Navigation – Plan du site

AccueilNumérosXVI(1)MiscellanéesSobre o escândalo político em Cab...

Miscellanées

Sobre o escândalo político em Cabo Verde

About political scandal in Cape Verde Islands
À propos du scandale politique aux îles du Cap-Vert
José Carlos dos Anjos
p. 25-43

Résumés

Le Cap-Vert serait-il vraiment un pays aux conditions exceptionnelles de transparence, comme la communauté internationale le reconnaît généralement ? Les gouvernants capverdiens ont toujours mis un point d’honneur à se présenter comme une exception en Afrique. Or on peut s’interroger sur les conditions sociales de réussite des dénonciations de la grande corruption au Cap-Vert et sur le cadre moral instauré autour des affaires d’État depuis l’ouverture au pluripartisme. Une analyse des principaux scandales met simultanément en évidence les stratégies mises en place dans le processus de dénonciation et les jeux de vérification auxquels les acteurs politiques se soumettent lors des crises politiques liées à ces scandales. Cela permet d’élucider aussi bien les conditions de possibilité de dénonciation que la pertinence des réseaux de corruption dans cette petite et récente démocratie.

Haut de page

Entrées d’index

Index géographique :

Cap-Vert
Haut de page

Texte intégral

  • 1  Vide entre muitos outros, J.-F. Médard, « Charles Njonjo : portrait d’un "Big Man" au Kenya » in E (...)

1Este artigo se insere na interface das problemáticas da construção recente de Estados democráticos e o da corrupção nos Estados africanos pretendendo retrabalhar conceitos chaves como os de clientelismo e criminalização do Estado. Trataremos aqui de um caso menos típico em África. Os Estados africanos freqüentemente são descritos pelos desfuncionamentos administrativos, a capilaridade das práticas « corruptivas », o fraco nível de institucionalização e a forte personalização do poder1. Cabo Verde se constitui como um país com condições excepcionais para a transparência política como fazem evidenciar alguns importantes indicadores internacionais. As especificidades históricas e geográficas do país parecem apontar em sentido afirmativo.

  • 2  O estudo « Governance Matters V : World Governance Indicators », 1996-2005, <http://info.worldbank.org/governance/wgi2007/pdf/c49.pdf> aponta Cabo Verde com</http> (...)

2Cabo Verde tem sido, ao lado de São Tomé e Príncipe, considerado como o país da África sub-sariana de melhor « governance » e gerência econômica, de acordo com o Freedom House’s2. Enquanto São Tomé e Príncipe se compõe de duas ilhas, num total de 964 km2 e cerca de 160 mil habitantes, Cabo Verde tem uma população estimada de 499 796 no censo 2000, distribuída por dez ilhas e 436 821 km2. Certamente as duas elevadas performances, para os indicadores internacionais de boa governação, se correlacionam à dimensão de micro-estados e de pequenas nações em que se conformam esses dois arquipélagos em África. Está subjacente a este artigo à hipótese de que a proximidade e a densidade de relações inter-pessoais entre governantes e governados potencializa o rumor, as fofocas, e a rapidez com que determinadas performances de governo se transformam em escândalos políticos. À intensidade do controle proporcionado pelos mecanismos informais e formais de provocação de escândalos políticos não chegam, contudo a colocar em xeque a corrupção e desigualdades sociais crescentes, pelo menos no caso cabo-verdiano, tratado aqui.

  • 3  Aparentemente a mudança de regime retirou do poder um governo de esquerda, substituido por outro f (...)

3Com uma trajetória de trinta anos pós-coloniais de relativa estabilidade política e uma transição de um regime monopartidário para o pluripartidário3 sem grandes traumatismos, a vida política cabo-verdiana parece granjear credibilidade suficiente para a incorporação e imaginação de modelos ousados de promoção da participação política. Mas o fato da insularidade e da dimensão populacional reduzida não tem incitado inovações no sentido de gestões mais descentralizadas e de promoção de autonomias locais.

4Apesar, ou por causa, da importação padronizada dos modelos institucionais ocidentais, os diferentes governos cabo-verdeanos têm aparecido para os indicadores internacionais de boa governança como uma excepcionalidade africana. O controle sobre a imagem internacional da nação passa por uma frenética atuação no sentido da importação de instituições de controle das atividades político-administrativas que se sobrepõem numa obscura divisão de tarefas e competências. Desde o Supremo Tribunal de Justiça, o Tribunal de Contas, a Comissão de Coordenação do Combate à Droga, a Alta Autoridade contra a Corrupção, uma densa estrutura institucional vem se sobrepondo e se sucedendo no enquadramento aos atentados a improbidade administrativa.

5Nesse cenário, a emergência de uma série de escândalos de corrupção pode tanto evidenciar o desfuncionamento de tais instituições de controle como uma sensibilidade exagerada para com situações normais do ponto de vista jurídico. Uma análise dos principais escândalos de corrupção que se detenha simultaneamente nas estratégias colocadas em jogo nos processos de denúncia assim como nos processos de comprovação a que os atuantes se submetem nas crises políticas correlacionadas aos escândalos permite descortinar tanto as condições de possibilidade da denúncia quanto a eventual pertinência das redes de corrupção nessa pequena e recente democracia.

6Para esta analise parto de três livros publicados na década de noventa denunciando casos de corrupção durante o governo do Movimento Para Democracia (MpD) assim como de um farto material de imprensa relacionado aos eventos cunhados como de corrupção, além de entrevistas em profundidade com os autores dos livros e com uma dezena de quadros do alto escalão político-administrativo.

O escândalo político em um país de democracia recente

  • 4  Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Portugal são considerados pela Freedom House os únicos países lu (...)

7Tanto pela necessidade de defender a imagem de país politicamente estável, democrático e íntegro, quanto pelas heranças de um longo passado colonial e de quinze anos de regime monopartidário, existem ainda, alguns mecanismos de censura a denúncia de corrupção política apesar de uma aclamada liberdade de imprensa e expressão4 desde a década de noventa.

  • 5  Em um artigo tido como fundador de uma sociologia pragmática em França, L. Boltanski, « La dénonci (...)
  • 6  De 1975 a 1991 governou o país o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIG (...)

8Este estudo reflete sobre as condições sociais de felicidade das denúncias5 da grande corrupção em Cabo Verde e sua relação com o quadro moral instaurado em torno dos affaires de Estado desde a abertura pluripartidária da segunda república6.

  • 7  D. de Blic & C. Lemieux, « Le scandale comme épreuve. Éléments de sociologie pragmatique », Politi (...)

9Blic e Lemieux7 definem o affaire como estrutura triádica em que o confronto entre dois adversários se dá sob o olhar de um público para quem certos golpes podem ser denunciados como demasiadamente baixos, o que impõe o respeito a determinadas atitudes formais e certa eufemização da violência. Pretendo analisar a transformação de escândalos políticos em affaires, como possibilidade de evidenciar o modo como as instituições democráticas importadas vêem sendo remodeladas nos confrontos públicos dessa nascente democracia.

  • 8  Minha aposta é que seguir o programa de uma sociologia pragmática do escândalo « que considera o e (...)
  • 9  G. Blundo & J.-P. Olivier de Sardan, « La corruption au quotidien », Politique africaine (Paris, K (...)

10Na análise dos dois escândalos mais retumbantes da década de 1990 em Cabo verde trata-se, em primeiro lugar de expor como as denúncias contra o alto escalão de um governo de uma democracia recente se legitima publicamente, em segundo lugar em seguir o escândalo no modo como se transforma em affaire8, em outros termos, como uma denúncia pública é contra-atacada de modo a se instituir uma profunda clivagem no seio da elite que governa o país. Contrariamente a idéia de uma naturalização da corrupção no seio da população em geral, como sugerem Blundo e Olivier de Sardan9 para outros três países da África ocidental, há evidências, no caso cabo-verdeano, de uma « cultura política do escândalo » que produz vigilância e indignação contra as praticas ilícitas de governantes. O « affaire Benoni » e o escândalo da privatização da Enacol, analisados em seguida, evidenciam uma cultura política no seio dos quadros superiores em que a troca de golpe entre adversários passa incisivamente pelo desvelamento de « atividades ocultas », na forma da escandalização, o que é o avesso de uma cultura de aceitação naturalizada de ações de improbidade administrativa. O paradoxo que cabe desvendar aqui é que mesmo sendo o escândalo uma das principais atividades através das quais os grupos políticos se redesenham, as hierarquias se defrontam e os pertencimentos se instituem, a alta corrupção permanece precariamente punível em Cabo Verde.

Denunciar em Cabo Verde : a partir de trajetórias excepcionais

  • 10  Entrevista com Daniel Benoni em 4 de maio de 2007.

11A denúncia de corrupção na embaixada de Cabo Verde em Portugal eclodiu em 1993, iniciada por um funcionário da própria embaixada. Transformou-se em escândalo quando um outro funcionário do Ministério de Negócios Estrangeiros que foi encarregado de averiguar as irregularidades passou a se ver como vítima de perseguição do próprio governo que lhe encarregou da tarefa. Entre 1996 e 2000 o funcionário encarregado da averiguação escreve dois livros denunciando as irregularidades da embaixada e a perseguição de que é vítima. O escândalo se transforma em affaire quando o governo move um processo contra o funcionário e membros do governo passam a contra-atacá-lo na mídia local. Entretanto Daniel Benoni R. Costa, o inspetor encarregado de averiguar a diplomacia cabo-verdiana em Lisboa, foi demitido, sob a alegação de que era funcionário aposentado da administração pública de Portugal10. Uma série de trocas de acusações nos periódicos da capital acompanha e incrementa todo o processo de escandalização do país.

  • 11  Sobre a monopolização dos principais postos do Estado pós-colonial pelos ex-guerrilheiros durante (...)

12Benoni é um cabo-verdeano que tendo feito uma longa carreira no funcionalismo colonial português em Moçambique, adquire toda uma experiência burocrática útil ao novo Estado cabo-verdeano, mas nenhum trunfo passível de reconversões numa « república dos combatentes »11. Efetivamente, com a independência nacional de Cabo Verde, Benoni fora convidado a integrar os quadros de um recém-criado Ministério dos Negócios Estrangeiros, mas apesar de ter se integrado logo de início ao processo de estruturação da burocracia do ministério sua carreira pouco evolui ao longo dos quinze anos de regime monopartidário. A trajetória de Benoni é típica de quadros intermediários que não participaram da luta de libertação nacional e que não tendo uma formação superior vegetam a sombra dos combatentes da luta de libertação nacional.

  • 12  Os esforços de publicação de Daniel Benoni R. Costa quase sempre o levam a editoração pessoal das (...)
  • 13  D. Benoni, Escândalo e benção, Praia, Edição do autor, 1996, 268 p.

13O protagonismo político de Benoni se inaugura na década de 1990 com os primórdios da abertura política em que é convidado a coordenar o setor de imprensa de um pequeno partido de oposição ao regime do PAICV. Tendo abandonado rapidamente essa primeira incursão no mundo da política partidária, Benoni permanece à margem do mundo político, com algumas pequenas contribuições no periódico local até a eclosão do affaire da embaixada em Portugal. Na conjuntura da denúncia, Daniel Benoni vem de uma trajetória às margens tanto de um destino político quanto de escritor. Com uma trajetória escolar interrompida de forma demasiadamente precoce para facultar as competências requeridas de uma almejada vocação de escritor, Benoni havia publicado três obras relativamente despercebidas12 antes do sucesso de público de Escândalo e Benção13, o primeiro livro em que denuncia as irregularidades administrativas da Embaixada de Cabo Verde em Lisboa.

14Desde o fim do século xix há, em Cabo Verde, um reconhecimento tácito de que o intelectual tem como propriedades a formação universitária (ou a do Seminário de São Nicolau até o início do século xx), publicações literárias (contos, poesias ou romances) e intervenções na política a favor da população vítima (da fome). Essa tradição de intervenção letrada na política, na forma de denúncia publicada (nos periódicos locais e livros, sobretudo de poesias) em nome de um povo « iletrado » se constituiu, ainda durante a colonização, a partir das trajetórias escolares nativas mais destacadas. Com a ampliação do acesso à formação no exterior após a independência cresce não apenas o número de profissionais liberais, mas também a quantidade de participações literárias o que contribui para a reconstituição do campo daqueles que podem reclamar a condição de intelectual por oposição ao político. A posição subordinada dos escritores na hierarquia dos cargos político-administrativos permite uma relação letrada com a política, que se constitui como um modo peculiar de estar na « vida política », que sob a aparência de desinteresse imediato, autoriza uma intervenção na forma de publicações locais investidas de uma pretensa neutralidade e cuja audiência e legitimidade são ampliadas pela força da evocação de competências literárias. Trata-se de um modo de « estar na política » que retira a força de sua legitimidade justamente do fato de poder se apresentar como posição exterior ao mundo da política, mundo esse supostamente reduzido à esfera dos principais cargos governamentais. Logo, a aparência de neutralidade e distância é uma condição de credibilidade da denúncia e do denunciador e da extensão paradoxal do campo de possibilidades de intervenção política.

  • 14  Entrevista com Daniel Benoni em 4 de Maio de 2007.

15Por essa relação letrada com a política, Benoni leva seu affaire para além de seu sector de trabalho, dos periódicos locais e da assembléia nacional. É com o affaire da embaixada de Portugal que Benoni extrapola a projeção nacional, ganha reconhecimento da Anistia Internacional que o premeia com distinção em Cambrigde e seu nome passa a constar do 26° volume do Dicionário de Biografias Internacionais daquela entidade14.

O affaire Benoni : dos periódicos aos livros

16Para se entender como se transforma um relatório, que poderia ter sido rotina de um sector de Estado, em um escândalo, se faz indispensável uma rápida incursão pelas relações entre a mídia do país e o governo. Depois de quinze anos de regime monopartidário, da década de 1990 em diante, Cabo Verde assiste a uma disputa pluripartidária alimentada por uma relativa liberdade de imprensa. Apesar das declarações de intenções em favor de uma maior autonomia, de uma abdicação a qualquer forma de censura e de uma insistente propaganda em favor da promoção dos meios de Comunicação Social como lugar do pluralismo de idéias, os novos governos que até aqui se instalaram nunca deixaram de ceder a tentação do controle autoritário sobre a imagem que os media podiam veicular de suas atividades. O predomínio do Estado no mercado midiático facilita o exercício desmesurado de uma pressão sobre o campo jornalístico em formação, cujos efeitos são, por um lado, a neutralização da capacidade de denúncia da imprensa estatal e por outro, o denuncismo partidarizado e de oposição na imprensa privada, suportada pelas forças partidárias de oposição. A bipolarização que modela o campo político se estende ao espaço de expressão jornalístico de modo a anular a credibilidade dos espaços institucionais das denúncias, tidos como partidarizados.

  • 15  Sobre relações entre crise e desectorialização, vide M. Dobry, Réflexions à partir d'une analyse s (...)

17Nessas condições político-institucionais, a denúncia de corrupção só é um empreendimento destinado a convencer que se trata efetivamente de um escândalo, se ela se demarca da polarização partidária e se inscreve de forma durável para além dos espaços da imprensa como uma quase expertise. O escândalo político é, como a totalidade de instituições políticas cabo-verdeanas, uma instituição importada, um modelo de relação com a política e uma estratégia de produção de um tempo intenso da política. A extensão temporal do escândalo implica na geração de uma memória e numa produção de registros públicos que concatenam acontecimentos e biografias o que demanda do denunciante, uma relação letrada com a política, como meio de fixação durável do estopim do escândalo na paisagem política do país. As disposições, as competências e os instrumentos para uma denúncia na forma de dossiês públicos não sectorializados, são bens relativamente raros, em nações recém saídas de uma colonização avara na escolarização dos indígenas. Chamo aqui de dossiê publico não sectorializado15 a arquivos que não se restringem a forma de relatórios que circulam no espaço interno a um sector do Estado, nem são veiculados pela imprensa na íntegra e nem mesmo se constituem como uma enunciação dirigida a um público da academia. Se propor em explicitar as possibilidades da encarnação dessas condições de escandalização em determinadas trajetórias sociais pode ser um fecundo caminho para a explicitação não apenas do quanto e do como o desvelamento da corrupção pode acontecer em Cabo Verde, mas também, dos interesses subjacentes às estratégias da denúncia política que extrapola os limites das contra-posições partidárias.

  • 16  Cada livro de denúncia de Benoni se esgota rapidamente uma tiragem de 1 000 exemplares, numa capit (...)
  • 17  Aqui também, « escandalisar é não apenas afirmar que um limiar foi transposto, que isso não é tole (...)

18Com vocação autobiográfica e com explícitas intenções literárias, os dois livros16 de Daniel Benoni são testemunhos públicos que ao reunir dossiês de imprensa e relatos de conversas privadas faz um balanço que reclama do leitor uma « justa » escandalização17. A estratégia de apresentação de si que testemunha, sobretudo o último livro, « os clarins da perseguição e corrupção », o tom literário e a auto-heroisação são recursos de escandalização que não estariam disponíveis na forma artigo para os pequenos periódicos do lugar. Os livros de Benoni são ajustes de contas com um governo diante do qual se sente impotente politicamente, mas que pode expor publicamente. Trata-se de uma revanche que visa no mesmo momento reconstituir uma imagem de si ultrajada pela perseguição policial e política e se apresentar como uma demanda política por mais democracia.

Armindo Ferreira : de governante a denunciante

  • 18 A. Ferreira, A cortina dos milhões, Praia, Edição do autor, 2003, 209 p.

19Uma outra « carreira moral » construída em torno de denúncias de corrupção é a de Armindo Ferreira. Tal como Benoni, Ferreira vem de uma trajetória por uma ex-colônia portuguesa em África, na qual coube aos quadros cabo-verdeanos um papel de intermediários da colonização portuguesa. Esse tipo de trajetória por posições elevadas no império colonial português tende, por um lado, a infundir elevadas expectativas de inserção nos mais elevados postos do arquipêlago por conta da transferência de habitus relacionados a um desempenho de mediador em meio a uma massa de colonizados em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau. Por outro lado, o desvio de trajetória, de quadros que não passam nem pela guerrilha, nem pelas atividades clandestinas de estudantes na metrópole, tende a implicar numa inserção retardatária e conflituosa no seio da elite pós-colonial cabo-verdeana. Armindo Ferreira, nunca fora uma liderança destacada do MpD, partido que destronou, nas primeiras eleições livres, os quinze anos de governo do PAICV. O engajamento de Armindo Ferreira nas lutas de oposição ao regime monopartidário e uma formação superior em Engenharia de Minas lhe conferiram cotação para chegar a condição de Ministro das Infra-estruturas e Transporte, sob o primeiro governo do MpD. Depois de demitido, numa conjuntura de crise do partido do governo em que quatro outros ministros também são preteridos por divergências políticas, Armindo Ferreira escreve um livro expondo suspeitas sobre o processo de privatização da maior estatal cabo-verdeana de combustíveis18. Tendo sido deslocado do centro da esfera política do país numa conjuntura crítica de reorganização das forças que ocuparam o poder com a « transição democrática », Ferreira não tem um lugar no parlamento como seus demais confreres rejeitados da condição de Ministros. Inserido na rede da elite política o suficiente para conhecer seus segredos e distante o bastante para ambicionar a um auditório mais amplo do que o circuito de homens da política, Ferreira se projeta num livro de edição caseira que lhe permite uma exposição de informações como não poderia nos maiores periódicos do país.

  • 19  Como na forma social do aletra, trabalhado por F. Chateauraynaud & D. Torny, Les sombres précurseu (...)

20Enquanto os outros quatro ministros « afastados » retomavam posições na Assembléia Nacional e podiam aí expor as tramas ocultas dos processos em torno da privatização das estatais, Armindo Ferreira dispunha de tempo, distância e, sobretudo capital social para expor o escândalo na forma de um livro com pretensões de objetividade e exaustividade. O dossiê de Armindo Ferreira pode ser tomado como uma releitura dos affaires revelados pelos pares em instâncias relativamente fechadas, e como um processo de gestão da memória do escândalo que lhe estende a temporalidade muito além da conjuntura inicial da denúncia19.

21Seria redutor fazer do descontentamento desses dois demitidos do governo do MpD o único ponto de partida dos empreendimentos morais de desvelamento de irregularidades na forma de livros, mas certamente a estratégia do Primeiro Ministro de destruição sistemática dos ocupantes dos postos não alinhados com o governo, favorece o processo de dessectorialização da denúncia que é segundo Dobry (1986) típico das « conjunturas fluídas ».

O escândalo da embaixada

22Que exercícios de comprovação se impõem ao reconhecimento do escândalo político nas condições cabo-verdeanas ? A reflexão em torno da questão das possibilidades de tomada de palavra pública contra um governo num contexto de democracia recente é um exercício que permite simultaneamente descortinar o grau em que as atividades político administrativas estão sujeitas a dispositivos de vigilância que constrangem disposições corruptivas e as exigências que pesam sobre o denunciante para que possa ser levado a sério.

  • 20  Entrevista com Daniel Benoni em 4 de Maio de 2007.

23Já antes de partir para Portugal, em 1993, Benoni recebera insinuações de que a averiguação das irregularidades praticadas pelo embaixador em Portugal deveria na verdade ser apenas uma visita de performance. Quando esse inspetor do Ministério de Negócios Estrangeiros regressa de Portugal, após averiguar a denúncia feita publicamente pelo funcionário da embaixada, Dr Geraldo Almeida, segundo a qual o embaixador Eugênio Inocêncio vinha praticando múltiplas irregularidades no exercício das suas funções, recebe ordens implícitas de seus superiores hierárquicos de que deve « abafar » tais irregularidades20. Essa é a versão pela qual Benoni pretende mobilizar a pequena esfera dos leitores cabo-verdeanos de que seu caso só aparentemente singular merece bem a atenção de todo um público, porque são os valores de uma nação pretensamente democratizada que estão em jogo. Qualquer que seja a parte de verdade dessa versão, a reação pública do governo revela as práticas e estratégias do jogo político que conformam a importação das instituições « democráticas » em Cabo Verde e a qualidade das redes de alianças que o governo tende a mobilizar para proteger suas mais elevadas figuras dos efeitos do escândalo.

  • 21  « Quem reúne condições de esmagar o adverário, num jogo de forças ».

24Quando, desnecessariamente, em aparência, o Primeiro Ministro faz um pronunciamento público realçando os serviços do embaixador denunciado, o gesto desnuda uma demonstração de forças sem pudores. Como geralmente na imprensa estatal, as múltiplas manifestações oriundas das posições de defesa do governo, que se seguiram, revelam um misto de manipulação de códigos jurídicos, argumentos de autoridade político-moral e a sustentação implícita numa rede de posições de poder que permitem não levar em conta as demandas morais do adversário. Os termos dessas enunciações demonstram « quem qui podi »21, expressão local de demonstração de uma força assente em capacidade de violência física, que sem precisar se efetivar gera autoridade.

  • 22  É o que fica evidente, por exemplo, quando a comissão parlamentar de inquérito que investiga o esc (...)

25A força moral da enunciação de poder em Cabo Verde reside no domínio de um código que por ser externo a maioria da população a reduz a condição de espectadora e esmaga os adversários a golpes de autoridade que prescindem de força argumentativa substancial e exacerbam dimensões formais do exercício de comprovação22 em lugar da exploração das dimensões de justiça moral em questão.

A força das redes de neutralização do escândalo

26A relação dos intelectuais cabo-verdeanos com retórica de poder precisaria de um capítulo a parte. A experimentação principal deste artigo tem como base a idéia de uma peculiaridade cabo-verdeana em seus processos de reconversão de elites intelectuais. Em um país sem outras fontes de enriquecimento que o controle dos fluxos de bens estrangeiros, o domínio sobre a principal agência de importação – o Estado – é crucial nas estratégias de reconversão de elites. Há mais de um século, em Cabo Verde, as elites lutam pelo controle do processo de importação de modelos, títulos e instituições escolares como estratégia central de controle de seus processos de reconversão, reprodução e recrutamento para os principais postos na alta administração. A grande herança intelectual cabo-verdeana, transmitida de geração em geração de intelectuais, é a noção de que o prestígio deriva de um domínio de códigos intelectuais inacessíveis a maioria. Por isso a peculiaridade cabo-verdeana nos processos de conversão de recursos estatais em riquezas pessoais se faz com o intelectual como figura central nas estratégias de controle do Estado.

27Duas décadas após a independência nacional, o regresso anual de um grande número de pessoas de uma formação no exterior caracteriza uma nova geração de intelectuais : os quadros. Emergentes em número relativamente grande, com formação heterogênea não só pela multiplicidade de países de formação, mas, sobretudo pela diversidade de áreas de estudo, os quadros colocam em jogo a própria noção anterior de intelectual no arquipélago. Sem a formação literária e a proeminência intelectual das gerações anteriores, os quadros recém chegados ao país têm dificuldade em responder à vocação de mediadores político-culturais que a perspectiva de « sua » história de grupo lhes impõem. Disputando, cargos, posições e recursos de prestígio cada vez mais escassos, os novos quadros tendem cada vez mais a se desengajarem da velha figura do escritor-poeta-mediador e a assumirem que a política-partidária é o único caminho para o topo da hierarquia de uma sociedade cada vez mais desigual em riquezas.

  • 23  Uma explicitação mais detalhada da trajetória de Carlos Veiga em correlação com as lutas e transfo (...)

28A trajetória do então Primeiro Ministro, Carlos Veiga23, é típica, antecipa e inaugura um novo tipo de trajetória intelectual, a do expert, que não tendo passado pela luta de libertação nacional, nem possui os talentos literários exigidos das gerações consagradas anteriormente, em compensação tem a exibir, mais do que nunca, o domínio de códigos externos a cultura local (sobretudo códigos jurídicos) e competências relacionadas à manipulação de relações locais e internacionais que conferem poder. Quando Carlos Veiga, o Primeiro Ministro, demonstra publicamente seus vínculos com o embaixador e sua adesão a essa parte da contenda, a controvérsia ganha a forma de um affaire. Os pressupostos « fatos de corrupção » fragilmente encarnados em um testemunho na forma de relatório e depois em um formato de livro passam a enfrentar a força de enunciação do Chefe do Executivo do país que mobiliza um conjunto de instâncias institucionais como a procuradoria, os tribunais, a televisão estatal e a polícia para desqualificar o autor da denúncia e reforçar a autoridade do governo.

29Se do lado do ex-inspetor toda uma rede se instala para tornar possível desde a publicação de um livro de divulgação do escândalo e a designação do denunciante como candidato e sua eleição como edil na capital do país, em contraposição, do lado do Chefe de Estado e do embaixador, aliam-se o Tribunal de Contas que retém o processo por três anos, o Procurador Regional da República que acusa o ex-inspetor de desvio de documentos da embaixada, a polícia mobilizada para procurar os referidos documentos em casa do ex-inspector que passa a se ver, de certo modo, em regime de vigilância.

  • 24  Vide F. Chateauraynaud & D. Torny, Les sombres précurseurs… op. cit. : 28.

30Dessa clivagem política que se instala com o affaire Benoni resulta a impossibilidade de estabilização do fato da corrupção. Outros textos já fizeram a demonstração dessa instabilidade, a impossibilidade de comprovação positivista do fato da corrupção, como uma das características do escândalo político. Acontece com a forma social escândalo como com o alerta que contrariamente ao modelo positivista da prova formal que deve vigorar na esfera jurídica um escândalo « não precisa ser "objetivo" mas deve apenas engendrar "bons" testes »24.

31Portanto nada interessado na possibilidade de comprovar a corrupção subjacente ao escândalo, interessa-me aqui o escândalo como dispositivo de vigilância, demonstrar sua vigência no caso cabo-verdeano, como um dos regimes de relação com a política e que constrange ações de corrupção.

Uma denúncia bem detalhada

32Se nem todo o caso de corrupção se transforma em escândalo político, o que faz com que determinados casos ascendam a esse status de escândalo para além da presença próxima de atores dotados dos recursos para uma denúncia sistemática, como vimos acima ?

33Em Cabo Verde, livros inseridos em escândalos políticos, não aparecem no inicio das atividades de corrupção para neutralizar seu prosseguimento, mas também nunca são « apenas » um balanço final. Num estado de política demasiadamente urgente, quem organiza dossiês está convocado a intervir politicamente, escreve enquanto empreendimento de mobilização de opiniões, e só o faz quando tem chances de grande impacto, quando o sistema de transgressão está suficientemente ameaçado para garantir a afirmação da figura do denunciador.

34A conjuntura da publicação do primeiro livro de Benoni demonstra bem que a exacerbação de uma crise no seio da elite governamental é ocasião em que um evento ou uma série de eventos podem ser denunciados, pretexto para dissidentes do grupo no poder ampliarem e potencializarem um auditório, munidos dos recursos políticos de uma oposição atiçada sobre a fragilidade momentânea do adversário que governa. É assim que os dois escândalos só ocorrem no momento em que o MpD se fragmenta após sucessivas crises e expulsões de quadros importantes de fundação desse que é o primeiro partido a chegar ao poder após a implantação do sistema multipartidário.

  • 25  Mesmo se como analisa Garrigou, o escândalo tenha um fraco poder de mobilização consecutiva, porqu (...)

35Tendo se deslanchado como escândalo uma série de eventos que pareceriam desarticulados tendem a se organizar aos olhos de um auditório para se configurarem como evidências de um processo sistemático de conversão de bens estatais em riquezas pessoais. É a relação do escândalo com o tempo, na forma como coloniza eventos do passado e do futuro, que faz-nos pensar num dispositivo crescente de fiscalização da vida pública cabo-verdeana25. O escândalo tem uma relação com o tempo que é o da ressonância. Toda uma serie de acontecimentos passados e futuros passam a ser enquadrados na moldura do escândalo. É assim, que se passa a lembrar que Eugênio Inocêncio, o embaixador, era o Presidente do Conselho de Administração aquando do processo de privatização da empresa cabo-verdeana de telecomunicações, cuja transparência também foi colocada em causa tanto na Assembléia nacional como nos rumores de rua.

  • 26  Tudo pode passar a alimentar e reformatar a temporalidade do escândalo. Assim um blog do jornalist (...)

36É também parte do escândalo o fato de que dez anos depois da denúncia o mesmo ex-diplomata reapareça na cena pública como um dos maiores acionários do maior investimento empresarial no país. A construção do maior complexo turístico com que contará Cabo Verde, o Santiago Golf Resort, está sendo assegurada por uma companhia portuguesa e o recém reconvertido homem de negócios, Eugênio Inocêncio26. Conjuntamente, Eugênio Inocêncio e a multinacional portuguesa asseguram um projeto de 550 milhões de euros, o equivalente ao orçamento geral do Estado Cabo-Verdeano por dois anos. No affaire Santiago Golf Resort, o grupo português Sacramento Campos contribui com 75 por cento do financiamento e o ex-homem político com os restantes 25 por cento.

37Por essa geometria de um presente que se alastra numa série de eventos, mesmo se nem todas as ações de corrupção se transformam em escândalo, o presente do escândalo tende a colonizar de tal modo o passado e o futuro que se constitui numa espécie de dispositivo panóptico.

  • 27  A denúncia refere-se a compra de 609 contos de whisky (quase oito mil dólares) em um mês.

38Não se poderia dizer que Cabo Verde é um país em que os atos de corrupção estejam naturalizados. Que estratégias de escandalização tenham ido buscar os gastos de uma embaixada no exterior com bebidas27 deixa evidente o regime de esquadrinhamento e vigilância a que o funcionalismo cabo-verdiano pode ser submetido. O que se verifica no arquipélago como alhures, é uma distância intransponível entre denúncia e comprovação, quando os denunciados são suficientemente poderosos para transformarem o escândalo em affaire.

  • 28  G. Blundo & J.-P. Olivier de Sardan, « La corruption au quotidien »… , op. cit.

39Tal regime de exigências de comprovações torna evidente a impotência do sistema de punição diante da rede de alianças das elites no poder. Se as clivagens no interior dessa elite são suficientes para produzir revelações escandalosas, os empreendimentos morais que decorrem dessas clivagens não estão suficientemente instrumentalizadas para desencadear a punição. Que essa impotência possa ter como efeito um descrédito nas instituições e que possa gerar um ciclo vicioso de corrupção, isso não significa uma cultura na população em geral que seja favorável às atividades corruptivas como pretendem Olivier de Sardan e Blundo28 para o Senegal, o Niger e o Benim.

O Escândalo da Enacol

40O segundo caso de escândalo, do regime pluripartidário cabo-verdiano e que gerou um livro, refere-se à primeira fase de privatização da Enacol que ocorre em 1997 com a venda de 65 % da empresa à Petrogal (Multinacional Portuguesa) e à Sonangol (Multinacional Angolana de Petróleos), passando cada uma destas entidades a deter 32,5 % do capital social da mais importante empresa cabo-verdeana de combustíveis.

  • 29  Horizonte de 18 de Maio de 2000.

41O processo de privatização emerge como um escândalo quando rumores sugerem que teria havido graves irregularidades na condução das negociações com a multinacional angolana, a Sonangol. O escândalo cede lugar a uma crise política quando seis deputados do próprio partido no governo (os mesmos ministros que tinham sido demitidos) dirigem ao Primeiro Ministro uma carta29 explicitando os pontos controversos da negociação e sugerindo a possibilidade de um desvio de dois milhões de dólares. Segundo os rumores explicitados na carta, o montante da venda à Sonangol teria sido de onze milhões trezentos e setenta e cinco mil dólares e uma parcela de tal valor, algo em torno de dois milhões de dólares, não teria entrado nos cofres do Tesouro Público.

42Vários são os pontos de controvérsia com relação à forma como a negociação foi entabulada. Desses pontos destacam-se três pela intensidade dos debates que suscitaram.

43Previa-se de início, por lei, que 65 % das ações deveriam ser vendidas pelo processo de venda direta, na totalidade e em bloco indivisível a uma empresa de petróleo ou a um consórcio de empresas que incluísse pelo menos uma empresa de petróleo. A revelia da lei as ações foram vendidas em dois blocos de 32,5 % para a Petrogal e a Sonangol. Alega o governo que as duas empresas teriam atuado como um consórcio, o que não se verifica posteriormente.

44Duas outras supostas irregularidades têm a ver com as exigências de um seguro caução e de um contrato de compra e venda. Segundo alegações do Vice-Primeiro-Ministro, à Sonangol não se teria cobrado a caução de 500 000 dólares previsto em lei por razões políticas e diplomáticas, dentre as quais o fato de Cabo Verde ter uma dívida de seis milhões de dólares para com o Estado de Angola.

45As razões para a inexistência de um contrato de compra e venda são apresentadas da seguinte forma pelo Primeiro Ministro no auge do affaire :

  • 30  Primeiro Ministro em entrevista ao jornal Horizonte de 8 de junho de 2000.

« Mas há mais : diz-se que há falta de contrato. Na venda de acções, um contrato escrito não é essencial. Segundo a nossa lei, para que haja transferência de propriedade das acções, é preciso que haja o averbamento dessa transferência no livro de registo de acções. Mesmo que eu tenha um documento a dizer que transferi as acções, isto não releva enquanto não fizer o averbamento. O contrato é um juntar de declaração de vontades. Basta que eu tenha duas cartas em que um diz, eu vendo e o outro diz eu aceito comprar, para se ter um contrato. E nós temos isso. Temos uma carta do Governo a dizer que aceitámos o preço de nove milhões de dólares e temos uma outra da Sonangol a dizer que vão comprar. »30

  • 31  Não é uma particularidade dos governos do sul que, como chama a atenção Lascoumes para as situaçõe (...)

46De novo emerge o caráter não substancial e meramente formal do processo de condução das justificações pelas forças políticas no poder31. O que permite descortinar se a empresa angolana pagou onze milhões em vez de nove milhões de dólares ? – Nenhum documento oficial.

47Um outro ponto muito explorado no affaire, nódulo decisivo nas exigências de comprovação é o fato do governo ter dado a conhecer à empresa concorrente, Sonangol, o resultado da avaliação interna para se saber quanto a sua empresa vale. Tanto por um princípio econômico quanto pelo legal a empresa compradora não teria razões para conhecer à avaliação solicitada pelo governo cabo-verdeano a uma auditoria internacional.

48Esse ponto é tanto mais decisivo na controvérsia porquanto alega o governo que a cota da Enacol vendida a Sonangol de fato não valia mais do que nove milhões, pelo que os dois milhões em questão referem-se apenas a diferença entre o valor indicativo adiantado pelo governo cabo-verdeano e o valor efetivo definido por auditoria internacional.

  • 32  Sobre a tendência dos governantes a alegar motivos estratégicos para justificar irregularidades ad (...)

49Instado a justificar os privilégios concedidos a empresa angolana nas negociações, o representante do governo o faz alegando « motivações de ordem estratégica », o objetivo de fazer de Cabo Verde um ponto estratégico de comércio de derivados de petróleo. Sob essa linha de raciocínio a Sonangol, estaria sendo, tratando-se de uma empresa que produz petróleo bruto, seduzida a vender a Cabo Verde o combustível a preços competitivos, apontando-se inclusive para a possibilidade de construção de uma refinaria de petróleos em Cabo Verde. Mira-se a longo prazo para a possibilidade de Cabo Verde se apresentar como uma plataforma de exportação de petróleo refinado para paises desenvolvidos que lutam com problemas de saturação em termos de quota de poluição. Visualiza-se que Cabo Verde teria uma boa localização geo-econômica se considerada a proximidade de grandes bacias de petróleo, da África Central e do Oeste. Alega-se que o mapeamento dessas pré-condições pela multinacional angolana poderia vir a estimular um investimento neste domínio32.

50O objetivo aqui, não é explorar as contradições do governo, na explicação dos tramites da negociação, mas o de explicitar a qualidade das redes de relações sociais acionadas para neutralizar as estratégias e os efeitos da escandalização. Efetivamente a base de relações para conter as estratégias de escandalização são as mesmas acionadas para efetivar a transação comercial, a confiança pessoal que estabelece a invisibilidade do privado em trâmites que são do domínio Estatal.

51Para justificar o depósito num paraíso fiscal, da parte angolana, de nove milhões de dólares sem um contrato de compra e venda o governo cabo-verdeano pode alegar não apenas que o contrato não é juridicamente imprescindível, como também apresentar uma troca de cartas em que o Vice-Primeiro Ministro de Cabo Verde e o diretor geral da Sonangol concordam quanto ao valor de nove milhões de dólares. As duas cartas não carregam os sinais de oficialidade, além da notoriedade dos dois interlocutores.

52Contratos explícitos se fazem inscrever materialmente em formas jurídicas, daí a necessidade do governo apresentar formas de inscrição alternativas ao contrato inexistente. O fato da empresa ter um novo estatuto ? A tomada de posse pelo administrador da Sonangol, com todos os tramites documentais que a instalação de um novo escritório implica ? A possibilidade de que exista um registro notarial em Angola ? Todas as alternativas são apresentadas pelo vice-primeiro ministro em Assembléia nacional.

53O que o conjunto do affaire revela é o predomínio de ações baseadas em confiança entre o vice-primeiro ministro e a direção da multinacional angolana nas brechas das exigências legais de contratos explícitos entre duas entidades oficialmente representadas.

Fazendo opiniões sobre a corrupção

54Com poucos institutos de sondagem e a maior parte das pesquisas sociais realizadas sob demandas internacionais, portanto voltadas para temas mais estruturais do que conjunturais, é difícil avaliar o grau de penetração do escândalo e a medida em que os dossiês da Enacol e da Embaixada construíram uma opinião publica em Cabo Verde em torno da questão da corrupção. Contudo essa avaliação dos impactos dos escândalos sobre uma esfera pública criada a partir da crise seria fundamental para o argumento principal deste artigo de que as lutas da elite política do país têm estimulado uma importante moralização das opiniões com relação às atividades político-administrativas.

55Um dos poucos institutos africanos de sondagem e pesquisas sociais sediado em Cabo Verde, o Afrobarômetro, realizou uma sondagem de opiniões no seio dos funcionários públicos e privados. Como essa sondagem acontece de sete a nove anos após o inicio dos escândalos, ela não favorece a análise sobre os impactos dos dossiês (o que não era o objetivo da pesquisa do Afrobarômetro), ajuda-me contudo a esclarecer o modo como uma opinião pública sobre corrupção vem sendo gestada e estimulada. Tomo os estudos como os realizados pelo Afrobarômetro como parte das mesmas estratégias de mobilização subjacentes ao escândalo. Efetivamente a sondagem nas condições cabo-verdeanas é mais um ato de mobilização pública do que de simples exposição do estado prévio das opiniões.

  • 33  D. Georgakakis, « Lutte anti-fraude, scandale et nouvelle gouvernance européenne », in J.-L. Briqu (...)
  • 34  Que o atual primeiro ministro tenha colocado em dúvida as atividades de uma organização como a Alt (...)
  • 35  Foram aplicados 492 inquéritos para um universo de 16 585 funcionários.

56O estudo foi encomendado por um escritório das Nações Unidas sob mediação da Comissão de Coordenação do Combate a Droga. A demanda pelo o estudo se insere numa conjuntura internacional em que à pressão exercida sob os Estados periféricos por austeridade econômica se conjuga cada vez mais uma imposição de austeridade moral33. A par da importação de instituições de vigilância como é o caso da Alta Autoridade contra a Corrupção34, o governo cabo-verdeano atende a injunções por avaliações e seminários freqüentes sobre a corrupção. Nesse caso a avaliação do grau em que a corrupção é importante em Cabo Verde se faz não pelo estudo dos casos de corrupção, mas pela avaliação da opinião dos funcionários públicos e privados35 sobre o que seja corrupção e sua importância em Cabo Verde.

  • 36  « A estatística estando inscrita no funcionamento mesmo do mundo social, a análise estatística não (...)

57Entendendo-se que o processo de importação de modelos de avaliação e modelos de instituições de intermediação, tem o efeito de fazer ressoar tal sistema de vigilância no interior das esferas administrativas, o estado das opiniões dos funcionários cabo-verdeanos sobre a corrupção não é imune à rusga moral imposta pelas instâncias internacionais36. Ou seja, a demanda pelo estudo é parte do processo de exportação de modelos de constituição de esferas públicas e o resultado do estudo já está contido em parte nas injunções subjacentes a demanda.

  • 37  « Cerca de 1/3 (32,5 %) dos funcionários concorda, ou concorda fortemente, que alguns dos utentes (...)

58É assim que a sondagem recentemente realizada pelo afro-barômetro revela que a opinião dos funcionários públicos do país com relação à corrupção está longe de uma disposição discursiva que favoreça a naturalização desse tipo de práticas. Destaca-se como um dos resultados do estudo que apenas um em cada cinco funcionários públicos cabo-verdeanos afirma-se indisponível para denunciar um colega em caso de corrupção. Mais de metade dos funcionários cabo-verdeanos tende a avaliar que a qualidade dos serviços administrativos não está condicionada à retribuição dos utentes. O reconhecimento de que existe um nível de corrupção sensível37 e que a imparcialidade de suas atuações como funcionários não é total tanto pode indicar uma permissividade quanto uma auto-critica, relação não naturalizada com práticas que os próprios funcionários considerariam irregulares.

59Do mesmo modo que o reconhecimento de um conjunto de práticas de favorecimento a conhecidos e familiares pode ser revelador de um quadro moral de relações de reciprocidade que não as reconhece como práticas irregulares bem como pode significar uma rejeição a nível discursivo e a constatação de seu prosseguimento a nível das práticas. O que os resultados da pesquisa revelam é que mesmo se a reciprocidade inter-pessoal perpassa a esfera pública, está longe de significar uma aceitação moral das práticas reconhecidas como irregulares e que recobre significativamente o âmbito do que legalmente se prescreve como atos de improbridade administrativa. Grosso modo se poderia dizer que o estudo revela a eficiência da rusga internacional moralizadora que atuando sobre uma disposição subjetiva já previamente propensa a aceitar um discurso de austeridade moral nas esferas administrativas, recolhe bem os resultados de sua própria iniciativa, numa situação favorável de importação de instituições e modelos de governamentalização da « coisa publica ».

60É certo que uma denunciada ausência de dispositivos institucionais de acolhimento e proteção à denúncia e aos denunciados pode gerar o ciclo vicioso da disconfiança em relação a institucionalidade que gera mais corrupção. A percepção de tal risco está tão presente nos funcionários cabo-verdeanos que, mesmo se na prática medidas impopulares de controle da pequena corrupção encontrem resistências o quadro moral lhe é favorável pois que tais medidas tendem a ser apreciadas como necessárias.

61Uma avaliação minuciosa dos limites do estudo apontaria para a possibilidade de que a grande corrupção não seja visível para esse tipo de instrumento de pesquisa que é a sondagem e que a pequena corrupção é para ela bem visível em setores chaves de afluxo de bens materiais (diferentemente das irregularidades financeiras) como a alfândega e o setor de gestão de pequenos serviços de Estado que são as câmaras municipais.

  • 38  Para uma exposição dos limites desse tipo de abordagem sobre a corrupção vide P. Bezes & P. Lascou (...)

62São basicamente os funcionários do setor publico e privado os leitores que os empreendedores morais das estratégias de escandalização mobilizam numa cruzada que tende a recristalizar o espaço político nacional após o desaquecimento do nacionalismo anti-colonialista. Não é por acaso que os dois escândalos em pauta tenham emergido como estratégias de atores politicos marginalizados ao espaço de atuação politico-partidário, trata-se de uma logica de ação de reordenamento do campo dos possíveis visando a uma reinserção no centro de uma politica moralizada. Mas a medida em que cresce o número de escândalos tende a diminuir a capacidade mobilizadora desse tipo de estratégia da escandalização e seus efeitos sobre a pequena corrupção poderia vir a ser, seguindo a abordagem dos teóricos do capital social seguidores de Robert D. Putnam, a do círculo vicioso da má gouvernança38 ? Teria isso já acontecido na maioria dos demais países da África ?

A impotência das redes de desvelamento

63A dinâmica dos dois escândalos analisados acima é produto e contribui para cristalizar um espaço público de vigilância, sobre a esfera administrativa, no seio do qual atuam os periódicos locais e que se estende através da internet e dos rumores de rua. Se por um lado essa visibilidade a que se submetem as práticas de governo tende a coibir a corrupção, por outro lado a rotinização da denúncia tende a neutralizar as estratégias de escandalização.

64Apesar do elevado nível de sensibilidade da opinião dos funcionários públicos cabo-verdeanos em relação à corrupção, nas altas esferas o caráter grosseiro das práticas de canalização de recursos públicos para enriquecimento privado é flagrante nos processos de reconversão de trajetórias de homens politicos em homens de negócios. Tentei sugerir ao longo do artigo que as redes informais de reciprocidade no seio da elite governamental são o que garante a sub-punição dos casos de corrupção, sustentando a continuidade de tais práticas. As exigências de comprovação a que as denúncias devem transpor são demasiado elevadas para o poder de ocultação das redes que envolvem as práticas escandalosamente cunhadas de alta corrupção.

65Nos dois casos logo após a denúncia, a intervenção do então Primeiro Ministro foi providencial para desestabilizar o processo de averiguação dos supostos fatos de corrupção. A teia de relações em torno do Primeiro Ministro, mobilizadas para impedir a instalação efetiva de um sistema de comprovações, acusou a assimetria entre denúncia e comprovação que torna impraticável a punição por crime de improbidade administrativa.

66De modo geral se poderia dizer que em Cabo Verde o trabalho dos funcionários está sob razoável nível de vigilância. Os casos já ocorridos de punição por corrupção testemunham que quando ela não envolve o alto escalão de governo, a irregularidade tende a ser punida de tal forma que não se poderia dizer que é a capilarização de pequenas práticas irregulares que sustenta moralmente os grandes delitos de Estado. O maior caso de averiguação em profundidade de uma denúncia de irregularidade administrativa é provavelmente o das Alfândegas da Praia. De julho a Dezembro de 2004 dois inspetores chegaram ao relatório final de uma sindicância que confirma a existência de um quadro de corrupção. Esse tipo de processo de comprovação se impôs contra ameaças e pressões de atores sociais inseridos em redes muito menos poderosas do que as dos casos da Enacol e da embaixada.

67A pequena e alta corrupção não são fenômenos que podem ser sociologicamente descortinados num mesmo quadro. Trata-se de fenômenos diversos, que mesmo se inseridos num mesmo contexto, demandam metodologias diferenciadas. O empreendimento de moralização da relação com a coisa pública, com fortes investimentos internacionais, tende a assegurar uma vigilância sobre os setores baixos e intermediários do funcionalismo, deixando invisível as tramas em torno dos altos cargos de poder. Diante das alianças e dos recursos moblizáveis no seio da elite política os dispositivos de comprovação e punição se revelam impotentes. No caso da alta-corrupção, a política anti-fraude tem sobrecarregado de humor moral o processo de transformação da denúncia em escândalo e do escândalo em affaire, sem que esse processo ajude a estabilizar os fatos de corrupção, seu processo de comprovação.

68Dada à urgência compulsiva de dissolução dos marcos da presença do Estado na economia, a imposição de políticas de privatização pelas agências vencedoras da mundialização não vem acompanhada das garantias institucionais de que os marcos jurídicos exportados para tal processo sejam suficientes para coibir as estratégias de reconversão de recursos públicos em riquezas pessoais. A margem de flexibilidade proporcionada por esses dispositivos abre imensas brechas para que os importadores do dogma da privatização rápida e a qualquer custo, tirem todas as vantagens das brechas entre contratos implícitos e a formalização legal.

69O tratamento desigual em termos metodológicos que normalmente se dá aos affaires em África e na Europa tendem a exacerbar o contraste cultural e moral ali onde uma sociologia da importação de instituições e da circulação de elites do norte e do sul explicaria melhor do que uma pressuposta propensão cultural atávica à corrupção.

Junho de 2007 e Janeiro de 2009

Haut de page

Notes

1  Vide entre muitos outros, J.-F. Médard, « Charles Njonjo : portrait d’un "Big Man" au Kenya » in E. Terray, (ed.), L’État contemporain en Afrique, L’Harmattan, Paris, 1987, em um texto particularmente importante para esse estudo pelo modo como se afasta das análises clássicas que associam poder pessoal e carisma.

2  O estudo « Governance Matters V : World Governance Indicators », 1996-2005, <http://info.worldbank.org/governance/wgi2007/pdf/c49.pdf> aponta Cabo Verde como o país de maior estabilidade e Estado de Direito dentre os países africanos lusófonos.

3  Aparentemente a mudança de regime retirou do poder um governo de esquerda, substituido por outro francamente neo-liberal. De forma sintética Cahen demonstra que no plano econômico o novo governo do pós-pluripartidarismo não iniciou as politicas de reformas econômicas liberais, mas levou-as adiante mais decisivamente, em três eixos principais : num primeiro eixo, a restrição do papel do Estado ao de simples gestionário macro-econômico ; um segundo eixo é o das incitações fiscais ao investimento estrangeiro através da criação de zonas francas, supressão de controle de preços, flexibilização da regulamentação do trabalho ; por fim, através de mudanças nas políticas de trocas e nos direitos aduaneiros. Já antes, o partido único, que foi nacionalista radical mas não marxista, desde a segunda metade da década de 1980 ganhara uma orientação liberal em matéria econômica sob o grande projeto de se transformar o país numa Estação de serviço do Atlântico médio. Vire M. Cahen, « De nulle part à la mondialisation » ?, in Pays lusophones d'Afrique : sources d'information pour le développement, Paris, Ibiscus, 2000 : 105-109.

4  Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Portugal são considerados pela Freedom House os únicos países lusófonos com liberdade total de imprensa.

5  Em um artigo tido como fundador de uma sociologia pragmática em França, L. Boltanski, « La dénonciation », Actes de la recherche en sciences sociales (Paris, Ehess), 1984 : 54, demonstra que as condições de aparição de causas ou affaires exemplares estão sujeitas aos constrangimentos de uma gramática da denuncia. Quando as pessoas se apresentam como denunciadores devem satisfazer a um constrangimento de comensurabilidade entre o autor da denúncia, a vitima, o autor da tormenta e o juiz designado para o affaire.

6  De 1975 a 1991 governou o país o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC) que se transformou em Partido Africano para a Independência de Cabo Verde (PAICV) na década de 1980. Com as primeiras eleições livres e pluripartidárias, chegou ao poder o maior partido de oposição ao mono partidarismo o MpD.

7  D. de Blic & C. Lemieux, « Le scandale comme épreuve. Éléments de sociologie pragmatique », Politix (Paris), 2005, XVIII : 28.

8  Minha aposta é que seguir o programa de uma sociologia pragmática do escândalo « que considera o escândalo como uma provação através da qual é reavaliada coletivamente o vínculo às normas » ajudaria a descontituir imagens simplista da corrupção em África como a noção de que aí predomina uma economia moral que banaliza o enriquecimento ilícito, abordagem que não ajuda a explicar porque existe um público que consome os escândalos de corrupção. Cf. D. de Blic & C. Lemieux, « Le scandale… », op. cit. : 17.

9  G. Blundo & J.-P. Olivier de Sardan, « La corruption au quotidien », Politique africaine (Paris, Karthala), 83, octobre 2001 : 11. Blundo e Sardan não têm a pretensão de que suas constatações para o Senegal, Niger e Benin sejam generalizáveis para os demais paises da África, embora o tom do artigo sugira que provalvelmente os demais estejam em situação mais grave. Cita-se a título de casos diferenciados, « as economias fundadas sobre a exportação do diamante e do petróleo, sem falar das economias de guerra e de pilhagem »

10  Entrevista com Daniel Benoni em 4 de maio de 2007.

11  Sobre a monopolização dos principais postos do Estado pós-colonial pelos ex-guerrilheiros durante a primeira República vide J.C.G. dos Anjos, Intelectuais, literatura e poder em Cabo Verde : lutas de definição da identidade nacional, Porto Alegre (Brasil), UFRGS/IFCH / Praia (Cabo Verde), INIPC, 2004 : 195-240.

12  Os esforços de publicação de Daniel Benoni R. Costa quase sempre o levam a editoração pessoal das próprias obras. D. Benoni escreveu As aves descansam com o crepúsculo, em 1973, numa publicação mimeografada na gráfica Minerva na cidade da Praia. A segunda obra, Não quero ser tambor foi editado na Praia pelo Instituto Cabo-verdiano do Livro e do Disco em 1977 [nova edição Lisboa, Vega / Praia, ICLD, 1989, 52 p.]. Um cabo-verdiano em Moçambique, também foi editorado pelo próprio autor em 1991 na Praia, 197 p. O último livro de Benoni, Pedaços de uma vida, publicado em 2009, volta a ser uma edição do próprio autor.

13  D. Benoni, Escândalo e benção, Praia, Edição do autor, 1996, 268 p.

14  Entrevista com Daniel Benoni em 4 de Maio de 2007.

15  Sobre relações entre crise e desectorialização, vide M. Dobry, Réflexions à partir d'une analyse sociologique des crises politiques : point de vue de Michel Dobry : actes de la 3e séance, Programme Risques collectifs et situations de crise, Grenoble, CNRS, 22 juin 1995 : 55 ; « Digamos que tendencialmente, de maneira assimétrica, de maneira sempre desigual, o que nôs chamamos de crises políticas – as grandes crises políticas ao menos – corresponde a enfraquecimento da sectorialização doespaço social, a uma desectorialização tendencial do espaço social, a uma menor significância das fronteiras ».

16  Cada livro de denúncia de Benoni se esgota rapidamente uma tiragem de 1 000 exemplares, numa capital de 11 7000 habitantes, o que não é nada desprezível se considerado os frágeis investimentos em publicidade editorial.

17  Aqui também, « escandalisar é não apenas afirmar que um limiar foi transposto, que isso não é tolerável, suportável, é também procurar um meio de fazer dizer e de fazer crer que o fato, a situação continua bem escandalosa ». (M. Offerle, Sociologie des groupes d’intérêt, Paris, Montchrestien, 1994 : 126).

18 A. Ferreira, A cortina dos milhões, Praia, Edição do autor, 2003, 209 p.

19  Como na forma social do aletra, trabalhado por F. Chateauraynaud & D. Torny, Les sombres précurseurs : une sociologie pragmatique de l’alerte et du risque, Paris, EHESS, 1999 : 66, na situação de escândalo « a definição do presente ou, se preferir, da atualidade é ela mesma de geometria variável segundo o tipo de objeto do processo em causa ». No caso em pauta, quando dez anos depois da publicação do livro Ferreira decide tomar uma posição eleitoral próxima dos políticos que acusara e é acusado de contradição em site da internet o presente do escândalo ainda enquadra a geometria do evento escândalo na Enacol.

20  Entrevista com Daniel Benoni em 4 de Maio de 2007.

21  « Quem reúne condições de esmagar o adverário, num jogo de forças ».

22  É o que fica evidente, por exemplo, quando a comissão parlamentar de inquérito que investiga o escândalo da diplomacia em Portugal, exige do fiscal do Ministério de Negócios Estrangeiros a demonstração de que o excesso de bebidas alcoólicas compradas pelo embaixador não teve um destino no âmbito de suas atuações diplomáticas.

23  Uma explicitação mais detalhada da trajetória de Carlos Veiga em correlação com as lutas e transformações das elites politicas cabo-verdeanas pós-colonias pode ser encontrada em M. Cahen, « Vent des îles. La victoire de l'opposition aux îles du Cap-Vert et à São Tomé e Principe, Politique africaine, 43, 1991 : 68.

24  Vide F. Chateauraynaud & D. Torny, Les sombres précurseurs… op. cit. : 28.

25  Mesmo se como analisa Garrigou, o escândalo tenha um fraco poder de mobilização consecutiva, porque os agentes potencialmente mobilizadores preferem conduzir o affaire em instâncias oficiais, em situações de importação recente de instituições estatais as fronteiras sectoriais são muito mais permeáveis como se pode ver no caso pauta. Vide A. Garrigou, « Le Scandale politique comme mobilisation », in F. Chazel (ed.), Action collective et mouvements sociaux, Paris, PUF, 1993 : 183-191.

26  Tudo pode passar a alimentar e reformatar a temporalidade do escândalo. Assim um blog do jornalista português Leston Bandeira faz lembrar que Eugênio Inocêncio, quando exilado em Lisboa, na década de 1980, lhe fora apresentado solicitando emprego, « como alguém que não já não tinha sequer para comer » <http://o-romeiro.blogspot.com/2005_07_01_archive.html>. Uma trajetória de uma década como comerciante após a reconversão da politica para os negócios e Eugênio Inocêncio se apresenta em Cabo Verde com um investimento empresarial de mais de cem milhões de euros !

27  A denúncia refere-se a compra de 609 contos de whisky (quase oito mil dólares) em um mês.

28  G. Blundo & J.-P. Olivier de Sardan, « La corruption au quotidien »… , op. cit.

29  Horizonte de 18 de Maio de 2000.

30  Primeiro Ministro em entrevista ao jornal Horizonte de 8 de junho de 2000.

31  Não é uma particularidade dos governos do sul que, como chama a atenção Lascoumes para as situações de corrupção no primeiro mundo, podem se dar ao luxo de um « cinismo com o qual os dirigentes se apropriam do poder que lhes é temporariamente confiado e o exercem segundo uma legalidade elástica e, mesmo fora das regras do direito comum segundo os princípios de utilidade imediata » (P. Lascoumes, Corruptions, Paris, Presses de Science Po, 1999 : 62).

32  Sobre a tendência dos governantes a alegar motivos estratégicos para justificar irregularidades administrativas vide P. Lascoumes, Corruption, op. cit. : 95, particularmente o extrato seguinte : « Além disso, dois possantes fatos justificativos contribuem para eufemisar a gravidade do atentado e as responsabilidas : o realismo econômico e o pragmatismo diplomático. No fim das contas, nenhuma instância de sanção social não é realmente mobilizada, a ação da justiça impotente e toda a sanção parece ilegítima ».

33  D. Georgakakis, « Lutte anti-fraude, scandale et nouvelle gouvernance européenne », in J.-L. Briquet & P. Garraud (eds), Juger la politique, Rennes, Presses Universitaires de Rennes, 2001 : 284.

34  Que o atual primeiro ministro tenha colocado em dúvida as atividades de uma organização como a Alta Autoridade de Combate a Corrupção ao mesmo tempo em que multiplica iniciativas governamentais relacionadas ao tema é um bom sinal da inflação regulamentária típica da atual conjuntura mundial de festa dos empreendedores morais no campo da política.

35  Foram aplicados 492 inquéritos para um universo de 16 585 funcionários.

36  « A estatística estando inscrita no funcionamento mesmo do mundo social, a análise estatística não poderia se alojar sobre o plano da técnica : pelo erro de se aprender as implicações sociais da estatística e as implicações estatísticas da realidade social – um outro exemplo seria o debate sobre as probabilidades objetivas e as probabilidades subjetivas – , se corre o risco de se fazer a sociologia sem o saber, isto é, a golpe de uma má sociologia », P. Bourdieu, La noblesse d'État. Grandes Écoles et esprit de corps, Paris, Éditions de Minuit, 1989 : 451.

37  « Cerca de 1/3 (32,5 %) dos funcionários concorda, ou concorda fortemente, que alguns dos utentes obtêm um melhor serviço. Estes funcionários também reconhecem, embora em proporções muito menores, que familiares e amigos de colegas obtêm um melhor serviço. Preocupante não é tanto o nível, mas sim, a frequência com que os familiares e conhecidos são beneficiados, mesmo violando as normas e regulamentos. Praticamente 1 em cada 3 funcionários (31,1 %) confirma que o faz frequentemente ou quase sempre. Uma proporção quase idêntica (29,1 %) afirma que nunca o faz » (Afrosondagem, Inquérito sobre Crime e Corrupção em Cabo Verde : Relatório Preliminar, Praia, 2006 : 7).

38  Para uma exposição dos limites desse tipo de abordagem sobre a corrupção vide P. Bezes & P. Lascoumes, « Percevoir et juger la "corruption politique" », Revue française de science politique (Paris), LV (5-6), octobre-décembre 2005 : 764-766.

Haut de page

Pour citer cet article

Référence papier

José Carlos dos Anjos, « Sobre o escândalo político em Cabo Verde »Lusotopie, XVI(1) | 2009, 25-43.

Référence électronique

José Carlos dos Anjos, « Sobre o escândalo político em Cabo Verde »Lusotopie [En ligne], XVI(1) | 2009, mis en ligne le 16 novembre 2015, consulté le 23 janvier 2025. URL : http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lusotopie/331 ; DOI : https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.1163/17683084-01601003

Haut de page

Droits d’auteur

Le texte et les autres éléments (illustrations, fichiers annexes importés), sont « Tous droits réservés », sauf mention contraire.

Haut de page
Rechercher dans OpenEdition Search

Vous allez être redirigé vers OpenEdition Search