A diáspora invisível?
Résumés
Cet article est fondé sur une recherche de terrain menée en République d’Afrique du Sud (RAS) en 2000, qui portait sur « La Communauté portuguaise de Johannesburg, 1974-2000 », centrée sur l’évolution du profil politique de la plus importante communauté portugaise du continent africain, et dont le point de depart était la Guerre Coloniale et la Révolution du 25 avril 1974. Du fait de son implantation dans un pays au régime condamné comme coupable de crime contre l’Humanité, cette communauté a souffert d’une image négative et entendue à tort comme un bloc homogène, sans qu’il soit tenu compte de sa diversité, surtout sur le plan générationnel. Dans la nouvelle RAS et au Portugal, ce noyau lusitanien reste virtuellement inconnu, l’objectif de cet article étant précisément de contribuer à une meilleure compréhension de sa trajectoire.
Plan
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As origens e a relevância da comunidade portuguesa
1A constituição da comunidade portuguesa na República da África do Sul (RAS) remonta à década de 1870, fruto da descoberta de riquezas minerais, estando estreitamente ligada aos madeirenses, os quais se radicaram inicialmente na província do Cabo, ingressando depois no Transvaal e Orange Free State. Com uma escassa escolaridade, estes pioneiros integraram-se sobretudo nos sectores pesqueiro, agrícola e pequeno comércio de distribuição, estabelecendo-se a maioria por conta própria. A segunda vaga migratória ocorreu quase um século depois, em meados da década de 1960, em virtude do processo de industrialização sul-africano, sendo composta por operários especializados com um grau de instrução básico ou intermédio, oriundos de Portugal continental, pontificando essencialmente nos sectores da construção civil e metalúrgico. O terceiro e último fluxo, em meados da década de 1970, refere-se aos refugiados de Angola e de Moçambique, que não foi contabilizado nas estatísticas oficiais, dado que estas cingiam-se ao movimento migratório legal a partir da metrópole.
Quadro I.— Origem regional da emigração portuguesa para a RAS, 1945-1992
Ano |
Madeira |
Continente* |
Total |
1945 |
210 |
||
1946 |
98 |
||
1947 |
32 |
||
1948 |
295 |
||
1949 |
208 |
||
1950 |
232 |
||
1951 |
351 |
||
1952 |
355 |
||
1953 |
269 |
26 |
313 |
1954 |
498 |
25 |
559 |
1955 |
845 |
101 |
1 025 |
1956 |
1 029 |
99 |
1 225 |
1957 |
554 |
120 |
757 |
1958 |
509 |
68 |
647 |
1959 |
567 |
81 |
729 |
1960 |
498 |
104 |
688 |
1961 |
916 |
137 |
1 126 |
1962 |
562 |
122 |
739 |
1963 |
224 |
305 |
699 |
1964 |
607 |
532 |
1 437 |
1965 |
366 |
1 597 |
2 802 |
1966 |
3 341 |
4 721 |
|
1967 |
142 |
1 230 |
1 497 |
1968 |
658 |
921 |
|
1969 |
519 |
713 |
|
1970 |
498 |
702 |
|
1971 |
249 |
339 |
|
1972 |
221 |
274 |
|
1973 |
148 |
154 |
359 |
1974 |
207 |
170 |
452 |
1975 |
76 |
90 |
217 |
1976 |
73 |
101 |
212 |
1977 |
34 |
144 |
209 |
1978 |
33 |
94 |
159 |
1979 |
79 |
62 |
164 |
1980 |
33 |
83 |
162 |
1981 |
370 |
422 |
|
1982 |
9 |
87 |
142 |
1983 |
58 |
101 |
|
1984 |
100 |
150 |
|
1985 |
101 |
125 |
|
1986 |
19 |
27 |
|
1987 |
5 |
20 |
27 |
1988 |
22 |
26 |
|
1989 |
1 006 |
||
1990 |
1 414 |
||
1991 |
757 |
||
1992 |
199 |
* somente os quatro distritos mais importantes
Nota : o total de indivíduos considerado pelas autoridades lusas no período de 1945 a 1988 ascende a apenas 26 648, por contemplar somente as saídas do território metropolitano. Os dados de 1989 a 1992 são do Departamento de Estatística Sul-Africano, sendo referidos no estudo de McDuling, mas não especificam a origem das pessoas, o mesmo sucedendo com os elementos de informação portugueses entre 1945 e 1952. As discrepâncias em termos de parciais e total geral derivam do número de pessoas cuja origem não foi explanada.
Fontes : Boletim Anual da Junta da Emigração (1952-1954), Boletim da Junta da Emigração (1955-1969), Boletim Anual do Secretariado Nacional da Emigração (1970-1972), Boletim Anual da Secretaria de Estado da Emigração (1973-1975), Boletim Anual da Secretaria de Estado da Emigração e Comunidades Portuguesas (1976-1985), Boletim Anual da Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas (1986-1988), A.J. McDuling, Language Maintenance and Shift in the Portuguese Community of Johannesburg, tese de mestrado, University of South Africa, Pretória, 1995 : 194.
- 1 Consultar L. Leal, Breve História dos Portugueses na África do Sul, Potchefstroomse Universiteit v (...)
2Em termos de distritos de origem, no período em apreciação e de acordo com os boletins oficiais portugueses acima referidos, o Ministério dos Negócios Estrangeiros – dados de 1991 – e a pesquisa de terreno efectuada em 2000, os madeirenses eram essencialmente provenientes do Funchal, enquanto no que respeita ao continente, o fluxo migratório abrangeu sobretudo o Porto, Lisboa, Aveiro, Castelo Branco, Leiria, Santarém, Braga, Bragança, Setúbal, Faro, Guarda, Coimbra e Viseu. Como as estimativas oficiais portuguesas não contemplavam os que demandavam a RAS a partir das ex-colónias, só é possível clarificar que, segundo dados da Maatskappi vir Europese Immigrasie, entidade que prestava auxílio aos imigrantes, entre 1950 e 1972 ingressaram na RAS pouco mais de 41 000 portugueses – atestando as incongruências estatísticas existentes – dos quais cerca de 9 000 residindo anteriormente na Madeira, 11 000 em Moçambique e 21 000 no continente1. De acordo com o Quadro IV, em termos de totais globais proporcionados pela rede diplomática portuguesa em 1991, existiriam então cerca de 310 000 pessoas de origem portuguesa na RAS, das quais 183 672 pertencentes à primeira geração e 126 252 luso-descendentes.
- 2 Entrevista com Mário Silva, Vice-Cônsul de Portugal em Pretória, 14 de Julho de 2000.
3Ao contrário dos madeirenses e dos continentais, os refugiados foram impelidos a estabelecerem-se na RAS devido à descolonização, assegurando um diplomata directamente envolvido na sua recepção que terão ascendido a 70 000 ou 80 000 pessoas2, muitas das quais detendo habilitações de nível médio e superior, o que lhes permitiria complementar as actividades profissionais dos protagonistas dos fluxos antecedentes, mormente ao nível da docência e dos serviços. Desta forma, os diferentes fluxos migratórios não provocaram propriamente uma concorrência económica no seio da comunidade, mas antes uma subsidariedade.
Quadro II.— Actividade profissional dos Portugueses na RAS (por sector de actividade, 1977-1990)
Percentagens |
Sectores |
24 % a 35 % |
construção civil |
19 % |
indústria |
6 % |
agricultura |
33 % a 35 % |
comércio |
30 % a 35 % |
ocupações diversas |
Nota : a indústria refere-se à metalomecânica e à mineira, enquanto o comércio abrange proprietários de mercearias, cafés e seus empregados, abarcando as ocupações diversas docentes, profissionais liberais, contabilistas, etc.
Fontes : The Star, 3 de Fevereiro de 1988, s.p. ; Popular, 28 de Abril de 1978 : 1 ; Boletim Informativo da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Sul-Africana, Maio-Junho de 1984, 16 : 46 ; O Século de Joanesburgo, 14 de Março de 1983 : 1-8 ; Sunday Times, 30 de Junho de 1990, s.p. ; V. Pereira da Rosa & S. Trigo, Portugueses e Moçambicanos no apartheid : da Ficção à Realidade, Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, Porto, 1986 : 96, C. Bártolo, Portugal no Mundo, Joanesburgo, Edição do Autor, 1980, s.p. Quadro adaptado.
Quadro III.— Domínio sectorial da Comunidade
85 % do comércio de produtos agrícolas é detido pelos portugueses
45 % dos cigarros que se consomem no país são comercializados por portugueses
70 % das licenças de bebidas alcoólicas são de portugueses
100 % da pesca do atum e 50 % da de lagosta na Cidade do Cabo são dominadas por portugueses
Fontes : Boletim Informativo da Câmara de Comércio e Indústria Luso-Sul-Africana, Maio-Junho de 1984, nº 16, p. 46, Sunday Times, 30 de Junho de 1990, s.p., Expresso, 15 de Junho de 1991, p. 12, O Século de Joanesburgo, 19 de Julho de 1993, p. 8 e Sunday Times de 7 de Junho de 1992, s.p. Os produtos agrícolas são sobretudo legumes, hortaliças, fruta e refrigerantes.
- 3 A dissertação original, mencionada no Sumário, aborda em profundidade todas estas vertentes.
4A quantificação da comunidade sempre foi problemática, uma vez que só na década de 1940 Portugal começou a proceder à agregação sistemática de dados sobre a emigração, sendo que, desde os seus primórdios, os registos diplomáticos nunca corresponderam à real dimensão deste núcleo, devido aos numerosos clandestinos e ao facto de muitos expatriados não procederem ao registo consular. A título de exemplo, em 2000 a Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas aventou, na sua página de internet, que a comunidade seria composta por 300 000 indivíduos, mas deixou em aberto a possibilidade de serem 500 000, o que significa um hiato de 200 000 pessoas. De qualquer forma, como demonstram os quadros seguintes, a esmagadora maioria da comunidade concentrou-se em Joanesburgo, emergindo no processo pólos residenciais tipicamente lusos no centro, sul e leste desta urbe – o portuguese belt – aí se reproduzindo as tradições e a cultura do país e zona de origem, incluindo na vertente religiosa3.
Quadro IV.— Comunidade portuguesa residente na RAS (por área consular, 1991)
Gerações |
Área Consular |
Registos |
Estatísticas Oficiais |
1ª Geração |
Cabo |
12 000 |
|
Durban |
8 272 |
||
Pretória |
20 000/25 000 |
||
Joanesburgo |
143 400 |
||
2ª-3ª Gerações |
Cabo |
20 000 |
|
Durban |
1 252 |
||
Pretória |
5 000 |
||
Joanesburgo |
100 000 |
Fonte : Ministério dos Negócios Estrangeiros, Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, Instituto de Apoio à Emigração e às Comunidades Portuguesas, segundo inscrições consulares e estimativas da Embaixada e Consulados de Portugal na África do Sul, referentes a 1991. Quadro adaptado.
Quadro V.— Origem geográfica dos portugueses e luso-descendentes na RAS (por área consular, 1993)
Origem |
Área Consular (%) |
||||
Pretória |
Durban |
C. do Cabo |
Joanesburgo |
||
Madeira |
45,0 |
14,0 |
85,0 |
50,0 |
|
Continente |
55,0 |
17,0 |
15,0 |
37,0 |
|
Angola |
3,0 |
||||
Moçambique |
16,0 |
10,0 |
Fonte : Ministério dos Negócios Estrangeiros, Secretaria de Estado das Comunidades Portuguesas, Instituto de Apoio à Emigração e às Comunidades Portuguesas, 1991. Quadro adaptado. Tendo estes dados sido considerados para publicação em Novembro de 2000 (ver A. Pina, « Portugueses na África do Sul », in Janus 2001. Anuário de Relações Exteriores, Público e Universidade Autónoma de Lisboa, Lisboa, Novembro de 2000, p. 156), assume-se que têm tido validade ao longo de toda a década de 1990. No entanto, é suficiente referir que não é credível que não existam pessoas oriundas das ex-colónias em Pretória, bem como o facto de não ter sido identificada mais de metade da comunidade radicada em Durban.
Portugal e a África do Sul no contexto internacional
- 4 Consultar J. Baptista Júnior, A Comunidade Portuguesa na República da África do Sul : « Nação Pere (...)
- 5 Ver Notícias da África do Sul, Ano 19, nº 271, Embaixada da RAS, Lisboa, Junho de 1969 : 4-5.
- 6 O Século de Joanesburgo, 30 de Abril de 1974 : 9. Ênfase acrescentada.
- 7 Diário de Lisboa de 9 de Outubro de 1974 : 1.
5Em meados do século XX, Portugal e a RAS debatiam-se com problemas similares face à Organização das Nações Unidas (ONU), devido, respectivamente, às províncias ultramarinas, ao domínio sobre o Sudoeste Africano e à política de apartheid. No contexto da Guerra Fria, em 1960 avolumou-se a resistência interna ao regime sul-africano e, em 1961, iniciou-se o conflito colonial luso, tendo como protagonistas movimentos africanos com laços entre si e os soviéticos. A frontal rejeição da ideologia marxista-leninista, por parte de Lisboa e Pretória, instou a um cerrar de fileiras face a uma ameaça considerada comum à sua presença em África4. Neste enquadramento, os sul-africanos europeus e a diáspora lusa na RAS constituíram-se como uma segunda rectaguarda de uma guerra colonial formalmente portuguesa mas também sul-africana, o que se reflectiu na emergência, nesta sociedade civil, do Fundo de Apoio aos Militares de Moçambique, do Fundo dos Soldados Portugueses e do Southern Cross Fund, que angariavam donativos para as tropas do front5. Esta situação manteve-se até à revolução de 25 de Abril de 1974, que se repercutiu na África Austral e em que se destacou o General António de Spínola, o qual preconizava o fim das hostilidades e « a sobrevivência da nação como pátria soberana, no seu todo pluricontinental »6. Para tal, reconhecendo o princípio da autodeterminação, propunha que o futuro das províncias ultramarinas fosse decidido através de um referendo, abrangendo residentes africanos e europeus. No entanto, esta consulta nunca se realizou, ascendendo ao poder as guerrilhas « marxistas », como o Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA) e a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), o que ditaria um ulterior isolamento do regime de Pretória, pela primeira vez condenado por Portugal7, que passaria a contar apenas com um aliado na região : a Rodésia.
- 8 Consultar Rand Daily Mail, 6 e 7 de Abril de 1977, s.p. e The Star, 19 de Maio de 1978, s.p.
- 9 O Século de Joanesburgo, 29 de Março de 1976 : 15 e 27 de Fevereiro de 1978 : 1.
- 10 Popular, 2 de Dezembro de 1977 : 1-2 e The Star, 20 de Março de 1982, s.p.
6Inicialmente considerada positiva pela maioria da comunidade portuguesa, a percepção desta sobre a revolução alterar-se-ia devido à forma como se efectuou a descolonização, cujas consequências os refugiados personificavam. Na psique comunitária, os eventos fundiram-se, reverberando politicamente, fenómeno potenciado pelo final do império ter resultado não de uma derrota bélica mas de um processo político enfermando de incumprimento, promovido por militares e partidos ligados aos soviéticos, de que as guerrilhas eram consideradas ramificações. A revolução ficou assim indelevelmente ligada a uma descolonização penosa, a sentimentos de traição e abandono, originando uma aversão duradoura face a executivos de esquerda. É neste cenário que Portugal emerge no epicentro da Guerra Fria, temendo-se uma guerra civil pelo controlo do Estado devido à radicalização partidária, que conduziria ao exílio de Spínola e a paralelismos na comunidade, convicta de que o inimigo era o marxismo-leninismo, sendo a oposição a tal ideologia entendida como sinónimo de patriotismo, enquanto em Portugal significou o seu etiquetar como « reaccionária » e, devido ao apartheid, « racista ». Apesar do novel acesso a direitos cívicos no tocante a Portugal, a maioria dos expatriados na RAS nunca tinha participado na política do país natal ou de acolhimento, devido à natureza dos regimes, não possuíndo qualquer experiência nesta esfera, o que explica o usualmente ínfimo número de recenseados na rede consular e uma postura de inacção generalizada. A descolonização e a influência de Moscovo em Portugal despertariam politicamente parte da comunidade, materializando-se em entidades como o Círculo D. António Prior do Crato e a Frente Lusíada Anti-Marxista da África do Sul, visando criar células anti-comunistas. Para tal contribuiu o clima de suspeita que se vivia na RAS, cujas autoridades, após a revolta estudantil de 1976, ponderaram intimar os imigrantes europeus a participarem, com armas, na defesa do país8. Este instar a um compromisso reflectiu-se no apoio comunitário ao Southern Cross Fund, que redireccionou esforços para os soldados rodesianos e depois para os sul-africanos em missão nas fronteiras, que desde 1978 incluiriam jovens de origem lusa, incorporados após alterações à lei da nacionalidade9. Entretanto, à semelhança de outros núcleos, como os gregos e italianos, esta pressão conduziu alguns portugueses, sem direitos políticos e cuja motivação primordial continuava a ser socioeconómica, a efectuar doações monetárias e a auxiliar campanhas do National Party (NP)10.
- 11 Este valor, referente a 1980, não deve ser entendido como dogmático, devido à politização dos núme (...)
- 12 Ver O Século de Joanesburgo, 12 de Março de 1979 : 8, 7 de Setembro de 1981 : 7 e Panorama (Lisboa (...)
- 13 Consultar O Século de Joanesburgo, 21 de Dezembro de 1981 : 20.
- 14 O Século de Joanesburgo, 1 de Dezembro de 1986 : 24.
- 15 The Citizen, 11 de Junho de 1984, s.p. ; Panorama, 81, Abril de 1984 : 12.
- 16 O Século de Joanesburgo, 23 de Março de 1987 : 24.
7Em 1980, o Partido Social Democrata (PSD), que recolhia as preferências comunitárias, venceu as legislativas portuguesas, tendo o executivo de Francisco Sá Carneiro, apesar de crítico do regime de Pretória, iniciado uma política de apaziguamento. Os cerca de 500 000 cidadãos11 na RAS – então dotados de um órgão de representação e aconselhamento, cujo equivalente sul-africano era o Directório Para os Assuntos Portugueses – ditaram esta opção, abstendo-se Portugal de votar contra a política de apartheid na Comissão dos Direitos Humanos da ONU12. A morte precoce do líder do governo, a eleição do General Ramalho Eanes para a Presidência da República e a acção das Forças Populares 25 de Abril contribuiriam para um estado de alerta face à política lusa. Tal espelhou-se nas reacções à visita de Eanes a países da Linha da Frente, em 1981, entre os quais Moçambique, originando azedume nos sectores da comunidade em cuja memória perdurava a expulsão dos portugueses pela Frelimo13. E quando Portugal recusou o visto ao Ministro da Defesa, General Magnus Malan, recordou-se que « tem a seu cargo cerca de 10 000 jovens [militares] portugueses »14. A gratidão para com o país anfitrião traduzia-se numa lealdade dos expatriados, que se consideravam « hóspedes », o que explica a necessidade que sentiam de defender a RAS face a actores internos – como o African National Congress (ANC) – e externos, mesmo que tal implicasse ir contra as mais altas instâncias de Portugal, algo facilitado pelo fosso ideológico. É neste plano que devem entender-se os elos entre personalidades da comunidade e o NP, que foram adquirindo consistência, potenciados por pressões governamentais pontuais, derivando em apoios financeiros e numa abertura aos naturalizados, como o empresário Giorgio Pagan, convidado por Pik Botha a concorrer às eleições de 6 de Maio de 1987. No slogan « Reformas Sim, Rendição Não » já se anteviam alterações de vulto, sublinhando-se que só o NP transformaria a RAS sem comprometer a segurança e a estabilidade, enquanto Pagan apelava ao voto luso, grego, italiano e judaico15. O NP recorreu então pela primeira vez à imprensa comunitária, estabelecendo paralelos com a descolonização, emergindo a estabilidade como o factor crucial16. E esta era conotada com um apoio dos que podiam votar – que não tinham conhecido outro executivo sul-africano – ao NP, para evitar um caos similar ao ocorrido em Angola e Moçambique.
O fim da Guerra Fria e do apartheid
- 17 O Século de Joanesburgo, 14 de Novembro de 1988 : 17.
- 18 Sunday Times, 13 de Agosto de 1989, s.p. ; O Século de Joanesburgo, 28 de Agosto de 1989 : 5 e 4 d (...)
- 19 C.D. Schutte, The Adaptation to South Africa and Attitudes Regarding Re-emigration from the Countr (...)
- 20 Consultar D.C. Groenewald & L. Smedley, Attitudes of the White Population in South Africa Towards (...)
8Temendo que o retorno da maior diáspora em África constituísse uma replicação do êxodo colonial, Portugal rejeitou a estratégia de sanções, privilegiando o diálogo e uma solução de compromisso face a Pretória. Em 1988, George Bush adoptou uma atitude consentânea com esta posição, defendendo o término « do apartheid [e uma] mudança pacífica »17. Tal coincidiu com a ascensão de F.W. De Klerk a líder do NP, o qual, afinando pelo novo diapasão internacional, preconizava « Renovação, Paz e Prosperidade » na campanha legislativa de 6 de Setembro de 1989, que registaria uma inédita competição pelo eleitorado comunitário, composto por luso-descendentes e naturalizados, tendo o Conservative Party (CP) e o Democratic Party (DP) procurado explorar também o trauma da descolonização18. Surge então o mais relevante estudo oficial sobre a comunidade, solicitado pelo Department of Home Affairs19, centrado em cerca de 1 100 portugueses, 44,6 % dos quais consideraram correctas as políticas raciais, condenadas por 6,7 %, tendo 48,7 % evitado categorizá-las. O sistema de 1 homem, 1 voto só seria aprovado por 3,7 %, opondo-se 60 % e elevando-se os indecisos a 36,3 %. A comparação da liberdade política sentida em Portugal e na RAS denota os constrangimentos inerentes ao questionário, agregando o primeiro 34,5 % das preferências e a última 26,9 %, não respondendo 38,3 % dos inquiridos. Outro indício prende-se com as atitudes dos sul-africanos, surgindo as negativas como quase residuais, o que está longe da realidade20. Finalmente, Schutte concluiu que a política suscitava interesse em 38 % da amostra, que abarcava apenas 8,4 % de naturalizados, pelo que o principal eleitorado-alvo seriam os luso-descendentes.
- 21 Ver Jornal de Notícias, 20 de Fevereiro de 1991 : 7 ; The Star,7 e 21 de Abril de 1990, s.p.
- 22 Entrevista com José Nascimento e António Ramos, em Joanesburgo, 28 de Junho de 2000.
- 23 Entrevista com António de Gouveia, em Joanesburgo, 30 de Junho de 2000. Ver ainda J. Gomes Cravinh (...)
- 24 Consultar J. Gomes Cravinho, « La Communauté Portugaise dans la Nouvelle Afrique du Sud », Lusotop (...)
9Até 1990, os contactos políticos visíveis cingiam-se a elementos da primeira geração, dos sectores empresarial e associativo, sendo usual a acumulação com a função de conselheiro e, nalguns casos, de representação de partidos portugueses numa só pessoa, um líder comunitário. Seria em ruptura com esta hegemonia e devido a uma imagem pouco abonatória da comunidade que os luso-descendentes Maria Castro-Moura, António de Gouveia e José Nascimento criariam a Democratic Initiative of the Portuguese in South Africa (DIPSA), para promover o envolvimento nas transformações democráticas e relações com as forças políticas sul-africanas21. Apesar de existirem portugueses que refutavam o apartheid, votando no Progressive Federal Party, cujo herdeiro seria o DP22, até então esta posição não se expressara de forma aberta e institucional. Esta foi uma afirmação de diferença numa comunidade politicamente inerte mas tida como monolítica e, como tal, conotada com o NP, sendo vista como uma dissidência indesejável pelos seus líderes, originando pressões sobre a cúpula da DIPSA, que soçobraria em 199123. Cravinho sublinhou as interdependências comunitárias e as orientações dos seus representantes, que favoreciam o amorfismo e um apoio inconspícuo ao NP24. Mas tanto ao nível de verbas como de votos aquele só poderia provir de um reduzido sector, dado que a esmagadora maioria não possuía direitos políticos nem condições económicas – e muito menos interesse – para tal.
- 25 O Século de Joanesburgo, 30 de Julho de 1990 : 12 ; Público, 15 de Abril de 1991 : 44 ; The Citize (...)
- 26 Ver F.W. De Klerk, The Last Trek – A New Beginning, The Autobiography, Londres, MacMillan, 1998 : (...)
- 27 O Século de Joanesburgo, 9 de Setembro de 1991 : 5.
- 28 O Século de Joanesburgo, 2 de Março de 1992 : 2.
- 29 O Comércio do Porto, 26 de Maio de 1991 : 10 ; O Dia de 8 de Janeiro de 1993 : 24.
10Entretanto, em 11 de Fevereiro de 1990 Mandela é libertado, iniciando-se negociações constitucionais, verificando-se um crescendo da violência étnica, política e social, que pontualmente afectava a comunidade, a única sem qualquer canal aparente de contacto com o ANC. Mandela procurou envolvê-la no processo de reconciliação sul-africano, considerando-a crucial para a edificação de uma nova sociedade, sendo esta mensagem replicada pelo Inkatha Freedom Party (IFP), South African Communist Party (SACP), NP e Lisboa, que temia um isolamento político dos portugueses25, o núcleo de imigrantes europeus mais numeroso da RAS e cujo déficit de integração nesta esfera era óbvio. O seu poder económico, fundamental para travar a degradação das condições de vida, constituiria a via escolhida para corresponder a esta chamada de participação, surgindo em 1990 o Grémio de Empresários de Língua Portuguesa da África Austral (GELPAA) e a Associação de Jovens Empresários e Profissionais Portugueses (AJEPP), por iniciativa de elementos da primeira geração e luso-descendentes, respectivamente. Mandela continuou a dialogar com a comunidade, refutando cenários de expropriações, mas esta mostrava-se inquieta com a dinâmica política, dado que, apesar do estabelecimento de uma paz social mínima entre o NP, ANC e IFP, em Setembro de 199126, forças como a Azanian People’s Organisation, o Herstigte Nasionale Party, o CP e o Afrikaner Weerstandsbeweging (AWB) continuavam à margem das conversações, ulteriormente denominadas Convention for a Democratic South Africa. Alguns grupos populacionais tendiam para uma solução federalista, emitindo diversos afrikaners que clamavam por um território próprio ameaças de uma « terceira revolução boer »27. Face ao espectro de uma guerra civil, De Klerk convoca um referendo, ainda restrito a brancos, para auscultar o real apoio à prossecução das reformas. Agendada para 17 de Março de 1992, a consulta teria como potenciais intervenientes « cerca de 20 % [da comunidade, pois] somente os cidadãos sul-africanos [tinham] acesso ao voto »28, obtendo De Klerk a confiança de 68 % do eleitorado. Seria neste período que a Comunidade Europeia, cuja presidência Portugal exercia, levantaria as sanções à RAS, num contexto em que na diáspora lusa a aceitação das transformações começava a ser evidente29, o que contribui para as reservas quanto às conclusões de Schutte.
O período de transição
- 30 O Século de Joanesburgo, 1 de Março de 1993 : 12.
- 31 Segundo O Século de Joanesburgo, 3 de Maio de 1993 : 3.
- 32 Consultar, por exemplo, O Século de Joanesburgo, 14 de Junho de 1993 : 6.
- 33 Cf. D. O’Meara, Forty Lost Years : The Apartheid State and the Politics of the National Party, 194 (...)
11Em Fevereiro de 1993, elementos do ANC reuniram-se com empresários sul-africanos no Carlton Centre, em Joanesburgo, procurando criar na sociedade civil um espírito de confiança. Neste fórum esteve presente uma delegação da AJEPP30, então liderada por Manuel Moutinho, um empresário do Porto naturalizado sul-africano, que vivera em Moçambique até 1974. A percepção de que os ex-refugiados eram politicamente mais dinâmicos, pelo menos até à década de 1990, consolida-se quando se constata o seu assinalável peso nos media comunitários e o perfil dos que efectuaram incursões na política. Nas listas do NP às eleições municipais de 27 de Maio de 1993 surgiu Paulo Andrade, um estudante de advocacia português de 22 anos nascido em Moçambique, radicado na RAS desde 1975 e o mais jovem candidato de sempre a uma vereação na autarquia de Joanesburgo. Militante do NP desde finais de Outubro de 1989, edificara a sua carreira política em Turffontein, no sul da cidade, zona de grande concentração de portugueses, ascendendo a presidente da juventude do NP, a membro do comité executivo do partido no Transvaal e da equipa responsável pela coordenação da estratégia eleitoral nacional31, o que constitui um reconhecimento da importância política que o NP foi concedendo à comunidade, em particular aos seus jovens. Tal também se reflectiu em diversas sessões de esclarecimento especificamente dirigidas a estes, promovidas por partidos políticos da RAS e de Portugal, a par de uma miríade de entidades da comunidade32, espelhando as transformações que esta atravessava, num contexto em que os níveis de violência política atingiam novos píncaros, salientando-se o assassinato do Secretário-Geral do SACP, Chris Hani33. Esta turbulência influenciou as estratégias das várias forças políticas sul-africanas que, reconhecendo que o melhor contributo da comunidade para uma nova sociedade residia essencialmente na vertente económica, procuravam dirimir os seus receios e evitar um êxodo generalizado, que teria consequências nefastas para o tecido empresarial do país. Neste sentido, Mandela prosseguiu os seus contactos com a comunidade, visando a sua estabilização, visitando oficialmente Portugal em Outubro de 1993 e assegurando que as minorias nada tinham a temer. No entanto, a situação político-social era explosiva.
- 34 The Star, 5 de Fevereiro de 1993, s.p.
- 35 Sunday Times, 14 de Fevereiro de 1993, s.p. ; Notícia, III (26), Março de 1993 : 19 ; Semanário, 1 (...)
12Numa conjuntura em que se discutia seriamente a possibilidade de fundar um Estado afrikaner e ponderando os boers cenários de conflito armado, estes denotaram um inusitado interesse nos estrangeiros europeus, procurando apoios segundo linhas raciais. Abandonando a anterior postura xenófoba para com os portugueses, o AWB centrou-se nas sequelas da descolonização, gravadas no colectivo comunitário e recorrentes nos momentos de maior incerteza34. O aluguer de instalações associativas ao AWB, em Joanesburgo e Pretória, expôs negativamente a comunidade, conotando-a com Eugene TerreBlanche. Na realidade, só um português participou nas actividades, um kommandant do AWB, José Ferreira, algo que se enquadrava numa tentativa de recrutamento de imigrantes – incluindo italianos e gregos – para as fileiras dos afrikaners conservadores, organizados em Wenkommandos, ou esquadrões, sendo que o seu líder em Joanesburgo, o General Japie Oelofse, afirmava possuir 200 « soldados » portugueses35. Toda esta situação surpreendeu a comunidade, cujos representantes, a par de Portugal, repudiaram liminarmente quaisquer afinidades com o AWB.
- 36 Ver The Star, 6 de Outubro de 1993, s.p. ; Diário de Notícias, 27 de Outubro de 1993 : 5 ; O Sécul (...)
13É neste ponto que emergem novos pólos de contacto entre a classe política sul-africana e a comunidade, mormente o órgão representativo desta – então denominado Conselho de País – a AJEPP e alguns militantes portugueses do ANC até então desconhecidos, como Tony Pestana e Maria Ramos36.
A primeira geração, os luso-descendentes e a democracia sul-africana
- 37 O Século de Joanesburgo, 21 de Fevereiro de 1994 : 7.
- 38 O Século de Joanesburgo, 31 de Janeiro de 1994 : 5
- 39 Entrevista em Joanesburgo, 30 de Junho de 2000.
- 40 O Século de Joanesburgo, 17 de Junho de 1991 : 21 e Wilkins, Ivor & Strydom, Hans, The Broederbond(...)
- 41 Consultar S. Terreblanche & S. Friedman (eds.), The Long Journey : South Africa’s Quest for a Nego (...)
- 42 The Star e The Citizen, 3 de Março de 1994, s.p. ; O Século de Joanesburgo, 7 de Março de 1994 : 4 (...)
- 43 Entrevista com António de Gouveia, ex-Vice-Presidente do LUSAP, em Joanesburgo, 30 de Junho de 200 (...)
- 44 The Star, 3 de Março de 1994, s.p. ; O Século de Joanesburgo, 28 de Março de 1994 : 32.
- 45 Diário de Notícias, 19 de Março de 1994 : 17.
- 46 Entrevista com Manuel Moutinho, ex-Presidente do LUSAP, em Joanesburgo, 4 de Julho de 2000.
- 47 Documento Oficial do LUSAP, datado de 1994.
- 48 Entrevista com António de Gouveia em Joanesburgo, 30 de Junho de 2000.
- 49 Documento de A Capital remetido ao LUSAP em 19 de Março de 1994 : 2 ; O Século de Joanesburgo, 7 d (...)
14Entretanto, no final de 1993 e, segundo De Klerk, « em reconhecimento pelo contributo dado ao país pelos imigrantes »37, o executivo do NP decidiu outorgar um direito de voto alargado a todos os indivíduos maiores de idade, sul-africanos ou estrangeiros com o estatuto de residentes permanentes38. Esta situação excepcional, centrada nas eleições multiraciais de 27-29 de Abril de 1994, possibilitava pela primeira vez à esmagadora maioria da comunidade, nomeadamente aos portugueses que não se tinham naturalizado sul-africanos, a participação na política da RAS. E seria neste contexto que os luso-descendentes registariam um novo ímpeto, sendo possível identificar 3 fases sequenciais do seu activismo : a primeira marcada pela DIPSA, a segunda pela AJEPP e a terceira pelo Luso South African Party (LUSAP), tendo António de Gouveia pontificado em todas as iniciativas. Após o ocaso da DIPSA, da qual foi co-fundador, Gouveia presidiu aos destinos da AJEPP entre 1990 e 1991, mantendo a agenda de interacção sociopolítica com a sociedade sul-africana39, considerando esta agremiação de jovens empresários um projecto complementar à DIPSA. Esta subsidariedade expressar-se-ia na ideia de uma Lusobond, um lobby luso similar à Afrikaner Broederbond, cujos objectivos eram basicamente o empowerment económico, político e social deste grupo étnico40. Manuel Moutinho sucederia a Gouveia na gestão da AJEPP e, em face da concessão de direitos políticos explicitada e do sistema proporcional então adoptado, que previa que os partidos com 5 % dos votos teriam assento no Parlamento41, ambos constataram que tinham reais chances de representar directamente os portugueses como deputados, a nível nacional e na região de Pretória-Witwatersrand-Vereeniging42. Seria com esta ambição que fundariam o LUSAP, em 27 de Fevereiro de 1994, com sede em Rosettenville, no sul de Joanesburgo. Moutinho e Gouveia estavam cientes da turbulência que iriam causar, esperando incompreensões quanto aos seus desígnios. Na verdade, esta era a primeira formação política com uma identidade portuguesa a emergir na diáspora lusa mundial, sendo mesmo categorizada pelos media sul-africanos como um partido português43. Para tal contribuiria a sua denominação, apesar de uma tentativa de enfoque no luso-sul-africanismo, noção difusa que tanto parecia reduzir-se à comunidade lusa como se alargava aos que partilhavam a sua língua na RAS, como moçambicanos, angolanos e brasileiros44. Os dirigentes do LUSAP estimavam que este potencial eleitorado, centrado prioritariamente na comunidade mas de cariz multi-étnico e racialmente diverso, ascendia a cerca de 700 000 pessoas45. Para além da defesa da democracia e da inclusão identitária, a ideologia revelou-se igualmente de difícil definição, uma vez que a visão que tinha presidido à criação do partido tinha sido a da representatividade comunitária46. Neste sentido, o LUSAP não possuía uma mensagem politicamente sólida, emitindo nos seus lemas « Na Mudança, Participação Total [e] Vamos Evitar a Maioria Absoluta »47 do ANC, sinais similares às de outros partidos sul-africanos. Apesar dos escassos meios à sua disposição, Moutinho e Gouveia realizaram acções de campanha em cidades do Gauteng, Free State e KwaZulu-Natal, incluindo nas zonas mineiras, onde residiam muitos moçambicanos, procurando neste caso um voto linguístico e não étnico48. Não obstante a ideia basilar ser a integração dos luso-sul-africanos na política do que, para muitos, era o país natal, a interpretação de Pretória e de Lisboa foi exactamente oposta, considerando o LUSAP um partido étnico que marginalizava a comunidade e contrariava a multiculturalidade, não sendo de menosprezar o facto de que também almejava atrair eleitores do NP49.
- 50 Cf. Documento Oficial do NP de Abril de 1994 : 1 ; O Século de Joanesburgo, 25 de Abril de 1994 : (...)
- 51 O Século de Joanesburgo, 14 de Março de 1994 : 4 ; Documento Oficial do DP de Abril de 1994 ; The (...)
- 52 Conselho de País da RAS, Relatório Sobre as Reuniões com os Partidos Políticos da República da Áfr (...)
- 53 O Século de Joanesburgo, 11 de Abril de 1994 : 6.
- 54 O Século de Joanesburgo, 2 de Maio de 1994 : 16-24.
15Partindo do reconhecimento da inviabilidade do apartheid mas acenando com o espectro de um totalitarismo socialista, devido à aliança entre o ANC e o SACP, o NP manteve um discurso centrado na estabilidade e no delinear de um novo futuro, lembrando que fora o próprio a iniciar o processo de reformas e a permitir o voto da comunidade50. Entre os candidatos do NP figurava Andrade, então vice-presidente nacional da juventude, enquanto nas fileiras do DP emergia o luso-descendente João Azevedo, dirigente juvenil deste partido no Gauteng, que procurou uma colagem ao PSD, tradicionalmente apoiado pela comunidade51. A questão das minorias esteve omnipresente, apresentando-se diversas forças políticas como suas defensoras, preconizando o CP uma união de contornos raciais que contemplava mesmo uma inclusão dos sul-africanos de origem lusa num Volkstaat – Estado afrikaner – seguindo uma linha similar à do AWB no sentido da diluição das fronteiras identitárias52. Quanto ao Freedom Front (FF), liderado pelo General Constand Viljoen, tal como o NP optou por uma mensagem em torno da estabilidade, acrescentando-lhe os traumas da descolonização53. Constatando-se que as várias campanhas exerciam uma escassa atracção sobre os portugueses, é no entanto provável que muitos tenham optado por votar pela primeira vez, estimulados pelos inusitados direitos cívicos, pelos apelos à integração na vida política e, sobretudo, pela importância do sufrágio. Efectivamente, mais do que competir com o ANC pela liderança do Estado, o que estava em causa era impedir uma maioria qualificada, que lhe permitiria alterar a Constituição. Tal cenário contrariava o desejo generalizado de equilíbrio político, o que terá favorecido o NP, o segundo partido mais votado54.
Quadro VI.— Resultados provinciais dos principais partidos
nas eleições de Abril de 1994 ( %)
Províncias |
ANC |
NP |
IFP |
FF |
DP |
PAC |
Eastern Cape |
84,39 |
10,60 |
0,24 |
0,65 |
1,24 |
1,99 |
Eastern Transvaal |
81,87 |
10,27 |
1,59 |
3,51 |
0,42 |
1,36 |
KwaZulu-Natal |
31,61 |
15,75 |
48,59 |
0,46 |
1,61 |
0,62 |
NorthWest |
83,46 |
10,10 |
0,45 |
3,10 |
0,37 |
- |
Northern Cape |
49,81 |
41,94 |
0,47 |
4,32 |
1,29 |
0,97 |
Northern Transvaal |
92,73 |
3,64 |
0,15 |
1,51 |
0,16 |
1,05 |
Orange Free State |
77,42 |
14,53 |
0,62 |
3,68 |
0,54 |
1,70 |
PWV |
59,10 |
27,58 |
4,13 |
3,68 |
3,00 |
1,25 |
Western Cape |
33,60 |
56,24 |
0,65 |
1,97 |
4,18 |
1,00 |
Fonte : Indicator South Africa, XI, 19 de Maio de 1994, p. 5, in L’Afrique Politique 1995 : Le Meilleur, Le Pire et l’Incertain, Paris, Karthala – CEAN, 1995 : 104.
- 55 Entrevista com José Nascimento, Co-Fundador da DIPSA, em Joanesburgo, 28 de Junho de 2000.
- 56 Notícia, V (53), Julho de 1995 : 42.
- 57 C. Cuddumbey in L’Afrique Politique 1995 : Le Meilleur, Le Pire et l’Incertain, Paris Karthala – C (...)
- 58 Ver Race Relations Survey 1994/95 : 5, in M. Faure & J.E. Lane, South Africa : Designing New Polit (...)
16Na comunidade, o NP terá obtido apoios sobretudo no seio da primeira geração, enquanto os luso-descendentes terão privilegiado o DP, dispersando-se uma minoria pelo ANC e LUSAP55. Esta formação contabilizou 3 293 votos, sensivelmente 0,1 % do total de boletins validados, o que foi entendido por Gouveia como uma prova de « que não há espaço no espectro político da RAS para um partido “ étnico ” »56, reconhecendo assim, a posteriori, que contava primordialmente com a etnicidade para mobilizar a comunidade. No entanto, os resultados gerais indicam que as identidades sociais foram na realidade marcantes, pelo que o espaço político étnico existia, mas não na comunidade. Diversos autores concordam que « uma característica evidente nestas eleições foi a divisão dos votos segundo linhas raciais »57 e, nalguns casos, étnicas, verificando-se que nalgumas províncias os votos corresponderam quase literalmente à composição da população58.
Quadro VII.— Distribuição da população e partidos nas eleições gerais de Abril de 1994 e de Junho de 1999 (%) (por província)
Províncias |
Africanos |
Asiáticos |
Mestiços |
Brancos |
Partido Vencedor |
||||||
1994 |
1999 |
||||||||||
Eastern Cape |
87,6 |
0,2 |
6,6 |
5,6 |
ANC |
ANC |
|||||
Mpumalanga |
88,7 |
0,4 |
0,6 |
10,3 |
ANC |
ANC |
|||||
KwaZulu-Natal |
82,4 |
9,3 |
1,3 |
7,0 |
IFP |
IFP |
|||||
North West |
91,1 |
0,2 |
1,1 |
7,6 |
ANC |
ANC |
|||||
Northern Cape |
31,3 |
0,2 |
52,4 |
16,1 |
ANC |
ANC |
|||||
Northern Prov. |
97,1 |
0,1 |
0,1 |
2,7 |
ANC |
ANC |
|||||
Free State |
84,1 |
0,03 |
2,7 |
13,2 |
ANC |
ANC |
|||||
Gauteng |
63,0 |
2,2 |
4,1 |
30,7 |
ANC |
ANC |
|||||
Western Cape |
17,2 |
0,8 |
58,4 |
23,6 |
NP |
NNP |
|||||
Total |
76,4 |
2,5 |
8,5 |
12,6 |
Nota : os dados da população referem-se a 1993. No KwaZulu-Natal, o IFP formaria, após o sufrágio de 1999, uma coligação governamental com o ANC, o mesmo acontecendo com o NNP e o DP no Western Cape. Anteriormente, Mpumalanga era o Eastern Transvaal, a Northern Province o Northern Transvaal e o Gauteng era Pretoria / Witwatersrand / Vereeniging.
Fontes : Race Relations Survey 1994/95, p. 5, in M. Faure & J.E. Lane, South Africa : Designing New Political Institutions, Londres, Sage, 1996 ; Independent Electoral Commission, (<www.elections.org.za>) ; Indicator South Africa, XI, 19 de Maio de 1994 : 5 (citado in L’Afrique Politique 1995 : Le Meilleur, Le Pire et l’Incertain, Paris, Karthala – CEAN, 1995 : 104. Quadro adaptado.
- 59 Entrevista em Joanesburgo, 4 de Julho de 2000.
- 60 Que albergava a sede, o maior número de portugueses e onde se concentrou o esforço de campanha.
17Moutinho considerou um erro a identificação do partido com o grupo étnico que procurara envolver num processo político sui generis, reconhecendo que se poderiam ter apresentado como sul-africanos de origem portuguesa e até ter optado por uma coligação com outra formação, como o DP59. A opinião negativa de Lisboa sobre o LUSAP foi secundada pelos líderes comunitários, sendo ventiladas percepções de que poderia constituir uma extensão do ANC, devido às relações cordiais que a sua cúpula mantinha com Mandela. Paralelamente, este antagonismo pode também ter derivado de um anseio de protecção da reserva de representação da comunidade, do status quo da sua liderança. Estas variáveis podem contribuir para esclarecer, em parte, os resultados provinciais do LUSAP, divulgados pela Independent Electoral Commission (IEC), que obteve mais apoio no KwaZulu-Natal do que no Gauteng60, sendo a votação no Western Cape muito próxima da registada nesta última. No cômputo geral, o LUSAP conseguiu captar mais eleitores no KwaZulu-Natal e Western Cape juntos do que em todo o Gauteng, o que indicia que, naquelas regiões, a adesão pode ter abrangido não apenas membros da comunidade como outros imigrantes de língua portuguesa.
Quadro VIII.— Votação do LUSAP nas eleições gerais de Abril de 1994 por província
Províncias |
Votos |
Eastern Cape |
263 |
Mpumalanga |
269 |
KwaZulu-Natal |
961 |
North West |
252 |
Northern Cape |
138 |
Northern Province |
253 |
Free State |
203 |
Gauteng |
490 |
Western Cape |
464 |
Total |
3 293 |
Fonte : Independent Electoral Commission <www.elections.org.za>.
- 61 Entrevista com António de Gouveia em Joanesburgo, 4 de Julho de 2000. Ver ainda Notícia, IV (41), (...)
18A decepção com o escrutínio ditaria a cessação da existência do LUSAP e da actividade política dos seus mentores, os quais, não obstante, sublinharam aspectos positivos no projecto, como o facto de se terem quebrado as fronteiras do « gueto » comunitário, procurando a nova geração estimular ideias progressivas de uma forma dignificante neste núcleo de imigrantes61. Apesar de considerarem que tal não foi reconhecido pelos próprios pares identitários e das críticas de que foram alvo, é um facto que fizeram História na(s) comunidade(s) portuguesa(s).
A nova África do Sul
- 62 The Daily News, 27 de Abril de 1994.
- 63 Ver T. Lodge , South African Politics Since 1994, Cidade do Cabo, David Philip Publishers, 1999 ; (...)
19Das eleições de 1994 sairia um Governo de Unidade Nacional (GUN), simbolizando « uma nova era, de esperança, reconciliação e construção da nação »62, cujo vértice era o Presidente da República, Nelson Mandela, coadjuvado por De Klerk e Thabo Mbeki, delineando-se o Reconstruction and Development Programme e acções presidenciais prioritárias, que procuraram responder às graves carências da população africana sem desapossar a europeia63. Entrementes, iniciou-se o processo final de transferência de poderes – que culminaria em 1999 com a aplicação da regra do domínio da maioria sem restrições – sendo aprovada uma Constituição definitiva em 8 de Maio de 1996, assente no respeito pela diversidade cultural, tendo então o NP optado por se retirar do GUN, no qual a sua posição minoritária o impedia de influenciar decisões de fundo.
- 64 Cf. Ministério dos Negócios Estrangeiros, Afirmar Portugal no Mundo – A Importância das Comunidade (...)
- 65 O Século de Joanesburgo, 23 de Outubro de 1995 : 24, e 6 de Novembro de 1995 : 1-3.
- 66 O Século de Joanesburgo, 15 de Dezembro de 1997 : 30, e 27 de Novembro de 2000 : 7.
- 67 O Século de Joanesburgo, 24 de Março de 1997 : 1.
- 68 O Século de Joanesburgo, 16 de Março de 1998 : 7.
- 69 O Século de Joanesburgo, 13 de Abril de 1998 : 2.
- 70 Entrevista em Joanesburgo, 26 de Junho de 2000.
- 71 Consultar A. Reynolds (ed.), Election ’99 South Africa : From Mandela to Mbeki, Nova Iorque, St.Ma (...)
20Após as eleições de 1994, os elementos da primeira geração que detinham somente a nacionalidade lusa regressaram a uma situação de exclusão da vida política sul-africana, o que não significa alheamento total, dado que o processo de democratização fomentou uma consciencialização política da comunidade, tornando-a mais afirmativa, predisposta a defender os seus interesses e a intervir em questões que afectavam o seu quotidiano, como as relacionadas com a segurança e o apoio às populações mais desfavorecidas64. Esta vertente social exprime um compromisso para com a nova RAS mais consentâneo com o perfil da comunidade, mas só os detentores de plenos direitos de cidadania estariam em condições de manter o dinamismo político na sociedade sul-africana, sobretudo o segmento dos luso-descendentes, cuja maioridade cívica e política coincidiu com este período temporal decisivo e cujo potencial eleitoral explica a ascensão de alguns a uma posição de destaque nos movimentos políticos juvenis do NP e DP, como referido. Foi nas listas destes partidos que concorreram às autárquicas sul-africanas de 1 de Novembro de 1995 John Vieira, em Port Elizabeth, Andrade e Manuel de Freitas, em Joanesburgo. Vieira era um autarca veterano do NP e foi reconduzido nas suas funções, enquanto os jovens – com dupla nacionalidade – Andrade e Freitas seriam eleitos vereadores do Conselho Municipal de Joanesburgo, actividade que acumulariam com a liderança da juventude do NP no Gauteng e do DP a nível nacional, respectivamente65. Para além desta participação no patamar de governação local, ao nível provincial Gilberto Martins chegaria a Director de Desportos e, posteriormente, do Ministério da Educação do Gauteng, enquanto na esfera do executivo central a escolhida para assumir a Direcção-Geral do Ministério das Finanças foi Maria Ramos66. Tratando-se da maior diáspora europeia na RAS, este número de políticos de origem portuguesa é diminuto, induzindo o Embaixador Lucas Makhubela, em 1997, então colocado em Lisboa, a referir que « a [sua] voz (...) “ não é ouvida no país ” [e que a comunidade não] participa no sistema político sul-africano »67. Se tal pode justificar-se pela ausência de direitos da primeira geração, no que concerne aos luso-descendentes traduz uma postura similar à dos progenitores antes do processo de democratização. Freitas e Andrade seriam excepções, sendo ainda digna de menção a candidatura de um conselheiro da comunidade, Sérgio Correia, às eleições locais intercalares de 1998 em Joanesburgo, nas listas do IFP68. Correia não conseguiria a eleição e constitui um de vários exemplos de carreiras políticas efémeras. Entretanto, Andrade seria afectado pela crise interna e subsequente processo de reformulação que o NP atravessou, até se transformar no New National Party (NNP). Uniu-se a dissidentes como Roelf Meyer e o ex-líder militar do Transkei, Bantu Holomisa, participando na fundação do United Democratic Movement (UDM), onde ocupou uma posição de direcção, mas um desentendimento com um par africano ditaria a expulsão de ambos em Abril de 1998, num contexto em que a cúpula do UDM se debatia com graves dificuldades para manter a coesão do partido69, esbatendo-se então o seu percurso. Quanto a Freitas, nas eleições gerais de 2 de Junho de 1999 foi eleito deputado provincial pelo DP, ingressando no Parlamento de Gauteng.70 Os resultados deste sufrágio, que marca o início da era pós-Mandela – o qual optou pelo afastamento voluntário, sucedendo-lhe Mbeki – e da democracia plena, confirmam a tendência de voto etno-racial de 1994, apesar de os principais partidos proclamarem a multiracialidade e se terem centrado em temas de governação.71
Quadro IX.— Comparação da tendência de voto entre as eleições gerais de Abril de 1994 e de Junho de 1999 ( %)
Partidos |
1994 |
1999 |
African National Congress |
62,65 |
66,36 |
Democratic Party |
1,73 |
9,55 |
Freedom Front |
2,17 |
0,8 |
Inkatha Freedom Party |
10,54 |
8,59 |
National Party / New NP |
20,39 |
6,87 |
Fontes : Dados do African National Congress (www.anc.org.za) e da Independent Electoral Commission <www.electionresources.org/za>.
- 72 O Século de Joanesburgo, 13 de Setembro de 1999 : 15 ; António Pina, « Portugueses na África do Su (...)
- 73 O Século de Joanesburgo, 28 de Julho de 1997 : 28, 20 de Dezembro de 1999 : 68 ; Lusitano de 11 de (...)
21O ANC reforçou o seu domínio, o NNP entrou em queda livre e o DP passou a liderar a Oposição, enquanto nos partidos de raíz étnica o IFP perdeu algum apoio e o FF quase desapareceu a nível nacional. Em Outubro desse ano realizaram-se também legislativas em Portugal, incluindo pela primeira vez a campanha na imprensa comunitária uma profusão de anúncios do PS, denotando uma distensão ideológica que em nada obstou à proverbial falta de participação72. Esta contribuíra, em 1997, para um acordo parlamentar de princípio sobre o voto dos expatriados nas presidenciais, que em 2000 originaria legislação específica consagrando plena igualdade de direitos políticos entre cidadãos residentes em Portugal e no exterior, algo há muito reivindicado pela comunidade, pioneira nesta questão73.
* * *
- 74 Segundo a IEC e o Electoral Institute of Southern Africa.
- 75 Entrevista com Manuel de Freitas em Joanesburgo, 26 de Junho de 2000.
- 76 Entrevista com António de Gouveia em Joanesburgo, 30 de Junho de 2000.
- 77 Entrevista com Jaime Margarido, Dirigente Associativo, em Joanesburgo, 1 de Julho de 2000.
- 78 Entrevista com Jorge Duarte, Director da Notícia, em Joanesburgo, 28 de Maio de 2000 e com Viriato (...)
- 79 Apenas entre Outubro de 1993 e Fevereiro de 1994, o movimento de contentores da RAS para Portugal (...)
22Enquanto o NNP resvalava para um cenário de partido regional, com um eleitorado sobretudo do Western Cape e Northern Cape, Tony Leon decidiu consolidar o estatuto do DP, criando a Democratic Alliance (DA) com o partido Freedom Alliance e convidando subsequentemente o NNP a integrar a coligação. Esta concretizou-se em 25 de Junho de 2000, num contexto em que o NNP registava uma sangria de quadros, sobretudo para o DP. Tendo Leon como líder e Marthinus Van Schalkwyck como seu vice, a DA visava emergir como alternativa ao ANC e implicaria, a prazo, o desaparecimento das partes. O primeiro desafio da DA seriam as eleições municipais de 5 de Dezembro de 2000, que constituíram o corolário das transformações a nível local, redefinindo-se os limites dos municípios e poderes autárquicos, devido ao processo de desmantelamento dos bantustões. O ANC registou uma ligeira diminuição do apoio popular mas venceu em todas as províncias, excepto no Western Cape, onde a DA obteve 51,6 % dos votos, e no KwaZulu-Natal, que se manteve na esfera do IFP74. Subsequentemente, o NNP abandonaria a DA, pois significaria o fim da sua existência, mas Leon manteve-se fiel ao projecto, concentrando-se na conquista de eleitores africanos e acrescentando ao seu discurso político referências à protecção das minorias étnicas, algo que tem encontrado eco na comunidade75. A percepção de que « o DP está agora a agregar mais simpatias »76 nesta cimentou-se, pelo que, se no presente tivermos de a conotar com um partido sul-africano já não será o NP mas a DA, mais precisamente o DP. Em termos gerais, apesar de na actualidade o imobilismo político permanecer uma característica da comunidade, tal não deve ser interpretado como desencanto, uma vez que existem diferenças dignas de realce e que a adaptação ao novo clima político sul-africano se tem processado sem grandes sobressaltos, predominando as preocupações de cariz socioeconómico77. Por outro lado, elementos da comunidade, ou oriundos desta, pontifica(ra)m em múltiplas forças políticas sul-africanas, reflectindo uma diversidade anteriormente imperceptível, subsistindo no presente laços incomparavelmente mais abrangentes com a classe política sul-africana. O desvanecer da DIPSA, da AJEPP e do LUSAP contribuíram para um déficit de liderança política, tendo o Presidente do Governo Regional da Madeira, Alberto João Jardim, exortado os portugueses a, tal como outros núcleos de europeus, formarem lobbies78. Freitas acalenta um projecto similar ao American Portuguese Caucus, que reúne políticos norte-americanos de origem portuguesa, sendo a variável fundamental a identidade cultural comum. Para replicar este exemplo, mais luso-descendentes qualificados, integrados na sociedade sul-africana mas ligados à cultura portuguesa, terão de enveredar por uma carreira política e manter entre si uma relação suprapartidária, assente numa raíz cultural partilhada. Com o término do apartheid, as novas gerações possuem hoje uma liberdade de acção e um leque de opções políticas de que os seus ascendentes, espartilhados por uma série de condicionantes, não usufruíam, recaíndo sobre os luso-descendentes uma eventual alteração do peso político da comunidade. Tal tarefa não se afigura fácil, em face do contexto actual. A comunidade portuguesa enfrenta múltiplos problemas socioeconómicos, que se expressam fundamentalmente num sentimento de insegurança generalizado e derivam dos elevados índices criminais – como se pode constatar no quadro seguinte – da precaridade laboral e da inexistência de um sistema estatal eficaz de protecção social. A criminalidade é, desde a década de 1990, o mais importante factor de instabilidade social, minando a confiança no futuro e espoletando movimentos de alteração de residência dos portugueses e de êxodo definitivo da RAS79, este pouco notório mas ininterrupto, não obstante subsistir ainda um numeroso contingente luso profundamente comprometido com a nova RAS.
Quadro X.— Estatísticas dos crimes mais graves ocorridos na RA1992-2000
Anos |
Assassi-natos |
Roubo Agravado |
Violações |
Assaltos a… |
|
Negócios |
Domicílios |
||||
1992 |
16 067 |
54 194 |
24 360 |
73 282 |
181 659 |
1993 |
17 467 |
60 089 |
27 056 |
74 379 |
185 502 |
1994 |
26 832 |
84 900 |
42 429 |
89 058 |
228 021 |
1995 |
26 637 |
80 071 |
47 508 |
86 379 |
244 063 |
1996 |
25 782 |
67 249 |
50 481 |
87 863 |
246 438 |
1997 |
24 588 |
69 693 |
52 160 |
88 610 |
249 375 |
1998 |
24 875 |
88 319 |
49 280 |
94 102 |
266 817 |
1999 |
23 823 |
97 173 |
51 249 |
92 789 |
285 515 |
2000 |
21 238 |
101 514 |
51 722 |
90 076 |
286 548 |
Nota : o roubo agravado inclui hijacking de viaturas e a categoria violações abrange também as tentativas de violação reportadas às autoridades.
Fontes : South African Communication Service, South Africa Yearbook 1995, Pretória, South African Communication Service, 1995 : 209 ; –– South Africa Yearbook 1997, South African Communication Service, Pretoria, 1996 : 304 ; Government Communication and Information System, South Africa Yearbook 1998, Government Communication and Information System, Pretória, 1998 : 298 ; ––, South Africa Yearbook 1999, Government Communication and Information System, Pretória, 1999 : 256 ; ––, South Africa Yearbook 2000/2001, Government Communication and Information System, Pretória, 2000 : 359. Outros dados respeitantes ao período compreendido entre 1994 e 2000 podem ser consultados no boletim criminal em <www.saps.org.za>.
23Cientes das dificuldades de Portugal em integrar novamente um elevado número de cidadãos e prevendo problemas de adaptação dos mais jovens, muitas famílias decidiram-se pela radicação noutros países, como a Austrália, tal como numerosos sul-africanos e membros de outras comunidades. Na generalidade, apesar de não ser possível proporcionar detalhes oficiais, os destinos preferenciais são Estados de língua inglesa, que oferecem oportunidades laborais e onde não se prevêm problemas de reconhecimento de habilitações literárias nem de adaptação ao estilo de vida, como a Austrália, a Nova Zelândia, a Grã-Bretanha e o Canadá. Sendo certo que muitos luso-descendentes não excluem um futuro em Portugal, a verdade é que estão conscientes de que a sua integração laboral e cultural seria difícil, pelo que o nosso país tende a emergir somente como um ponto de apoio para uma radicação noutros Estados europeus, designadamente no que se refere à Grã-Bretanha, replicando desta forma o percurso dos progenitores, tornando-se também emigrantes.
Decembro de 2008
Notes
1 Consultar L. Leal, Breve História dos Portugueses na África do Sul, Potchefstroomse Universiteit vir Christelike Hoër Onderwys, Potchefstroom, 1977 : 36.
2 Entrevista com Mário Silva, Vice-Cônsul de Portugal em Pretória, 14 de Julho de 2000.
3 A dissertação original, mencionada no Sumário, aborda em profundidade todas estas vertentes.
4 Consultar J. Baptista Júnior, A Comunidade Portuguesa na República da África do Sul : « Nação Peregrina em Terra Alheia », Lisboa, Sociedade de Geografia de Lisboa – União das Comunidades de Cultura Portuguesa, Separata do Boletim da SGL, Janeiro-Março de 1966 : 70-71 ; e Notícias da África do Sul (Lisboa, Embaixada da RAS), XXI (300), Novembro de 1971 : 18.
5 Ver Notícias da África do Sul, Ano 19, nº 271, Embaixada da RAS, Lisboa, Junho de 1969 : 4-5.
6 O Século de Joanesburgo, 30 de Abril de 1974 : 9. Ênfase acrescentada.
7 Diário de Lisboa de 9 de Outubro de 1974 : 1.
8 Consultar Rand Daily Mail, 6 e 7 de Abril de 1977, s.p. e The Star, 19 de Maio de 1978, s.p.
9 O Século de Joanesburgo, 29 de Março de 1976 : 15 e 27 de Fevereiro de 1978 : 1.
10 Popular, 2 de Dezembro de 1977 : 1-2 e The Star, 20 de Março de 1982, s.p.
11 Este valor, referente a 1980, não deve ser entendido como dogmático, devido à politização dos números por parte de Pretória, à não inscrição dos portugueses na rede consular e aos indivíduos em situação ilegal, sendo de sublinhar que ao longo dos anos foram replicadas estimativas sem sustentação formal.
12 Ver O Século de Joanesburgo, 12 de Março de 1979 : 8, 7 de Setembro de 1981 : 7 e Panorama (Lisboa, Embaixada da RAS), 77, Novembro de 1983: 19.
13 Consultar O Século de Joanesburgo, 21 de Dezembro de 1981 : 20.
14 O Século de Joanesburgo, 1 de Dezembro de 1986 : 24.
15 The Citizen, 11 de Junho de 1984, s.p. ; Panorama, 81, Abril de 1984 : 12.
16 O Século de Joanesburgo, 23 de Março de 1987 : 24.
17 O Século de Joanesburgo, 14 de Novembro de 1988 : 17.
18 Sunday Times, 13 de Agosto de 1989, s.p. ; O Século de Joanesburgo, 28 de Agosto de 1989 : 5 e 4 de Setembro de 1989 : 5-11.
19 C.D. Schutte, The Adaptation to South Africa and Attitudes Regarding Re-emigration from the Country of Portuguese Immigrants, Pretória, Human Sciences Research Council, 1989 : 40-53.
20 Consultar D.C. Groenewald & L. Smedley, Attitudes of the White Population in South Africa Towards Immigrants in General and the Main Immigrant Groups in Particular, Pretória, South African Human Sciences Research Council, 1977.
21 Ver Jornal de Notícias, 20 de Fevereiro de 1991 : 7 ; The Star,7 e 21 de Abril de 1990, s.p.
22 Entrevista com José Nascimento e António Ramos, em Joanesburgo, 28 de Junho de 2000.
23 Entrevista com António de Gouveia, em Joanesburgo, 30 de Junho de 2000. Ver ainda J. Gomes Cravinho, Portugueses na África do Sul – Retrato Político de uma Comunidade Emigrante, Centro de Informação e Documentação Amílcar Cabral, Lisboa, 1990 : 26.
24 Consultar J. Gomes Cravinho, « La Communauté Portugaise dans la Nouvelle Afrique du Sud », Lusotopie (Paris, Karthala), II, 1995 : 335-336.
25 O Século de Joanesburgo, 30 de Julho de 1990 : 12 ; Público, 15 de Abril de 1991 : 44 ; The Citizen, 20 de Maio de 1991, s.p. ; Notícia, I (6), Julho de 1991 : 19.
26 Ver F.W. De Klerk, The Last Trek – A New Beginning, The Autobiography, Londres, MacMillan, 1998 : 217.
27 O Século de Joanesburgo, 9 de Setembro de 1991 : 5.
28 O Século de Joanesburgo, 2 de Março de 1992 : 2.
29 O Comércio do Porto, 26 de Maio de 1991 : 10 ; O Dia de 8 de Janeiro de 1993 : 24.
30 O Século de Joanesburgo, 1 de Março de 1993 : 12.
31 Segundo O Século de Joanesburgo, 3 de Maio de 1993 : 3.
32 Consultar, por exemplo, O Século de Joanesburgo, 14 de Junho de 1993 : 6.
33 Cf. D. O’Meara, Forty Lost Years : The Apartheid State and the Politics of the National Party, 1948-1994, Athens, Ohio University Press, 1996.
34 The Star, 5 de Fevereiro de 1993, s.p.
35 Sunday Times, 14 de Fevereiro de 1993, s.p. ; Notícia, III (26), Março de 1993 : 19 ; Semanário, 15 de Agosto de 1992 : 27
36 Ver The Star, 6 de Outubro de 1993, s.p. ; Diário de Notícias, 27 de Outubro de 1993 : 5 ; O Século de Joanesburgo, 11 de Outubro de 1993 : 4, 29 de Novembro de 1993 : 13 ; Notícia, IV (37), Fevereiro de 1994 : 10, IV (39), Abril de 1994 : 7-10 e IV (40), Maio de 1994 : 5.
37 O Século de Joanesburgo, 21 de Fevereiro de 1994 : 7.
38 O Século de Joanesburgo, 31 de Janeiro de 1994 : 5
39 Entrevista em Joanesburgo, 30 de Junho de 2000.
40 O Século de Joanesburgo, 17 de Junho de 1991 : 21 e Wilkins, Ivor & Strydom, Hans, The Broederbond, Paddington Press, New York, 1979.
41 Consultar S. Terreblanche & S. Friedman (eds.), The Long Journey : South Africa’s Quest for a Negotiated Settlement, Joanesburgo, Ravan Press, 1993.
42 The Star e The Citizen, 3 de Março de 1994, s.p. ; O Século de Joanesburgo, 7 de Março de 1994 : 4 e 21 de Março de 1994 : 2.
43 Entrevista com António de Gouveia, ex-Vice-Presidente do LUSAP, em Joanesburgo, 30 de Junho de 2000. Consultar também The Citizen, 3 de Março de 1994, s.p. (ênfase acrescentada) e O Século de Joanesburgo, 14 de Março de 1994 : 17-19.
44 The Star, 3 de Março de 1994, s.p. ; O Século de Joanesburgo, 28 de Março de 1994 : 32.
45 Diário de Notícias, 19 de Março de 1994 : 17.
46 Entrevista com Manuel Moutinho, ex-Presidente do LUSAP, em Joanesburgo, 4 de Julho de 2000.
47 Documento Oficial do LUSAP, datado de 1994.
48 Entrevista com António de Gouveia em Joanesburgo, 30 de Junho de 2000.
49 Documento de A Capital remetido ao LUSAP em 19 de Março de 1994 : 2 ; O Século de Joanesburgo, 7 de Março de 1994 : 1 ; The Star, 19 de Março de 1994, s.p.
50 Cf. Documento Oficial do NP de Abril de 1994 : 1 ; O Século de Joanesburgo, 25 de Abril de 1994 : 10. Ver ainda E Bertelsen, « Selling Change : Advertisements for the 1994 South African Election », African Affairs, VC (379), April 1996 : 236-240.
51 O Século de Joanesburgo, 14 de Março de 1994 : 4 ; Documento Oficial do DP de Abril de 1994 ; The Star, 19 de Setembro de 1995, s.p.
52 Conselho de País da RAS, Relatório Sobre as Reuniões com os Partidos Políticos da República da África do Sul, Documento oficial não publicado, Joanesburgo, Março de 1994 : 8-15.
53 O Século de Joanesburgo, 11 de Abril de 1994 : 6.
54 O Século de Joanesburgo, 2 de Maio de 1994 : 16-24.
55 Entrevista com José Nascimento, Co-Fundador da DIPSA, em Joanesburgo, 28 de Junho de 2000.
56 Notícia, V (53), Julho de 1995 : 42.
57 C. Cuddumbey in L’Afrique Politique 1995 : Le Meilleur, Le Pire et l’Incertain, Paris Karthala – CEAN, 1995 : 106. Ver ainda H. Giliomee, « Towards Real Majority Rule? », The Star, 21 de Agosto de 1994.
58 Ver Race Relations Survey 1994/95 : 5, in M. Faure & J.E. Lane, South Africa : Designing New Political Institutions, Londres, Sage, 1996.
59 Entrevista em Joanesburgo, 4 de Julho de 2000.
60 Que albergava a sede, o maior número de portugueses e onde se concentrou o esforço de campanha.
61 Entrevista com António de Gouveia em Joanesburgo, 4 de Julho de 2000. Ver ainda Notícia, IV (41), Junho de 1994 : 21.
62 The Daily News, 27 de Abril de 1994.
63 Ver T. Lodge , South African Politics Since 1994, Cidade do Cabo, David Philip Publishers, 1999 ; African National Congress, The Reconstruction and Development Programme : a Policy Framework, Cidade do Cabo, 1994 ; C. Cramer, « Rebuilding South Africa », in Current History, Maio de 1994 : 208 ; L. Thompson, A History of South Africa, Nova Iorque, Yale University Press, 1995 : 277.
64 Cf. Ministério dos Negócios Estrangeiros, Afirmar Portugal no Mundo – A Importância das Comunidades Portuguesas, Lisboa, Ministério dos Negócios Estrangeiros, Agosto de 1995 : 36 ; O Século de Joanesburgo, 5 de Julho de 1999 : 1 ; Mundo Português, 28 de Abril de 2000 : 17.
65 O Século de Joanesburgo, 23 de Outubro de 1995 : 24, e 6 de Novembro de 1995 : 1-3.
66 O Século de Joanesburgo, 15 de Dezembro de 1997 : 30, e 27 de Novembro de 2000 : 7.
67 O Século de Joanesburgo, 24 de Março de 1997 : 1.
68 O Século de Joanesburgo, 16 de Março de 1998 : 7.
69 O Século de Joanesburgo, 13 de Abril de 1998 : 2.
70 Entrevista em Joanesburgo, 26 de Junho de 2000.
71 Consultar A. Reynolds (ed.), Election ’99 South Africa : From Mandela to Mbeki, Nova Iorque, St.Martin’s Press, 1999.
72 O Século de Joanesburgo, 13 de Setembro de 1999 : 15 ; António Pina, « Portugueses na África do Sul », in Janus 2001 – Anuário de Relações Exteriores, Lisboa, Público–Universidade Autónoma de Lisboa, Novembro de 2000 : 156.
73 O Século de Joanesburgo, 28 de Julho de 1997 : 28, 20 de Dezembro de 1999 : 68 ; Lusitano de 11 de Março de 2000 : 24. Note-se que nas legislativas os emigrantes possuem uma quota de representação, enquanto o sufrágio directo das presidenciais inculcara receios de distorção dos resultados.
74 Segundo a IEC e o Electoral Institute of Southern Africa.
75 Entrevista com Manuel de Freitas em Joanesburgo, 26 de Junho de 2000.
76 Entrevista com António de Gouveia em Joanesburgo, 30 de Junho de 2000.
77 Entrevista com Jaime Margarido, Dirigente Associativo, em Joanesburgo, 1 de Julho de 2000.
78 Entrevista com Jorge Duarte, Director da Notícia, em Joanesburgo, 28 de Maio de 2000 e com Viriato Barreto, Proprietário do canal TVP – Televisão Portuguesa, em Joanesburgo, 15 de Junho de 2000. Ver ainda O Século de Joanesburgo, 5 de Julho : 32 e 19 de Julho de 1999 : 17.
79 Apenas entre Outubro de 1993 e Fevereiro de 1994, o movimento de contentores da RAS para Portugal ascendeu a 621, de acordo com a Grande Reportagem, V (37), Abril de 1994 : 39.
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Référence papier
Paulo Bessa, « A diáspora invisível? », Lusotopie, XVI(1) | 2009, 133-153.
Référence électronique
Paulo Bessa, « A diáspora invisível? », Lusotopie [En ligne], XVI(1) | 2009, mis en ligne le 25 novembre 2015, consulté le 14 janvier 2025. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lusotopie/388 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.1163/17683084-01601009
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