Maria Cândida Proença (ed.), O sistema de ensino em Portugal. Séculos xix-xx, 1998 ; Maio de 1968. Trinta anos depois. Movimentos estudantis em Portugal, 1999 ; Um século de ensino da história, 2001
Maria Cândida Proença (ed.), O sistema de ensino em Portugal. Séculos xix-xx, Lisboa, Colibri, 1998, ISBN : 9727720366.
Maria Cândida Proença (ed.), Maio de 1968. Trinta anos depois. Movimentos estudantis em Portugal, Lisboa, Colibri, 1999, ISBN : 9727720978.
Maria Cândida Proença (ed.), Um século de ensino da história, Lisboa, Colibri, 2001, ISBN : 9727722679.
Texte intégral
1As três publicações contempladas por esta recensão podem ser consideradas quase como uma única obra, tratando o assunto do ensino em Portugal de diferentes pontos de vista : o das instituições, o dos sujeitos aos quais o ensino se destina e da sua recepção ou recusa da instituição escolar, o do ensino da história, matéria na qual, mais de que noutras, se reflecte a vontade pedagógica ou propagandística dos estados.
2Neste sentido, a publicação sobre Maio de 68 e a contestação estudantil em Portugal, a segunda em ordem de tempo, apresenta características centrais para a compreensão das outras, sobretudo pelo facto de pôr em evidência a relação entre o sistema de ensino, os estudantes e a sociedade. Neste sentido, parece interessante notar que os programas escolares e as instituições de ensino podem ser impostos ou surgir como reflexo de uma hegemonia cultural específica e maioritária, mas em ambos os casos facilmente são, se não renovados, superados pelo desenvolvimento cultural, económico e até demográfico da sociedade. Assim os estudantes, ou seja a parte da sociedade directamente em contacto com o ensino, são os primeiros a se aperceberem desta contradição e os primeiros a entrar em conflito com uma instituição considerada ultrapassada. A crítica a escola facilmente transforma-se em crítica ao estado, considerado responsável do atraso no ensino e, com efeito, considerado em si atrasado e não adequado à situação de desenvolvimento da sociedade. Portugal não representa uma excepção e a história dos vários movimentos estudantis portugueses demonstra como, neles, sempre foram presentes temáticas que se teriam tornado fundamentais nos sucessivos momentos históricos-políticos. Assim foi nos últimos anos da Monarquia, quando, no movimento estudantil de Coimbra de 1907, contra a reforma do ensino proposta pelo governo de João Franco, se afinaram os conteúdos da futura revolução republicana. Assim foi no final do Estado Novo, quando, na contestação estudantil ao regime, se formou uma inteira geração política que foi fundamental na revolução de Abril e na construção da democracia em Portugal. De cariz oposta surge, por outro lado, o Estado Novo : verdadeiro produto da instituição universitária – tendo encontrado nos corredores da Academia coimbrã, a nível de corpo docente, a sua incubação teórico-política – o regime de Salazar representou a vitória da conservação sobre o progresso, da estrutura sobre o movimento, da imobilidade sobre o desenvolvimento da sociedade e os impulsos modernizantes que dela provinham o teriam provindo.
3Começaremos a análise da « trilogia » mesmo de Maio de 1968. Trinta anos depois para o livro, quarenta anos depois hoje ! Movimentos estudantis em Portugal, ou seja, a nosso ver, o mais relevante dos três volumes. Isso também porque, neste quadragésimo aniversário dos eventos de Maio, achamos importante « pagar uma contribuição » a uma publicação que foi pioneira no estudo dos movimentos estudantis portugueses, um assunto sobre o qual, até agora, a investigação de facto não parece ter conseguido ultrapassar de forma substancial aquela primeira estreia. O livro reúne o essencial das contribuições apresentadas num colóquio realizado na Universidade Nova de Lisboa nos dias 28 e 29 de Maio de 1998. Os assuntos analisados têm a ver, de forma mais ou menos directa, com a intensificação da contestação estudantil em Portugal nos finais dos anos Sessenta. Ainda que a definição de Maio de 68 remeta logo para o Maio francês, temos que considerar que a contestação juvenil, nos finais dos anos Sessenta, apresenta elementos generalizáveis, seja do ponto de vista temático que das próprias práticas de mobilização. O fenómeno, todavia, tem também especificidades ligadas ao contexto em que se enraíza : a contestação assim nutre-se da realidade histórica dos diferentes países, da memória e práticas de movimentos anteriores (o que os especialistas chamam repertoire of contention) e de redes de mobilização já presentes no território, as quais influenciam a forma e os conteúdos do protesto. Tudo isso encontra-se bem analisado no texto, cujo mérito principal é, a nosso ver, a perspectiva de longo período que, abrangendo quase um século de história de Portugal, procura os factores longínquos da especificidade da contestação estudantil portuguesa. Alem disso, ao lado das questões « clássicas » relacionadas com o movimento, ou seja a da oposição ao Estado Novo e a da guerra colonial, encontram-se aprofundadas também problemáticas de cariz mais estrutural. Entre estas salientamos sobretudo o desenvolvimento económico e social português desde os anos Cinquenta, o processo de urbanização e a massificação escolar, assim como o seu corolário de contradições numa universidade na qual a marca elitista de molde napoleónico tinha encontrado renovadas fundamentas no imobilismo social estadonovista.
4O objectivo declarado do livro é portanto o de compreender as lutas estudantis em Portugal dos finais dos anos Sessenta à luz de uma dimensão histórica, mais de que internacional. Assim os vários ensaios traçam um percurso de amplo respiro que vai da já mencionada agitação coimbrã de 1907, à tentada democratização do ensino levada para frente pela República e à sucessiva reacção do Estado Novo, que perseguiu a afirmação de um contexto educativo autoritário e propagandístico funcional ao elitismo escolar. Traça-se, depois, a evolução da oposição estudantil contra este determinismo autoritário. Partindo das lutas dos estudantes republicanos durante a ditadura militar, é sucessivamente analisada a situação do mundo académico nos finais dos Quarenta, para finalmente chegar ao momento geralmente considerado, pela historiografia portuguesa, como a « estreia » do movimento estudantil português : a oposição, em 1956, ao decreto-lei 40 900, limitativo da independência das associações académicas. A reivindicação da autonomia dos organismos associativos dos estudantes foi preponderante nas grandes agitações dos anos Sessenta, até 1969, quando assiste-se a um forte radicalização política do movimento, assunto do último e conclusivo ensaio do volume.
5No que diz respeito aos autores, salienta-se sobretudo a presença de jovens investigadores que trouxeram elementos de novidades à pesquisa sobre o tema. Entre eles, destaca-se Marta Benamor Duarte, a qual dedicou à agitação de 1969 e às suas implicações nos finais do regime a sua tese de mestrado. Mas o volume conta também com nomes mais conhecidos, como os de José Medeiros Ferreira e Fernando Rosas, os quais, além de serem importantes historiadores, foram em alturas diferentes protagonistas dos movimentos estudantis lisboetas.
6Anterior em ordem de tempo – e de alguma forma introdutório respeito ao volume sobre Maio de 68 – é O sistema de ensino em Portugal. Séculos xix-xx, actas do curso de verão realizado na Universidade Nova de Lisboa em Setembro de 1996. A própria coordenadora da publicação, mais uma vez Maria Cândida Proença, individua o objectivo dos trabalhos em contribuir ao debate sobre os horizontes e as necessidades do ensino na viragem do século. Com estas premissas, o livro estrutura-se à volta de três directrizes principais, que são, afinal, as três questões consideradas fundamentais respeito ao debate sobre o ensino : as políticas educativas, os conteúdos e a metodologia do ensino.
7No que diz respeito à primeira temática, salienta-se que a escola moderna, produto da sociedade burguesa, sempre foi ligada à exigência percebida de instaurar uma nova ordem político-social através de adequadas estratégias educativas, não escapando disso os regimes autoritários, que alias apontaram na reestruturação da escola como num dos sectores mais vitais da própria conservação.
8Em relação aos conteúdos, evidencia-se sobretudo que, no debate à volta de que tipo de educação oferecer aos alunos, foi quase sempre presente uma certa dialéctica entre propostas de matriz humanista e outras de marca utilitarista, atrás das quais não estavam apenas convicções estritamente pedagógicas, mas sim diferentes perspectivas teóricas e ideológicas. Igualmente ideológica aparece, sempre respeito à dimensão do conteúdo do ensino, a disputa sobre a necessidade ou menos de uma escola única (com mesmos programas) a nível de ensino primário e secundário, disputa que atravessou a história da instrução em Portugal desde o liberalismo até à democracia. Paradoxalmente, ainda que a escolha pela escola única envolvesse fantasmas de igualitarismo e socialismo, foi durante o Estado Novo que se chegou, de um certo ponto de vista, à sua realização, antes com a criação do ciclo preparatório do ensino técnico nos finais dos anos Quarenta, depois, já nos anos Sessenta, com o ciclo preparatório do ensino secundário.
9Enfim, respeito às problemáticas metodológicas, traça-se o percurso da afirmação de novas correntes pedagógicas baseadas na busca da cientificidade, analisando também os pressupostos culturais (e até políticos) nelas envolvidos, que fizeram com que o Estado Novo procurasse marginaliza-las.
- 1 V. Álvaro Garrido, Movimento estudantil e crise do Estado Novo : Coimbra 1962, Coimbra, Minerva, 1 (...)
10Concluem a obra duas contribuições sobre a relação entre Universidade e sociedade. A primeira é de autoria de Álvaro Garrido, o qual apresenta, numa perspectiva histórica, a evolução das políticas de juventude dos estados europeus. Salienta-se que Garrido foi autor de uma das primeiras obras dedicadas à oposição estudantil coimbrã contra o Estado Novo1 e é mesmo do ponto de vista da conflitualidade académica, difícil de conter dentro das instituições juvenis do estado corporativo, que a sua relação debruça a temática. A contribuição final, também sobre a relação entre sociedade e universidade, de Jorge Miguel Pedreira, liga-se directamente ao ensaio de abertura de Roberto Carneiro, os dois analisando os problemas e desafios da escola contemporânea e oferecendo ao debate uma síntese das principais propostas face a este problema, assim como a própria posição respeito a elas.
11Parece-nos que este texto atingiu o objectivo de conduzir o leitor, seguindo um percurso histórico, a melhor compreender os problemas e as implicações derivantes de um ou outro tipo de ensino, da escolha pela escola única ou diversificada, publica ou privada (só para citar alguns exemplos), traçando um percurso claro e coerente entre as diversas contribuições.
12O mesmo não se pode dizer, a nosso ver, respeito ao último volume desta recensão : Um Século de ensino de história. Também trata-se de uma colectânea de ensaios, resultantes de uma conferência realizada na Universidade Nova de Lisboa entre 16 e 18 de Março de 2000. A finalidade dos trabalhos é individuada na vontade de fornecer elementos de reflexão sobre o ensino da história, sobre os usos e abusos aos quais esta disciplina foi sujeita ao longo do tempo – e corre o risco de ser sujeita também na actualidade – e sobre a situação no domínio da apreensão do conhecimento histórico, desde o ensino básico até à investigação mais avançada. É um objectivo de inegável interesse e saliência, passível de fornecer um excelente fio condutor para ligar e tornar coerentes as várias apresentações. A própria estrutura do livro – e, imaginamos, do colóquio – teria favorecido, se bem aproveitada, um desenvolvimento racional do assunto, fornecendo gradualmente e exaustivamente os instrumentos úteis para a compreensão e reflexão sobre os problemas da actualidade.
13A primeira parte dos trabalhos é propriamente dedicada ao ensino da história no último século, posto em relação com a ideologia dominante e o progresso da metodologia nas diversas alturas. A segunda parte passa a analisar os problemas actuais no ensino da história nos vários níveis educacionais e, na última parte, abordam-se finalmente algumas propostas resolutórias para estes problemas.
14Na parte histórica, organizada em ordem cronológica, cada relação deveria ocupar-se de um período específico, desde os últimos anos da monarquia até à democracia, mas de facto, na maioria dos casos, numa excessiva exigência de contextualização, repete grande parte das informações fornecidas no ensaio anterior ou no seguinte. A nosso ver, teria sido necessário organizar melhor as varias contribuições do colóquio na passagem às actas, com o objectivo de torná-las mais ligadas e coerentes entre si, procurando mais continuidade e talvez especificando qual o tributo de cada uma respeito ao objectivo afirmado na introdução. Temos por outro lado que salientar a importante excepção constituída pela primeira intervenção, de Luís Reis Torgal, a qual representa uma interessante introdução teórica da relação entre ensino da história e ideologia, e da segunda, de Maria Cândida Proença, que na sua análise da passagem da monarquia à república introduz e desenvolve toda uma série de temáticas que acabam por constituir o verdadeiro « esqueleto » da obra.
15Continuando na leitura, parece-nos que a segunda e terceira parte do volume também apresentem limites significativos, relacionados sobretudo com a abordagem estritamente apreciativa e pessoal dominante na maioria das intervenções. Respeito às propostas para o ensino da história na escola actual, por exemplo, falta uma clara exposição do estado do debate, depois da qual o autor livremente teria podido afirmar a sua posição. A acentuar este problema, contribui a falta completa de indicações sobre os vários autores, assim que encontramo-nos na condição de nem conhecer a fonte dos juízos de valor que nos são propostos. Pois, se a formação e domínio de actividade é facilmente dedutível no caso de alguns autores, porque o próprio preocupou-se de fornecer uma mínima referência à sua posição no texto, na maioria dos casos estes dados são completamente desconhecidos. Não temos portanto nenhum elemento para reconhecer se estamos em frente da opinião de um professor, de um professor de historia (e, em ambos os caso, de que nível de ensino ? E de que tipo de instituição escolar ?), de um educador, de um investigador ou de um sociólogo, só para citar algumas das possibilidades mais plausíveis.
16Por todos estes motivos, a obra aparece de alguma forma fragmentada, com um certo desequilíbrio entre uma massa de informações às vezes exagerada (e, como vimos, também redundante e repetitiva) caracterizando a primeira parte e uma urgência interpretativa não sempre fundamentada e documentada na segunda e na terceira.
Abril de 2008
Notes
1 V. Álvaro Garrido, Movimento estudantil e crise do Estado Novo : Coimbra 1962, Coimbra, Minerva, 1996.
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Référence papier
Guya Accornero, « Maria Cândida Proença (ed.), O sistema de ensino em Portugal. Séculos xix-xx, 1998 ; Maio de 1968. Trinta anos depois. Movimentos estudantis em Portugal, 1999 ; Um século de ensino da história, 2001 », Lusotopie, XVI(1) | 2009, 226-231.
Référence électronique
Guya Accornero, « Maria Cândida Proença (ed.), O sistema de ensino em Portugal. Séculos xix-xx, 1998 ; Maio de 1968. Trinta anos depois. Movimentos estudantis em Portugal, 1999 ; Um século de ensino da história, 2001 », Lusotopie [En ligne], XVI(1) | 2009, mis en ligne le 22 novembre 2015, consulté le 17 janvier 2025. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lusotopie/492 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.1163/17683084-01601025
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