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Les chroniques
Les comptes rendus

João Madeira, Irene Flunser Pimentel, Luís Farinha, Vítimas de Salazar. Estado Novo e violência política

Lisboa, Esfera dos Livros, 2007, 452 p.
Guya Accornero
p. 220-224
Référence(s) :

João Madeira, Irene Flunser Pimentel, Luís Farinha, Vítimas de Salazar. Estado Novo e violência política, prefácio de Fernando Rosas, Lisboa, Esfera dos Livros, 2007, 452 p., ISBN: 978-989-626-044-6.

Texte intégral

1Vítimas de Salazar representa a convergência do trabalho de três investigadores do Instituto de Historia Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, cujos interesses se têm concentrado seja na área da oposição ao Estado Novo, seja no campo das instituições do regime, de enquadramento e de repressão.

2O coordenador da obra, João Madeira, está a levar para frente uma tese de doutoramento sobre o Partido Comunista Português (PCP) entre 1943 e 1974, tendo no entanto publicado a monografia Os engenheiros de almas, o Partido Comunista e os intelectuais e vários ensaios sobre cultura política e resistência. Luís Farinha, por seu lado, tem analisado sobretudo a oposição de matriz republicana nos primeiros anos de ditadura, área em que publicou, entre outras contribuições, a obra Revoltas Republicanas contra a Ditadura e o Estado Novo (1926-1940).

3Respeito à terceira autora, Irene Flunser Pimentel, podemos dizer que o conjunto das suas obras é bastante vário, encontrando-se monografias como Judeus em Portugal durante a II Guerra Mundial, História das Organizações Femininas do Estado Novo e, mais recentemente, A História da Pide, cujo fio condutor pode ser individuado no gosto pela história narrativa, construída à volta de episódios exemplares mais que sobre uma elaboração de cariz interpretativa.

4Apesar de se tratar de uma obra colectiva – sendo claramente evidente a marca e a contribuição de cada autor – o livro é geralmente associado sobretudo a Irene Flunser Pimentel, inserindo-se de facto numa linha de continuidade da produção desta autora, continuidade que, em alguns casos, torna-se quase numa verdadeira sobreposição com outras obras, sobretudo com a sucessiva História da Pide (saída poucos meses depois).

5Esta consideração emerge não só analisando a documentação utilizada, frequentemente a mesma, mas também na repetição praticamente integral de inteiros parágrafos. É o caso, entre os muitos outros, da descrição dos homicídios « ilustres » cometidos pela PIDE, seja por « acaso », como o do escultor comunista José Dias Coelho e o do jovem estudante José Ribeiro dos Santos, militante do MRPP (Movimento Reorganizativo do Partido do Proletariado), seja planeados, como o de Humberto Delgado. A própria estrutura do texto aproxima-se de forma evidente daquela da História da Pide, sobretudo na organização em secções temáticas sobre, por exemplo, a tortura, as mortes violentas, os julgamentos políticos e as medidas de segurança.

6A obra é composta por dezassete capítulos, analisando aspectos específicos do mecanismo repressivo do Estado Novo, passando em resenha o seu alvo, os seus instrumentos e os seus agentes – mais ou menos formalizados – e as instituições que, embora não fossem originariamente predispostas por isso, como as Forças Armadas, acabaram por contribuir ao exercício da violência política contra a oposição. Entre os meios repressivos são assinalados a censura, os julgamentos políticos, as medidas de segurança, a deportação, os campos de concentração e o exílio, assim como outros menos « oficiais », antes de mais a tortura, depois as escutas telefónicas e a violação do correio, o saneamento na função pública, a manutenção do país num estado de pobreza, as cargas de polícia na rua e, finalmente, o assassinatos.

7O principal alvo de todas as formas de repressão citadas é individuado no PCP e, a partir da primeira metade dos anos Sessenta, em novos protagonistas da luta contra o regime : os movimentos estudantis, as organizações de extrema esquerda, sobretudo marxistas-leninistas e, já nos anos do marcelismo, os grupos de luta armada. A repressão contra os movimentos de libertação, eles também surgidos a partir dos anos Sessenta, é por outro lado, apenas mencionada, tratando-se de facto de um assunto que teria necessitado um espaço e uma investigação especial, que transcende a área de trabalho dos autores. Teria sido todavia útil explicitar melhor, na introdução, esta escolha e fundamentar as motivações pelas quais se excluiu da obra a área geográfica onde, muito provavelmente, a violência política do Estado Novo se exprimiu com maior intensidade.

8As fontes utilizadas são de vários tipo. Entre as fontes escritas, encontra-se sobretudo documentação pertencente ao Arquivo da Administração Interior, ao Arquivo da PIDE, ao Arquivo Oliveira Salazar e ao Arquivo Histórico Militar. São referidas também algumas fontes legislativas, sobretudo decretos-leis, sobressaindo todavia a completa ausência de qualquer referência a própria legislação penal e, porque não, civil. Ficam assim abertas algumas questões fundamentais sobre os instrumentos legais à base da violência política no salazarismo : há alguma continuidade jurídica neste sentido com a República ? O Estado Novo codificou novas normas para tornar mais autoritária a gestão da ordem pública ou foi suficiente uma diferente interpretação da legislação existente ? E qual era a ideologia jurídica à base do próprio conceito de segurança do estado ?

9Trata-se de facto de problemáticas que a literatura sobre o assunto tem enfrentado desde há alguns anos, sobretudo por parte dos estudiosos que se ocupam de movimentos sociais e das suas interacções com a política institucional e com a dimensão de policing protest. Podemos citar aqui alguns exemplos clássicos como as obras de Donatella della Porta e Herbert Reiter Policing Protest : The Control of Mass Demonstrations in Western Democracies (Social Movements, Protest, and Contention), Social Movement, Political Violence and the State : A Comparative Analysis of Italy and Germany e Polizia e protesta. L'ordine pubblico dalla Liberazione ai « no global ». Ainda que se trate de obras dedicadas a regimes democráticos, fornecem instrumentos teóricos e empíricos que, ao nosso ver, são muito importantes para definir a questão da violência política exercitada por parte do Estado.

10Sobretudo Polizia e protesta evidencia como uma gestão autoritária da ordem pública possa existir também em presença de instituições democráticas. Seria o caso da Itália do pós-guerra, em que a legislação penal e civil e as leis de pública segurança elaboradas durante o fascismo não foram praticamente modificadas, sem ter em conta o facto de, nos anos Sessenta, muitos funcionários de polícia e juízes estarem no topo de uma brilhante carreira começada mesmo durante o fascismo.

11Assim, se por um lado Vítimas de Salazar fornece um valioso instrumento de divulgação da pesquisa desenvolvida pelos autores sobre o Estado Novo, tendo a vantagem de reunir muita informação que até agora se encontrava dispersa, por outro, a nosso ver, não contribui à reflexão sobre os assuntos tratados. Isto deve-se, alem de que à falta de interpretação mais teórica, que já foi mencionada, à quase completa ausência da dimensão comparativa, seja com outros períodos da história portuguesa, seja com outros regimes autoritários – baseados nos mesmos princípios ou de marca oposta, como os da Europa de leste – seja, por fim, com os regimes democráticos.

12Este último ponto, que também foi já em parte debatido, parece-nos bastante fundamental, pois, se é verdade que, como salienta Fernando Rosas no Prefácio, não é útil criar um « violentometro » (p. 24) para medir o grau de violência política dos regimes, na nossa opinião seria oportuno determinar com maior clareza se existe e qual é a especificidade da violência política de um regime autoritário. Isso sobretudo porque muitas das formas de repressão policial mencionadas pelos autores de Vítimas de Salazar – e consideradas como peculiares do regime – podem ser encontradas em outros países democráticos, também em tempos recentes. Como salienta Diego Palácios Cerezales na sua recensão ao livro, as mortes violentas, devidas à repressão policial, são recorrentes nos países democráticos, citando o caso da Itália, em que entre 1948 e 1962 morreram, sob as balas dos carabinieri, cerca de cem manifestantes, a maioria jornaleiros e o da França, com o massacre de 17 de Outubro de 1961 ou da Grã-bretanha, com o domingo sangrento de 1972.

13Alem disso, na Itália do pós-guerra, que é a realidade sobre a qual temos mais conhecimentos, censura, informadores, escutas telefónicas, controlo político da oposição foram instrumentos constantes. Sem ser necessário, por averiguar esta situação, visitar em Roma os muito esclarecedores arquivos da Pública Segurança, teria sido suficiente ter em conta alguns dos vários livros que já foram publicados sobre o assunto, como as obras de Mauro Canali, de Guido Crainz, de Colarizi ou as citadas de Della Porta. Também não é possível esquecer, num eventual discurso comparativo respeito ao exercício da violência por parte do Estado, os recentes episódios de repressão que se verificaram em ocasião da reunião do G8 em Génova em 2001, em que, alem de todas as práticas mais violentas de gestão da « praça », foi abundantemente utilizada a tortura para com os manifestantes presos.

14Voltando ao Prefácio de Fernando Rosas, concordamos com a exigência de lutar contra o um certo revisionismo que existe em Portugal, assim como em Itália, virado a minimizar as responsabilidades e as consequências dos regimes autoritários e, ao mesmo, a desvalorizar a atitude de os que combateram contra eles. Todavia, achamos que o caminho para este trabalho, muito delicado, passe necessariamente por uma análise quanto mais rigorosa dos mecanismo e das estruturas mais profundas destes regimes e não por uma amplificação dos traços mais evidentes. A nosso ver, se nos limitarmos à simples exibição dos episódios e das práticas mais clamorosas corremos o risco de cair numa verdadeira falta de objectividade (se não em graves erros), sendo de facto sempre possível, como se viu, que episódios ainda mais violentos se tenham passado em algum lado e sob regimes completamente diferentes. Isso sim poderá, eventualmente, solicitar interpretações revisionistas.

15O mesmo discurso parece ser valido no que diz respeito ao capitulo sobre a censura, em que são sublinhados vários assuntos, ou até palavras, que teriam sido proibidas de comparecer na imprensa durante o Estado Novo, entre as quais, só para citar alguns exemplos, Partido Comunista, movimento estudantil, Picasso (p. 34). Este estudo, todavia, baseia-se apenas nas normas de censura estabelecidas, sem que o autor tenha desenvolvido uma contra-análise da própria imprensa, sendo de fato paradoxal que nenhuma fonte de imprensa se encontre mencionada nem no texto nem em nota.

16Na verdade, no principal diário conservador do país, o Diário de Notícias, que analisámos entre 1956 e 1974, não só aparecem frequentemente aqueles assuntos, mas também muitos outros que podem parecer inesperados. Assim, em 27 de Junho de 1957, um artigo do Diário de Notícias refere que Sartre, Picasso e Aragon se associam ao movimento internacional de protesto pela condenação à morte dos escritores húngaros e insurgem contra o regime comunista. Apenas três dias depois, a 27 de Junho, as páginas culturais daquele jornal são inteiramente dedicadas ao escritor neo-realista, que também pertenceu ao PCP, Mário Dionísio. Sem contar as muitas vezes que o PCP é directamente nomeado, claramente sempre em associação a alguma actividade criminosa, assim como movimento estudantil, estudantes ou subversão, todos conceitos que, a partir de 1962, recorrem com frequência nas paginas do Diário de Notícias. Lembra-se que se trata apenas de alguns dos inúmeros exemplos que se poderiam fazer.

17Parece evidente que, na vontade de demonstrar a intransigência do regime e a sua dureza e, com efeito, sustentar a declarada luta contra o revisionismo actualmente dominante, o autor tenha esquecido algumas basilares regras de cientificidade, fornecendo assim, a nosso ver, argumentos aos próprios revisionistas.

18Para concluir, embora João Madeira avise na Introdução de não esperar « encontrar aqui um estudo sobre a violência política no Estado Novo », acho que isto é mesmo o que o leitor espera encontrar – sobretudo considerando a segunda parte do próprio título : Estado Novo e Violência Política – e também o que realmente encontra. Todavia, falta completamente qualquer contextualização teórica do conceito de violência política, talvez também em relação ao conceito « irmão » de consenso, considerado, pela ciência política, a outra grande coluna sobre que se baseia qualquer regime. Continuar a evitar o discurso do consenso parece o outro lado da medalha de uma atitude que procura exagerar, até ao limite do erro, a utilização da violência e da repressão por parte do salazarismo, no medo de cair no revisionismo. Tendo presente quanto seja difícil um trabalho deste tipo, lembre-se o escândalo na Itália pós-fascista quando nos anos Sessenta Renzo de Felice começou a falar do consenso durante o regime, achamos todavia importante que a historiografia portuguesa comece a enfrentar este assunto, ainda que delicado e doloroso.

Novembro de 2008

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Bibliographie

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Pour citer cet article

Référence papier

Guya Accornero, « João Madeira, Irene Flunser Pimentel, Luís Farinha, Vítimas de Salazar. Estado Novo e violência política »Lusotopie, XVI(1) | 2009, 220-224.

Référence électronique

Guya Accornero, « João Madeira, Irene Flunser Pimentel, Luís Farinha, Vítimas de Salazar. Estado Novo e violência política »Lusotopie [En ligne], XVI(1) | 2009, mis en ligne le 22 novembre 2015, consulté le 13 janvier 2025. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lusotopie/473 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.1163/17683084-01601023

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Guya Accornero

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