- * A investigação foi realizada no quadro do projecto « Empreendedorismo, empresários e desenvolviment (...)
1Em Luanda, qualquer que seja o percurso que se escolha, é difícil não se encontrarem manifestações de actividade económica informal. Espalhadas por todos os bairros da cidade, estas actividades – business, esquemas ou processos, segundo a gíria luandense – asseguram uma parte substancial dos rendimentos, bem como a maior parte da oferta de bens e serviços que satisfazem as necessidades de consumo dos habitantes da capital angolana, em particular das populações mais desfavorecidas. A incapacidade do Estado e do sector privado criarem emprego formal, associada ao excesso de população residente nos bairros de Luanda, são algumas das razões que explicam porquê que é nas actividades informais que uma grande parte dos habitantes de Luanda encontra ocupação (Lopes 2001). Realizadas à porta ou em parcelas das habitações, na rua ou nos mercados, estas actividades caracterizam-se por uma grande diversidade e estão presentes praticamente em todos os sectores de actividade (comércio, prestação de serviços, pequena produção mercantil, agricultura, construção, transportes, sector financeiro).
2Candongueiros, kinguilas, roboteiros e zungueiros são expressões da gíria luandense que identificam algumas das actividades económicas desenvolvidas por agentes económicos que foram aparecendo a desenvolver actividade económica no quadro da designada economia informal (OIT 2002). Se algumas destas actividades permitem aos seus actores obterem rendimentos médios e, em alguns casos, rendimentos elevados, a grande maioria limita-se a permitir a sobrevivência dos seus agentes (Adauta 1998). Os estudos existentes sobre as actividades informais em Luanda revelam que a maioria delas são pequenos negócios, realizados por trabalhadores por conta própria, que permitem obter rendimentos essenciais para a sobrevivência das famílias. Um número significativo desses agentes acumulam a actividade informal com uma ocupação formal, como é o caso de inúmeros funcionários públicos e de assalariados das empresas privadas. A explicação para esta situação resulta do facto de o salário ter deixado de constituir uma fonte importante para a obtenção de recursos monetários por parte das famílias luandenses (PNUD 1999). Numa situação em que se verificam níveis elevados de inflação, o baixo nível de capacidade aquisitiva dos rendimentos salariais dos trabalhadores luandenses acaba por conduzi-los à procura de rendimentos adicionais que permitam assegurar a sua subsistência, bem como a dos respectivos familiares, rendimentos esses que são obtidos através da realização de actividades informais. Assim, não surpreende que em grande parte das famílias que residem na capital angolana, alguns dos seus membros estejam engajados na popularizada economia informal. Para além dos membros das famílias que desenvolvem essas actividades a tempo inteiro, outros membros famílias realizam essas actividades em tempo parcial, como é o caso daqueles que têm paralelamente uma ocupação formal, das « mamãs » que fazem comércio à porta de casa (venda de bolinhos, etc.) ou dos jovens estudantes que lhes dedicam uma parte do seu tempo livre (Lopes et al. 2003).
3Em Luanda, o segmento de mercado dos transportes públicos de passageiros apresenta um carácter plural, nele operando diferentes agentes institucionais : uma empresa pública (TCUL), quatro empresas privadas (Macon, Tura e Austral, todas criadas em 2001, e SGO, constituída em 2004), uma empresa de taxis privada (Macon) e um elevado número de operadores semi-oficiais ou informais, popularmente designados por candongueiros. A expressão refere-se aos actores que praticam a candonga, expressão de língua kimbundu que identifica os negócios ilegais, clandestinos, com finalidade especulativa (Ribas 1997). Inicialmente aplicada a todo o tipo de actividades paralelas que se começaram a multiplicar no final dos anos 1970, no quadro da economia centralizada de matriz socialista, a designação acabou por ficar confinada aos operadores envolvidos no transporte não oficial de passageiros e mercadorias. Na primeira metade da década de 1990, no contexto do processo de transição para o sistema multipartidário e para a economia de mercado, e em paralelo com um conjunto de medidas legislativas para reajustar o sector dos transportes à nova realidade político-económica – desmantelamento do monopólio estatal no sector e abertura à iniciativa privada – e para assegurar níveis de controlo e de regulamentação mínimos para a actividade desenvolvida pelos candongueiros, surgiu a Associação de Taxistas de Luanda (ATL), instituição que representa os interesses dos proprietários dos transportes urbanos semi-oficiais. O aparecimento dos operadores não oficiais remonta ao final da década de 1970 quando, em plena vigência do sistema centralizado de regulação administrativa da economia, a empresa pública de transportes urbanos de Luanda (TCUL – Transportes Colectivos Urbanos de Luanda) deixou de ter capacidade para responder às necessidades da população da capital angolana. Insuficiências financeiras, técnicas e de gestão, associadas a dificuldades temporárias no acesso a bens de reposição/substituição e aos condicionamentos resultantes da subordinação política, originaram uma política de desinvestimento e de ausência de conservação/manutenção do equipamento rolante que conduziu, a curto prazo, a uma acentuada escassez de meios de transporte, crescentemente obsoletos. Por outro lado, o rápido crescimento das periferias urbanas de Luanda no quadro de um processo de urbanização não regulado, sem a correspondente criação de infra-estruturas básicas, a par de uma progressiva deterioração do estado geral de conservação das vias de comunicação, contribuiram cumulativamente para tornar inadequados os maximbombos (expressão angolana que identifica os autocarros para transporte de passageiros) (Ribas 1997). Em lugar dos maximbombos, escassos, frequentemente avariados, incapazes de transitar em determinadas vias, sem possibilidade de aceder a determinados locais e com percursos predefinidos que, em termos geográficos e de cobertura populacional, se ajustavam às necessidades e aos critérios de decisão que resultavam da realidade populacional e socioeconómica dos anos terminais do período colonial, começaram por surgir, numa primeira fase, as viaturas ligeiras particulares e, posteriormente, as carrinhas de caixa aberta e os veículos ligeiros de transporte de passageiros (monovolumes). Os hiasses (expressão luandense que designa os Toyotas Hiace, marca predominante nas viaturas de transporte semi-oficial, usualmente utilizada para designar a generalidade desses veículos) tornaram-se um elemento omnipresente na paisagem automóvel luandense, facilmente identificáveis, a partir da constituição da referida Associação de Taxistas de Luanda (ATL), pela ostentação maioritária das cores azul e branca. São os candongueiros quem oferecem aos habitantes de Luanda o essencial da oferta em termos de transporte, quer de pessoas quer de mercadorias, entre os locais de residência e os locais de trabalho e de abastecimento (mercados). De acordo com dados da ATL, estariam activas, no último trimestre de 2003, na área urbana da capital angolana, 4 200 viaturas, das quais apenas cerca de 20 % desenvolveriam actividade com cumprimento de todos os requisitos legais. No mesmo sentido, o Jornal de Angola de 27 de Março de 2003 referia-se a mais de três mil operadores não licenciados. Em Julho de 2004, quer a Direcção Provincial de Transportes quer a ATL apontavam para cerca de 5 000 viaturas a operar em Luanda. Estima-se que, em 2001, os candongueiros satisfaziam uma procura calculada em 480 000 utentes por dia. Em contrapartida, a frota de viaturas ao serviço das quatro empresas de transportes colectivos era, em 2002, não muito superior a 700 unidades, número manifestamente insuficiente para responder a uma procura estimada de transporte de 2 310 000 utentes por dia em 2001 (KPMG 2003). A actividade dos candongueiros envolve directamente diferentes agentes económicos : os proprietários (alguns deles proprietários-motoristas), os motoristas, os cobradores, os angariadores, os jovens envolvidos na lavagem de viaturas e os utentes (passageiros). Aos cobradores cumpre a tarefa de cobrar a tarifa, acomodar os passageiros, zelar pela ordem e pela segurança no interior da viatura e são os pregoeiros dos percursos que a viatura realiza. Os angariadores têm como finalidade ordenar e orientar os utentes para os veículos nos terminais de maior movimento.
4Nesse segmento de actividade regista-se uma significativa estratificação social, com a existência de muitos proprietários de apenas uma viatura, a par de proprietários de várias viaturas, chegando a existir empresários no sector com mais de uma dezena de hiasses a operar em Luanda. Alguns deles estruturam as suas estratégias empresariais, optando por combinações em que o transporte de passageiros e de mercadorias para as províncias começa a adquirir expressão crescente, por proporcionar margens de lucro consideravelmente mais elevadas. Trata-se de uma actividade que, apesar dos inúmeros constrangimentos com que se confronta – capital inicial elevado para ínicio da actividade, concorrência desleal, níveis de congestionamento de tráfego muito intensos, deficientes condições de transitibilidade da rede rodoviária, constante pressão da polícia rodoviária que encontra no modo como estes agentes exercem a sua actividade a sua principal fonte de rendimento, serviços de reparação/manutenção sem garantias de qualidade mínima, ausência de protecção contra os riscos inerentes à actividade, nomeadamente, por força da recusa das companhias seguradoras em investir no ramo automóvel – é, apesar de tudo, relativamente lucrativa, na opinião de alguns dos proprietários. De acordo com as informações recolhidas, com base em entrevistas realizadas, entre Setembro e Dezembro de 2003, a cinco proprietários de viaturas, a seis motoristas e a quatro cobradores que operavam em Luanda, estima-se em 50/60 euros dia, a receita líquida de um proprietário de uma viatura. Dos proprietários entrevistados, todos eles iniciaram a actividade já nessa condição. Dois deles referiram ter conhecimento da existência de proprietários que iniciaram a sua actividade como motoristas, o que revela que este segmento permite alguma mobilidade social. O segmento dos candongueiros, com base em cálculos elaborados a partir do número de viaturas a operar fornecido pela ATL, e para além dos rendimentos dos proprietários das viaturas, daria ocupação produtiva directa, diariamente, a cerca de 6 400 operadores, estimativa que engloba os motoristas e cobradores das 3 200 viaturas referenciadas em Luanda no último trimestre de 2003. A esta estimativa importa acrescentar, algumas centenas de jovens que sobrevivem da lavagem diária das viaturas e um número mais reduzido de jovens angariadores, que exercem actividade nos principais terminais onde confluem as rotas mais disputadas. Em termos indirectos a actividade constitui também fonte de rendimentos para agentes envolvidos no comércio de viaturas em segunda mão, importadas e nacionais, na reparação mecânica e eléctrica dos automóveis, bem como para os comerciantes de peças novas e usadas que desenvolvem actividade em alguns dos mercados da capital. Existe inclusivé um mercado – o mercado do Golfe – que é especializado na comercialização de peças para automóveis (Lopes 1998), mas podem também ser encontradas noutros locais, nomeadamente no mercado Roque Santeiro e no mercado dos Kwanzas. Transformação de carrosserias, reparação de baterias, reparação de radiadores, recauchutagem de pneus, entre outras, são alguns dos serviços específicos oferecidos, com carácter não oficial, a montante da actividade dos candongueiros. Os candongueiros constituem ainda um mercado potencial para a actividade de grupos marginais que se dedicam ao furto/receptação de veículos e de peças para automóveis. Estabelecem-se igualmente articulações com actividades formais, nomeadamente a importação de viaturas novas, o comércio de peças e material de substituição, o comércio de combustíveis e de materiais correlacionados e a mecânica. O perfil do modus operandis da actividade, elaborado com base nas entrevistas realizadas, é o seguinte : durante cinco dias as receitas da actividade são entregues ao proprietário, sendo um dia de receitas a retribuição que o motorista e o cobrador repartem entre eles, em proporções diversificadas. O sétimo dia da semana é geralmente dedicado à manutenção da viatura. Regra geral, a relação contratual, não escrita, estabelece-se entre o proprietário e o motorista, existindo uma outra relação contratual, paralela, entre o motorista e o cobrador. Mais raras são as situações em que a relação contratual com o cobrador se estabelece directamente a partir do proprietário.
5Este perfil, que é largamente maioritário, não invalida que existam outras modalidades de relação contratual, ainda que não frequentes : motoristas com salário fixo ; motoristas com salário base e com percentagem variável em função da receita ; regra geral, os cobradores auferem rendimentos em função da receita conseguida.
- 1 Em Julho e Agosto de 2004, as tarifas praticadas nas rotas curtas situavam-se nos 30 Kwanzas enquan (...)
- 2 Jornal de Angola, 14 de Janeiro de 2004 e 25 de Fevereiro de 2004.
- 3 Jornal de Angola, « Taxistas de Luanda voltam à estrada », 8 de Outobro de 2003.
- 4 Jornal de Angola, 6 de Outobro de 2003 e 7 de Outobro de 2003.
- 5 1 200 USD, o Jornal de Angola, 8 de Outobro de 2003.
6Em casos muito pontuais, verificam-se situações de viaturas com um segundo motorista, subcontratado pelo motorista principal. No caso observado, o motorista principal dispunha de um salário base e de um complemento adicional em função da receita diária obtida, enquanto que os rendimentos do segundo motorista dependiam exclusivamente da receita arrecadada. Regra geral, cabe ao proprietário a responsabilidade de todos os encargos relacionados com o consumo de combustível, com a manutenção ordinária ou extraordinária dos meios rolantes ou com o pagamento da « gasosa » aos polícias de trânsito. Apesar de os operadores licenciados estarem autorizados a transitar em rotas determinadas para as quais é estabelecido um número máximo de operadores, na prática os operadores escolhem livremente os percursos, podendo cada viatura circular nos percursos que considerar mais vantajosos, o que determina uma sobreconcentração de operadores nas rotas com maior afluxo de passageiros e com maiores expectativas de rentabilidade. A actividade inicia-se geralmente às 4h30/5h30 e a jornada de trabalho termina, em alguns dos casos, entre as 21 e as 22 horas. Os passageiros pagam uma quantia fixa pelo transporte, estabelecida pelo Ministério das Finanças após auscultação aos parceiros envolvidos no segmento de actividade (Direcção Provincial de Transportes, empresas formais e ATL). No período em questão, para a generalidade das rotas (por exemplo, o trajecto Mutamba-S. Paulo) a tarifa era de 25 kwanzas (aproximadamente 18 cêntimos)1, verificando-se no caso das rotas mais longas (por exemplo, o percurso Roque Santeiro-Ilha) a existência de uma tarifa mais elevada : 50 Kwanzas (36 cêntimos). Entre Setembro e Dezembro de 2003, o valor médio da receita diária relativo aos informantes situava-se nos 6 000 kwanzas (68 euros) para as rotas normais e entre os 10 e 12 000 kwanzas para as rotas mais longas (115 a 135 euros). Há hiasses a fazer trajecos de médio/longo curso : uma viagem entre Luanda e Benguela (cerca de 300 km) custava 2 500 kwanzas (28 euros) enquanto que entre Luanda e o Huambo (600 km de distância) se pagava entre 4 000 a 5 000 kwanzas (44 a 58 euros). Os passageiros que transportam mercadoria, pagam um preço adicional, em função do volume e do número de volumes que pretendem transportar. Apenas um dos motoristas referiu ter um acordo para o transporte diário de um comerciante de um mercado de Luanda e da mercadoria que comercializa. Nas imediações dos mercados e em alguns outros pontos da cidade (Mutamba, Aeroporto, etc.) localizam-se uma espécie de terminais, onde se concentram os candongueiros, que chegam e partem num rodopio permanente para diferentes locais da cidade. A procura de obtenção da máxima receita possível determina frequentes comportamentos de risco, por parte destes agentes, que vão desde a sobrelotação das viaturas, ao não cumprimento dos procedimentos mínimos de conservação/manutenção até ao incumprimento quase generalizado das regras de trânsito (são frequentes as violações grosseiras, pondo em risco a segurança dos passageiros, dos outros automobilistas e dos peões). Num outro plano são também usuais os aumentos indiscriminados das tarifas bem como o encurtamento das rotas, à revelia da ATL e das autoridades provinciais, como sucedeu, por exemplo, em Janeiro e Fevereiro de 20042. Resultam daí algumas externalidades negativas, nomedamente, as elevadas taxas de sinistralidade, a proliferação de focos de congestionamento de tráfego, o aumento dos níveis de poluição ambiental e sonora, a degradação mais acelerada das viaturas, entre outras. Alguns dos motoristas e cobradores têm noções básicas de mecânica, o vai permitindo resolver situações pontuais. A fuga ao cumprimento dos requisitos legais para o exercício da actividade, associada à passividade cúmplice das autoridades policiais, permite o absurdo de alguns dos motoristas circularem sem possuírem a habilitação indispensável, sendo igualmente seguro, que em alguns dos casos, as cartas de condução são obtidas através de processos ilegais. Em Outubro de 2003, na sequência da apreensão pela polícia de 300 viaturas que circulavam sem preencher os requisistos legais, registou-se uma paralisação dos operadores – greve – que se sentiu de forma vísivel nas ausências aos locais de trabalho, por falta de meio de transporte3. Contradição e duplicidade são elementos marcantes na opinião que a população e os utentes têm sobre a actividade e os seus problemas. Se por um lado, se compreende que a sua actividade tem uma importância socioeconómica inegável, existem muitas opiniões a favor de um maior rigor no indispensável controlo da actividade por parte das autoridades competentes4. A não obtenção dos documentos, das habilitações, etc., está também relacionada com o excesso de burocracia, com o custo do licenciamento para o exercício da actividade (1 200 USD)5, e com o facto de a sua concessão constituir para quem intervém ao longo desse processo uma fonte de rendimentos que compensa a insuficiência dos salários do funcionalismo público e que reflecte o processo de despenalização social que os procedimentos associados à extorsão – « gasosa » – adquiriram na sociedade angolana (Lopes 2004a).
7A expressão identifica de forma genérica os operadores económicos engajados em Luanda no comércio ilegal de divisas. Comércio que é ilegal porque a legislação angolana tem restringido o exercício da actividade, numa primeira fase exclusivamente ao Banco Central, e em fases posteriores e na actualidade, também aos Bancos Comerciais e às Casas de Câmbio. Está actualmente em estudo legislação específica para permitir que hóteis e outros operadores turísticos possam igualmente proceder à troca de kwanzas por moedas estrangeiras em transacções de montante não elevado, como é previsto na Lei Cambial.
8Em língua Kimbundu, kinguila significa « quem está à espera… » (Maia 1964), designação que entrou no léxico quotidiano luandense a partir do final dos anos 1980 quando começaram a proliferar pelas esquinas da cidade, nas ombreiras das entradas dos prédios ou nas imediações dos mercados, grupos de mulheres envolvidas na troca da moeda nacional por dólares e vice-versa. A presença destes grupos de mulheres, ao longo do dia, nos mais variados locais da capital angolana dificilmente passa despercebida, quanto mais não seja pelos comportamentos característicos das kinguilas no sentido de despertar a atenção dos potenciais clientes : a onomatopeia « pssssst » é geralmente acompanhada pelo gesto de roçar o polegar pelo indicador, simbolizando a disponibilidade para o comércio de moeda. O aparecimento da actividade surgiu associado à escassez de moeda estrangeira resultante das restrições e condicionamentos impostos pelo regime centralizado de alocação de divisas, bem como às possibilidades daí resultantes de obtenção de lucros significativos, por via da arbitragem efectuada entre os valores dispendidos na aquisição da moeda estrangeira através dos canais oficiais e o valor da respectiva cotação no mercado paralelo. Acresce ainda que, num contexto de política oficial de sobreavaliação da moeda nacional por períodos prolongados, as potencialidades de remuneração da actividade se tornaram estavelmente atractivas, permitindo ainda, pontualmente, ganhos de oportunidade relacionados com a possibilidade de influenciar as cotações da divisa estrangeira no mercado paralelo, injectando ou subtraindo aos circuitos moeda nacional. As consequências mais significativas da associação entre controlo rígido dos câmbios, inconvertibilidade e inflexibilidade das taxas de câmbio, invariavelmente sobreavaliadas, da moeda nacional angolana têm-se manifestado sobretudo ao nível da hiperinflação doméstica e da dolarização da economia angolana (procura generalizada de valores-refúgio, isto é, moedas alternativas de troca generalizada). No contexto angolano, a extensão do mercado paralelo de divisas tem estado correlacionada com o forte incentivo à aquisição em mercados estrangeiros de bens de consumo ou de reposição que o mercado interno não fornece, com o limitado e condicionado acesso a divisas por parte dos nacionais que se deslocam ao estrangeiro em turismo e com os constrangimentos politíco-económicos às oportunidades de investimento privado. Registe-se que a transição para a economia de mercado, bem como os programas de estabilização económica accionados, não conduziram em circunstância alguma à desejável unificação das taxas de câmbio oficial e paralela. Verificou-se inclusivamente, que algumas das medidas de desvalorização da moeda nacional, lançadas no quadro dos variados programas de estabilização económica, acabaram por ser antecipadas pelos negociantes de moeda estrangeira.
- 6 Jornal de Angola, 24 de Setembro de 2003.
- 7 Jornal de Angola, 24 de Setembro de 2003.
9Na sua fase embrionária, a hegemonia feminina constituíu um traço caracterizador da actividade (PNUD 1999). As transformações no contexto que enquadra a actividade que se foram entretanto desenvolvendo determinaram alterações nas práticas e nos modos de operação. Actualmente a actividade já não pode ser considerada como um feudo feminino : particularmente nos mercados, por razões que remetem para os elevados valores transaccionados diariamente e para a questão da segurança, passaram a ser os homens quem controlam a actividade. Regista-se deste modo uma curiosa segmentação, entre os doleiros (homens), omnipresentes nos mercados, e as kinguilas (mulheres) que preenchem o essencial da paisagem citadina. Por outro lado, quando a insegurança associada à actividade entrou em processo de crescimento (passaram a ser mais frequentes os assaltos e, em alguns casos, os homícidios de kinguilas) verificou-se a emergência de uma nova profissão, os profissionais de segurança que asseguram a protecção das kinguilas. Num outro plano, verificou-se também o alargamento do âmbito da actividade de alguns destes operadores que, na prática, acabam também por assegurar funções de banqueiros informais, emprestando dinheiro contra a sua restituição em data acordada e com lugar a pagamento de juros6. Em casos mais raros, alguns destes operadores aceitam intermediar uma espécie de aplicações financeiras de capital investido na actividade cambial por agentes detentores de valores consideráveis em moeda nacional ou estrangeira, tendo como contrapartida uma comissão em função dos resultados realizados. As nove entrevistas realizadas aos doleiros e às kinguilas permitiram apenas identificar alguns dos comportamentos, das práticas e das lógicas associadas ao exercício da actividade. Por se tratar de uma actividade ilegal, algumas das questões colocadas relativamente aos interesses correlacionados com a actividade e, nomeadamente, em relação ao processo de determinação do valor do dólar no mercado paralelo, bem como aos mecanismos/meios que permitem a difusão diária da informação, foram sistematicamente evitadas ou ostensivamente não respondidas. Quer os doleiros quer as kinguilas afirmaram sempre serem eles próprios os proprietários do negócio. Apenas num caso, uma kinguila referiu actuar em parceria com a tia, que a ajudou a iniciar o negócio. No entanto, alguns dos entrevistados afirmaram ter conhecimento da existência na actividade de operadores que são assalariados, trabalhando para « bosses » (patrões). Um editorial do Jornal de Angola, dedicado a iniciativas de micro-crédito destinadas aos cambistas de rua, refere que, muitos deles, «… ao contrário do que possa parecer, trabalham com capital de terceiros, sobretudo empresários estrangeiros, que recolhem a maior margem de lucro »7.
10Os doleiros operam exclusivamente nas imediações e no interior dos mercados, sendo, na maioria do sexo masculino. Nunca operam sozinhos. Apesar de se encontrarem em grupos que ocupam diariamente o mesmo espaço, cada um deles realiza a sua actividade individualmente. A constituição dos grupos, de acordo com os dados recolhidos, obedece essencialmente a um critério de disponibilidade para a co-habitação competitiva e à pré-existência de relações de confiança. Não foi possível apurar nenhum padrão específico de relação familiar, de vizinhança ou de base étnica como factor decisivo para a constituição dos grupos de doleiros ou de kinguilas. A cooperação manifesta-se em diferentes planos : na protecção mútua que prestam uns aos outros, na realização de empréstimos temporários quando algum dos membros do grupo tem maior necessidade de moeda nacional ou estrangeira para a concretização de um determinado negócio, na guarda dos valores dos companheiros quando têm necessidade momentânea de se ausentar do local que ocupam e, em alguns casos, na participação conjunta em alguns negócios que envolvem valores que excedem a capacidade finaceira de um agente individual. A competição tem, no quadro dos grupos de doleiros e de kinguilas, uma papel mais passivo. Quem faz o negócio de entre os membros do grupo é aquele a quem o potencial cliente se dirige em primeira instância. A intervenção de qualquer outro membro do grupo só ocorre caso o negócio não se tenha concretizado e seja a isso solicitado pelo potencial cliente ou seja convidado a co-participar pelo primeiro doleiro contactado. O funcionamento desta regra de convivência profissional é também observado pelas kinguilas, do mesmo modo que constitui uma violação impensável do código de conduta dos operadores do comércio informal de divisas a usurpação do lugar habitualmente ocupado por um determinado grupo de agentes. As informações recolhidas permitem sustentar a tese de que a ocupação de derminados lugares de exercício da actividade, quer nos mercados quer em diferentes locais do espaço citadino, remetem exclusivamente para a antiguidade no exercício da actividade.
11De acordo com as informações recolhidas, a jornada de trabalho dos doleiros inicia-se ao alvorecer com os primeiros sinais de actividade nos mercados e termina entre as 16 e 17h30 quando a afluência ao mercado deixa de justificar a sua presença. Em algumas situações pontuais, em dias de menor movimento, alguns dos operadores optam por abandonar os mercados mais cedo. Aos domingos, alguns desses operadores, em particular os praticantes de algumas confissões religiosas não vão ao mercado, à semelhança do que fazem comerciantes dos mais variados tipos de produtos. Os doleiros, apesar de ocuparem diariamente espaços fixos nos mercados, não pagam qualquer tipo de taxa às respectivas administrações. No mercado Roque Santeiro, apesar de se encontrarem dispersos por todo o mercado e também nas suas imediações, existe uma área de grande concentração deste tipo de operadores (o Ringue), uma espécie de coração financeiro do mercado paralelo de divisas de Luanda, onde é possível observar volumosos montes de kwanzas e de dólares a serem contados e arrumados à vista de qualquer transeunte. Se ocorre algum tipo de prestação, é de natureza informal e não foi nunca admitida por qualquer dos informantes. O custo diário que estes operadores têm que suportar envolve as despesas de transporte (o preço cobrado pelos candongueiros), as despesas de alimentação, e o custo do aluguer das cadeiras e das sombras (panos que são colocados sobre estacas e que protegem os operadores dos efeitos da exposição prolongada ao sol). Relativamente às kinguilas, começam a surgir nos locais habituais que ocupam por toda a cidade a partir das 7h30-8 horas e por volta das 16 horas começam a dispersar. Aos domingos são raros os pontos de troca de moeda que estão operativos. Os valores com que operam diariamente os doleiros e kinguilas são muito variáveis, sendo frequente a coexistência, no seio de um grupo que compartilha o mesmo espaço, de operadores que intervém a escalas muito diferenciadas de volume de negócios. Diariamente nos mercados, surgem agentes que vêm vender moeda nacional e estrangeira aos doleiros que lá actuam (proprietários de estabelecimentos comerciais formais, funcionários de bancos e de empresas estatais, etc.). Em Luanda, são várias dezenas de milhares os agentes que estão envolvidos neste tipo de negócio. Trata-se de uma actividade que permite a sobrevivência desses agentes e das respectivas famílias.
12As trajectórias, bem como as motivações, que conduziram os doleiros e as kinguilas ao exercício da actividade são muito diversificadas. É uma actividade mais lucrativa, é menos cansativa, a anterior actividade desenvolvida deixou de gerar os rendimentos indispensáveis, existiu acumulação de capital noutras actividades, entre outras razões apresentadas. Nos principais mercados de Luanda, estes agentes movimentam quotidianamente valores muito elevados (caso do mercado Roque Santeiro).
- 8 De um conjunto de entrevistas direccionadas a experts, que abrangeram personalidades de diferentes (...)
13Os especialistas entrevistados8 referem-se à presença de empresários de grande dimensão no sector (libaneses, malianos, etc.). Alguns referem igualmente a existência de empresários angolanos com actividade muito próxima da banca formal. É opinião corrente que funcionários dos bancos, das petrolíferas e das diamantíferas são alguns dos principais empresários no mercado cambial paralelo. O comércio de diamantes é citado como constituindo uma das principais fontes que alimenta o stock de divisas estrangeiras que circulam no mercado paralelo em Luanda. No mercado Roque Santeiro encontram-se cotações geralmente mais elevadas para a moeda nacional, comparativamente a outros locais da cidade. A velocidade de circulação da moeda e grande volume de transacções determinam aí maiores cotações do kwanza. Por outro lado, existe sempre a possibilidade de negociar o preço de transacção, o que depende do conhecimento do cliente sobre as cotações praticadas no Roque Santeiro, da forma como correu o negócio durante o dia ao operador, dos valores envolvidos no negócio e, em algumas situações, da relação de confiança já estabelecida entre o operador e o cliente (quando se trata de um cliente habitual).
- 9 Provenientes essencialmente das receitas de exportação, do investimento estrangeiro e das operações (...)
- 10 Entrevista com a Drª Isabel Luanda, Directora de Gestão e Reservas do Banco Nacional de Angola (BNA (...)
14No mercado cambial angolano o banco central, o BNA é o principal provedor de divisas9, vendendo-as aos bancos comerciais, que até Agosto/Setembro de 2003 vendiam apenas aos importadores. Daí para cá, a nova legislação adoptada permite aos particulares adquirir até 5 000 dólares. « Durante muito tempo os empresários importadores apenas podiam realizar uma aquisição de divisas. Agora podem fazer aquisições parcelares, o que faz diminuir a necessidade de recorrer ao paralelo »10.
- 11 O princípio e o fim do ano civil, associados à necessidade de repor stocks e à repatriação de lucro (...)
- 12 Entrevista com a Drª Isabel Luanda, Directora de Gestão e Reservas do BNA.
- 13 Idem.
- 14 Idem ; Jornal de Angola, 8 de Fevereiro de 2003 e 5 de Setembro de 2003.
15O mercado cambial angolano refere-se a um produto escasso. Numa economia dolarizada, os agentes procuram moeda estrangeira para adquirir bens e serviços e procuram dólares para fazer reserva de valor face aos altos níveis de inflação, o que tem a ver com a dinâmica da economia real, muito dependente das importações (os agentes ajustam os seus comportamentos em função da avaliação que efectuam relativamente a variáveis como a sazonalidade11, a informação e as expectativas de ganhos) e caracterizada por uma elevada preferência pela liquidez, com volumes elevados de notas e moedas em circulação. Dificilmente o dinheiro passa pelo sistema bancário, não existindo praticamente uma cultura de utilização do sistema bancário. « Os agentes que actuam no mercado cambial angolano são o BNA, os bancos comerciais, as casas de câmbio, as kinguilas/doleiros e os restantes agentes económicos na dupla função de compradores/vendedores de moeda. Estes últimos compram aos bancos comerciais, casa de câmbio e às kinguilas/doleiros e vendem essencialmente aos bancos comerciais e às casa de câmbio »12. Os dois segmentos do mercado cambial angolano, o mercado formal e o mercado informal articulam-se entre si, quer através dos fluxos monetários quer por via da mobilidade dos operadores que transitam de um segmento para outro13. A partir de 22 de Agosto de 2003 introduziu-se o designado leilão holandês : o BNA publicita o montante de divisas a oferecer, os bancos comerciais apresentam propostas de compra, os bancos comerciais vendem aos importadores e aos particulares. Paralelamente foi diminuido o montante exigido para a constituição de casas de câmbio (30 000 dólares) e foram reabiliatados instrumentos de garantem a reserva de valor (títulos do banco central de 28 e 60 dias)14. Este conjunto de medidas levou à apreciação do kwanza face ao dólar, à consequente redução do diferencial entre a taxa oficial e a paralela e a uma redução do mercado potencial dos agentes que operam no informal. Em 8 de Outubro de 2003 a taxa de câmbio oficial era de 82,5 kwanzas por dólar enquanto que no paralelo/informal era de 84 kzs por dólar. A taxa de compra é mais baixa nos bancos que nas kinguilas/doleiros, o que determina que os agentes económicos prefiram comprar kwanzas a eles. Por outro lado, a taxa de venda é mais alta nos bancos o que leva a que se vendam os kwanzas aos bancos. O negócio das kinguilas/doleiros situa-se no intervalo de variação do spread, entre a manipulação do preço de compra de moeda estrangeira que é aumentado e o de venda que é reduzido. O negócio está correlacionado com o aprovisionamento de dólares e de kwanzas. A convicção dos epecialistas entrevistados é a de que a maior parte dos meios monetários que alimentam o mercado cambial informal não sai do sistema bancário, provindo de outras fontes : armazenistas, países estrangeiros limitrofes, falsificação, etc.
16F. é um doleiro que desenvolve actividade no ringue, no mercado Roque Santeiro :
«… Até 1990 era ajudante de electricista numa empresa do estado. Sou natural de Malange, tendo chegado a Luanda em 1989… O salário não chegava, arranjei algum capital no garimpo… a maioria dos elementos do grupo de doleiros com quem partilho o local de actividade é da minha província… o preço a que troco dólares por kwanzas e kwanzas por dólares varia em função do movimento diário… só empresta dinheiro a pessoas de confiança, com papel assinado e cobra juros… não trabalho para ninguém e tenho mais familiares a trabalhar no Roque, mas não no mesmo negócio… normalmente opero com 5 000 dólares de capital diário… hoje estou a comprar (100 dólares) a 8 200 kwanzas e vender a 8 400 kwanzas (neste dia o câmbio no centro da cidade estava na ordem dos 100 dólares – 7 900 kwanzas)… o negócio é fácil e rentável… num dia bom realizo 10 000 kwanzas (cerca de 110 euros) de ganho… ».
- 15 Jornal de Angola, 23 de Setembro de 2003.
17A atitude das autoridades é de condescendência. É frequente ver grupos de kinguilas a actuar à frente de sucursais de bancos e de casas de câmbio, sem que haja qualquer intervenção policial. A atitude repressiva que caracterizou a época da economia centralizada e, pontualmente, alguns momentos da transição para o multipartidarismo e para a economia de mercado surge praticamente desvanecida. Inclusivamente o Ministério da Familia e da Mulher apresentou recentemente um programa de microfinanciamento para permitir a reconversão profissional de algumas kinguilas e, nalguns casos, a sua transformação em cambistas formais, a operar nos bairros periféricos (foi aprovada recentemente legislação que reduz significativamente o volume de capital necessário para abrir uma casa de câmbio)15. A informação recolhida junto do Sindicato dos Trabalhadores do Comércio Informal (STCI) refere que estão filiados com actividade indeterminada cerca de 1 795 kinguilas/doleiros, de um universo de 2 600 operadores (1 028 homens e 1 972 mulheres) recenseados em 36 mercados e nas ruas de Luanda.
- 16 Expressão da gíria luandense que corresponde a « drogados » (Ribas 1997).
18A origem da designação, a fazer fé nas informções recolhidas, parece estar na apropriação pela gíria luandense da palavra russa « robot » que significa trabalho físico, braçal. A partir das informações prestadas por seis jovens roboteiros, activos em dois mercados de Luanda entre Setembro e Dezembro de 2003, foi possível esboçar um quadro descritivo que caracteriza o modo de exercício da actividade. A presença destes operadores é constatável nos mercados, nas suas imediações e em locais específicos na generalidade dos bairros periféricos. De acordo com a informação prestada pelo Administrador do Mercado, no Roque Santeiro e nas suas imediações operam diariamente cerca de 2 500 a 3 000 roboteiros. Se for tido em conta que estes operadores estão presentes em todos os mercados da cidade e que, para além da existência reconhecida oficialmente pela Direcção Provincial de Mercados e Feiras de trinte e cinco mercados, estão activos inúmeros outros mercados de menor dimensão espalhados pelos diferentes bairros da cidade, é possível estimar entre duas a três dezenas de milhar a dimensão deste segmento de actividade em Luanda. Uma característica particular deste tipo de operadores é que são exclusivamente homens e, na sua esmagadora maioria, muito jovens. Dos roboteiros entrevistados, o mais jovem afirmou ter quinze anos de idade, enquanto que o mais velho, proprietário de onze carrinhos de mão (cangulos), referiu ter vinte e quatro anos. Os informantes, maioritariamente não naturais de Luanda, apresentam um nível de escolaridade baixo. Dos seis informantes, dois admitiram não saber ler nem escrever e a 4ª classe foi o nível de escolaridade mais elevado, que um dos roboteiros afirmou ter concluído. A informação recolhida, através das entrevistas às administrações dos mercados, a comerciantes instalados nos mercados e a outras instituições que aí têm uma relevante intervenção social, e da observação directa, permitiu a constatação de que muitos dos jovens que desenvolvem esta actividade são crianças de rua, órfãos e deslocados de guerra, tratando-se igualmente de um grupo alvo onde se manifestam casos frequentes de consumo de droga (alguns dos comerciantes entrevistados referiram que os roboteiros andam quase sempre « ganzados »16 por cheirarem gasolina…).
19Os roboteiros trabalham exclusivamente por conta própria. Em alguns casos são eles próprios os proprietários dos carrinhos de mão, os carros de transporte, de madeira, de ferro ou de lata, indispensáveis para prestar o serviço de transporte de mercadorias.
20Noutras situações, os roboteiros arrendam os carrinhos de transporte à semana por 200 kwanzas (2 euros) aos seus proprietários. Existe uma surpreendente estratificação entre os proprietários. Alguns deles são donos de mais de vinte carrinhos de mão, o que permite a obtenção de um rendimento semanal significativo. No período em referência, cada carrinho de mão de madeira custava aproximadamente 2 700 kwanzas (35 euros), podendo ser adquiridos nos grandes armazéns grossistas, localizados nas imediações dos mercados ou encomendados a carpinteiros que trabalham nos mercados ou nas suas habitações nos bairros periféricos da cidade. Um dos informantes referiu ter conhecimento de que, em alguns casos, os carrinhos de mão foram construidos pelos próprios roboteiros. Regra geral, no que se refere aos activos nos mercados, a actividade inicia-se por volta das 5h30-6 horas e termina entre as 17-18 horas.
21De acordo com os informantes que actuam no mercado Roque Santeiro, num dia normal, realizam em média 500 a 600 kwanzas diários (entre 5 a 8 euros por dia). O preço cobrado por cada serviço depende da distância, do peso e do volume da mercadoria transportada. O preço do serviço é negociado com o cliente e é invariavelmente pago a pronto de pagamento. Em alguns casos, alguns dos roboteiros realizam trabalhos para clientes habituais, como é o caso dos armazéns grossistas que estão instalados nas redondezas dos mercados ou de alguns grossistas de peixe ou cereais estabelecidos no interior dos mercados. Por exemplo, o transporte de uma caixa de peixe de 10 kilogramas entre o local onde os grossistas de peixe se abastecem no interior do mercado e o local onde revendem o produto orçava em 20 kwanzas, enquanto que um saco de fuba, com peso de 20 kg custava 50 kwanzas.
22Os encargos diários fixos resumem-se ao dispêndio de 30 kwanzas (40 a 50 cêntimos por dia) para guardar cada carrinho nos armazéns/contentores do « processo » e às despesas com a alimentação e com o consumo de água/líquidos (trata-se de uma actividade que implica um esforço físico muito grande). Tal como sucede no mercado Roque Santeiro, regra geral as adimistrações dos mercados não cobram qualquer quantia aos roboteiros pelo exercício da sua actividade.
- 17 Santos 1967 e Monteiro 1973.
23A expressão identifica os vendedores ambulantes que deambulam pela cidade, bairros e mercados de Luanda. Trata-se de uma expressão da língua Kimbundu, que significa rodar, girar. Óscar Ribas (1997) identifica a expressão como sinónimo de venda ambulante (andar na zunga corresponde a vender pelas ruas). São os herdeiros das tradicionais quitandeiras – pequenos negociantes envolvidos na venda ambulante (Ribas 1997) – que constituiam um dos ex-libris da capital angolana na fase colonial17 e nos primeiros anos após a independência.
- 18 Ladislau Batalha (1889) refere que « a quitandeira é a mulher de negócio… em tudo negoceia, tudo pe (...)
24O perfil da actividade e dos seus actores que se descreve é o resultado da informação obtida em sete entrevistas efectuadas, entre Setembro e Dezembro de 2003, a zungueiros em Luanda (dois no mercado Roque Santeiro e cinco em diferentes locais da cidade) e da informação recolhida no quadro do Projecto Zungueiros, um projecto de investigação sedeado no Arquivo Histórico Nacional de Luanda, cuja consulta nos foi gentilmente facultada. Na génese deste tipo de actividade parecem cruzar-se influências diferenciadas, num espectro que se estende desde as práticas tradicionais das antigas quitandeiras18 necessariamente adaptado às novas lógicas económicas e comerciais que emanam da realidade social (ela própria em processo de transformação, com efeitos visiveis, entre diversos indicadores possíveis, no plano do emagrecimento e da precarização do mercado de trabalho formal, com o florescimento das práticas económicas informais, com alterações nos padrões e hábitos de consumo, com a redefinição dos papéis tradicionais da mulher e do homem no quadro das estratégias de sobrevivência dos agregados familiares), à sobre-concentração de pessoas deslocadas e desprovidas de oportunidades de emprego e de fontes de rendimentos, até às necessidades de sobrevivência imediata de uma população citadina em processo de crescimento e de pauperização acelerados. Não sendo um fenómeno recente, a presença dos zungueiros sofreu um impulso significativo a partir de 1992, com o regresso à situação de guerra civil no rescaldo do processo eleitoral. O crescimento acelerado da população da capital, e em particular do número de deslocados de guerra, constituem factores que os observadores/analistas consideram estar na base da proliferação de mulheres e crianças a vender todo o tipo de produtos pelas ruas da cidade. Os zungueiros são essencialmente mulheres e jovens, registando-se uma forte presença de crianças neste segmento de actividade. Trata-se eventualmente de um dos segmentos de actividade com menor status socioeconómico, numa hipotética hierarquia das actividades económicas, que proporciona rendimentos reduzidos aos seus operadores, nos limiares mínimos de sobrevivência (entre 50 e 450 kwanzas diários – 35 cêntimos a 4,50 euros – havendo dias em que não conseguem colocar os produtos que vendem/revendem). Nos mercados, nos bairros suburbanos, nas ruas e praças da cidade do asfalto é registada a presença destes operadores, que transaccionam todo o tipo de produtos. A grande maioria trabalha por conta própria, adquirindo os produtos que depois vão revender. No entanto, em situações menos frequentes, alguns deles constituem uma espécie de força de vendas gratuita de alguns comerciantes estabelecidos em local fixo, para quem vendem a mercadoria à consignação. Noutros casos, os zungueiros trabalham para comerciantes instalados nos mercados, sendo o seu rendimento o diferencial entre o valor que os comerciantes pretendem pela venda dos seus produtos e o valor ao qual os zungueiros conseguem colocar os produtos junto dos consumidores. O dia a dia de grande parte destes operadores inicia-se ao alvorecer e termina ao final do dia. A maior parte destes operadores abandona as suas casas, algumas delas localizadas a vários quilómetros do centro da cidade e desloca-se a pé para a cidade, pela qual deambulam em trajectos escolhidos em função das expectativas de venda dos produtos ou de locais de residência de clientes habituais, como sucede no caso dos que revendem produtos alimentares. O regresso a casa é também invariavelmente efectuado a pé.
25Os elementos recolhidos apontam no sentido de que os actores, independentemente do seu grau de escolarização, actuam segundo uma lógica comercial, que envolve a articulação racional de pelo menos três variáveis : o capital empregue, o tempo gasto e o rendimento esperado. As práticas dos actores, apesar de alguns traços comuns, como é o caso do ritual da negociação, surgem diferenciadas pelo tipo de negócio : a prática de kilapi (venda a crédito) ou a venda sem lucro aparecem naturalmente associadas à venda de produtos perecíveis, não se verificando em relação à venda de outro tipo de produtos.
26Do mesmo modo, a informação recolhida evidencia a existência provável de um padrão de distribuição dos zungueiros pela cidade, definido, entre outros determinantes, em função do tipo de produto e de negócio. Resulta igualmente da observação realizada, a constatação de que a escolha dos percursos que os zungueiros efectuam diariamente surge correlacionada com o local de residência, com a localização da origem do abastecimento, com a existência de clientes fixos e com as expectativas formuladas relativamente à clientela potencial. A actividade está enquadrada legalmente pela regulamentação sobre o exercício da actividade comercial ambulante (decreto executivo nº 48/00 de 2 de Junho) que impõe o registo pelas autoridades municipais dos operadores, a posse de cartão de vendedor (e, no caso da venda de produtos alimentares, de cartão de sanidade) e a prática da actividade apenas em zonas autorizadas e delimitadas, bem como a posse de documentos comprovativos sobre a origem dos produtos. Neste decreto executivo é apresentada uma listagem de produtos cuja venda ambulante é interdita, na qual se incluem, entre outros, medicamentos, artigos de mobiliário, colchoaria, aparelhagem rádio-eléctrica, discos e afins, materiais de construção, artigos de óptica, relojoaria, moedas e notas de banco.
27Existe uma associação de classe, a Associação de Vendedores Ambulantes, que agrupa uma minoria de vendedores ambulantes que desenvolvem a actividade de forma legal.
28Em Luanda, o crescimento acelerado da informalização não pode ser dissociado da progressiva entrada das mulheres no mercado de trabalho (Lopes 2005). O decréscimo das oportunidades de emprego no sector formal, consequência do declínio económico, do crescimento acelerado da mão-de-obra urbana e dos efeitos dos programas de estabilização económica afectou de forma diferenciada os homens e as mulheres, provocando a deslocação massiva das mulheres para o sector informal. A concentração das mulheres nos empregos de menor nível de qualificação e de carácter mais temporário na função pública, o retrocesso generalizado do salário formal e as fortes barreiras, resultantes da envolvente sócio-cultural, relativas à entrada das mulheres no mercado de trabalho formal são alguns dos factores que explicam a deslocação das mulheres no sentido da economia informal.
29Na capital angolana, as mulheres constituem um dos grupos sociais mais significativos do mercado do trabalho informal de sobrevivência, estando maioritariamente presentes em alguns sectores de actividade. Constata-se uma nítida feminização do sector informal (PNUD 1999), como revelam as nuances de especialização verificadas no comércio a retalho informal : as mulheres dominam o comércio de alimentos, bebidas, artigos de uso doméstico, combustíveis – lenha e carvão – e moeda estrangeira, cabendo aos homens o predomínio na comercialização de bens de consumo duradouro, vestuário, medicamentos e produtos de bazar. Regista-se uma crescente concentração de mulheres no comércio e serviços e, particularmente, no comércio a retalho, uma vez que se trata da actividade que exige menor volume de capital inicial, não exige qualificações técnicas específicas, proporciona custos de oportunidade menos elevados e é conciliável com o desempenho das tarefas domésticas. Como foi referido, é muito expressiva a presença das mulheres no micro-comércio retalhista ambulante. No sector financeiro informal também se faz sentir uma forte presença das mulheres, através da presença constante das Kinguilas na proximidade dos mercados ou espalhadas pelas ruas da cidade, bem como das Kixikilas, as intervenientes nas associações de crédito e rotação de poupanças que funcionam como fonte da capital para os negócios (Ducados & Ferreira 1998).
30Em termos globais (Lopes 2005). a participação das mulheres nas actividades informais em Luanda desenvolve-se num contexto de cohabitação de diferentes padrões : descriminação, subalternidade e mudança : a presença dominante das mulheres foi constatada nos sectores de actividade que exigem menos recursos, em termos de acesso ao capital e de qualificação escolar e profissional, e que são também os sectores de actividade geradores de níveis de rentabilidade mais reduzidos (as designadas actividades de sobrevivência) ; a subalternidade das mulheres, no que se refere à sua fraca participação no mercado de trabalho formal e à sua participação dominante nos sectores inferiores do mercado de trabalho informal surgiu nitidamente correlacionada com níveis mais reduzidos de escolarização, comparativamente aos homens, facto que não pode ser dissociado das determinações decorrentes da envolvente sócio-cultural e das que emanam das dinâmicas exteriores que condicionaram o contexto local, nomeadamente o modelo colonial de organização do trabalho em que o mercado de trabalho formal em contexto urbano era formado quase exclusivamente por homens ; a importância crescente do papel das mulheres no quadro da economia familiar em contexto urbano indicia uma tendência de mudança, acentuada pelo processo de urbanização acelerada que a capital angolana registou, pela redução real dos rendimentos formais e pelas transformações na estrutura da população por sexo induzidas pelos efeitos da guerra civil prolongada.
* * *
31A descrição esboçada sobre alguns dos segmentos de actividade que caracterizam a economia informal de Luanda sugere algumas pistas para reflexão.
32Numa primeira leitura, sai reforçado um dos traços identificadores mais sublinhados pelos investigadores (Lautier 1994 ; 1995, Latouche 1998, Maldonado et al. 1999), que se refere à heterogeneidade e diversidade das actividades informais. O que implica a rejeição da tentação de um olhar uniformizante sobre uma realidade complexa e multidimensional. Do mesmo modo, parece resultar incontestável o importante papel socioeconómico que essas actividades desempenham, nomeadamente em relação às possibilidades que proporcionam em matéria de geração de ocupação e de rendimentos, indispensáveis à sobrevivência dos agregados familiares, e enquanto fornecedoras dos bens e serviços que satisfazem as referidas necessidades das famílias. Os estudos conhecidos sobre a realidade informal de Luanda (Adauta 1998, PNUD 1999) sustentam a tese de que a importância e o papel socioeconómico das actividades informais tem vindo a crescer no contexto da economia urbana de Luanda (42 % das famílias luandenses obtém rendimentos exclusivamente da economia informal, que assegura 20 % a 30 % do PIB não petrolífero e dá ocupação a 56 % da população economicamente activa). A constatação dessa crescente importância socioeconómica não deverá deixar de ter em conta que, a par de um amplo leque de virtualidades que poderão permitir potenciar, são também variados os problemas/bloqueios que a economia informal poderá originar.
33Relativamente aos efeitos positivos, evidenciam-se, entre outros : o potencial de criação de competências empresariais e profissionais ; o fornecimento de serviços sociais (educação, saúde) bem como a adequação dos bens e serviços que disponibiliza aos rendimentos e poder aquisitivo da grande maioria da população ; o papel fuundamental que desempenha no quadro dos sistemas de abastecimento e distribuição dos centros urbanos (comércio nos mercados, comércio de rua, comércio porta-a-porta, comércio ambulante, transporte de pessoas e mercadorias) ; a capacidade de inovação e de adaptação dos operadores informais, através do recurso a tecnologias adaptadas e/ou de origem local ; a criação e reforço da confiança pessoal, de laços sociais e de redes de integração social ; a criação de instituições e mecanismos que asseguram níveis mínimos de coesão e protecção social ; o reforço das competências de gestão, autonomia e responsabilidade social, nomeadamente no que se refere à criação, gestão e manutenção de equipamentos colectivos ; a criação e mobilização de práticas/instituições/recursos que financiam a actividade económica (associações mútuas rotativas de poupança e crédito, etc.) ou a produção de oportunidades de acumulação de capital, em diferentes áreas/subsectores de actividade (Lopes 2004b).
34Quanto aos efeitos negativos que resultam da expansão das actividades informais sublinhem-se, entre outras : a promiscuidade e interpenetração com práticas económicas associadas à designada economia ilegal ; a geração de focos de oportunidade para prática de extorsão e corrupção (aumentando dos custos de transacção) ; a fragilização da soberania do Estado (reduzindo a eficácia das políticas, instituições e mecanismos de regulação e controlo) ; a subtracção aos poderes públicos (centrais/regionais/locais) das receitas fiscais indispensáveis à concretização de políticas de protecção social e de programas de combate à pobreza e exclusão social e a possibilidade de poderem acentuar as desigualdades, a diferenciação e a exclusão social (por exemplo, de determinados grupos étnicos) (Ibid.).
- 19 Por externalidades negativas entendem-se os custos indirectos (económicos e sociais) suportados pel (...)
- 20 O segmento dos transportes colectivos urbanos de passageiros constitui, igualmente, um exemplo da p (...)
35A título ilustrativo, sublinhem-se algumas das externalidades negativas (económicas e sociais)19 que resultam da actividade dos candongueiros em Luanda : riscos acrescidos de segurança para os automobilistas e cidadãos em geral, focos potenciais de congestionamento de tráfego, de incremento da indisciplina e do caos na circulação rodoviária, estímulo às práticas associadas ao comércio ilegal de peças e acessórios, entre outras. Por outro lado, o carácter hibrido e plural de alguns dos segmentos de actividade, em que coexistem e se interpenetram o continuum formal-informal e o continuum informal-ilegal, e onde se registam estratégias de mobilidade dos actores no interior e entre os referidos eixos, torna difícil a categorização dos agentes económicos bem como a apreensão do modo de exercício da respectiva actividade. O mercado cambial em Luanda20 constitui um paradigmático case study : por um lado, surgem em cena instituições formais como o Banco Nacional de Angola (BNA), os bancos comerciais e as casas de câmbio em paralelo com agentes económicos informais, as kinguilas/doleiros, num enquadramento legislativo que restringe o exercício da actividade cambial apenas às referidas instituições formais ; por outro lado, revela-se indefinível e difusa a fronteira entre actividade legal e práticas ilegais, como resulta do facto de a provisão de moeda estrangeira e nacional que alimenta os circuitos cambiais informais/paralelos ser atribuída ao comércio import-export, ao tráfico de diamantes ou ao desvio de meios financeiros depositados nas instituições bancárias por quadros/funcionários dessas organizações ; acresce ainda que, se bem que de forma marginal, regista-se ainda a participação de outros actores institucionais como o ministério da Família e da Mulher, que patrocina um programa de microfinaciamento dirigido às kinguilas/doleiros, ou o Sindicato dos Trabalhadores do Sector Informal, onde está filiado um número significativo de kinguilas/doleiros que operam na cidade de Luanda e nos seus mercados. A economia informal, em alguns dos seus segmentos, corporiza um espaço específico onde co-habitam modernidade e tradição, onde o « antigo » se adapta à nova configuração que emana das exigências da economia mundial capitalista e do seu progressivo alastramento às diferentes regiões do planeta, da adopção de elementos, mecanismos, estrutura e valores que relevam da organização económica de tipo capitalista. Na actividade dos candongueiros, realizada em condições de incumprimento quase generalizado das disposições legais e dos regulamentos que enquadram ao exercício da actividade, verifica-se a coexistência de elementos modernos (a utilização de viaturas para assegurar o transporte de viaturas, o exercício da actividade em moldes organizativos – por exemplo, rotas pré-definidas – definidos à semelhança dos que são utilizados pelas empresas de transporte colectivo formais) com um modelo de relação laboral distinto do que caracteriza o assalariamento capitalista, tal como sucede com o processo de recrutamento (baseado essencialmente nas relações pessoais e de confiança). No caso dos zungueiros, constata-se a adaptação da actividade tradicional das quitandeiras e dos vendedores ambulantes ao novo contexto socioeconómico : já não são apenas mulheres os agentes económicos envolvidos na actividade, registando-se presença significativa de crianças, do mesmo modo que as mercadorias transaccionadas já não são apenas produtos hortícolas e frutícolas de produção nacional como sucedia nas últimas décadas do período colonial, abrangendo todo o tipo de produtos (refrigerantes, água, pilhas, cigarros, electrodomésticos, etc.). O segmento de actividade das kinguilas/doleiros permite também constatar a existência e a importância de regras endógenas ao exercício da actividade que não resultam do enquadramento normativo-legal : o código de conduta destes operadores parece resultar da influência da matriz sócio-cultural, que enfatiza as relações personalizadas e a ajuda recíproca, e que se traduz num compromisso entre a actuação individualizada de cada agente e as exigências de partilha comum de um espaço que o exercício da actividade impõe por necessidade de segurança (a actvidade é ilegal e mivimenta recursos financeiros elevados). Uma outra constatação evidencia a presença de estratificação socioeconómica e de mobilidade social, mesmo no caso dos segmentos de actividade situados nos escalões mais baixos da hieraraquia socioeconómica como é o caso das designadas actividades informais de sobrevivência.
36A existência de empresários candongueiros que iniciaram a sua actividade como motoristas ou a presença de empresários roboteiros no mercado Roque Santeiro são sinais indiciadores dessa dinâmica. Da informação recolhida, salienta-se ainda a confirmação da existência de barreiras à entrada nos negócios informais, barreiras que são de natureza financeira e de não financeira. Se as barreiras financeiras surgem como óbvias e elevadas no acesso à actividade empresarial no segmento dos candongueiros ou no das kinguilas/doleiros, não deixam também de se fazer sentir no caso dos roboteiros, enquanto que relativamente às kinguilas/doleiros se admite que sejam sobretudo as barreiras não financeiras que assumem um papel dominante. Interessante é ainda a constatação da presença e da intervenção, nuns casos mais significativa que noutros, de associações de classe que constituem parte activa do enquadramento no qual os agentes económicos desenvolvem a respectiva actividade (Associação de Taxistas de Luanda no caso dos candongueiros, Sindicato dos Trabalhadores do Comércio Informal no caso das kinguilas/doleiros e Associação de Vendedores Ambulantes no caso dos zungueiros).
- 21 Por capital social, entendem-se, as regras, normas, obrigações, reciprocidade e confiança incorpora (...)
37As práticas económicas dos diferentes agentes económicos não podem ser dissociadas das relações sociais em cujo contexto se concretizam. Se a generalidade dos actores observados actua em função de lógicas económicas individuais, não deixa de se fazer sentir a influência das estratégias dos grupos primários de pertença em que se inserem. Acresce ainda que mesmo num contexto de incremento do processo de individualização (consequência, entre outros factores, da urbanização acelerada e dos efeitos induzidos pela guerra civil prolongada no plano da desestruturação das redes sociais e das perdas/fragilização ao nível do capital social21), as relações pessoais e a confiança que emana das relações familiares e de proximidade continuam a desempenhar um papel importante na definição e na determinação das relações contratuais que se estabelecem entre os agentes económicos.
38Novembro de 2005