Andrade, M. P. 1998, Origens do nacionalismo africano, Lisboa, Dom Quixote.
Ângela Benoliel Coutinho, Os dirigentes do PAIGC (Partido Africano para a independência da Guiné e de Cabo Verde). Da fundação à rutura, 1956-1980
Ângela Benoliel Coutinho, Os dirigentes do PAIGC (Partido Africano para a independência da Guiné e de Cabo Verde). Da fundação à rutura, 1956-1980, Lisboa, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2017, ISBN 9789892611549.
Texte intégral
1O livro de Ângela Beloniel Coutinho (2017) deriva da sua tese de doutoramento, originalmente em francês, defendida em 2005 na Universidade de Paris I – Panthéon Sorbonne. Traduzida para português, a tese foi publicada em livro pela Imprensa da Universidade de Coimbra, na sua coleção História Contemporânea. O prefácio é da autoria do Professor Luís Reis Torgal, da Universidade de Coimbra. O livro estuda a fundação do Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde (PAIGC) até o golpe militar liderado por João Bernadino Vieira, o “Nino”, na Guiné-Bissau em 1980, seguido da fundação do Partido Africano pela Independência de Cabo Verde (PAICV) no início do ano seguinte.
2A autora dedica-se à sociologia da elite política que se desenvolveu no PAIGC desde 1956 até 1980, quando o golpe pôs termo ao governo de Luís Cabral, e à experiência de gestão de partido único nas ilhas de Cabo Verde e na Guiné-Bissau. A obra política e teórica do Secretário-Geral do partido, Amílcar Cabral, ocupa um lugar proeminente na produção intelectual sobre os projetos políticos do pós-independência. Porém, diversos nomes do anticolonialismo, bem como outros movimentos de oposição, como a União dos Povos das Ilhas de Cabo Verde (UPICV), o Movimento para a Libertação da Guiné (MLG) e a Frente de Luta para a Independência da Guiné (FLING) permanecem à sombra. A ideia principal que permeia o livro é a de que duas gerações da elite dirigente do PAIGC, a dos “fundadores” e a “2ª geração”, foram responsáveis pela organização e liderança da luta armada, bem como da criação e gestão do Estado até o fim da experiência política binacional, fruto de uma deriva ideológica do governo sediado em Bissau.
3Para desenvolver os argumentos foram mobilizados conceitos de vários autores, dentre eles o de “capital” de Pierre Bourdieu. Como material de pesquisa, foram realizadas entrevistas entre 1998 e 2000 aos (às) dirigentes do Comité Executivo de Luta (CEL) e respectivas famílias em Portugal, Cabo Verde e Guiné-Bissau, porém neste último a guerra civil de 1998 impossibilitou cobrir com plenitude este lado da luta. Entre as fontes impressas, houve consulta aos arquivos: na Fundação Mário Soares (como o Arquivo Amílcar Cabral), Arquivos da Polícia Internacional de Defesa do Estado/Direção Geral de Segurança, PIDE/DGS no Arquivo Nacional/Torre do Tombo – com algumas dificuldades de acesso nas instituições de Estado português –, periódicos (PAIGC Actualités, Nô Pintcha, Voz di Povo) e bibliografia especializada.
4Observamos dentre as fontes consultadas a utilização de imagens iconográficas. Em sua maioria, são fotografias abrigadas no Arquivo Amílcar Cabral e fundos familiares. O uso dessas fotos é ilustrativo, a fim de dar visibilidade a membros do CEL. Dentre elas, destacamos a que mostra o grupo de guineenses enviados à China em 1961 para treinamento militar, dentre os quais estão “Nino” Vieira e Domingos Ramos, ao lado de alta delegação do país asiático e do líder Mao Tse Tung. Por outro lado, na análise da construção heroicizante dos mártires da revolução, uma das passagens mais interessantes do livro, a pesquisadora analisa as representações imagéticas de selos nos dois países em questão, e apresenta dois quadros distintos dessas configurações em torno da figura de Amílcar Cabral. Nas imagens em anexo, tais documentos não aparecem, isto é, a autora analisou um material iconográfico não agregado na obra, enquanto há figuras que não são exploradas no texto.
5Alguns debates historiográficos permeiam a obra, como a querela dos membros presentes na famosa reunião dos “fundadores” em 1956 e a suposta “hegemonia caboverdiana” na direção política do CEL do PAIGC nos anos 19601970, ideia exposta nas obras de Nelson Eurico Cabral, José Pedro Castanheira e Dalila Cabrita Mateus. Com a ajuda das tabelas, compostas por sua vez por informações adquiridas por entrevistas e documentação impressa, o texto evidencia o difícil equilíbrio na composição de ambas as nacionalidades no quadro da elite política e militar. Mais do que debates, o que a autora faz é propor uma série de “frentes” de pesquisa, uma vez que a documentação é escassa (a guerra civil de 1998 destruiu parte do acervo de documentos impressos de Guiné-Bissau) e os estudos, um tanto raros: aponta-se, por exemplo, a necessidade de estudar o papel dos liceus na formação das gerações de anticolonialistas, o Centro dos Estudantes do Império (CEI) em Portugal, espaço de congregação de estudantes africanos e de formação política e ideológica dos futuros líderes das independências, e o papel mulheres (Carmen Pereira foi a única na elite política do partido) no combate pela soberania nacional. Nunca é demais proceder ao estudo desses temas e torna-se necessário, cada vez mais, uma interação acadêmica transatlântica para suprir essas demandas e abrir novos caminhos, tais como a relação entre o PAIGC e as tabancas, os meios de comunicação no partido e a obra dos artistas engajados politicamente.
- 1 O “proto-nacionalismo” é uma expressão usada pelo angolano Mário Pinto de Andrade (1998) para cunha (...)
6A nosso ver, o livro divide-se em duas partes. A primeira, composta pelos capítulos I e II, explicita o constante esforço por mapear as trajetórias individuais das duas gerações do CEL/PAIGC até a independência. Trata-se de uma reiterada busca pelos “capitais econômicos” acumulados e transformados em “capitais culturais”. A preocupação aqui é com as origens regionais dos membros, contextos históricos dos nascimentos e suas gerações familiares predecessoras. Tal estratégia evidencia limites, pois os objetivos familiares escapam aos projetos construídos pelos(as) filhos(as). Iva Évora, mãe de Amílcar Cabral, expôs em 1978 certa frustração pelo fato dele ter se envolvido com a política: “Se eu soubesse que ia dar em político não lhe dava estudos. Mas adivinhar é proibido. Cansei-me demais na máquina, na tina e no ferro; a trabalhar dia e noite porque não tinha auxílio do pai” (pp. 63-64). O interessante é pensar, para além das árvores genealógicas, no “capital” da experiência da luta em terreno (militar e diplomático), algo que favoreceu os militares da Guiné ao ponto de intervirem no golpe de 1980. Uma questão interessante na história dos familiares é que gerações anteriores escreveram na imprensa “proto-nacionalista”1 da Guiné dos anos 1910-1930, mas no geral não há vínculos diretos com formação política dos herdeiros.
7A 2ª parte do livro, capítulos III e IV, busca compreender os projetos e as concretizações dos Estados criados a partir das independências. Nesse ponto, a metodologia faz uma virada: a autora deixa de adotar as biografias e trajetórias dos membros do CEL como foco central de análise e passa a considerar as dimensões conjunturais nos campos ideológico, econômico, jurídico, educacional e da saúde, como se tais situações fossem frutos, exclusivamente, dessa elite política que se fez na luta armada e que assumiu o poder após os combates. Tal mudança estrutural da obra explica-se pelos desafios impostos no acesso às fontes documentais, ao ponto do texto admitir o resultado desses limites, em passagens como abaixo:
No entanto, dado o estado atual dos nossos conhecimentos, não sabemos quantos cabo-verdianos e nem em que lugares de responsabilidade contribuíram com o seu trabalho para o desenvolvimento da economia guineense durante estes primeiros anos e, por conseguinte, para a diminuição do desemprego em Cabo Verde (p. 213).
8Assim sendo, há uma grande atenção sobre as contribuições teóricas de Amílcar Cabral, que tiveram considerável peso na formação nos novos Estados. No entanto, o livro não assevera que muitas das ideias atribuídas ao líder, como as organizações de massa (mulheres, jovens e sindicatos), fazendas coletivas, premiações para os mais empenhados na produção do campo, entre outras, vinham de outras experiências históricas com as quais ele teve contato, uma vez que é sempre reconhecido seu papel no campo diplomático, e procurou adaptá-las à realidade local pensando no futuro dos novos Estados. Da mesma forma, no contexto da Guiné-Bissau, houve incorporações de ideias estrangeiras no pós-independência por parte das elites políticas da “2ª geração”, como o nome “peso”, moeda de Cuba (país que enviou soldados, médicos e armas à Guiné entre 1966 e 1974), atribuído para a nova configuração monetária. A dimensão internacional, que teve importância na luta armada e na organização do país, está presente no livro, sobretudo na Guiné: formações militares de cabo-verdianos (Cuba) e guineenses (China); cooperativas agrícolas que outros africanos propunham; ajuda médica especializada de países socialistas, sobretudo cubanos; envio de jovens desde 1959 para estudar no exterior (“os países […] eram os mais diversos nos quatro continentes, à exceção da Austrália”, p. 227), docentes estrangeiros nas escolas. Por outro lado, palavras como “não-alinhamento” ou “socialismo” estão ausentes no texto.
9Outra contribuição do livro está na análise das contendas entre o “Conselho da Revolução” liderada por Nino Vieira e as lideranças em Cabo Verde, em especial o presidente Aristides Pereira, após o golpe militar (obra utiliza “golpe de Estado”) de 1980. Para tanto, a autora valeu-se da imprensa de ambos os países e de telegramas entre os chefes de Estado. Tal episódio segue pouco estudado, e os apontamentos oferecem um painel que o elucida. Além do tenso debate, vemos também quem foram os expurgados (em especial Luís Cabral, um dos “fundadores” e Presidente da República entre 1973 e 1980), os mortos e quem continuou no novo governo, muitos deles no CEL.
10Os dirigentes do PAIGC (Partido Africano para a Independência da Guiné e de Cabo Verde): da fundação à rutura, 1956-1980 apresenta-se como resultado de uma pesquisa acadêmica com muitos percalços, evidência da dificuldade em abordar a história política de Guiné-Bissau, seja pelos limites impostos pelos próprios protagonistas em viragens autoritárias de poder, seja pela história política e militar que arruinou parte do patrimônio documental e que dificulta o trabalho de pesquisadores(as). Em tempos de ameaças e mortandades pandêmicas, vale lembrar que os limites nunca foram objeto de aprisionamento dos intelectuais, que sempre buscam maneiras de lidar com o problema para tornarem públicas reflexões necessárias à história e memória das lutas sociais e políticas.
Notes
1 O “proto-nacionalismo” é uma expressão usada pelo angolano Mário Pinto de Andrade (1998) para cunhar os diversos tipos de manifestações culturais e políticas locais e nativistas que antecedem o período de afirmação do nacionalismo africano de cariz independentista.
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Référence papier
Alexsandro de Sousa e Silva, « Ângela Benoliel Coutinho, Os dirigentes do PAIGC (Partido Africano para a independência da Guiné e de Cabo Verde). Da fundação à rutura, 1956-1980 », Lusotopie, XIX(1) | 2020, 126-129.
Référence électronique
Alexsandro de Sousa e Silva, « Ângela Benoliel Coutinho, Os dirigentes do PAIGC (Partido Africano para a independência da Guiné e de Cabo Verde). Da fundação à rutura, 1956-1980 », Lusotopie [En ligne], XIX(1) | 2020, mis en ligne le 02 janvier 2022, consulté le 13 décembre 2024. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lusotopie/4840 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.1163/17683084-12341753
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