética do cuidado e o acionamento de redes de entreajuda que permitiram contornar a incerteza e a exiguidade de recursos do dia-a-dia. É a esse papel social que Pantera parece aludir na canção:
Tunuka
Tunuka bala
Quem tem coragem
É só a minha Tunuka
A escuridão não lhe causa cuidado
Não lhe dói os sentidos
Quanto mais o coração
Tunuka
Somos nós que viemos
Somos nós que fomos
Somos nós que ficámos aqui mesmo
Nós unimos corações
Nacionalidade já temos
Assegurámos o nosso bem mais precioso
Os nossos animais deixamo-los lá
Fomos nós que embarcámos para São Tomé
Injuriados
De pés amarrados
Tu e eu nós estivemos mesmo lá
Tudo o que me dão eu dou também
No nosso pão de cada dia
Hoje bem amanhã incerto
Ao remediado resta esperar que me deem
Para eu lhe dar também
Tunuka querer-te não é pecado
Dar-te nem se diz
É só dares-me que eu aceito
Tunuka
Somos nós que viemos
Somos nós que fomos
Somos nós que ficámos aqui mesmo
Nós unimos corações
Nacionalidade já temos
Assegurámos o nosso bem mais precioso
Os nossos animais deixamo-los lá
Fomos nós que embarcámos para São Tomé
Injuriados
De pés amarrados
Tu e eu nós estivemos mesmo lá
Tudo o que me dão eu dou também
- 14 “Orlando Pantera”, programa de rádio encomendado pela RDP África, editado por João Lucas, ficheiro (...)
No nosso pão de cada dia
Hoje bem amanhã incerto
Ao remediado resta esperar que me deem
Para eu lhe dar também14.
45Fazendo uso da economia semântica de uma canção de música popular partilhada no domínio da “intimidade cultural” – isto é, sendo sujeita à interpretação entre nacionais e falantes de uma mesma língua “na privacidade de uma introspeção coletiva” (Herzfeld 2005: 14), e por isso fazendo uso de uma certa economia de sentido –, “Tunuka” é sobre a importância da mulher para a história da nação e diáspora cabo-verdianas. Ao focar as articulações entre o género, a nação e a diáspora, assinala como os valores sociais partilhados entre mulheres e homens, incluindo idiomas sociais de reciprocidade e a lealdade à nação, contribuíram para formar a diáspora cabo-verdiana, conferindo sentido a experiências extremas de sofrimento.
46Após a independência nacional de Cabo Verde, a nova classe dirigente, no seu esforço de construção da nação, consolidou a “alta cultura” (Gellner 1996) característica dos modernos Estados-nação ao: renovar o aparelho burocrático herdado do período colonial; reforçar a linguagem impessoal e anónima característica das instituições de Estado; garantir padrões de educação e de literacia controlados por um sistema de educação nacional; mas igualmente ao representar uma cultura homogénea dominante, naturalizada através de vários dispositivos da sua política cultural.
47Esta compreendeu uma visão da história e cultura de Cabo Verde desenvolvida pela sua elite letrada que privilegiou as expressões culturais das ilhas passiveis de serem aproximadas a uma cultura intelectual europeia, à sua produção artística e filosófica, em detrimento das práticas culturais, cuja genealogia podia ser mais diretamente traçada a partir da rota do Atlântico negro. A “alta cultura” adotada pela elite intelectual e política encontrou um correspondente musical na morna, um género musical e poético socialmente encarado como “erudito” dentro da tradição popular das ilhas. Apesar de questionada pelos músicos e públicos através do movimento do funaná nos anos após a independência nacional, essa “alta cultura” (Gellner 1996) ou “cultura nacional” (Hall 1992) permaneceu nos círculos da política cultural e de representação mediática, enquanto cultura hegemónica cabo-verdiana.
48A persistência de uma cultura cabo-verdiana dominante foi especialmente visível no período de instauração do pluripartidarismo, em que a “transição mnemónica” assinalada por Miguel Cardina e Inês Rodrigues (2020) ditou a substituição por parte das instituições políticas, de uma “paisagem de memória” estruturada em torno da luta pela libertação como acontecimento histórico fundador da nação e da ligação ao continente africano, para outra predicada na continuidade cultural e política com o regime colonial e, desse modo, com a imaginação de uma hibridez e crioulidade radicadas numa história Atlântica europeia ou num Atlântico sem África.
49Foi nesta conjuntura particular, igualmente moldada por uma outra transição, aquela entre a política cultural do regime de partido único e um contexto neoliberal integrando os músicos e artistas de Cabo Verde numa economia cultural global, que a criatividade de Pantera emergiu - possivelmente no confronto com a intersecção destas forças históricas.
50Estas transformações na economia política à escala local e global incidiram sobre a formação dos sujeitos, criando as condições de possibilidade para a emergência de novas estéticas de produção cultural. A política cultural do regime de partido único comunicou aos cidadãos, especialmente aos jovens, a importância de entender a música enquanto manifestação de uma história mais alargada de nação, revelando a possibilidade de a representar e tornar um objeto da expressão artística. A “abertura democrática”, por seu turno, acompanhada da crescente penetração da ordem neoliberal e de uma economia cultural global que na música compreendeu centralmente o mercado da world music, apontou os materiais culturais a partir dos quais essa história podia ser imaginada e produzida para circulação e consumo globais. Esta intersecção de relações diferenciadas mas complementares com a cultura e história de Cabo Verde, esteve no centro das estéticas da música criadas por Orlando Pantera e por uma geração de músicos que explorou criativamente o seu legado.
- 15 Apesar de uma história longa e complexa no pensamento ocidental, o termo “poética” denota desde a r (...)
51Inscrevendo-se numa história de questionamento de representações hegemónicas da cultura e história cabo-verdianas inaugurada após a independência nacional em torno do funaná e do batuko, Orlando Pantera desenvolveu um projeto de representação verbal e sonora da realidade e da população camponesa do interior de Santiago que designo de poética da nação: um complexo expressivo que através da palavra, do som, do corpo e da visualidade, manuseia um conjunto de tropos e de figuras estilísticas que representam e colocam em diálogo o passado e o presente da nação15. Esta poética parece acionar uma relação específica entre passado, presente e futuro: uma relação de justaposição, de comunicação e de contiguidade em que a população camponesa constitui um modelo ético para a nação cabo-verdiana.
52Em contraste com o pensamento historiográfico nacionalista elitista (Guha 1982) característico da produção de uma cultura crioula hegemónica, que destaca figuras culturais excecionais formadoras de uma identidade nacional crioula, esta poética coloca a população camponesa santiaguense no centro da história e da vida social do arquipélago. Para Pantera a população do interior de Santiago incorporava atributos como os da generosidade, sinceridade, espontaneidade, determinação e coragem, corroídos pelas relações sociais instrumentais do presente moderno. A ilha de Santiago não constituía, deste modo, apenas o lugar fundador da sociedade cabo-verdiana, onde se havia iniciado a colonização do arquipélago com escravos transportados da costa africana, alguns deles auto libertos que se refugiaram no interior montanhoso da ilha. Santiago significava igualmente a presença do passado no presente, uma história incarnada pelas pessoas. Na transição para um novo milénio, a população camponesa corporizava um passado poético de resistência e de insubmissão. Desse modo, passado e presente são frequentemente indistintos na estética e poética de Pantera.
53A abordagem dos géneros associados a Santiago a par das expressões de música e dança do arquipélago mais comummente associadas a uma cultura nacional crioula dá conta de uma harmonização e de uma horizontalidade das diferentes práticas expressivas que participam de uma cultura nacional, como fruto da história inaugurada por Bulimundo, Norberto Tavares, Os Tubarões, Zézé e Zeca di Nha Renalda, entre outros, após a independência nacional, e que a política cultural do regime de partido único veio a normalizar. Contudo, a este projeto de pluralizar a cultura e história de Cabo Verde, contrapondo uma crioulidade imaginada enquanto africana a uma crioulidade atlântica hegemónica filiada na cultura europeia, junta-se um outro projeto, paralelo: o de tornar visível e audível uma história cultural e social da cabo-verdianidade mediada pela voz subalterna das mulheres. Essa história compreende a escravatura no Atlântico Negro e a inscrição de Cabo Verde nessa história inaugural da modernidade; o trabalho contratado que lhe sucedeu historicamente; as revoltas camponesas como efeitos do desigual regime de propriedade e trabalho da terra; assim como a migração laboral pós-colonial. No âmbito desta história a voz das mulheres como atrizes invisíveis da história emerge.
54O interesse por esta história e o seu posicionamento no centro de uma narrativa de nação e de cabo-verdianidade por parte de Pantera, mas igualmente por uma geração de jovens músicos que retirou inspiração do seu legado, revelam que as hierarquias culturais, as constelações de raça, classe social e género herdadas do período colonial, construídas em torno de cada uma das práticas, não se encontram inteiramente dissolvidas na sociedade cabo-verdiana; e que a tensão entre duas genealogias culturais continua presente nos modos sociais de pensar a cultura, a história e a subjetividade cabo-verdianas.